1. Memorial do Convento
Memorial do Convento constitui um memorial da época, mas pode ser considerado como
um romance do tipo social, na medida em que é feita a análise das condições sociais,
morais e económicas da corte de D. João V e do povo.
Memorial do Convento
Síntese
Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado de D. João V. no século
XVIII, procurando uma ponte com as situações políticas de meados do século X
Durante o reinado de D. João V, o rigor e as perseguições do Santo Ofício aumentam com
vítimas que tanto podem ser cristãos-novos como todos os considerados culpados de
heresias, por se associarem a práticas mágicas ou de superstição.
Memorial do Convento caracteriza uma época de excessos e diferenças sociais, que se
mantêm na atualidade: opulência/miséria; poder/opressão; devassidão/penitência;
Memorial do Convento é uma narrativa histórica que entrelaça personagens e
acontecimentos verídicos com seres conseguidos pela ficção.
Romance histórico, oferece-nos uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa no
início do século XVIII; romance social, dentro da linha neorrealista, preocupa-se com a
realidade social, em que sobressai o operariado oprimido; romance de intervenção, visa
denunciar a história repressiva portuguesa na primeira metade do século XX; romance de
espaço, representa uma época, interessando-se por traduzir não apenas o ambiente
histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do
ser humano.
Existem duas linhas condutoras da ação: a construção do convento de Mafra e as relações
entre Baltasar e Blimunda.
A ação principal é a construção do convento de Mafra, que entrelaça o desejo megalómano
do rei com o sofrimento do povo.
Paralelamente à ação principal, encontra-se uma ação que envolve Baltazar Sete-Sóis e
Blimunda Sete-Luas, numa história de espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia.
As duas ações, que se encaixam, sugerem uma profunda humanidade trágica.
Os espaços físicos e sociais privilegiados são Lisboa e Mafra.
As personagens servem a própria intenção do autor na necessidade de repensar os
acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e
pressentida no futuro.
As personagens femininas adquirem, na obra, claro relevo: D. Maria Ana é a rainha triste e
insatisfeita, que vive um casamento de aparecia e com escrúpulos morais nas relações
sexuais e nos sonhos; Blimunda é a mulher com capacidades de vidente e possuidora de
uma sabedoria muito própria, cheia de sensualidade e amor verdadeiro.
Saramago rejeita a omnipotência do narrador, na medida em que considera que o é o autor
que põe em causa o presente que conhece e o passado que lhe chega através das suas
investigações. Para Saramago a omnipotência do narrador é pura ficção.
2. Uma voz narrativa controla a ação narrada, as motivações e os pensamentos das
personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos valorativos.
A história torna-se matéria simbólica para refletir sobre o presente, na perspetive da
denuncia e dela extrair uma moralidade que sirva para o futuro.
Observando Memorial do Convento, julgamos que a escrita de Saramago persegue uma
preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua luta, as injustiças e os seus anseios,
a sua grandeza e os seus limites.
Em Memorial do Convento há, diversas vezes, um discurso de sobreposições narrativas
com uma voz que tanto descreve como desconstrói as situações, que dialoga com o
narratário ou manuseia as personagens como títeres, que domina os conhecimentos da
história ou se sente limitado, que faz ponderações ou ironiza.
Classificação (tipo de romance)
Romance histórico, social e de espaço que articula o plano da história com o plano do
fantástico e da ficção.
O título sugere memórias de um passado delimitado pela construção do convento de Mafra
e memórias do que de grandioso e trágico tem o símbolo do país.
Como ROMANCE HISTÓRICO, oferece-nos: uma minuciosa descrição da sociedade
portuguesa da época, a sumptuosidade da corte, a exploração dos operários, referências à
Guerra da Sucessão, autos de fé, construção do convento, construção da passarola pelo
Padre Bartolomeu de Gusmão.
Como ROMANCE SOCIAL, é crónica de costumes.
Como ROMANCE DE INTERVENÇÃO, pois apresenta-nos a história repressiva
portuguesa.
Categorias da Narrativa
Ação
O rei D. João V, Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu de Gusmão
protagonizam as diversas ações que se entretecem em Memorial do
Convento.
A ação principal é a construção do Convento de Mafra: entrelaçamento de dados
históricos com a promessa de D. João V e o sofrimento do povo que trabalhou no
Convento.
Conhece-se a situação económica e social do país, os autos de fé praticados pela
Inquisição, o sonho e a construção da passarola, as críticas ao comportamento do
clero.
Paralelamente à ação principal, encontra-se uma ação que envolve Baltasar e
Blimunda: fio condutor da intriga e que lhe conferem fragmentos de
espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia.
A ação no Memorial do Convento
Plano da narrativa histórica:
3. Construção do Convento de Mafra e do povo que o construiu – resultado de uma promessa
do rei D. João V para que a rainha D. Maria de Áustria concebesse um herdeiro.
Simboliza o sofrimento e, até a morte, do povo que trabalhou arduamente na sua
construção;
É denunciado o sistema social e político, com destaque para a exploração das
classes desfavorecidas;
Oposição entre opressores e oprimidos.
Plano narrativo da construção da passarola:
Construção de uma máquina capaz de subir ao céu apenas com a vontade humana.
Simboliza o espaço de sonho, criado para alcançar a liberdade em tempos de
Inquisição;
Elogio do sonho de voar
Plano da narrativa da história de Baltasar e Blimunda:
Juntos, pelo amor, tornarão a terra habitável.
Simboliza o verdadeiro amor, diferente do a mor do rei e da rainha.
As personagens em Memorial do Convento
As personagens dividem-se em referenciais (históricas) e ficcionais. As referenciais
pertencem à História, representam a classe dominante e o alto clero, mas são objeto de
sátira. As ficcionais são as personagens criadas pelo autor que interatuam com as reais
tornando-se verosímeis. São símbolo do contrapoder, do amor, do sonho e da utopia. A
intencionalidade do autor de Memorial do Convento é tornar memorável o sofrimento e a
dor, a tortura e a tirania exercida sobre milhares de homens que ajudaram a construir o
convento. A personagem central do romance é o povo trabalhador, maltratado e a viver em
extrema pobreza. A individualização dos nomes, pretende demonstrar que os trabalhadores
eram seres humanos com rosto e vida própria que renunciaram à sua identidade para tornar
possível a vontade do rei megalómano.
Tempo do Discurso
O tempo do discurso é organizado pelo narrador e detetado no próprio texto, pela forma
como relata os acontecimentos. É apresentado através da ordenação linear da diegese ou
por alterações da cronologia, por intermédio de analepse (recuos) e prolepses (avanços).
Espaço em Memorial do Convento
Espaço Físico: Lisboa e Mafra são as cidades que servem de cenário à ação principal,
embora as personagens passem por outros locais e encontremos relatos no texto dessa
passagem. Lisboa e Mafra são os macro espaços. Mafra é o espaço que faz a ligação com
os factos históricos. Os micro espaços relacionados com Mafra são o Alto da Vela (local
escolhido para a construção do Convento de Mafra), Pero Pinheiro (palco do episódio do
transporte de uma grande pedra para o Convento), Serra do Barregudo, Serra de
Montejunto e Torres Vedras. Lisboa serve de palco e cenário das injustiças sociais.
Relacionados com Lisboa existem micro espaços que se destacam, tais como o Terreiro do
Paço, o Rossio e São Sebastião da Pesqueira (Local onde se construiu a passarola).
4. Espaço Social: É construído pelo relato de momentos e o percurso de personagens
representativas de um grupo social. Por exemplo: - os autos da fé (Rossio) e as touradas
mostram os gostos desumanos e cruéis do povo; - a morte dos condenados é festejada; -a
procissão da Quaresma (Lisboa) mostra os excessos praticados no Entrudo, a penitência
física; - o trabalho no convento simboliza o espaço de servidão humana.
Espaço Psicológico: O espaço psicológico é traduzido pela interioridade das personagens.
Revelado através de sonhos e pensamentos. Por exemplo: - os sonhos de Baltasar quando
lavrava o Alto da Vela; - pensamentos do padro Bartolomeu sobre o voo da passarola.
Dimensão crítica
O título Memorial do Convento tem duplo valor simbólico: a evocação do passado e o
universo mágico criado pela ficção. Entrecruzam-se a grandiosidade do poder absoluto, o
sonho e a utopia. A dimensão simbólica da obra está na reinvenção da História para fazer o
leitor refletir sobre o momento presente e extrair moralidade para o futuro.
Sátira e crítica social
No Memorial do Convento opõe-se alegoricamente a desumana construção do colossal
convento, imposta por cumprimento da vontade divina, à construção da passarola,
verdadeira metáfora do homem que, pelo sonho e pela vontade, se eleva acima da sua
condição. Os objetivos ideológicos da obra são a denúncia e a crítica às mortes durante a
construção do convento de Mafra e o excesso de riqueza e luxo da corte e da Igreja. A
crítica e sátira social é feita à religião, ao clero, às ordens religiosas, ao povo, à prepotência
do rei e às diferenças sociais. Trata-se de uma caricatura da sociedade portuguesa do
tempo de D. João V.
Dimensão simbólica
Título “Memorial”: Significa a grandiosidade e a tragédia; sugere memórias de um passado
(construção do Convento de Mafra);
Convento de Mafra: Uma promessa feita por D. João V. Este projeto megalómano reflete
um período de prosperidade económica para Portugal, e simboliza a ambição desmedida
deste monarca. Paralelamente, o Convento de Mafra enaltece a miséria e o grande
sacrifício dos homens que trabalharam na sua construção para satisfazer um capricho do
rei.
Passarola: O padre Bartolomeu de Gusmão inventou o aeróstato e chamou-lhe passarola
(pássaro e balão). D. João V forneceu-lhe os meios económicos para a construção da
máquina. A construção de uma máquina voadora, ainda que através de conhecimentos
científicos, opunha-se à intolerância religiosa da época. Padre Bartolomeu, por medo da
Inquisição, acabou por fugir e enlouquecer. A construção da passarola e a realização do
sonho de voar, simbolizam a elevação do Homem a uma dimensão divina.
Baltasar Sete-Sois e Blimunda Sete-Luas: Representam a totalidade e perfeição (sol e lua);
representam o amor e a complementaridade (masculino/feminino).
Números: Três – Representa a trindade terrestre (Bartolomeu, Baltasar e Blimunda) - o trio
representa a amizade e a unidade, o saber, o trabalho e a magia. Sete – Totalidade e
perfeição. Nove – Representa a gestação e a renovação (nove anos andou Blimunda à
procura de Baltasar).
5. Música: Apresenta um Poder Mágico (eleva o homem e revela poderes curativos).
Vontades: Representam o espírito; as vontades unidas na mesma causa podem vencer a
ignorância, o fanatismo e a intolerância, elevando o homem a uma nova dimensão.
Cobertor: Marca o casamento real por conveniência.
O estilo de José Saramago
O estilo saramaguiano é de subversão de convenções, nomeadamente, na pontuação. O
estilo oralizante aproxima narrador e leitor. Pode-se ler Memorial do Convento à luz da
época e da estética barroca. A imitação do estilo barroco está presente na construção
sintática, nas figuras conceptuais e nos exagerados ornamentos retóricos, que em muito
contribuem para prender a atenção do leitor. Ao recriar, pelas técnicas da paródia e do
pastiche, o cenário histórico, as temáticas e a linguagem da época, Saramago cria o género
romance na literatura barroca. Este romance é um elogio ao barroco. Começa nesta obra o
trajeto novelístico de José Saramago, que adota uma técnica de texto corrido. Esta técnica
integra o discurso das personagens no discurso do narrador, por vezes sem quebra de
pontuação ou adotando uma pontuação subjetiva. O narrador, por sua vez, vai acentuando
o carácter oral da sua voz e emite juízos de valor sobre o texto que escreve. A ausência de
pontuação contribui para a pluralidade de vozes que ocorre em diálogo no texto, criando
uma espécie de linguagem coral.
A linguagem em Memorial do Convento
Ironia – Na descrição inicial do rei e da rainha, que tem como objetivo ridicularizá-los;
Recurso à intertextualidade – através da referência a outros escritores como Camões ou
Fernando Pessoa;
Referências religiosas e bíblicas – dogmas de fé, rituais religiosos, o sagrado e o profano
misturam-se;
Discurso expressivo – hipérboles, comparações, metáforas, personificações, paralelismo
anafórico, enumerações;
Discurso argumentativo – jogo de palavras e de conceitos, aproximação à prosa barroca –
cultismo e concetismo;
Predomínio dos tempos verbais – presente e futuro; Uso subversivo da maiúscula – no
interior da frase, inserindo o discurso direto;
Persuasão do leitor – descrições plásticas, subjetivas, sugestões visuais, apelo a todos os
sentidos (imagens visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis);
Riqueza da linguagem – pela capacidade de reinvenção da escrita, pelo tom de crónica
histórica, pela ironia que desperta e provoca o leitor, pelas reflexões, pelos momentos de
intimidade poética;
Pontuação – no discurso direto (diálogo) há ausência do travessão e dos dois pontos.
Substituição do ponto de interrogação e outros sinais pela virgula. O início de cada fala
assinalado apenas pela maiúscula.
Marcas de oralidade – Expressões triviais, frases idiomáticas, provérbios, ditados populares,
aforismos, humor, ironia. Mistura de discursos – direto, indireto, indireto livre e monólogo, a
lembrar a tradição oral (contador e ouvintes interagem);
Registos de língua – abunda o nível de língua familiar.
Conclusão
Este romance narra a proeza dos operários que construíram o Convento de Mafra e relata,
paralelamente, a aventura de construção da passarola voadora pelo padre Bartolomeu
Gusmão, ajudado por Baltasar e Blimunda.
6. Na abordagem do assunto Histórico, a reconstituição do passado faz-se de forma exata e
documentada e combina-se também, no real quotidiano, o sobrenatural e o fantástico,
problematizando o sentido e o devir da ação humana. A narrativa está focalizada na história
de amor de Baltasar Sete-Sóis, soldado maneta a trabalhar no estaleiro do convento, e de
Blimunda Sete-Luas, uma visionária que capta as vontades humanas. Memorial do
Convento começa com personagens nobres, mas é o povo que o narrador mais valoriza. As
personagens são as figuras do puzzle, possibilitando a mistura dos limites da realidade e da
ficção. Há personagens da História, personagens reinterpretadas na ficção e personagens
individuais e coletivas.
Breve análise de Memorial do Convento
A mistura de personagens reais e fictícios é utilizada por Saramago para abordar temáticas
como o amor, as relações humanas, a religião e a exploração do povo miserável em prol
das vontades dos homens poderosos.
Além disso, o autor faz também uma reflexão acerca da perseguição da igreja em Portugal
no século XIX àqueles que não seguiam os dogmas do catolicismo, sendo estes (judeus,
cristãos-novos, muçulmanos) acusados de bruxaria.
O dilema entre a liberdade do amor é outro assunto ao qual Saramago se dedica –
enquanto a rainha era submissa ao rei, sem liberdade para amar, Blimunda, uma mulher
despojada e sem pudores, era livre para viver o seu romance com Baltasar.
Assim, podemos dizer que Memorial do Convento se trata de um romance que critica a
história, a sociedade e a hipocrisia religiosa, temática recorrente na obra de Saramago e
que por tantas vezes causou indisposição entre o célebre escritor e a Igreja Católica de
Portugal. Com uma estrutura cambiante, Memorial do Convento promove, por meio da
apresentação dos factos, uma revisão crítica da narrativa histórica, destituindo-a da sua
condição de oficial e, logo, passível a interpretações.
7. Síntese (Procissão da Quaresma, autos de fé e Procissão do Corpo de Deus)
As procissões e os autos de fé caracterizam Lisboa como um espaço caótico, dominado por
rituais religiosos cujo efeito exorcizante esconjura um mal momentâneo que motiva a
exaltação absurda que envolve os habitantes.
A desmistificação dos dogmas e acrítica irónica do narrador ao clero subjazem ao ideário
marxista que condena visão redutora do mundo que a igreja apresenta, que condiciona
os comportamentos, manipula os sentimentos e conduz os fiéis a atitudes
estereotipadas.
A violência das touradas ou dos autos de fé apraz ao povo que, obscuro e ignorante, se
diverte sensualmente com as imagens de morte, esquecendo a miséria em que vive.
O trabalho do Povo no Convento
Mafra simboliza o espaço de servidão desumana a que D. João V sujeitou todos os seus
súbditos para alimentar a sua vaidade.
Vivendo em condições deploráveis, os trabalhadores foram obrigados a abandonar as suas
casas e a erigir o convento para cumprir a promessa do seu rei e aumentar a sua
glória.