SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 116
Descargar para leer sin conexión
HISTÓRIA DA CRIANÇA, NO BRASIL
MARY DEL PRIORE, ORG.
da criança
no brasil
COLEÇãO
CAMINHOS DA HISTóRIA
Unable to recognize this page.
história
da criança
no brasil
Mary Del Priore (org.)
Laura de Mello e Souza/Luiz Mott
Lana Lage da Gama Lima/Renato Pinto Venancio
Kátia de Queirós Mattoso/Mirim Lifchitz Moreira Leite
Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura
Fernando Torres Londono/Edson Passetti
C E D H A L
Copyright (~) 1991 Mary Del Priore
Coleção: CAMINHOS DA HISTóRIA
llustraçao de Capa: Detalhe de desenho infantil
Revisão: Maria Aparecida Monteiro Bessana
e Luiz Roberto Malta
Composição: Veredas Editorial
Impressão: Parrna Gráfica e Editora
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
História da criança no Brasil / Mary del Priore (orlu). - São
Paulo: Contexto, 1991.--(Caminhos da história)
Bibliografia.
ISBN 85-7244-001-1
1. Crianças--Brasil--Aspectos sociais 2. Crianças - Brasil -
História 1. Del Priore, Mary. Il. Série
91-1015 CDD-362.70981
índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Crianças: História Bem-estar social 362.70981
1991
Proibida a reprodução total ou parcial.
As infrações serão processadas na forma da lei.
Todos os direitos reservados à
EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.)
Rua Acopiara, 199 - 05083 - S. Paulo- SP
Fone: (011) 832-5838 - Fax: (011) 832-3561
íNDICE
Introdução ..............
1. O Papel Branco, a Infancia e os Jesuítas na Colônia ..10
Mary Del Priore
2. O Senado da Camara e as Crianças Expostas ............28
Laura de Mello e Souza
3. Pedofilia e Pederastia no Brasil Antigo ..............44
Luiz Mott
4. Abandono de Crianças Negras no Rio de Janeiro ........61
Lana Lage da Gama Lima/Renato Pinto Venancio
5. O Filho da Escrava
Kátia de Queirós Mattoso
6. O óbvio e o Contraditório da Roda ....................98
Miriam Lifchitz Moreira Leite
7. Infancia Operária e Acidente do Trabalho em São Paulo . . 112
Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura
8. A Origem do Conceito Menor ...........................129
Fernando Torres Londono
9. O Menor no Brasil Republicano ........................146
Edson Passetti
Os Autores no Contexto ..................................176
INTRODUÇÃO
Nesta coletanea, os trabalhos de autores, pesquisadores do Centro de
Demografia Histórica da América Latina (CEDHAL), pertencente à
FFLCH/USP, fazem parte integrante de uma pesquisa desenvolvida sob
orientação da profa. dra. Maria Luiza Marcílio e sob os auspícios da FINEP,
sobre a história do menor carente e abandonado no Brasil.
Esta coletanea reúne artigos que procuram esclarecer como vi-
veram ou eram vistas as crianças em vários momentos da história do
Brasil. Seus textos apontam também para o transito entre o anoni-
mato - durante anos elas foram tão-somente crianças -, e o presente,
que pretende reconhecer-lhes seu papel protagônico e sua condição
de cidadãos com direitos e deveres.
Vale lembrar que a história da criança fez-se à sombra daquela
dos adultos. Entre pais, mestres, senhores ou patrões, os pequenos
corpos dobraram-se tanto à violência, à força e às humilhações,
quanto foram amparados pela ternura e os sentimentos maternos.
A trajetória dos pequenos entre os grandes--homens ou mulheres--,
permitiu aos autores vislumbrar o papel que desempenhou a infancia
numa sociedade vincada por contradições econômicas e mudanças
culturais, ao mesmo tempo em que se revelava o comportamento
dessa sociedade em relação à vida e à morte de seus filhos.
No entanto, quem lê adultos, leia também instituições; pois
esta história que contamos, lança luzes sobre crianças prisioneiras da
escola, da Igreja, da legislação, do sistema econômico e, por fim, da
FEBEM, numa linhagem extensa de tarefas e obrigações que as des-
dobravam, no mais das vezes, em adultos. Enfaticamente orientadas
para o aprendizado, o adestramento físico e moral e para o trabalho,
perguntamo-nos se havia entre elas tempo e espaço para o riso e a
brincadeira. Perguntamo-nos se em algum momento elas se sentiam
realmente crianças.
Resgatar a história da criança brasileira é dar de cara com um
passado que se intui, mas que se prefere ignorar, cheio de anônimas
tragédias que atravessaram a vida de milhares de meninos e meninas.
O abandono de bebês, a venda de crianças escravas que eram sepa-
radas de seus pais, a vida em instituições que no melhor dos casos
significavam mera sobrevivência, as violências cotidianas que não
excluem os abusos sexuais, as doenças, queimaduras e fraturas que
sofriam no trabalho escravo ou operário foram situações que empur-
raram por mais de três séculos a história da infancia no Brasil.
Contudo, se é verdade que desta história surge uma imagem do auto-
ritarismo e indignidade impostas por adultos às crianças, surge tam-
bém uma história de amor materno e paterno, de afeto e de humani-
dade das inúmeras pessoas que acima de preconceitos e interesses
mesquinhos, deixaram-se sempre sensibilizar com aqueles que, antes
de tudo, são os mais carentes e indefesos dos seres humanos.
Uma das características marcantes dos trabalhos aqui reunidos
é a busca das vozes dessas crianças através da pesquisa e da revalo-
rização do documento histórico. Uma garimpagem na imensa, frag-
mentária e fascinante massa documental em arquivos e bibliotecas,
levou os autores a empreender a descoberta exaustiva e diligente de
documentos sobre o passado da criança brasileira que Ihes permitiu
ter um outro olhar, uma outra percepção sobre a infancia. As cartas,
memórias, registros e cartilhas trazem, no entanto, a fala do adulto
sobre a criança. Foi preciso ler nas entrelinhas, decifrar lacunas e
apontar temas a serem proximamente desenvolvidos para que o cená-
rio ficasse mais completo. O silêncio, contudo, permanece quanto
aos jogos e brincadeiras, a literatura infantil, a saúde e a educação.
Há ainda pistas sobre os "filhos de criação", estes personagens do
cotidiano no passado e no presente, que apenas tangenciamos.
Por isso, fomos até os primeiros momentos da então colônia de
Santa Cruz para observar a tentativa de adestramento físico e mental
a que foram submetidas as crianças indigenas, pelos jesuítas (Del
Priore). Examinaram-se aspectos da sexualidade infantil, como a pe-
derastia, desnudando a carga de violentos preconceitos que já exis-
tiam nas Minas setecentistas (Mott) bem como também a discrimina-
ção racial na adoção de "enjeitadinhos mulatos" (Mello e Souza).
No século XIX, o sofrimento da criança tornava-se especial-
mente palpável, pois este é o momento por excelência do "enjeita-
mento" que teve entre as crianças negras do Rio de Janeiro as suas
maiores vítimas (Lima/Venancio). Na Bahia, no mesmo período, a
Lei do Ventre Livre modificava as relações parentais e o destino das
crianças filhas de escravos (Mattoso). Já aos finais do século XIX, a
Roda dos Expostos, instituida pela Santa Casa de Misericórdia pro-
movia uma espécie de infanticídio maquiado com as crianças aban-
donadas à sua porta (Moreira Leite). A virada do século acusa a pre-
sença de crianças no trabalho fabril, sofrendo acidentes e distantes
de qualquer proteção da lei (Moura). A Primeira República marca a
entrada em cena do conceito de menoridade e adensam-se as rela-
ções entre Estado e Sociedade para disciplinar o menor (Londono),
até que a FUNABEM e a FEBEM, encarnando o Estado-preceptor,
passam a ditar regras sobre a marginalização do menor abandonado
(Passetti).
Do período colonial à República dos anos 30 assistimos ao de-
senrolar e ao desdobramento desses assuntos complementares, ano-
tando que se a criança é o grande ausente da História, ela é, por um
paradoxo, o seu motor. Ela é o adulto em gestação. Apenas estudan-
do a infancia e compreendendo as distorções a que esteve submeti-
da, teremos condições de transformar o futuro das crianças brasilei-
ras. E de nos transformar através delas.
História da Criança no Brasil quer ser uma contribuição na ta-
refa de reconstituir o dificil caminho que a sociedade brasileira tem
percorrido para reconhecer, na criança, um ser autônomo e digno.
Caminho este, que supõe de nós adultos, a renúncia a nossa natural
onipotência.
Mary Del Priore e Fernando Londono
O SENADO DA CAMARA
E AS CRIANÇAS EXPOSTAS (*)
Laura de Mello e Souza
CONSIDERAÇÕES
No decorrer de uma investigação sobre a vida cotidiana em
Minas na segunda metade do século XVIII, trabalhei com o Livro de
Matnculas de Expostos n° 558, pertencente ao Acervo Documental
da Câmara Municipal de Mariana e que, até o presente momento, foi
consultado pouquíssimas vezes, constituindo um corpus documental
praticamente virgem. Num total de 226 matrículas, ou seja, registros
feitos pelo Senado da Camara com dados referentes a criancinhas
abandonadas nas ruas e logradouros públicos da Cidade de Mariana
entre 1751 e 1779, quatro casos me chamaram a atenção por destoa-
rem completamente do conjunto - no resto, uniforme, repetitivo e
contendo informações secas.
Três dessas matrículas faziam restrições à possível mulatice
que se viesse a constatar nas crianças enjeitadas; uma outra dizia
coisas estranhas acerca da criação de um exposto negro por seu senhor.
Quero ressaltar que, sendo novata no estudo da exposição de crian-
Versão alterada de artigo publicado com o título "O Senado da Câmara e
as CrianSas
Expostas: Minas Gerais no século XVIII", na Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, n° 31, São Paulo, 1 989.
ças no Brasil colonial, decidi publicar os documentos em questão
após consultar colegas que há muito vêm lidando com o assunto,
como Renato Pinto Venancio e Iraci del Nero da Costa- autores de
alguns dos mais significativos estudos demográficos publicados no
Brasil nos últimos anos.1 Queria ainda deixar claro que a descoberta
documental causou estranheza a Jair de Jesus Martins, que trabalha
no projeto como auxiliar de pesquisa: foi ele, portanto, quem primei-
ro percebeu tratar-se de algo diferente, pouco usual, transcrevendo
as matrículas. Apesar de discutidas com os colegas e com o pesqui-
sador, as hipóteses e considerações contidas neste artigo são de mi-
nha inteira responsabilidade.
O grave problema representado pelas crianças abandonadas
remonta à Antiguidade, estendendo-se por toda a Idade Média, con-
forme estuda John Boswell em The Kindness of Strangers.2 Mas foi
na Época Moderna que a preocupação com a infancia abandonada
mostrou-se mais candente, a partir do momento em que a pobreza se
tornou onerosa ao Estado e a idéia de que o aumento populacional
embasava a riqueza das nações tomou contornos definidos.3 Em
Portugal, a legislação deixava às camaras a tarefa de passar o encar-
go da criação dos enjeitados para as Santas Casas de Misericórdia,
procedimento que, como bem viu Charles Boxer, vigorou em todo o
Império Luso, constituindo-se em um de seus pilares.4 Em Salvador
e no Rio de Janeiro os mecanismos de recolhimento de expostos já
estariam delineados na primeira metade do século xvIII, atestando,
segundo Laima Mesgravis, a importancia urbana de tais centros.5
Mas justamente em Minas, no século XVIII a capitania mais urbani-
zada da colônia, a situação permaneceu confusa. Há indícios de que
as Irmandades tomaram a si a tarefa de cuidar das crianças expostas,
conforme consta, por exemplo, do Estatuto da Irmandade de Santa
Ana, Vila Rica, instituição criada em 1730 e preocupada, em seu ar-
tigo 2°, em fundar- tão logo seus recursos o permitissem- "uma
casa de expostos e asilo de menores desvalidos".6 Na prática, en-
tretanto, as evidências pendem mais para que se credite ao nobre
Senado da Camara a função de pôr e dispor da vida das crianças
abandonadas. Em sua célebre Memória Histórica da Capitania de
Minas Gerais, que veio a público em 1781, José Joaquim da Rocha
incluía a criação dos enjeitados entre as despesas de pelo menos três
Camaras Municipais: nas de Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do
Príncipe e São João del Rei.7 O fato de omitir tal encargo quando
tratou das demais vilas deve antes ser creditado a descuido do que à
ausência dos demais senados na criação dos bebês abandonados.
Durante o século xvIII, a exposição de crianças cresceu em
Minas de forma alarmante, assumindo, no final do período, propor-
ções catastróficas. Entre 1724 e 1733, Iraci del Nero da Costa en-
controu quatro casos de crianças enjeitadas entre os assentos de ba-
tismo que consultou; já para o período compreendido entre 1799 e
1808, o número saltou para 167.8 Exaustivamente discutida, a roda
dos expostos de Vila Rica só se concretizaria, ao que tudo indica,
em 1831, apesar de ter sido aprovada pelo Senado e obtido licença
real em 1795.9 No penúltimo lustro do século, já em pleno drama da
decadência aurífera, era a Camara que continuava arcando com a
criação dos enjeitados: ainda em Vila Rica, o Senado aceitava a en-
jeitada Rita, exposta na porta de José Alves Maciel na Fazenda dos
Caldeirões, batizada na capela do Chiqueiro e entregue pelos verea-
dores à crioula forra Filipa Vaz, moradora junto à ponte do Rosário
e, a partir de então, paga com 24 oitavas de ouro por ano durante os
três primeiros anos, os da lactação do bebê; nos quatro anos restan-
tes, a quantia seria de 16 oitavas anuais, conforme estipulado por
lei.10
Maria Beatriz Nizza da Silva fornece elementos importantes
para melhor se entender o papel das camaras municipais na criação
dos expostos durante o período colonial, chamando a atenção para a
alternancia que podia se estabelecer, nesta tarefa, entre o Senado e
as Misericórdias. Sem citar a data, transcreve um documento dirigi-
do à Mesa do Desembargo do Paço por Clara Maria da Conceição,
viúva que morava na vila do Sabará e que tinha sido encarregada
pelos oficiais da mesma vila de criar "vários enjeitados, uns que fo-
ram matriculados, e outros que não o foram, se bem que de todos de
uma e outra classe lhe foi incumbida a dita criação, com a conven-
ção de pagar-se-lhe o estipêndio do estilo, o que agora recusa a dita
Camara".11
Caio Cesar Boschi, por fim, deixa claro que, nas Minas, a cria-
ção dos enjeitados recaía basicamente sobre as irmandades ou sobre
as camaras, estas últimas, muitas vezes, deixando de cumprir o pro-
metido: o pagamento das mensalidades aos criadores ou às amas de
leite. Tais mulheres, por sua vez, não obedeciam às determinações
de apresentar periodicamente as crianças às camaras, e esta mútua
desconsideração explicaria, em parte, o alto número de mortes entre
os enjeitados.12
A súplica da viúva Clara revela, de fato, a desobediência
da Camara ante a lei, e sugere que, desta forma, o nobre Senado
deixava ao desamparo os seres frágeis e pequeninos colocados -
pelo menos em tese - sob sua responsabilidade. Por outro lado, é
inegável que a vereança municipal se preocupava seriamente com as
crianças abandonadas, castigadas, às vezes de forma irreversível,
pela rudeza do clima ou pelos animais domésticos. Na carta com
que, em fevereiro de 1795, o Senado de Vila Rica explicava a ne-
cessidade da roda de expostos ao Ouvidor Geral, ficava dito que as
mães, envergonhadas dos frutos de seus amores ilícitos, "logo que
os dão à luz os mandam levar às portas de casas particulares, aonde
ou os não recebem, ou, se o fazem, é já quando os míseros recém-
nascidos se acham a expirar, tendo até sucedido serem devorados
por animais, sucessos que fazem gemer a humanidade".13 Para
Francisco Antonio Lopes, esses animais seriam sobretudo os porcos
que habitualmente vagavam por Vila Rica e, desde a década ante-
rior, tinham se tornado objeto de seguidas críticas por parte das dis-
posições oficiais.
A dureza da vida cotidiana na capitania do ouro, constante-
mente fustigada pelo Fisco, a difusão dos concubinatos e uniões es-
porádicas, a precariedade das condições de higiene e saneamento
nos aglomerados urbanos - os tais porcos que perambulavam pelas
vias públicas - servem como indicadores de que seria alta a porcen-
tagem de exposição nas Minas. Por outro lado, a fragilidade das Mi-
sericórdias no desempenho das funções assistencialistas, a impossi-
bilidade das Irmandades assumirem totalmente a criação dos expos-
tos e a indefinição legal da Metrópole, vigente até 1775, devem
certamente ter contribuído para que grande parte das crianças ex-
postas morressem antes mesmo de serem matriculadas nos assentos
camerários. Talvez aqui esteja uma possível resposta à questão colo-
cada por Maria Beatriz Nizza da Silva no tocante ao menor número
de enjeitados paulistas e coloniais quando comparados aos europeus
do mesmo período, na Sociedade de Antigo Regime.14 Não quero
com isso afirmar, evidentemente, que fosse boa a situação européia:
basta ler o terrível artigo de Michelle Perrot sobre as crianças confi-
nadas na Petite Roquette, já em pleno século XIX, para afastar tal
possibilidade.15 Quero apenas sugerir que a indefinição de uma po-
lítica com relação a expostos e o fato de muitas crianças sequer se-
rem registradas encobre, talvez, uma taxa de mortalidade mais alta
do que a cogitada até o presente momento.
Foi em 1775, com um famoso Alvará, que o ministro Sebastião
José de Carvalho e Mello regulamentou de forma mais estrita e defi-
nitiva a questão das crianças expostas: é, sem dúvida, a mais impor-
tante lei existente no século XVIII sobre o assunto, mas se volta so-
bretudo para a relação entre enjeitados, Santa Casa de Misericórdia
e Juiz de Órfãos, deixando de lado a questão das Camaras. Até en-
tão, haviam sido elas as principais responsáveis pela criação dos
enjeitados. A partir dessa data-marco, intensificou-se a luta pela
criação das rodas de expostos nas Misericórdias ou mesmo em casas
de particulares, desde que seus habitantes fossem casais honrados e
de bons costumes.16
Voltemos, porém, à documentação dos expostos existente na
Camara de Mariana e abaixo transcrita. Num conjunto de 226 matrí-
culas, 10 foram declaradas sem efeito por se darem a conhecer o pai
e/ou a mãe do exposto, havendo ainda 23 falecimentos. Presume-se
que estes digam respeito aos expostos que continuaram sob encargo
da Camara, portanto os demais 216: seria, assim, de 10,65% a taxa
de mortalidade entre os expostos criados pelo Senado de Mariana-
o que novamente remete à questão de uma presumível taxa de mor-
talidade elevada entre as crianças expostas que não chegavam a ser
matriculadas. Porém, o que mais chama atenção nos documentos
abaixo reproduzidos é a recusa da Camara em criar três dos enjeita-
dos, que se suspeitava serem mulatos, e a devolução de um exposto
escravo ao seu senhor - todos eles, procedimentos inusitados e, pro-
vavelmente, ilegais.
Comecemos pelos presumidos mulatinhos. Todos os três foram
matriculados no mês de maio de 1753, mais de vinte anos, portanto,
antes que Pombal legislasse sobre os expostos em seu Alvará. A to-
dos os três se prometeu pagar 3 oitavas de ouro por mês, perfazendo
36 oitavas anuais - quantia superior à de 24 oitavas que a Camara
de Vila Rica pagavapor ano para a criação da enjeitada Rita, no pe-
núltimo lustro do século XVIII, entre 1790 e 1795 (não temos a data
precisa). Em quarenta anos, o Senado passara a economizar uma oi-
tava mensal no auxílio dado aos expostos durante o período inicial,
o considerado de lactação e que equivalia a três anos. A economia
mineradora entrara em derrocada, mas certamente teria havido tam-
bém alterações legislativas no período - a mais óbvia e evidente
sendo, como já foi dito, o Alvara pombalino. Num momento de cri-
se, a vereança considerara dispendiosa a contribuição anteriormente
estipulada para a criação de menores abandonados. Creio poder
afirmar que, mesmo em 1753, a verba destinada a esse fim não sairia
dos cofres públicos sem peso.
Não foi possível definir qual a legislação seguida pelas Cama-
ras mineiras, em meados do século, no tocante à criação de enjeita-
dos. As leis proibiam discriminação racial no exercício da caridade
camerária ou no das Misericórdias.17 Mas as matrículas de 1753 são
bem claras:
com declaração porém a todo o tempo que se declarar ser o
dito enjeitadinho mulato e não branco lhe não correrá o dito
estipêndio das três oitavas, mas antes será o dito obrigado a
repor tudo o que tiver recebido por conta da mesma criação...
(documento A).
A matrícula B repete a mesma fórmula, praticamente sem alte-
ração, diferindo apenas no fato de ser a criança do sexo feminino; a
matrícula apresenta novidade:
com declaração porém que a todo tempo que se vier no conhe-
cimento ser mulata e não branca lhe não correrá o dito estipên-
dio de três oitavas mas antes será o dito obrigado a repor ao
Senado tudo o que tiver recebido por conta da dita criação
Além de deixar claro - o que não ocorre nas matrículas ante-
riores - que a beneficiada pela devolução é a Camara Municipal,
este documento revela que a mestiçagem do exposto criado com
subvenção pública poderia ser revelada por acusações, por ouvir di-
zer, tal como ocorria nas Devassas Episcopais e nas Visitações do
Santo Ofício, reforçando a idéia de que, nos tempos coloniais, o po-
der se dissolvia nas microestruturas do cotidiano, fazendo da bisbi-
lhotice e da delação práticas corriqueiras e aceitas: "a todo tempo que
se vier no conhecimento" é uma fórmula significativamente diversa
de "a todo tempo que se declarar", pois esta pressupõe um ato vo-
lmtário, direto, sem intermediações. De uma ou de outra forma, a
Camara expressa claramente o seu propósito de não criar mulatos, e
revela que, por ocasião da matrícula, nem sempre se tinha conheci-
mento da cor do enjeitado - seja por não ser o mesmo trazido pe-
rante os vereadores naquele momento, seja por impossibilidade de se
definir a cor de recém-nascidos- como se sabe, é comum que traços
étnicos se mostrem após alguns dias ou mesmo meses -, seja ainda
por estarem cientes os interessados na criação do exposto de que a
legislação vigente ou a prática usual do Senado se furtava à criação
de mestiços de sangue negro.
Por que o "deslize", o ato falho dos camaristas marianenses
que, em três matrículas de expostos, colocaram a nu sua recusa ante
a criação de mestiços? Nas matrículas subseqüentes, retoma-se o tom
neutro, seco, formal adotado em tais registros. Mas as três matrículas
estão lá, como espinho, como nódoa, mas sobretudo como indício
aparentemente-insignificante e, na verdade, digno de exame detido.
Sobretudo quando se recapitula o modo de inserção do aparelho do
Estado nas Minas, muito mais preso a padrões europeus do que em
outros pontos da colônia, muito mais presente devido às necessida-
des de arrecadação do ouro e, também mais do que nunca, atento e
servil ante os interesses da Metrópole e dos segmentos dominantes,
surdo e refratário às especificidades coloniais.18
Isolados e excêntricos no conjunto das matrículas de expostos
existentes na Camara da Leal Cidade de Mariana, estes três docu-
mentos raros devem ser associados a outros tantos, mais numerosos
mas que pareceram igualmente extraordinários aos olhos de A. J. R.
Russell-Wood, o historiador inglês que melhor estudou a instituição
da Santa Casa de Misericórdia no Brasil Colonial e, conseqüentemente,
lançou luz sobre a questão da infancia abandonada naqueles tempos.
Debruçando-se sobre documentos referentes à vida de Manuel
Francisco Lisboa, grande arquiteto que passou para a História antes
como o pai de Aleijadinho do que devido a seu próprio e inegável
talento, Russell-Wood descobriu que aquele criara um enjeitado que
lhe expuseram à porta a 9 de abril de 1759, e que ele, já no dia
seguinte, batizou com o nome de Jacinto, na Matriz de Conceição de
Antonio Dias. O historiador inglês aproveita para frisar a diferença
entre a criação de expostos na Bahia, onde ficavam a cargo da Mise-
ricórdia, e nas Minas, onde recaíam sobre as Camaras; mas o ex-
traordinário é que aponte para a exigência imposta pelo Nobre Se-
nado aos criadores dos bebês abandonados: além da certidão de ba-
tismo, deveriam apresentar uma outra, de brancura. Apesar de exi-
gido pelas Ordens Terceiras do Carmo, de São Francisco, pela Ir-
mandade da Santa Casa de Misericórdia, o estatuto de pureza de
sangue não era demandado no caso da criação de expostos:
No caso de um enjeitado, tal insistência é bem surpreendente,
e nunca foi praticada na Bahia na época colonial, onde enjeita-
dos, fossem brancos, fossem pretos, foram aceitos pela Camara
e pela Santa Casa sem discriminação racial.19
Manuel Francisco Lisboa, que a essa altura já era pai de um
bastardo, um dos maiores gênios que a mestiçagem jamais produziu
em terras brasileiras, apresentou o atestado exigido, passado pelo
médico e cirurgião daquela Camara. Mas o caso de Jacinto não foi
único em Vila Rica: no Primeiro Livro de Enjeitados criados nesta
localidade às expensas do Senado, e que corresponde ao período de
1751-1758, exigiu-se certidão de brancura nos anos de 1757,1758 e
1759. Contraditoriamente, em 1763 a mesma Camara aceitaria a
criação do "enjeitado Domingos, crioulo ou cabra".20
Na década de 50, portanto, nas Minas como um todo ou parti-
cularmente na Comarca de Vila Rica - onde o censo de 1776 acusa-
ria um total de 12.679 brancos, 16.791 pardos e 49.148 negros (con-
siderando-se ambos os sexos), as autoridades camerárias demonstra-
vam, através de medidas restritivas e racistas, um temor ante a mis-
cigenação que tinha raízes nos primeiros decênios do povoamento
das Minas.21
Um após o outro, os governantes coloniais se alarmaram ante o
número crescente de negros - Assumar, que governou Minas entre
1717 e 1721, passou toda a sua gestão aterrado com a possibilidade
de uma insurreição escrava- e desqualificaram das mais diversas
formas a gente mestiça que ia surgindo a partir das inevitáveis
uniões mistas. Quando, no início da década de 30, a Coroa estudava
as possibilidades de se estabelecer nas Minas o imposto da capita-
ção, dirigiu ao governador André de Mello e Castro, conde das Gal-
vêas, uma série de cartas ordenando que examinasse as vantagens e
desvantagens da alforria. O governante respondeu que, apesar de se-
rem meio atrevidos, os forros trabalhavam nas lavras e contribuíam
para o pagamento dos impostos, afirmando, em seguida, que o ver-
dadeiro flagelo eram os mulatos, "porque a mistura que têm de
brancos, os enche de tanta soberba e vaidade que fogem ao trabalho
servil, com que poderiam viver, e assim vive a maior parte deles
como gente ociosa". Alarmado, o rei pediu a Galvêas que opinasse
sobre a necessidade de se "dar alguma providência acerca dos mu-
latos forros que vivem também em grande liberdade".22 Como bem
viu Julita Scarano em trabalho extremamente sensível às contribui-
ções do racismo numa sociedade escravista e mestiça, pardos e for-
ros eram vistos como perturbadores da ordem.23
Pilares do poder metropolitano em Minas, as camaras revela-
ram, em inúmeras representações, temor ante a sociedade mestiça
que se ia inevitavelmente formando na região. Na década de 50, as
autoridades ligadas ao Contrato da Extração de Diamantes no Dis-
trito Diamantino achavam que o contrabando desapareceria com a
destruição dos arraiais de pardos e forros, "porquanto os ladrões que
mais perseguem e roubam as terras dos diamantes são negros forros,
mulatos, cabras, mestiços e outros desta qualidade".24 Em 1775, os
mesmos camaristas de Mariana que, vinte anos antes, recusaram-se a
criar mulatos, criticavam "a muita desenvoltura com que vivem os
mulatos, sendo tal a sua atividade que não reconhecendo superiori-
dade nos brancos, se querem igualar a eles"; diziam ainda aqueles
"homens bons" que os "mulatos gastam em superfluidades e ofensas
a Deus".25
Em 1779, no seu famoso Relatório, o vice-rei marquês do La-
vradio via a mestiçagem colonial como a principal responsável pelos
defeitos da população do Brasil, composta de "tão más gentes". Era
impossível sujeitar e acalmar os "negros, mulatos, cabras, mestiços e
outras gentes semelhantes", pois eram "gentes da pior educação, de
um caráter o mais libertino".26 A reprovação da mestiçagem tomava
assim forma oficial, era endossada pelo vice-rei, que sistematizava
temores difusos e esparsos, tais como os que, em Minas, embasaram
atitude ilegal, racista e discriminatória assumida pela Camara da
Leal Cidade de Mariana no tocante à criação de bebês mulatos.
Resta agora refletir um pouco para a igualmente inusitada ma-
trícula do enjeitado José (documento D). O bebê fora exposto na ca-
sa de Manoel Pires da Costa, que, mediante pagamento das mesmas
três oitavas mensais, apresenta-se ao Senado da Camara com a dis-
posição de criá-lo. Entre esta matrícula e as anteriores, haviam-se
passado sete anos: talvez por isso ela se mostre mais enfática no que
diz respeito à real condição de enjeitado do menino, ou seja, ao fato
de não se conhecerem seus pais carnais: Pires da Costa apresenta
petição com despacho para matricular o pequeno José, "ao qual o
dito Juiz Presidente deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em
um livro dele em que pôs sua mão direita sob cargo do qual lhe en-
carregou declarasse se sabia quem eram os pais do dito exposto, e
por declarar não sabiam quem eram, mandaram se matriculasse..."
Os dados secos que se seguem não permitem senão conjecturas: dois
anos depois, constatou-se que o menino era filho de uma escrava de
Antonio de Magalhães Nunes, que passou então a criá-lo. Diz o do-
cumento: "sem efeito este termo por sair dono a este enjeitado, que
é Antonio de Magalhães Nunes..." Camara e senhor passavam por
cima da lei, consciente ou inconscientemente, para recuperarem,
respectivamente, as oitavas gastas e o escravo extraviado.
Maria Beatriz Nizza da Silva chamou a atenção para o fato de
que a questão dos expostos dizia respeito apenas à população livre,
pois, segundo o Alvará de 1775, o exposto de cor negra ou mulata
gozaria automaticamente de liberdade.27
.
Em seu admirável trabalho, Perdigão Malheiro mostra que re-
monta a Roma a legislação que declara a liberdade dos escravos ex-
postos, mesmo contra a vontade de seus senhores: seria esta a dispo-
sição legislativa incorporada pelo Alvará pombalino: "Por nosso di-
reito, devemos, igualmente, consignar que a liberdade pode vir ao
escravo, mesmo contra a vontade do senhor, por virtude da lei":
dentre tais casos, encontra-se o do "escravo enjeitado ou exposto",
que pelo Alvará ficava livre e ingênuo.28 Não se pode afirmar que o
exposto José tenha de fato sido reescravizado, mas tudo indica que
sim: foram freqüentes os casos de reescravização de forros e libertos
nas Minas, conforme analisei em trabalho anterior.29
Numa capitania em que, conforme já se disse, as Santas Casas
eram praticamente inexistentes, as práticas extravagantes do senado
de Mariana refletem a fluidez das atitudes camerárias ante questões
de assistência social, ou sugerem atitudes arbitrárias e indiferentes
ante a lei que, de resto, devia ser comum a todo o Império colonial
português.
A recusa em criar mulatinhos às expensas do erário público
se insere num contexto geral de horror à mestiçagem: a lei pode-
ria aparecer como justa, mas a prática acusava a mentalidade dis-
criminatória dos colonizadores e colonos brancos, bem situados na
escala social. A situação era tanto mais estranha quando se conside-
ra que a sociedade se tornava cada vez mais mulata, e mais difíceis
de cumprir os estatutos de pureza de sangue que vedavam o acesso
de portadores de sangue impuro às camaras e ao clero: a esquizofre-
nia e a hipocrisia brasileiras no que diz respeito à mestiçagem já se
delineavam e se constituíam nas práticas cotidianas mineiras no
século XVIII.
O caso do enjeitado reescravizado poderia passar como confu-
são. O fato se deu em 1762, antes do Alvará que colocaria na letra a
lei romana, possivelmente já contida nas Ordenações portuguesas ou
no corpo de Leis Extravagantes desde o fim da Idade Média. De
qualquer forma, as quatro matrículas de expostos existentes nos Có-
dices da Camara Municipal de Mariana e a exigência do Senado de
Vila Rica no tocante à apresentação de atestados de brancura para
enjeitados sugerem que teoria e prática andavam apartadas com fre-
qüência maior do que normalmente se imaginou - mesmo na Capita-
nia do Ouro, as Minas Gerais que, por todo o século XVIII, foi pe-
las riquezas que escondia "a pérola preciosa do Brasil"30 e, nesta
qualidade, mais vigiada do que qualquer outra região da Colônia.
Tais deslizes e "atos falhos" vinham ao encontro dos interesses me-
tropolitanos, mas talvez tenham se autonomizado algumas vezes. Por
outro lado, o fato de o senado agir de forma contrária às leis que
passariam a vigorar vinte e dois anos depois pode sugerir hipótese
diversa: a prática confusa e contraditória das camaras, que agiam se-
gundo suas próprias cabeças, teria alertado a metrópole no sentido
de criar uma legislação específica para a matéria - o que, ao fim e
ao cabo, não significa que ela viesse a ser sistematicamente
cumprida.
Não sou estudiosa de demografia nem da infancia abandonada.
As considerações acima devem ser vistas como alerta ou sugestão de
que, pelas camaras do Brasil, talvez existam outros documentos es-
tranhos e sugestivos. O fato de serem poucos ou esparsos não deve
assustar o pesquisador, nem inibir hipóteses: a extravagancia e a ra-
ridade são às vezes mais significativas do que a quantidade e a re-
petição, alertando o historiador para as limitações que envolvem o
esforço de compreensão do passado. Vários significados se perde-
ram para sempre, no decorrer do tempo; outros podem e devem ser
resgatados por investigações que, muitas vezes, não têm outra saída
a não ser a utilização de um paradigma indiciário, assentado em hi-
póteses, conjecturas e intuição.33
TRANSCRIÇÃO DAS
MATRICULAS ANALISADAS
José de Jesus Martins
A) Termo de Matrícula do Enjeitado José (p. 28V).
"Aos dezesseis dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três
anos nesta Leal Cidade e casas de moradas de mim escrivão adiante nomeado
e sendo aí por Domingos Moreira me foi apresentada uma sua pehção com
o seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais da camara
para efeito de se matricular o enjeitado por nome José ao qual assiste este Se-
nado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação com declaração
porém que a todo o tempo que se declarar ser o dito enjeitadinho mulato e não
branco lhe não correrá o dito estipêndio das três oitavas, mas antes será o dito
obrigado a repor tudo o que tiver recebido por conta da mesma criação tudo
na forma do despacho inserto na mesma petição que fica neste cartório e de
como assim o disse e se obrigou por sua pessoa e bens assinou com as teste-
munhas presentes Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto mora-
dores nesta cidade e reconhecidos de mim escrivão da Camara João da
Costa Azevedo que o escrevi".
Assinaram: Domingos Moreira, Manoel Coelho Varella e José de Al-
meida Barreto.
Consta em baixo: "Faleceu este enjeitado em 15 de agosto de 1753.
Está pago." (Rubricado pelo escrivão da Camara.)
B) Termo de Matrícula da Enjeitada por nome Maria (p. 29V).
"Aos dezenove dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três
anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de mim escrivão adiante
- nomeado e sendo aí por José do Couto Cruz morador nos Camargos me foi
apresentada uma sua petição com o seu despacho nela posto pelo Doutor Pre-
sidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular a Enjeitada por
nome Maria a qual assiste este Senado com três oitavas de ouro cada mês para
a sua criação com declaração porém que a todo o tempo que se declarar ser a
dita enjeitada mulata e não branca lhe não correrá o dito estipêndio de três
oitavas mas antes será o dito obrigado a repor tudo o que tiver recebido por
conta da mesma criação tudo na forma do despacho inserto na mesma petição
que fica neste cartório, e de como assim o disse e se obrigou por sua pessoa e
bens, assinou com as testemunhas presentes Manoel Coelho Varella e José de
Almeida Barreto moradores nesta cidade e reconhecidos de mim escrivão da
Camara João da Costa Azevedo que o escrevi".
Assinaram José do Couto Cruz, Manoel Coelho Varella e José de Al-
meida Barreto.
C) Termo de Matrícula da enjeitada por nome Maria digo por nomee
Clara (pp. 30V e 31)
"Aos vinte e três dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e
três anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de mim escrivão
adiante nomeado apareceu presente Manoel Rodrigues Viana morador nesta
cidade e reconhecido de mim escrivão e por ele me foi apresentada uma sua
petição com o seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais
da camara para efeito de se matricular a enjeitada por nome Clara à qual as-
siste o Senado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação, com de-
claração porém que a todo o tempo que se vier no conhecimento ser mulata e
não branca lhe não correrá o dito estipêndio de três oitavas mas antes será o
dito obrigado a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta da dita
criação tudo na forma do despacho inserto posto na dita petição que fica neste
cartório, e de como assim o disse e se obrigou assinou com as testemunhas
presentes Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto moradores nesta
cidade e reconhecidos de mim escrivão da camara João da Costa Azevedo que
o escrevi. E declaro que a dita enjeitada a deu a criar a Luiza Rodrigues do
Couto preta forra moradora nesta cidade e reconhecida de mim escrivão a
quem pertence o dito ordenado enquanto criar a dita enjeitada e de como a re-
cebeu assinou/ com uma cruz por não saber ler nem escrever, João da Costa
Azevedo escrivão da camara que o declarei"
Assinaram: Luiza Rodrigues do Couto - com cruz -, Manoel Coelho
Varella e José de Almeida Barreto
Consta em baixo: "Faleceu esta enjeitada em 22 de agosto e até esse dia
se mandou pagar Está pago" (rubricado pelo escrivão da camara.)
D) Termo de Matrícula do Enjeitado por nome José (p. 63V)
"Aos nove dias do mês de novembro de mil setecentos e sessenta anos
nesta Leal Cidade de Mariana e casa de moradas de mim escrivão adiante no-
meado e sendo aí presente Manoel Pires da Costa morador em São Caetano
por ele me foi apresentada uma sua petição com despacho nela posto pelo Juiz
Presidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular o Enjeitado
por nome José que lhe foi exposto, ao qual o dito Juiz Presidente deferiu o
juramento dos Santos Evangelhos em um livro dele em que pôs sua mão di-
reita sob cargo do qual lhe encarregou declarasse se sabia quem eram os pais
do dito exposto, e por declarar não sabia quem eram, mandaram se matricu-
lasse e se lhe assistisse com três oitavas de ouro por mês por tempo de três
anos na forma dos Provimentos do Doutor Corregedor, de que para constar
fiz este termo de Matrícula que assinou e eu João da Costa Azevedo escrivão
da camara que o escrevi".
Assina: Manoel Pires da Costa
Consta: "Sem efeito este termo por sair dono a este enjeitado que é
Antonio de Magalhães Nunes por ser filho de uma sua escrava ao qual se en-
tregou em 2 de janeiro de 1762. Não pagou nada o Senado". (Rubricado pelo
escrivão da camara.)
NOTAS
1. VENANCIO, Renato Pinto. Infancia sem destino: o abandono de crian-
ças no Rio de Janeiro no século XVIII, dissertação de mestrado apresen-
tada na USP, 1988, ex. mimeo. Iraci del Nero da Costa, Vila Rica: Po-
pulação (1719-1826), Coleção Estudos Econômicos, 1, São Paulo, FIPE-
.USP,1979.
2. BOSWELL, John. The Rindness of Strangers - the abandonment of Cha-
dren in Western Europe Fro~n Late Antiquity to the Renaissance, Nova
York, Pantheon Books, 1988. Devo esta referência a minha colega Mary
Del Priore.
3. Ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. "O problema dos expostos na Ca-
pitania de São Paulo", in Anais do Museu Paulista, tomo XXX, São Pau-
lo, 1980/1981, p. 148. Para a sociedade européia, com ênfase no caso
milanês, o artigo interessantissimo de V. Hunecke, "Les enfants trouvés:
contexte européen et cas rnilanais (XVIII-XIX siècles)", in Revue d'His-
toire Moderne et Contemporaine, tomo XXXII, 1985, pp. 3-28.
4. BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português. Lisboa, Edições
70,1977, cap. 12, "Conselheiros Municipais e Irmãos de Caridade".
5. MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
(1599?-1884). São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, p. 170.
6. MENEZES, Furtado de. Templos e sodalícios - Bi-centenário de Ouro
Preto, Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1911, pp. 273-
274.
7. ROCHA, José Joaquim da. "Memória Histórica da Capitania de Minas
Gerais", Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. II, 1897, pp. 457, 460 e
470.
8. COSTA, Iraci del Nero da. "Ocupação, povoamento e dinamica popula-
cional", in Minas Colonial: Economia e Sociedade, São Paulo, FIPE-
PIONEIRA, 1982, pp. 27-28.
9. CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Preto, Belo Horizonte,
1969,pp.61-62.
10. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto, Códice
116,
fL 37. Citado também em Francisco Antonio Lopes, Os Palácios de Vila
Rica - Ouro Preto no ciclo do ouro, Belo Horizonte, 1955.
11. Apud Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., p. 152.
12. Caio Cesar Boschi, "O assistencialismo na Capitania do Ouro", in Revista
de História (nova série), n° 116, janeiro/junho 1984, p. 35.
13. Apud LOPES, Francisco Antonio, op. cit., p. 188.
14. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., p. 147-148.
15. PERROT, Michelle. "As Crianças da Petite Roquette", in Revista
Brasileira de História, n-° 17, São Paulo, set. 88/fev.89, pp. 115-128.
16. Cito o Alvará conforme transcrição de Renato Pinto Venancio, op.
cit., pp. 114-118. Em fevereiro de 1795, após resposta positiva do ouvidor à
consulta que a Camara de Vila Rica fizera sobre a possibilidade de se
criar uma roda de expostos na vila, o nobre Senado resolve estabelecer
tal roda na morada de "um casal honrado, e de bons costumes". Apud Fran-
cisco Antonio Lopes, op. cit., p. 188. Tudo indica que a roda só foi
criada no século seguinte, conforme dito acima.
17. O mais importante conjunto de leis sobre o assunto encontra-se em An-
tonio Joaquim de Gouveia Pinto, "Compilação das providências, que a
bem da criação e educação dos expostos ou enjeitados se têm publicado, e
acham espalhadas em diferentes artigos de legislação pátria, a que acres-
cem outras, que respeitando ao bom regimen, e economia da sua admi-
nistração, e sendo contudo filhas das mesmas leis, tem a experiência pro-
vado a sua utilidade". Cito esta obra a partir de Maria Beatriz Nizza da
Silva e Renato Pinto Venancio, pois não tive acesso a ela.
18. Ver a esse respeito FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, 2a ed.,
Porto Alegre/São Paulo, Globo/USP, 1975.
19. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Manuel Francisco Lisboa - Juiz de Ofício e
Filantropo, Belo Horizonte; Escola de Arquitetura da UFMG, pp. 31-32.
O grifo é meu.
20. Arquivo Público Mineiro, Camara Municipal de Ouro Preto, cód. 61, fl.
57V, apud Russell-Wood, op.cit., p. 32.
21. "Tábua dos habitantes da Capitania de Minas Gerais e dos Nascidos e
Falecidos no ano de 1776", apud José Joaquim da Rocha, op. cit., p. 511.
22. Carta Régia de 17/6/1733, Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial,
Códice 18. No mesmo códice, ver também Carta de 20/5/1732. A respeito
deste assunto, ver MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do
Ouro - a pobreza mineira no século xVIII. Rio, Graal, 1982, p. 106. Ver
também SCARANO, Julita. Devoção e escravidão - a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século
XVIII. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976, pp. 120-121.
23. SCARANO, Julita, op. cit., p. 116.
24. Arquivo Histórico Ultramarino, cx. 35, "Proposta a Sua Majestade a res-
peito do Contrato da Extração dos Diamantes, 1753-1754, cap. 18". Ver
SCARANO, Julita, op. cit., p. 120.
25. AHU, Minas Gerais, cx. 37, 3-12-1775. Apud Scarano, op. cit., p. 121.
26. "Relatório do Marquês do Lavradio -1779" in Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico Brasileiro, vol. IV, p. 424.
27. Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., p. 148.
28. MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico, Jurí-
dico, Social. 2 VOlS 3a ed., Petrópolis, Ed. Vozes/INL, 1976, VOl. 1, pp.
95-96 para a questão em Roma; p. 98 para o Brasil, inclusive nota 537.
29. MELLO E SOUZA, Laura de, op. cit., cap. 4: "Os protagonistas da mi-
séria".
30. MACHADO, Simão Ferreira, "Prévia alocutória" ao Triunfo Eucarístico
edição fac-simile de Afonso Avila, Resíduos Seiscentistas em Minas -
textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Belo Hori-
zonte, Centro de Estudos Mineiros, 1967, VOI. 1 , p. 25
31. A problemática dos significados que se perdem para o historiador é ex-
plorada por DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros
episódios da história cultural francesa. Rio, Graal, 1986, principalmente
na "Apresentação". É ainda uma problemática cara aos historiadores da
fei~çana, mas não cabe aqui nos determos neste assunto. Para a questão
do paradigma indiciário, remeto a GINZBURG, Carlo. Mitos- Emblemas
- Sinais. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Sobretudo no ensaio
intitulado "Sinais raízes de um paradigma indiciário".
PEDOFILIA E PEDERASTIA NO
BRASIL ANTIGO *
Luiz Mott
"E o Mestre disse:
Deixai vir a mim os pequeninos. . . "
(Lucas, 18:16)
Dentre os tabus sexuais mais repelidos pela ideologia ocidental
contemporanea estão a pedofilia - relação sexual de adulto com
criança pré-púbere - e a pederastia - relação sexual de adulto com
adolescente - também chamada efebofilia (Dynes, 1985: 109-110).
Tendo como pressupostos que o sexo é sinônimo de pecado, que a
sexualidade destina-se à reprodução da espécie e só pode ser prati-
cada dentro do casamento, por seres maduros - considerando-se a
criança como inocente e imatura- aproximá-la dos prazeres eróticos
equivaleria a profanar sua própria natureza. Daí a dessexualização
da infancia e adolescência impor-se como um valor humano funda-
mental de nossa civilização judaico-cristã. Diz nosso Código Penal:
"Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa menor de 18 anos e
maior de 14, com ela praticando ato de libidinagem ou induzindo-a a
praticá-lo ou presenciá-lo, incorre o infrator na pena de até 4 anos
de reclusão" (artigo 218).
· TRulo original: "Cupido na Sala de Au la: Pedofilia e Pederastia no
Brasil Antigo".
Mais grave ainda, para a opinião pública, são as relações se-
xuais envolvendo homem adulto com menino ou adolescente, na
medida em que dois tabus cruciais são desrespeitados: o erotismo
intergeracional e a homossexualidade. Sobretudo nos Estados Uni-
dos, um dos maiores preconceitos contra os gays é a acusação de
que representam uma ameaça à integridade física das crianças (chil-
dren molesters), embora pesquisas repetidamente comprovem que
são sobretudo os heterossexuais os responsáveis pelo maior índice
de violência sexual contra os menores de idade (Hoffman, 1970;
Harvey & Gocm~s, 1977).
Alguns historiadores têm mostrado que a dessexualização da
criança é fenômeno recente na história ocidental, e que até meados
do século XVII, meninos e meninas - inclusive nos palácios reais-
viam, falavam, ouviam e agiam com mais soltura em matéria de sexo
do que seus sucessores do período vitoriano (Ariès, 1981; Foucault,
1980; Schérer, 1974). Em outras sociedades, como na Grécia antiga,
a relação sexual entre adultos e jovens fazia parte do próprio proces-
so pedagógico (Dover, 1978), e contemporaneamente, em dezenas
de sociedades tribais da Melanésia, ainda se pratica a pederastia ri-
tual compulsória para todos os adolescentes, através da qual os ho-
mens adultos transmitem seu sêmen, quer por via anal, quer oral,
acreditando que só assim as novas gerações crescerão fortes e pos-
suirão a semente da vida (Herdt, 1984).
O que para muitos é chocante, cruel e considerado como grave
desrespeito à inocência infanto-juvenil, noutras sociedades é con-
duta normal, método pedagógico ou ritual de iniciação no mundo
adulto. Um bom exemplo de como em nossa própria tradição oci-
dental as intimidades físicas entre adulto e criança não causavam es-
panto, é o celebérrimo milagre de Santo Antonio de Pádua, nosso
santinho casamenteiro natural de Lisboa, sempre representado com o
Menino Jesus no braço. Eis um relato: "segundo a prodigiosa e ad-
mirável visão de um seu devoto, (...) espreitando acaso o que o
santo fazia, chegando-se à porta do quarto com silêncio e cautela,
altas horas da noite, reparou pelos resquícios das desunidas táboas
da porta e viu um belo e formosíssimo infante, todo rei na majestade
da presença, toda aurora nos risos da boca, todo Cupido nas nudezas
do corpo, e todo amor na ternura dos afetos, que se entretinha nos
braços de Antonio que venturosamente serviam de setas àquele amor.
Viu que Antonio se regalava com aquele menino entre doces e amo-
rosas cancias com ele nos braços..." (Abreu, 1725: 138). Mesmo pa-
ra um santo, convenhamos, era demasiada a intimidade, embora na
época fosse naturalmente aceita. Ó temporal Ó mores!
Em nossa tradição luso-brasileira, parece que as relações se-
xuais entre adultos e adolescentes, além de freqüentes, não eram
conduta das mais condenadas pela Teologia Moral, pois mesmo
quando realizada com violência, a pedofilia em si nunca chegou a
ser considerada um crime específico por parte da Inquisição. Os dois
episódios que se seguem exemplificam nossa asserção:
Em 1746, chega ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa a se-
guinte denúncia: Maria Teresa de Jesus, mulher casada, moradora na
Vila de Santarém, "saindo de sua casa um seu filho, Manoel, de 5
anos, foi levado por um moço, Pedro, criado, para um porão e usou
do menino por trás, vindo o menino para casa todo ensanguenta-
do.
Em 1752, outro caso semelhante chega à Inquisição: no po-
voado de Belém, junto a Lisboa, um moço de 25 anos, José, mari-
nheiro, agarrou um menino de 3 anos incompletos, João, o levou pa-
ra um armazém, "do qual saiu a criança chorando muito, todo en-
sangüentado e rasgado seu orifício com a pica do moço" 2
Malgrado a perversidade desses atos, a pequenez das vítimas, a
revolta dos pais e a identificação fácil dos estupradores, os reveren-
dos inquisidores não deram a menor importancia a essas cruéis vio-
lências, arquivando as denúncias.
A naturalidade com que esse outro pedófilo confessa seus
"desvios" é estarrecedora: trata-se de um sacerdote brasileiro, resi-
dente em Salvador, o cônego Jácome de Queiroz, 46 anos. Confes-
sou perante o visitador do Santo Ofício, em 1591, que "uma noite,
levou à sua casa uma moça mameluca de 6 ou 7 anos, escrava, que
andava vendendo peixe pela rua, e depois de cear e se encher de vi-
nho, cuidando que corrompia a dita moça pelo vaso natural, a pene-
trou pelo vaso traseiro e nele teve penetração sem polução. E outra
vez, querendo corromper outra moça, Esperanza, sua escrava de
idade de 7 anos, pouco mais ou menos, a penetrou também pelo tra-
seiro".
O remorso do cônego - e seu crime - teria sido a cópula anal
na época referida como "abominável pecado de sodomia". A infan-
46
tilidade e pureza dessas duas meninas, ambas com sete anos, não
provocou qualquer preocupação ou prurido ao pedófilo: seu medo
era unicamente ter cometido "o mais torpe e imundo pecado, a có-
pula anal. A corrupção de menores não constituía motivo sequer de
advertência.
Analisando a farta documentação inquisitorial arquivada na
Torre do Tombo, em Lisboa, encontramos diversas denúncias contra
cidadãos do Reino e Ultramar, acusados de terem mantido relações
homossexuais com meninos e adolescentes. Diversos foram os pro-
fessores de meninos que tiveram seus nomes registrados nos volu-
mosos Cadernos do Nefando, acusados de atos torpes com seus dis-
cipulos. Somente os casos mais graves, quando havia muitas teste-
munhas de repetidos atos sodomiticos, redundaram em prisão do réu,
alguns poucos chegando à fogueira. Em 1510, por exemplo, André
Araújo, 39 anos, professor de viola em Lisboa, é degredado por 10
anos para as galés, como castigo por ter mantido cópulas com vários
de seus alunos com idades variando entre 14 e 15 anos; Antonio
Homem, 60 anos, preso em 1619, famoso mestre de Canones na
Universidade de Coimbra, foi acusado de ter acessos sodomiticos
com mais de vinte estudantes, cujas idades variavam de 11 a
anos: morreu queimado num Auto de Fé, embora sua principal culpa
fosse a prática do judaismo;5 Frei João Bote1ho, 43 anos, ex-frade
Jerônimo, era mestre de música, e entre um solfejo e outro, tinha o
costume de açoitar as nádegas de seus alunos travessos, ocasião em
que os possuia à moda de Sodoma: por ser considerado muito devas-
so e incorrigivel no "mau pecado", foi também condenado a foguei-
ra em 1638;6 Teotônio Bonsucesso, 40 anos, mestre de meninos, em
1723 foi condenado a dez anos de galés por culpas de somitigaria
com seus pupilos, o mais jovem com 9 anos e o mais crescidinho
com 14. Mesmo preso não abandonou a pedofilia, sendo visto no
cárcere com um estudantinho sentado no seu colo "fazendo com o
corpo as mesmas ações que faz o homem quando dorme com uma
mulher.
Em todos esses casos observamos a mesma regularidade: um
dos meninos reclama em casa o assédio do mestre, o pai leva o me-
nor ao Tribunal do Santo Oficio e os inquisidores registram a de-
núncia Nos dias seguintes, espontaneamente ou por convocação, os
demais alunos do nefando professor prestam queixa e somente apos
ouvir uma dezena de testemunhas, entre crianças, seus parentes e vi-
zinhos da escola, é ordenada a prisão do professor. Na maioria des-
ses casos, além do tormento, o pederasta é degredado para as galés,
via de regra por 10 anos.
O fato de serem pré-púberes os parceiros, ou da sodomia ter-se
realizado com violência, não era matéria agravante para o castigo: o
que se levava mais em conta era sobretudo a ocorrência ou não da
sodomia perfeita (penetração com ejaculação) e a repetição dos atos
venéreos, as duas matérias-primas para a punição por parte do Santo
Ofício (Mott, 1988, a).
O episódio que analisaremos a seguir, e que constitui o fulcro
deste ensaio, ocorreu em Minas Gerais no ano de 1752. Pela riqueza
de detalhes, por suas implicações e desdobramentos, constitui peça
importante para apreendermos alguns aspectos estruturais das rela-
ções entre professor e aluno no ambito da sociedade colonial brasi-
leira, assim como para vislumbrarmos a reação dos mais velhos à se-
xualidade infantojuvenil e os mecanismos repressores acionados
pela Igreja Católica na correção dos desvios sexuais.
Trata-se de um swnário contra um professor acusado de ter
mantido repetidas e violentas cópulas anais com seu aluno.8
Francisco Moreira de Carvalho era um proprietário rural resi-
dente nas Lavras da Lagoa, freguesia de São João del Rei, na Co-
marca do Rio das Mortes. Casado, tinha dois filhos: Luiz, com 9 pa-
ra 10 anos e Antonio, com 8. Devia ser homem remediado, tanto que
contratou João Pereira de Carvalho como professor particular de
linguagem e latim para seus filhos. Tais aulas eram ministradas tam-
bém para outros meninos da vizinhança, provavelmente na sala da
frente da casa do mestre, tal qual se observa ainda hoje nas escolas
particulares de nossa zona rural.
A documentação apresenta várias versões para o mesmo episó-
dio. Eis o primeiro relato. Certo dia, o menino Luiz assim dirigiu a
palavra a seu progenitor: "Senhor meu Pai: meu Mestre João Pereira
de Carvalho dormiu comigo por de trás lá na Lagoa". ("Dormir por
de trás", ou "dormir no 6º Mandamento", ou "dormir carnalmente
pelo vaso traseiro" eram eufemismos para descrever a cópula anal
nos tempos da Inquisição.)
A outra variante tem várias vertentes: uma testemunha declarou
que o jovem professor teria enviado ao menino Luiz um bilhete que
inadvertidamente caiu nas mãos do dono da casa. Três testemunhas
dão versões diferentes do mesmo bilhetinho: um roceiro de 42 anos,
Inácio de Souza, declarou que o escrito do professor dizia: "Luiz:
vós, se me quereis bem, eu também Vos quero, e se me quereis mal,
eu também Vos quero". A segunda testemunha, João Gonçalves
~lagro, 25 anos, português de Braga, deu outra redação mais hedo-
nística e não menos romantica: "Luiz, meu amorzinho, minha vidi-
nha! Vinde para o bananal que eu já lá vou, com a garrafinha de
aguardente". A terceira testemunha diferiu pouco da anterior. "Luiz,
minha vida: Vinde para o bananal que lá temos o que comer e
beber".
"Vós" era o tratamento comum nos séculos passados mes-
mo entre um professor e um aluno; as expressões "amorzinho" e
"vidinha" para tratar afetuosamente quem se ama aparecem também
em outras cartas de amor de sodomitas lusitanos e o diminutivo era
forma usual de se manifestar o sentimentalismo amatório (Mott,
1988, b). Mesmo o bananal, como local para encontros amorosos
fortuitos, aparece em outros documentos mineiros da época, lugar
sombrio e asseado, cujas grandes folhas secas, amontoadas, servem
de colchão para amantes clandestinos. O tom apaixonado dos bilhe-
tinhos e a simpática mise-en-scène desses encontros amorosos, en-
tremeados de aguardente e comida - numa zona tradicionalmente
pobre de abastecimento - levam-nos a concluir que a relação entre
mestre e discípulo ia de vento em popa, mostrando que também nas
Gerais havia adeptos da mesma didática helênica, associando a pe-
derastia à pedagogia - postura ressuscitada por alguns teóricos con-
temporaneos, para escandalo e execração dos donos do poder (Sché-
rer, 1974; Lapassade & Schérer, 1976; Pinard-Legry & Papouge,
1980; Sanford, 1987).
Tamanho idílio homoerótico não podia ser tolerado no berço
da "tradicional família mineira", moldada pela moral cristã, tão for-
temente marcada pela homofobia e machismo, onde a violência,
agressividade e dureza constituíam valores inerentes à masculinida-
de, condição necessária para a manutenção da supremacia da raça
branca e da classe dominante, sempre ameaçadas pela rebeldia dos
escravos e gentes de cor. Urgia, portanto, que este nefando romance
fosse exemplarmente castigado, afastando o imoral professor do
convívio de crianças inocentes.
Arma-se então um ardiloso enredo para incriminar o suposto
sodomita: uma enxurrada de fuxicos alastra-se pelas Lavras da La-
goa, chegando tais mexericos até o Tribunal do Santo Ofício de Lis-
boa. Sigamos aboataria.
Ninguém sabia ao certo quem era, de que família procedia e de
que terra viera o tal professor: uns diziam que vinha do Rio de Ja-
neiro, outros que seu pai possuía um engenho. Sua desgraça parece
ter começado quando um moleque escravo, Manoel, crioulo de 12
anos, ladino como ele só, contou à preta forra Bernarda, 25 anos,
que o professor "estava fazendo cousa má com a gente por de trás".
(Cousa má, mau pecado, sodomia, eram alguns dos muitos termos
correntes nos tempos antigos para descrever a cópula anal homosse-
xual - relação que ainda no tempo de Oscar Wilde era chamada de
"o amor que não ousa dizer o nome").
A negra Bernarda ficou espavorida com tal informação, tanto
que logo atalhou: "Cala a boca! Não fale isso, que se o pai do Luiz
o saber, é crime!" Podemos fazer duas leituras desta exclamação: a
negra quis dizer ou que a sodomia era crime, como de fato tinha ra-
zão, merecendo o sodomita a pena de morte, quer pela Justiça do
Rei, quer pelo Tribunal da Inquisição - ou então, quer por razão
desta "cousa má", o pai do menino poderia cometer um crime, justi-
çando com as próprias mãos o professor indecente.
Esta negra forra terá um papel fundamental na divulgação
deste insólito quiproquó: em seu depoimento posterior, disse que por
três vezes fora procurada pelo menino Luiz para tratar de lesões no
anus: "com as vias deitando sangue". Bernarda devia ser uma espé-
cie de curandeira local, quiçá parteira, pois a descrição que fez do
estado mórbido do coitadinho reflete bastante familiaridade no trato
das partes pudendas: além do sangue, observou "na entrada (do
anus) algumas rachaduras e bostelas secas (pequenas feridas com
crosta) que lhe faziam ardores e tinha a via muito larga, tanto que
lhes metia dois dedos - e caberiam três se lhes metesse - e que
quando metia os dedos estes saiam com sangue."
Diagnóstico, diga-se en passant, que só mesmo um bom proc-
tologista seria tão minucioso em realizar, antecedendo de um século
o célebre professor de Medicina Legal de Paris, Dr. Ambroise Tar-
dieu, quem primeiro e melhor qualificou os "traços de violência so-
domítica" (1873: 247).
Solícita, Bernarda tratou do coitadinho "dando-lhe alguns ba-
nhos e colocando algumas pírulas (sic) nas vias do menino". Nas
duas primeiras visitas Luiz não lhe revelou a causa de seu padecer -
só na terceira lhe confiou o segredo, "pois seu mestre o ameaçava
de matar se o revelasse". Imediatamente Bernarda manda chamar a
mãe do menino e lhe conta tal ocorrência. A mãe de Luiz fica muito
irritada "dando algumas bofetadas no filho, queixando-se de não ter-
lhe dito antes". Luiz fica adoentado, e ao perguntarem à senhora
Moreira os motivos da doença, em vez de ocultar a vergonha, res-
pondia encolerizada: "É por causa das velhacadas do mestre!" (Ve-
lhacada e velhacaria são termos usados nos séculos XVII e XVIII
como sinônimos de homossexualidade, embora já no século XIX o
dicionarista Antonio Morais os registre apenas como "ação deso-
nesta"). Velhacadas, segundo corria à boca pequena, que não teriam
poupado sequer o irmãozinho menor, Antonio, 8 anos, o qual acusa-
va também o Mestre de obrigá-lo a praticar descaMções, "tendo po-
lução na mão do menino".
OUtra versão desses episódios informava que tão logo a proge-
nitora de Luiz tomou conhecimento de tais nefandices, ipso facto
entrou em ação o ultrajado pater-familias. Colérico, mandou chamar
o professor João Pereira de Carvalho, conservando-o amarrado com
cordas: "quis pegar umas foices para dar no mestre", sendo contudo
impedido pelos vizinhos. Aqui também as informações das testemu-
nhas são contraditórias: uns dizem que a relação amorosa do profes-
sor João com Luiz tornou-se conhecida do Sr. Francisco quando seu
próprio filho entregou-lhe o bilhetinho "por não saber ler". Aí en-
tão, apenas no dia seguinte o pai do menino teria chamado o mestre
para acertar as contas, dizendo-lhe textualmente: "que tinha sido
chamado em sua casa para ensinar seus filhos, e o fez pelo contrário,
ensinando-os somiticarias". Aqueloutros que referiram a cena mais
violenta - o espavorido mestre manietado e o pai injuriado com foi-
ces na mão - dizem que o professor teria exclamado nesta ocasião:
"Senhor Francisco Moreira de Carvalho, que sua prudência me va-
lha!". ("Prudência", segundo o dicionarista Morais é a virtude que
faz conhecer e praticar o que convém na ordem da vida política ou
moral; circunspecção; gênio cordato.)
A prudência falou mais alto, e o pai de Luiz curvou-se perante
a lei: procurou então a principal autoridade eclesiástica local, o vi-
gário da Vara da Comarca do Rio das Mortes, dando-lhe sua versão
deste nefando imbróglio. Incontinenti, a 10 de abril de 1752, o vigá-
rio manda ofício ao comissário do Santo Ofício, padre Antonio Leite
Coimbra, o qual efetua a prisão do acusado "mantendo-o bem guar-
dado para ser enviado para a Inquisição de Lisboa". No dia seguinte
o infeliz professor já está preso.
Passa-se duas semanas e o Comissário Coimbra inicia o su-
mário, chamando e ouvindo quatro testemunhas, que reconstroem e
acrescentam alguns detalhes à estória contada pelo pai da vítima. No
documento redigido pelo comissário, as velhacarias, velhacadas,
somitigarias e cousas mas referidas pelas testemunhas são agora
traduzidas bombasticamente como "o pecado em que se não pode
falar" - a melhor e mais concisa definição que encontramos nos
processos inquisitoriais como sinônimo de homossexualidade, exa-
tamente com as mesmas palavras como é definido o pecado nefando
pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). O
Comissário Coimbra revelava ser bom conhecedor da Teologia Mo-
ral e fiel cumpridor das diligências pertencentes ao Santo Ofício.
Envia então as informações coletadas para o Tribunal de Lisboa,
sumariando o disse-que-disse sobre essa nefanda estória das Lavras
da Lagoa. Até ser embarcada sua documentação no Rio de Janeiro,
chegar à Casa do Rocio, ser analisada pelo promotor do Santo Ofí-
cio, passam-se dez meses. Prudentes, e já com mais de duzentos anos
perseguindo os sodomitas, os inquisidores ordenam a 9 de fevereiro
de 1753 que o comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro proce-
desse a um minucioso sumário para elucidar a denúncia. Tudo leva a
crer, portanto, que não havia nessa época comissários inquisitoriais
nas Minas Gerais, caso contrário não teria Lisboa ordenado que as
diligências fossem efetuadas pela Comissaria do Rio de Janeiro.
Gastan-se mais oito meses até que tem início nova inquirição de
testemunhas, inaugurando-se este segundo sumário aos 6 de outubro
de 1753, dia de São Bruno.
O murmúrio contra o desafortunado professor continuava: ne-
nhuma das testemunhas sabia de seu paradeiro - uns diziam que ti-
nha sido mandado para o Rio de Janeiro, outros, que já estava sendo
julgado nos cárceres da Inquisição, no Reino.
Novas testemunhas acrescentam alguns detalhes, alguns deles
em flagrante contradição com as informações originais. Dizem que
o mestre já tinha antes dormido carnalmente com outro crioulo; que
outro menino servira de mensageiro para convidar o "amorzinho"
para o rendez-vous no bananal; confinnam terem sido três as cópulas
do professor com seu pupilo.
Duas inforrnações contraditórias são fundamentais na avaliação
deste caso: o moleque Manoel, quem primeiro contou à negra Ber-
narda que o mestre fazia "cousa má por de trás" com seus alunos,
agora "tira o cu da seringa", minimizando sua primeira denúncia,
dizendo tão-somente ter visto o mestre "agachado no chão junto com
Luiz, na casa do professor". De vítima ele próprio, passou a espec-
tador de ato neutro da ótica da Teologia Moral. O outro delator, o
menino Antonio, agora com 9 anos, também deixa de acusar o pro-
fessor João de tê-lo obrigado a masturbá-lo, nem se reconhece ví-
tima de violência sexual, dizendo perante o Comissário "que seu
mestre desapertando os calções, lhe pedira que com a mão lhe fizes-
se as sacanas, e ele não quis, fugindo". (Fazer as sacanas, sacana-
gem e maganagem eram termos correntes no Brasil e Portugal desde
o século XVII, sinônimos de masturbação recíproca ou alheia, rotu-
lados pelos inquisidores de molicie.) Portanto, também este menor
inocenta o professor de atos sodomiticos, limitando-se a acusá-lo de
solicitacao não consumada. Uma última testemunha dá ainda uma
quarta versão da reação do Sr. Francisco Moreira de Carvalho quan-
do notificado do namoro do mestre com seu filho primogênito - teria
dito: "Venha cá, velhaco! É esse o ensino que dá a meus filhos?!
andando somitigando com eles! E deu-lhe muitas pancadas..."
Terminado o inquérito, o comissário Coimbra envia o sumário
ao Tribunal de Lisboa. Nova travessia do Atlantico, e somente a 22
de julho de 1754 vem o veredicto dos reverendos inquisidores. Cer-
tamente, para decepção dos moradores das Lavras da Lagoa- e sur-
presa dos leitores atuais - mais uma vez a Inquisição mostrou-se
mais tolerante do que usualmente se esperava. Eis o despacho:
"Foram vistos os autos deste sumário de culpas, e parece a to-
dos os votos que as culpas não eram bastantes para proceder à prisão
do delatado. Que seja posto em liberdade imediatamente".
Após dois anos e três meses de prisão, o professor João Pereira
de Carvalho é liberado por ordem da Santa Inquisição: os inquisido-
res não encontraram nas acusações culpas suficientes para abrir pro-
cesso formal e efetuar a prisão do acusado nos Cárceres Secretos do
Rocio.
Raposas velhas na arte de inquirir, tarimbadíssimos no ofício
de desvencilhar mentiras e desmascarar calúnias, farejadores ini-
gualáveis na descoberta de cripto-herejes e sodomitas encobertos, os
inquisidores devem ter rapidamente se dado conta de que o quipro-
quó da distante Lavras da Lagoa não passava de uma réles maquina-
ção de um desconhecido Francisco Moreira de Carvalho contra um
chinfrim professor de primeiras letras com veleidades de latinista.
Algumas falhas e contradições do sumário tornaram-no peça judicial
insustentável, e verdade seja dita, no mais das vezes, o Santo Ofício
só mandava prender um denunciado após rigoroso exame das peças
processuais e evidências sobejas de que as acusações não eram calú-
nias e aleivosias.
Eis algumas das principais falhas processuais dessa denúncia e
que certamente influenciaram o despacho favorável ao suposto réu:
- a má fama do acusado originou-se da fofoca de um moleque
de 12 anos, o crioulinho Manoel, que entre um sumário e outro mo-
dificou completamente sua acusação, que de vítima ele próprio de
atos sodomíticos, passa a observador de certa proximidade física
entre o professor e seu discípulo, ato vago que não constituía em si
matéria suficiente para ser qualificada como sodomia, sequer como
connatus ou molicie (atos próximos à cópula), posto que somente a
sodomia perfeita constituía crime da alçada do Santo Ofício;
- o suposto bilhete do mestre para seu aluno, interceptado
pelo progenitor, caso existisse de fato, deveria ter sido incluído no
processo como peça importante na comprovação da nefanda amizade
entre ambos- o que nunca ocorreu, e além do mais, as três versões
distintas de uma única mensagem sugerem que tal missiva jamais te-
ria existido, acrescido do fato de que segundo uma testemunha, o
estudantinho "não sabia ler", tanto que teria pedido ao pai que o
decifrasse, mais uma evidência abalizadora de que o mestre João
certamente nunca teria rabiscado os tais bilhetes;
- as diferentes versões do desfecho deste nefando imbróglio, a
variação dos diálogos entre o pai ultrajado e o suspeito professor
somítico, a negação do contato sexual do filho mais novo, que num
primeiro momento afirmara ter sido obrigado a "fazer as sacanas" a
seu mestre, e sobretudo, a não acareação dos principais envolvidos
no suposto delito - a vítima e o estuprador- são evidências cabais
de que tudo não deve ter passado de fuxico de crianças e negros, ca-
tegorias sociais que na época eram muito afeitas ao disse-que-disse e
mentirinhas quejandas. A experiência secular dos inquisidores torna-
ra-os escolados em identificar calúnias, maquinações e interposições
de terceiros e segundas intenções nas denúncias destas timoratas
categorias de pessoa;
- quanto ao testemunho da crioula Bernarda, duas hipóteses:
sabedora que sodomia era crime, talvez para vingar-se de algum
malquerer contra o professor forasteiro, inventou toda essa sangrenta
história, tendo a cumplicidade do crioulinho Manoel, ou então, de
fato, o menino Luiz recorreu a seus préstimos para curar-se dalguma
hemorróida ou do famigerado mal-del-culo, doença muito corrente
no Brasil de antanho, hoje diagnosticada como retite ulcerante, con-
secutiva à desinteria. Já em fins do século XVI Fernão Cardim a in-
cluiu entre as doenças mais freqüentes na América portuguesa, cau-
sando "ardor e corrupção do anus com ulceração corrosiva, sem ou
com fluxo doloroso de sangue, corroendo o músculo esfíncter e a
boca das veias hemorroidais, ficando o anus largamente distendido à
moda de cloaca" (Santos Filho, 1977: 193). E a partir deste deplo-
rável estado mórbido, "tendo a veia (do anus) muito larga", arqui-
tetou todo esse enredo.
Não podemos deixar de aventar a hipótese de que, de fato, pro-
fessor e aluno mantiveram relações amorosas, sem bilhetes, sem
sangue derramado, sem garrafinha de aguardente, e que o pai ultra-
jado pela infamia de ter em casa um filho velhaco, aumentou a histó-
ria para vingar-se do indecente mestre e atemorizar para sempre seu
filho afanchonado. Mesmo dando crédito a essa conjectura, somos
obrigados a ter indulgência com esse mestre abusado, pois até agora,
no imaginário do leitor, como ocorreu comigo ao entrar em contato
com esse sumário, e o mesmo com os inquisidores lá em Lisboa, ao
lê-lo de primeira mão em 1753, ficamos todos com a idéia de que o
professor é um adulto, posto não haver no manuscrito qualquer in-
formação ou deixa sobre a idade do mestre. Pesquisando as Efemé-
rides de São João del Rei, de autoria de Sebastião de Oliveira Cin-
tra, localizamos no índice onomástico o nome de nosso professor,
cujo pai tinha o mesmo nome, João Pereira de Carvalho, português,
e a mãe, Ana Maria do Nascimento, mineira também filha de reinóis
das Ilhas. Aí encontramos o registro de batizado do professor João
Pereira de Carvalho, realizado na Capela do Rio das Mortes Peque-
no, filial da Matriz de São João del Rei, aos 23 de fevereiro de
1739. Só então, fazendo as contas, ficamos sabendo que o abusado
professor, ao ser denunciado em 1752, mal acabava de completar 13
anos de idade! Um sodomita acusado de estuprador aos 13 anos!
A omissão no sumário, da idade do professor, a nosso ver foi
proposital, tendo como finalidade tornar ainda mais hedionda a acu-
sação de violência sexual, pois jamais passaria pela imaginação dos
leitores, quer dos reverendos inquisidores, quer da nossa, no século
XX, que o professor João Pereira de Carvalho fosse um rapazote
que nem bigode, nem pentelhos devia ter. Tal omissão reforça nossa
ilação de que todo este imbróglio não passou de uma calúnia e ma-
quinação dos pais dos meninos Luiz e Antonio contra o professorzi-
nho de primeiras letras. É difícil acreditar que um moçoilo de 13
anos, pré-púbere, fosse fisicamente capaz de repetidas violências se-
xuais no anus de um menino de 9 para 10 anos.
O pesadelo em que estivera envolvido o jovem professor em
pouco tempo deve ter se desfeito, tanto que passados sete anos do
final deste sumário, em 1761, João Pereira de Carvalho requer junto
à Cúria Episcopal de Mariana sua "habilitação de génere et móri-
bus", peça indispensável para a admissão de todo candidato ao es-
tado sacerdotal. Em seu processo, com 123 folhas, nenhuma das
testemunhas inquiridas a respeito dos costumes e moral do habilitan-
do refere-se ao episódio das Lavras da Lagoa, nem a qualquer outra
conduta desabonadora de sua retidão e honestidade9, tanto que a 24
de setembro de 1762 nosso professorzinho, agora com 23 anos, é
ordenado padre pelo bispo D. Frei Manoel da Cruz, exercendo o
magistério sacerdotal na vila do Coqueiral até 1769. Até o momento
não localizamos em nenhum dos arquivos pesquisados qualquer in-
dício de que padre João Pereira de Carvalho praticasse o "vício dos
clérigos" - outro eufemismo como desde a Idade Média costumava o
povo rotular a homossexualidade.
1821 é o ano da extinção do Santo Ofício: a sodomia deixa de
ser crime religioso.
1822, a Independência do Brasil.
1823, a promulgação da primeira Constituição do Império: a
homossexualidade deixa de ser crime civil. A rainha Vitória com-
pletava quatro aninhos.
O século XIX, herdeiro do Iluminismo e do liberalizante Códi-
go Napoleônico, transfere o controle dos desvios sexuais da enfra-
quecida Igreja, para as Delegacias de Policia. Os direitos humanos e
o respeito à pluralidade ganham cada vez mais adeptos. A infancia e
a identidade infanto-juvenil adquirem foros de cidadania, tímidos
ainda, porém, crescendo dia a dia Cabe agora ao Estado zelar pela
moral e inocência dos imaturos, tanto que é aos próprios presidentes
das províncias que os cidadãos injuriados se dirigem para exigir jus-
tiça quando suas crianças são alvo de suposta corrupção por adultos.
Estes dois exemplos ocorridos na Província de Sergipe, com os
quais concluimos estas reflexões, mostram claramente a intromissão
do Estado no controle da sexualidade infanto-juvenil, ao mesmo
tempo em que revelam a preocupação do poder civil, muito mais ni-
tido do que ocorria nos tempos inquisitoriais, em proteger a infancia
contra os perigos representados pelos "corruptores de menores".
Em 1845 um morador de Itabaianinha, no agreste sergipano,
Antonio Batista de Fonseca e Oliveira envia um requerimento ao
presidente da provincia, Antonio Joaquim Álvares do Amaral, de-
nunciando o professor de primeiras letras, Francisco José de Barros
Padilha, acusando-o de "atropelar tanto seus dois filhos de 13 e 10
anos, para fins ilícitos, que os puxava para um quarto forçosamente,
para saciar seus ilícitos apetites, os quais não aceitando seus vis
convites, principiou a ser mal afecto aos filhos do representante, que
viu-se obrigado a tirar os filhos da escola, assim como outro pai, pa-
gando 2$000 réis por mês a outro professor".10
Vasculhando a documentação do Arquivo Público de Sergipe
minuciosamente, esta foi a única acusação de pederastia por nós en-
contrada relativamente à primeira metade do século XIX. Outro pes-
quisador, trabalhando com esse mesmo período para a vizinha pro-
víncia da Bahia, localizou tão-somente um episódio em que um
mestre é acusado, em 1830, de ter castigado violentamente um ado-
lescente por surpreendê-lo "em acto torpe consigo mesmo..."11 ne-
nhum caso de homossexualidade intergeracional. Ou as coisas
aconteciam mui sub-repticiamente, ou os pais e tutores dos infantes
não chegavam a denunciar eventuais acessos desonestos por parte
dos docentes, ou então, de fato, o medo da repressão e estigma so-
cial eram tão grandes que os pedagogos não ousavam qualquer pro-
ximidade libidinosa com seus pupilos; exceção feita aos professores
sádicos, rigorosos demais, que açoitavam as nádegas ou davam gol-
pes de palmatória em seus pequenos delinqüentes - como este último
mestre baiano, acusado pelo pai do menino masturbador de ter dado
36 bolos em seu filho de 9 anos! Coitadinho!
Voltemos à denúncia do professor de Itabaianinha: preocupado
com tão grave e insólita representação, o presidente de Sergipe to-
mou a providência de encarregar o inspetor parcial e o juiz de di-
reito da vila de Itabaianinha de investigar a acusação. Após cuida-
doso exame da matéria, sua conclusão foi categórica: "O que o su-
plicante alega não foi provado", encerrando-se aí esse caso sem
qualquer sanção ao delato. Tudo não passara de uma calúnia.
No ano seguinte, 1846, novamente outra ocorrência envolve
um professor com a pedofilia: o chefe de polícia de São Cristóvão,
então capital da província de Sergipe, envia ofício ao presidente
Amaral informando ter recebido despacho da Secretaria de Polícia
da Corte, proibindo o professor José Feliciano Dias da Costa de
exercer perpetuamente o magistério em qualquer casa de educação,
colégio ou qualquer outro estabelecimento onde possa haver alunos
e educandos ou tutelados sob sua guarda "por haver abusado da
confiança que os pais de seus alunos nele haviam depositado, e de
haver concitado a inocência para o vício, pervertendo a moral, que
aliás lhe cumpriria ensinar".l2
Nossas pesquisas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e
alhures têm redundado infrutíferas na localização de mais informa-
ções sobre esse desafortunado professor pedófilo, cuja licença peda-
gógica fora cassada em todo o Império devido a seu vício e perver-
são. De onde era natural, onde ensinava, que estrepolias cometeu, a
que processos foi submetido, tudo ignoramos e agradecemos a quem
nos der alguma pista desse proscrito mestre José Feliciano Dias
da Costa
A mudança de atitudes por parte dos donos do poder em face
da "corrupção de menores" é evidente: da cruel indiferença dos in-
quisidores aos estupros infantis do século XVI ao XVIII, à vigilan-
cia em todo o território nacional por parte dos chefes de polícia
contra um pedagogo pedófilo na segunda metade do século XIX- à
mesma época em que nosso imperador Pedro II era declarado maior
de idade aos 15 anos - tal mudança de postura pode ser interpretada
sob dois angulos: de um lado a instauração de uma moralidade ultra-
repressora - a vitoriana- que sob o pretexto de proteger a inocência
infanto-juvenil, reprime e dessexualiza completamente os meninos e
adolescentes; de outro, o início dos direitos humanos dos jovens e
crianças, não mais tratados como tábula rasa - como ainda postula-
va o pai da sociologia, Émile Durkheim em 1925 na obra L'Educa-
tion Morale- nem como reles objetos sexuais dos mais velhos, mas
criaturas merecedoras de respeito, capazes da livre orientação sexual
e dos prazeres eróticos, e donas de sua privacidade individual.
NOTAS
Este ensaio faz parte de uma pesquisa mais ampla, "Moralidade e Se-
xualidade no Brasil Colonial", financiada pelo CNPq, a quem renovo meu
agradecimento. Devo também favor aos professores Sebastião de Oliveira
Cintra e Jairo Braga Machado, de São João del Rei, assim como a Luiz Carlos
Villalta e Joaci Pereira Furtado, de Mariana, pelo importante auxílio que me
prestaram na obtenção de dados complementares dessa pesquisa. Este artigo
foi primeiramente publicado nos Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos
Chagas), n° 69, maio 1989.
1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n° 20, fl. 40.
2. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n° 20,
fl. 121.
3. Confissoes da Bahia, 1591-1592, Primeira Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil, Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1935: 46-47.
4. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-°
5720.
5. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-°
15421 .
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-°
71 18.
7. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-°
2664.
8. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n-° 20, fl.
192 e ss, de 24 de abril de 1752; Museu Regional de S. João del Rei, In-
ventário de Francisco Moreira de Carvalho, 1814.
9. Arquivo da Cúria de Mariana, processo de Genere et Moribus n-°885.
10. Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 594, de 29 de agosto de
1845.
11. Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 3112, de 16 de março de
1830, Requerimento contra o Professor Lázaro da Costa. Devo ao prof.
João José Reis a gentil indicação deste documento.
12. Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 69, ofício do chefe de
Polícia Henrique Jorge Rebello ao presidente da Província, de 3 de março
de 1846.
BIBLIOGRAfIA CITADA
ABREU, Frei Braz Luiz. Vida de Santo Antonio. Lisboa, Livraria Francisco
Franco, 1725, 340 p.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1981,280p.
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del Rei. Belo
Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, volumes I e II, 1982, 622 p.
DOVER, K. J. Greek Homosexuality. Nova York, Vintage Books, 1978, 245
DYNES, Wayne. Homolexis. A Historical and Cultural Lexicon of Homose-
xuality. Nova York, Gai saber monograph n-° 4,1985,177 p.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Rio de Janeiro, Edições Gra-
al, 1980,152 p.
HERDT, Gilbert. Ritualized Homosexuality in Melanesia. Berkeley, Univer-
sity of California Press, 1984, 410 p.
HARVEY, L. & GOCHROS, J. The sexualy oppressed. Nova York, Asso-
ciation Press, 1977, 296 p.
HOFFMAN, Martin. O Sexo Equívoco. Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1970, 180p.
LAPASSADE, G. & SCHERER, R. Le Corps interdit. Essais sur réducation
négative. Paris, ESF, 1976.
MOTT, Luiz. "Pagode Português: A Subcultura Gay em Portugal nos Tem-
pos Inquisitoriais", Ciência e Cultura, v. 40 (2), fevereiro: 120-139,
1988.
"Love's Labors Lost: Five letters from a XVIIth Century Portuguese
Sodomite", The Pursuit of Sodomy, Nova York, The Haworth Press,
1988 b.
PINARD-LEGRY, J. L. & LAPOUGE, B. L'Enfant et le pédéraste. Paris,
Edition du Seuil, 1980.
PORTER, Eugene. Treating the Young Male Victrme of Sexual Assault. Syra-
cure, Safer Society Press, 1986, 96 p.
SANFORD, Theo. Boys ant their contacts with men: A study of sexually ex-
pressed friendships. Nova York, Global Academic Publishers, 1987,
175 p.
SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. São
Paulo, Hucitec 1977, 436 p.
SCHÉRER, René. Emile perverti ou des rapports entre l'éducation et la se-
xualité. Paris, Robert Laffont, 1974.
"Interview avec René Schérer", Paidika, The Journal of Paedophilia, Ams-
terdam, n° 2, vol. 1: 2-12,1987.
TARDIEU, Ambroise. Les Attentats aux Moeurs. Paris, Lib. J-B. Baillière
1873,304 p.
O FiLHO DA ESCRAVA *
Kátia de Queirós Mattoso
Analfabeto por vontade expressa da sociedade dominante, o
escravo brasileiro é, para nós, testemunha silenciosa de seu tempo.
São, de fato, raras as oportunidades que lhe permitem expressar-se
por si próprio: quando escravo, ele fala pela rebelião, pela fuga,
pelo suicídio, e até mesmo pelo crime, falas que são gestos de pro-
testos violentos. mas gestos corajosos, gestos de homens indomáveis
e desesperados. Quando libertável1 ou liberto, o ex-escravo fala
através daqueles documentos que lhe restituíram a liberdade, e que,
tirando-o do anonimato, deram-lhe um rosto e existência própria.
Todavia, parece que a maioria dos 3 milhões e 500 mil escravos tra-
zidos para o Brasil não foi nem rebelde, nem fugtiva, nem suicida,
nem criminosa, e morreu escrava sem nunca ter se libertado das
"malhas do poder" escravista 2.
Anônimo para a sociedade que o oprimia, esse escravo encon-
trava em seu trabalho meios para se expressar, desenvolvendo es-
tratégias de sobrevivência que, como se poderia pensar, nem sempre
fora transigentes e acomodatícias. Lidos com essa intenção, testa-
mentos, inventários e cartas de alforria são documentos reveladores
desse tipo de atitudes que redundam em resistências brandas, mas
qlle são tão significativos e importantes quanto os atos de protesto
violento.
*Este artigo foi publicado na Revista Brasileira de História v. 8 nº
16 1988, com o título "O Filho da Escrava (Em Torno da Lei do Ventre Livre)".
No entanto, qualquer que seja a leitura que possamos fazer da
documentação acima referida, não deixa de ser verdade que nos é di-
fícil encontrar, nesse tipo de material, traços das alegrias e penas
dos escravos ou dos vínculos que estes estabeleciam com o seu Deus
ou com os seus Orixás, com os seus parentes, seus amigos ou mesmo
seus inimigos3. Sua palavra torna-se volátil, seus gestos desvane-
cem-se, no anonimato redutor da escravidão. O que se pode então di-
zer das crianças escravas que são duplamente mudas, e duplamente
escravas, uma vez que, geralmente, entende-se que todo escravo,
mesmo adulto, é criança para o seu senhor, menor perante a lei e
eterno catecúmeno para a Igreja?
Nos relatos dos viajantes estrangeiros, nas estampas e dese-
nhos que alguns deles produziram, vêem-se, em papéis decorativos,
crioulinhos e pardinhos, filhos de mães negras ou mestiças, sempre
acompanhados por mulheres, e, por homens, quase nunca. Quando
novos, brincam na casa de seu senhor, ou então acompanham suas
mães nas suas tarefas do cotidiano; mães sem marido, "Irmãs de So-
lidão", como as apelidou, com tanta propriedade Arlette Gauthier4.
Quando ainda muito novos para correrem nas ruas e nas longas ca-
minhadas, vão os meninos arrimados nas costas de suas mães por
panos bonitos, ricos em cores variadas.
Teresa de Baviera pintou em 1888 uma negra baiana em -todo
seu esplendor: negra que carrega na cabeça um imenso tabuleiro, re-
pleto de bananas, levando nas costas um crioulinho de mais ou me-
nos dois anos de idade, cuja ponta de pé balança-se alegremente fora
de sua cadeira de pano; assim, a mãe tem as mãos totalmente livres
para servir seus fregueses e para segurar seu tabuleiro quando sobe e
desce as íngremes ladeiras da cidade.5 Várias são as gravuras de
Rugendas e de Debret que nos descrevem as mesmas atitudes, o
mesmo porte altivo de mãe9 os mesmos gestos graciosos das crianças
que seus autores querem alegres e felizes.6 Na sua passagem pela
Bahia em 1833, o francês Dugrivel dizia-se impressionado pelo es-
petáculo de negras seminuas sentadas no meio das ruas da cidade a
dar o seio a filhos completamente nus.7 Assim, a criança escrava é
representada ora de maneira avantajada, e então é o anjinho barroco
de cor preta, ora de maneira menos romantica, e então é o menino
nu, um peso a carregar, uma boca a alimentar. Embora no Brasil da
época, e principalmente nas classes dominantes, a criança seja prin-
cipe, na verdade, o que sabemos da criança escrava? É evidente que
a minha indagação refere-se à criança como ser social, como inte-
grante de uma comunidade da qual é membro à part entière, e que
dela recebe proteção ou abandono.8
Minha primeira questão é, entretanto, uma questão de defini-
ção. A que idade, e como o filho da escrava deixa de ser criança e
passa a ser percebido como escravo? Não há dúvida de que tal inda-
gação tem que levar em conta certas precauções antes que se tente
definir o que se entende por criança escrava. Há que considerar,
primeiro, a própria noção de criança que forçosamente remete à no-
ção de idade. Para nós, homens do século XX, o conceito idades de
vida encobre realidades diferentes das do século XIX, e seria puro
anacronismo, por exemplo, utilizar o termo criança para caracterizar
jovens escravos que na época passam por adolescentes.
Como regra geral, as idades de vida que correspondem às cate-
gorias de infancia, adolescencia, idade adulta e velhice são as mes-
mas para a população livre e para a população escrava. Há, porém,
entre uma e outra uma diferença de monta, ligada à função social
desempenhada pelas categorias de idade: a criança branca livre e até
mesmo a criança de cor livre podem ter seu prazo de ingresso na vi-
da ativa protelado, enquanto a criança escrava, que tenha atingido
certa idade, entra compulsoriamente no mundo do trabalho.9 Há,
pois, um certo momento em que o filho da escrava deixa de ser a
criança negra ou mestiça irresponsável para tornar-se uma força de
trabalho para os seus donos.
Através dos documentos que conhecemos, e particularmente
dos testamentos e inventários post-mortem, parece que podemos lo-
go distinguir duas idades de infancia para os escravos: de zero aos
sete para oito anos, o crioulinho ou a crioulinha, o pardinho ou a
pardinha, o cabrinha ou a cabrinha, são crianças novas, geralmente
sem desempenho de atividades de tipo econômico;10 dos sete para os
oito anos até os doze anos de idade os jovens escravos deixam de
ser crianças para entrar no mundo dos adultos, mas na qualidade de
aprendiz, de moleque ou de moleca, termos que designavam outrora
todo pequeno negro ou jovem e que hoje tomaram um sentido um
pouco crítico, um pouco pejorativo, pois passam a designar o jovem,
de sexo principalmente masculino, considerado irresponsável! Na
realidade, toda piramide de idades referente a escravos deve ser
pág 79 Tabela 1 não escaneável
manuseada com cuidado, porque com freqüência o apelido de moleca é
dado a uma moça de seus 20 anos ou a umajovem de 9 para 10 anos.
Essa distinção de duas idades na faixa muito jovem das crian-
ças escravas é, aliás, referendada não somente pelas evidências co-
lhidas em inventários, testamentos e cartas de alforria, mas também
em documentos oficiais dos quais os mais importantes são, sem dú-
vida, os que emanam da legislação civil e eclesiástica.
É por demais conhecido que, para a Igreja, a idade de razão de
todo cristão jovem situa-se aos 7 anos de idade, idade de consciên-
cia e de responsabilidade. Para a Igreja, aos sete anos a criança ad-
quire foro de adulto: de ingênuo torna-se alma de confissão.11 Por
sua vez, na sua parte de direito civil, o Código Filipino mantido em
vigor durante todo o século XIX, fixava a maioridade aos 12 anos
para as meninas, e aos 14 anos para os meninos.12 Finalmente, a lei
de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), ao colocar em po-
der e sob a autoridade dos senhores os filhos de escravos nascidos
ingênuos, obriga a estes "crial-os e tratal-os até a idade de oito anos
completos. Chegando o filho de escrava a esta idade, o senhor da
mãe terá a opção, ou de receber do Estado a Indemnização de
600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21
annos completos".13 Pelo que se infere nos documentos que são os
inventários, e pelas normas e leis da sociedade civil e religiosa, há,
ao lado da maioridade religiosa e civil, uma terceira maioridade, esta
afeta ao início de uma atividade econômica produtiva. Terceira
maioridade que nos parece muito mais importante que as outras duas
porque não somente é própria à condição escrava14 como também
indica claramente que, tratando-se de criança escrava, o divisor de
águas entre infancia e adolescencia colocava-se bem antes dos doze
anos, porque assim exigiam os imperativos de ordem econômica e
social. Mas mesmo encurtada, o que é a infancia para um escravo?
É evidente que todo escravo, até mesmo o mais desprotegido,
foi criança em algum momento de sua vida. Mas em que condições e
por quanto tempo? Eis uma pergunta cuja resposta não pode ser úni-
ca, porque existem vivências e experiências qwe são diversas. Diver-
sas, por exemplo, se o escravo nasceu na África ou se nasceu
crioulo; diversas, também, se o escravo chegou criança no Brasil,
freqüentemente nesta fase de idade que o transforma em jovem tra-
balhador.15
Quantos foram os escravos vindos crianças da África, não sa-
bemos; no entanto, sabemos que, já na idade adulta, quando interro-
gados sobre a sua filiação, vários dentre eles confessaram não mais
se lembrar do nome de seus pais. Como se a violência com que fo-
ram arrancados de seus meios, o esforço em adaptar-se num novo
ambiente, tivessem obscurecido toda e qualquer memória.16
Mas voltemos ao nosso propósito inicial: afinal, até que idade
um escravo é ainda percebido como criança? Como vimos, o escravo
permanece criança até a idade de sete para oito anos. Nas grandes
propriedades de engenhos de açúcar, as crianças escravas passeiam
com toda liberdade, participando das brincadeiras das crianças bran-
cas e das carícias das mulheres da casa, verdadeiros "cupidos de
ébano", como os classificou um viajante ao descrever a admiração
beata dos senhores - inclusive do capelão - ante as cambalhotas dos
negrinhos brincando com cachorros de grande porte.17 Na cidade, a
exigüidade do espaço ocupado pela família do senhor com freqüên-
cia relega os filhos da escrava aos alojamentos reservados aos escra-
vos ou a outras áreas como, por exemplo, pontos de mercado e la-
goas onde se lava a rowpa. A vida dos folguedos infantis é curta. É
nos seus sete para oito anos que a criança se dá conta de sua condi-
ção inferior em relação principalmente às crianças livres brancas. As
exigências dos senhores tornam-se precisas, indiscutiveis. A passa-
gem da vida de criança para a vida de adolescente era o primeiro
choque importante que recebia a criança escrava.18 Embora do nas-
cimento à morte, a vida do escravo tivesse sido sempre uma enfiada
de choques sucessivos, tentaremos cercar aqui os que eram próprios
à infancia.
Nossa fonte serão os inventários; nosso período, os últimos
trinta anos da escravidão; nosso método, transformar em texto corri-
do os dados das inevitáveis tabelas, apenas nesse tipo de estudo.19
Cada criança escrava que nasce é um filho desejado pela mãe
ou mera conseqüência de um ato sexual? É evidente que, por mais
que queiramos encontrar uma resposta clara a essa pergunta, a nossa
documentação não a fornece de modo explícito. Com efeito, nunca
encontrei referências sobre a atitude da escrava em relação à mater-
nidade: se ela alegrava-se ou entristecia-se de ser ou de vir a ser
mãe, não tenho como saber. No entanto, da observação da escrava-
tura feminina, através da análise de dados referentes a sua idade, al-
guns traços interessantes oferecem comentários:
Tabela 2 - Mulheres escravas (1860-1880) - Faixas Etárias
Períodos | 1??? a 40 anos
12 ???~ 20 = 21 (3)*
q 21 a 30 = 29 (15)
31 a 40 = 21 (~)
~
declarada
41 a 50 = 16 (1) moças = 24 (5)
51 a 60 = 7 ainda mocas = 4
61a70= 7 velhas = 15(1) 34(3)
12a20 = 17 (0) 41 a50 = 18(3) mocas = O
1870 79 21 a30 = 16 (2) 51 a60 = 4 aindamoças = O
31a40= 13 (1) 61a70 = I velhas = O
+ de70 = I
-
12a20= 27(7)
188G 89 21aqO--27(10)
TO r r 184 (52)
41 a 50 = 14 (2)
51 a 60 = 9 (3)
61a70 = 1~0)
! de 70 = 1(~)
80 (9)
~ Entre parênteses: n~mero de escravas mães
Apesar de nos encoll~nos nos últimos trinta anos do regime
escravista, o padrãc de reprodução do escravo brasileiro é fraco: das
214 mulheres em idade de procriar, somente 59 ~27,6%) chegam à
condição de mãe, isto é, menos de i/3 da população feminina.20
Mesmo se ampliarmos o niimero de mães escravas incluindo, tam-
bém, ~quelas que per~encem a outras ~aixas et~rias, ou cuja idade é
desconhecida, notamos que seu numero é mais baixo ainda: sanente
19,7% do nosso universo femiII~no é constituído por mães escravas
Porém, se de outro la~o, ~OIIIIOS olhar cada fai~ca elá~ia em separado;
observaremos que pa~a as muiheres cuja idade é compreendida-elltre
12 e 40 anos, há dois compor~nentos que se tornarn perceptíveis:
nos períodos 186(K9 e 188~81 O n~unero de mulhe~es que procriarn
é sensivelrnente superior ao das mulhe~es do período de 1870-79~
35,6 e 34,3~o con~ra 7,5~o. Dir-se-ia que na década que se seguiu à
abolição do tráfico, a vontade de procriar permaneceu firme, mesmo
se o modelo de reprodução é fraco; na década seguinte, teria havido
uma queda devido a um certo retraimento, favorecido pelas próprias
ambigüidades da Lei do Ventre Livre, que na realidade contribuía
em alforriar o escravo nascido ingênuo aos seus 21 anos de idade!
Pelo contrário, o último período da escravidão, sustentado pela pro-
paganda abolicionista, e pela atitude dos senhores escravos em alfor-
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value
Unknown parameter value

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

Trajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosTrajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosPaula Aparecida Alves
 
4 cchladlcvmt06
4 cchladlcvmt064 cchladlcvmt06
4 cchladlcvmt06Geraa Ufms
 
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_416594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4Katia Cristina Brito
 
Rossi,luiz gustavofreitas d
Rossi,luiz gustavofreitas dRossi,luiz gustavofreitas d
Rossi,luiz gustavofreitas dNESUERJ
 
Presenças africanas
Presenças africanasPresenças africanas
Presenças africanasprimeiraopcao
 
O desaparecimento-da-infância---Neil-Postman
O desaparecimento-da-infância---Neil-PostmanO desaparecimento-da-infância---Neil-Postman
O desaparecimento-da-infância---Neil-PostmanGeani Pedrosa
 
Historia da criança no brasil
Historia da criança no brasilHistoria da criança no brasil
Historia da criança no brasilbrenda Cruz Souza
 
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi eiem) mesas (crongrama)
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi   eiem)   mesas (crongrama)Xi encontro internacional de estudos medievais (xi   eiem)   mesas (crongrama)
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi eiem) mesas (crongrama)Edilson A. Souza
 
Relações Cabo Verde/Brasil
Relações Cabo Verde/BrasilRelações Cabo Verde/Brasil
Relações Cabo Verde/BrasilSinchaSutu
 
O abandono da razão descolonização de discursos sobre infância e família, 1999
O abandono da razão   descolonização de discursos sobre infância e família, 1999O abandono da razão   descolonização de discursos sobre infância e família, 1999
O abandono da razão descolonização de discursos sobre infância e família, 1999Pedro Bevilaqua Pupo Alves
 
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhPaper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhcitacoesdosprojetos
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01marcosfm32
 

La actualidad más candente (20)

Trajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosTrajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdos
 
4 cchladlcvmt06
4 cchladlcvmt064 cchladlcvmt06
4 cchladlcvmt06
 
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_416594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4
16594614122012 historia da_educacao_brasileira_aula_4
 
África
ÁfricaÁfrica
África
 
ÁFrica na sala de aula
ÁFrica na sala de aulaÁFrica na sala de aula
ÁFrica na sala de aula
 
Rossi,luiz gustavofreitas d
Rossi,luiz gustavofreitas dRossi,luiz gustavofreitas d
Rossi,luiz gustavofreitas d
 
Presenças africanas
Presenças africanasPresenças africanas
Presenças africanas
 
Monografia Simone Pedagogia 2010
Monografia Simone Pedagogia 2010Monografia Simone Pedagogia 2010
Monografia Simone Pedagogia 2010
 
Fiota cartilha5 web
Fiota cartilha5 webFiota cartilha5 web
Fiota cartilha5 web
 
O desaparecimento-da-infância---Neil-Postman
O desaparecimento-da-infância---Neil-PostmanO desaparecimento-da-infância---Neil-Postman
O desaparecimento-da-infância---Neil-Postman
 
Historia da criança no brasil
Historia da criança no brasilHistoria da criança no brasil
Historia da criança no brasil
 
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi eiem) mesas (crongrama)
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi   eiem)   mesas (crongrama)Xi encontro internacional de estudos medievais (xi   eiem)   mesas (crongrama)
Xi encontro internacional de estudos medievais (xi eiem) mesas (crongrama)
 
Raça e história
Raça e históriaRaça e história
Raça e história
 
6705 34668-1-pb
6705 34668-1-pb6705 34668-1-pb
6705 34668-1-pb
 
Projeto Malala (propostas de atividades)
Projeto Malala (propostas de atividades)Projeto Malala (propostas de atividades)
Projeto Malala (propostas de atividades)
 
Relações Cabo Verde/Brasil
Relações Cabo Verde/BrasilRelações Cabo Verde/Brasil
Relações Cabo Verde/Brasil
 
Zine da Duca
Zine da DucaZine da Duca
Zine da Duca
 
O abandono da razão descolonização de discursos sobre infância e família, 1999
O abandono da razão   descolonização de discursos sobre infância e família, 1999O abandono da razão   descolonização de discursos sobre infância e família, 1999
O abandono da razão descolonização de discursos sobre infância e família, 1999
 
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhPaper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01
 

Similar a Unknown parameter value

Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...
Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...
Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...Renata Cunha
 
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...Educação Infantil
 
Livro Fundamentos da Educação Infantil
Livro Fundamentos da Educação InfantilLivro Fundamentos da Educação Infantil
Livro Fundamentos da Educação InfantilPatrícia Éderson Dias
 
01_Infância – conceito social.ppt
01_Infância – conceito social.ppt01_Infância – conceito social.ppt
01_Infância – conceito social.pptPrfª Flávia
 
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...André Santos Luigi
 
clarice cohn antropologia da criança livro.pdf
clarice cohn antropologia da criança livro.pdfclarice cohn antropologia da criança livro.pdf
clarice cohn antropologia da criança livro.pdfDanielaSilva773001
 
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...Sara Leal
 
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL  HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL Joemille Leal
 
Anexos texto e atividades
Anexos  texto e atividadesAnexos  texto e atividades
Anexos texto e atividadesNaysa Taboada
 
História da educação do negro e outras histórias
História da educação do negro e outras históriasHistória da educação do negro e outras histórias
História da educação do negro e outras históriasAndré Santos Luigi
 
Texto encontro 2
Texto encontro 2 Texto encontro 2
Texto encontro 2 30071968
 
Infância e deficiência no Brasil
Infância e deficiência no BrasilInfância e deficiência no Brasil
Infância e deficiência no BrasilManuel Fernandes
 

Similar a Unknown parameter value (20)

Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...
Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...
Concepcoesdainfanciaehistoriasocialdascriancasnobrasil professorasoniamargari...
 
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...
Concepcoes da infancia_e_historia_social_das_criancas_no_brasil_-_professora_...
 
Livro Fundamentos da Educação Infantil
Livro Fundamentos da Educação InfantilLivro Fundamentos da Educação Infantil
Livro Fundamentos da Educação Infantil
 
01_Infância – conceito social.ppt
01_Infância – conceito social.ppt01_Infância – conceito social.ppt
01_Infância – conceito social.ppt
 
1.apresentação seu riba 15.
1.apresentação seu riba 15.1.apresentação seu riba 15.
1.apresentação seu riba 15.
 
1.apresentação seu riba 17
1.apresentação seu riba 171.apresentação seu riba 17
1.apresentação seu riba 17
 
1.apresentação seu riba 17
1.apresentação seu riba 171.apresentação seu riba 17
1.apresentação seu riba 17
 
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...
Tratamento e institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil:breve r...
 
clarice cohn antropologia da criança livro.pdf
clarice cohn antropologia da criança livro.pdfclarice cohn antropologia da criança livro.pdf
clarice cohn antropologia da criança livro.pdf
 
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...
Jovens de baixa renda e acesso ao ensino superior público: Avanços e dilemas ...
 
Jaqueline
JaquelineJaqueline
Jaqueline
 
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL  HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL
 
Anexos texto e atividades
Anexos  texto e atividadesAnexos  texto e atividades
Anexos texto e atividades
 
História da educação do negro e outras histórias
História da educação do negro e outras históriasHistória da educação do negro e outras histórias
História da educação do negro e outras histórias
 
Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos...
Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos...Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos...
Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos...
 
A criança e o brincar
A criança e o brincarA criança e o brincar
A criança e o brincar
 
Texto encontro 2
Texto encontro 2 Texto encontro 2
Texto encontro 2
 
texto 3.pdf
texto 3.pdftexto 3.pdf
texto 3.pdf
 
Ariér
AriérAriér
Ariér
 
Infância e deficiência no Brasil
Infância e deficiência no BrasilInfância e deficiência no Brasil
Infância e deficiência no Brasil
 

Unknown parameter value

  • 1. HISTÓRIA DA CRIANÇA, NO BRASIL MARY DEL PRIORE, ORG. da criança no brasil COLEÇãO CAMINHOS DA HISTóRIA Unable to recognize this page. história da criança no brasil Mary Del Priore (org.) Laura de Mello e Souza/Luiz Mott Lana Lage da Gama Lima/Renato Pinto Venancio Kátia de Queirós Mattoso/Mirim Lifchitz Moreira Leite Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura Fernando Torres Londono/Edson Passetti C E D H A L Copyright (~) 1991 Mary Del Priore Coleção: CAMINHOS DA HISTóRIA llustraçao de Capa: Detalhe de desenho infantil Revisão: Maria Aparecida Monteiro Bessana e Luiz Roberto Malta Composição: Veredas Editorial Impressão: Parrna Gráfica e Editora Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) História da criança no Brasil / Mary del Priore (orlu). - São Paulo: Contexto, 1991.--(Caminhos da história) Bibliografia. ISBN 85-7244-001-1 1. Crianças--Brasil--Aspectos sociais 2. Crianças - Brasil - História 1. Del Priore, Mary. Il. Série 91-1015 CDD-362.70981 índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Crianças: História Bem-estar social 362.70981 1991
  • 2. Proibida a reprodução total ou parcial. As infrações serão processadas na forma da lei. Todos os direitos reservados à EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.) Rua Acopiara, 199 - 05083 - S. Paulo- SP Fone: (011) 832-5838 - Fax: (011) 832-3561 íNDICE Introdução .............. 1. O Papel Branco, a Infancia e os Jesuítas na Colônia ..10 Mary Del Priore 2. O Senado da Camara e as Crianças Expostas ............28 Laura de Mello e Souza 3. Pedofilia e Pederastia no Brasil Antigo ..............44 Luiz Mott 4. Abandono de Crianças Negras no Rio de Janeiro ........61 Lana Lage da Gama Lima/Renato Pinto Venancio 5. O Filho da Escrava Kátia de Queirós Mattoso 6. O óbvio e o Contraditório da Roda ....................98 Miriam Lifchitz Moreira Leite 7. Infancia Operária e Acidente do Trabalho em São Paulo . . 112 Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura 8. A Origem do Conceito Menor ...........................129 Fernando Torres Londono 9. O Menor no Brasil Republicano ........................146 Edson Passetti Os Autores no Contexto ..................................176 INTRODUÇÃO Nesta coletanea, os trabalhos de autores, pesquisadores do Centro de Demografia Histórica da América Latina (CEDHAL), pertencente à FFLCH/USP, fazem parte integrante de uma pesquisa desenvolvida sob orientação da profa. dra. Maria Luiza Marcílio e sob os auspícios da FINEP, sobre a história do menor carente e abandonado no Brasil. Esta coletanea reúne artigos que procuram esclarecer como vi- veram ou eram vistas as crianças em vários momentos da história do Brasil. Seus textos apontam também para o transito entre o anoni- mato - durante anos elas foram tão-somente crianças -, e o presente, que pretende reconhecer-lhes seu papel protagônico e sua condição de cidadãos com direitos e deveres.
  • 3. Vale lembrar que a história da criança fez-se à sombra daquela dos adultos. Entre pais, mestres, senhores ou patrões, os pequenos corpos dobraram-se tanto à violência, à força e às humilhações, quanto foram amparados pela ternura e os sentimentos maternos. A trajetória dos pequenos entre os grandes--homens ou mulheres--, permitiu aos autores vislumbrar o papel que desempenhou a infancia numa sociedade vincada por contradições econômicas e mudanças culturais, ao mesmo tempo em que se revelava o comportamento dessa sociedade em relação à vida e à morte de seus filhos. No entanto, quem lê adultos, leia também instituições; pois esta história que contamos, lança luzes sobre crianças prisioneiras da escola, da Igreja, da legislação, do sistema econômico e, por fim, da FEBEM, numa linhagem extensa de tarefas e obrigações que as des- dobravam, no mais das vezes, em adultos. Enfaticamente orientadas para o aprendizado, o adestramento físico e moral e para o trabalho, perguntamo-nos se havia entre elas tempo e espaço para o riso e a brincadeira. Perguntamo-nos se em algum momento elas se sentiam realmente crianças. Resgatar a história da criança brasileira é dar de cara com um passado que se intui, mas que se prefere ignorar, cheio de anônimas tragédias que atravessaram a vida de milhares de meninos e meninas. O abandono de bebês, a venda de crianças escravas que eram sepa- radas de seus pais, a vida em instituições que no melhor dos casos significavam mera sobrevivência, as violências cotidianas que não excluem os abusos sexuais, as doenças, queimaduras e fraturas que sofriam no trabalho escravo ou operário foram situações que empur- raram por mais de três séculos a história da infancia no Brasil. Contudo, se é verdade que desta história surge uma imagem do auto- ritarismo e indignidade impostas por adultos às crianças, surge tam- bém uma história de amor materno e paterno, de afeto e de humani- dade das inúmeras pessoas que acima de preconceitos e interesses mesquinhos, deixaram-se sempre sensibilizar com aqueles que, antes de tudo, são os mais carentes e indefesos dos seres humanos. Uma das características marcantes dos trabalhos aqui reunidos é a busca das vozes dessas crianças através da pesquisa e da revalo- rização do documento histórico. Uma garimpagem na imensa, frag- mentária e fascinante massa documental em arquivos e bibliotecas, levou os autores a empreender a descoberta exaustiva e diligente de documentos sobre o passado da criança brasileira que Ihes permitiu ter um outro olhar, uma outra percepção sobre a infancia. As cartas, memórias, registros e cartilhas trazem, no entanto, a fala do adulto sobre a criança. Foi preciso ler nas entrelinhas, decifrar lacunas e apontar temas a serem proximamente desenvolvidos para que o cená- rio ficasse mais completo. O silêncio, contudo, permanece quanto aos jogos e brincadeiras, a literatura infantil, a saúde e a educação. Há ainda pistas sobre os "filhos de criação", estes personagens do cotidiano no passado e no presente, que apenas tangenciamos.
  • 4. Por isso, fomos até os primeiros momentos da então colônia de Santa Cruz para observar a tentativa de adestramento físico e mental a que foram submetidas as crianças indigenas, pelos jesuítas (Del Priore). Examinaram-se aspectos da sexualidade infantil, como a pe- derastia, desnudando a carga de violentos preconceitos que já exis- tiam nas Minas setecentistas (Mott) bem como também a discrimina- ção racial na adoção de "enjeitadinhos mulatos" (Mello e Souza). No século XIX, o sofrimento da criança tornava-se especial- mente palpável, pois este é o momento por excelência do "enjeita- mento" que teve entre as crianças negras do Rio de Janeiro as suas maiores vítimas (Lima/Venancio). Na Bahia, no mesmo período, a Lei do Ventre Livre modificava as relações parentais e o destino das crianças filhas de escravos (Mattoso). Já aos finais do século XIX, a Roda dos Expostos, instituida pela Santa Casa de Misericórdia pro- movia uma espécie de infanticídio maquiado com as crianças aban- donadas à sua porta (Moreira Leite). A virada do século acusa a pre- sença de crianças no trabalho fabril, sofrendo acidentes e distantes de qualquer proteção da lei (Moura). A Primeira República marca a entrada em cena do conceito de menoridade e adensam-se as rela- ções entre Estado e Sociedade para disciplinar o menor (Londono), até que a FUNABEM e a FEBEM, encarnando o Estado-preceptor, passam a ditar regras sobre a marginalização do menor abandonado (Passetti). Do período colonial à República dos anos 30 assistimos ao de- senrolar e ao desdobramento desses assuntos complementares, ano- tando que se a criança é o grande ausente da História, ela é, por um paradoxo, o seu motor. Ela é o adulto em gestação. Apenas estudan- do a infancia e compreendendo as distorções a que esteve submeti- da, teremos condições de transformar o futuro das crianças brasilei- ras. E de nos transformar através delas. História da Criança no Brasil quer ser uma contribuição na ta- refa de reconstituir o dificil caminho que a sociedade brasileira tem percorrido para reconhecer, na criança, um ser autônomo e digno. Caminho este, que supõe de nós adultos, a renúncia a nossa natural onipotência. Mary Del Priore e Fernando Londono O SENADO DA CAMARA E AS CRIANÇAS EXPOSTAS (*) Laura de Mello e Souza CONSIDERAÇÕES No decorrer de uma investigação sobre a vida cotidiana em Minas na segunda metade do século XVIII, trabalhei com o Livro de
  • 5. Matnculas de Expostos n° 558, pertencente ao Acervo Documental da Câmara Municipal de Mariana e que, até o presente momento, foi consultado pouquíssimas vezes, constituindo um corpus documental praticamente virgem. Num total de 226 matrículas, ou seja, registros feitos pelo Senado da Camara com dados referentes a criancinhas abandonadas nas ruas e logradouros públicos da Cidade de Mariana entre 1751 e 1779, quatro casos me chamaram a atenção por destoa- rem completamente do conjunto - no resto, uniforme, repetitivo e contendo informações secas. Três dessas matrículas faziam restrições à possível mulatice que se viesse a constatar nas crianças enjeitadas; uma outra dizia coisas estranhas acerca da criação de um exposto negro por seu senhor. Quero ressaltar que, sendo novata no estudo da exposição de crian- Versão alterada de artigo publicado com o título "O Senado da Câmara e as CrianSas Expostas: Minas Gerais no século XVIII", na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n° 31, São Paulo, 1 989. ças no Brasil colonial, decidi publicar os documentos em questão após consultar colegas que há muito vêm lidando com o assunto, como Renato Pinto Venancio e Iraci del Nero da Costa- autores de alguns dos mais significativos estudos demográficos publicados no Brasil nos últimos anos.1 Queria ainda deixar claro que a descoberta documental causou estranheza a Jair de Jesus Martins, que trabalha no projeto como auxiliar de pesquisa: foi ele, portanto, quem primei- ro percebeu tratar-se de algo diferente, pouco usual, transcrevendo as matrículas. Apesar de discutidas com os colegas e com o pesqui- sador, as hipóteses e considerações contidas neste artigo são de mi- nha inteira responsabilidade. O grave problema representado pelas crianças abandonadas remonta à Antiguidade, estendendo-se por toda a Idade Média, con- forme estuda John Boswell em The Kindness of Strangers.2 Mas foi na Época Moderna que a preocupação com a infancia abandonada mostrou-se mais candente, a partir do momento em que a pobreza se tornou onerosa ao Estado e a idéia de que o aumento populacional embasava a riqueza das nações tomou contornos definidos.3 Em Portugal, a legislação deixava às camaras a tarefa de passar o encar- go da criação dos enjeitados para as Santas Casas de Misericórdia, procedimento que, como bem viu Charles Boxer, vigorou em todo o Império Luso, constituindo-se em um de seus pilares.4 Em Salvador e no Rio de Janeiro os mecanismos de recolhimento de expostos já estariam delineados na primeira metade do século xvIII, atestando, segundo Laima Mesgravis, a importancia urbana de tais centros.5 Mas justamente em Minas, no século XVIII a capitania mais urbani- zada da colônia, a situação permaneceu confusa. Há indícios de que as Irmandades tomaram a si a tarefa de cuidar das crianças expostas, conforme consta, por exemplo, do Estatuto da Irmandade de Santa
  • 6. Ana, Vila Rica, instituição criada em 1730 e preocupada, em seu ar- tigo 2°, em fundar- tão logo seus recursos o permitissem- "uma casa de expostos e asilo de menores desvalidos".6 Na prática, en- tretanto, as evidências pendem mais para que se credite ao nobre Senado da Camara a função de pôr e dispor da vida das crianças abandonadas. Em sua célebre Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais, que veio a público em 1781, José Joaquim da Rocha incluía a criação dos enjeitados entre as despesas de pelo menos três Camaras Municipais: nas de Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do Príncipe e São João del Rei.7 O fato de omitir tal encargo quando tratou das demais vilas deve antes ser creditado a descuido do que à ausência dos demais senados na criação dos bebês abandonados. Durante o século xvIII, a exposição de crianças cresceu em Minas de forma alarmante, assumindo, no final do período, propor- ções catastróficas. Entre 1724 e 1733, Iraci del Nero da Costa en- controu quatro casos de crianças enjeitadas entre os assentos de ba- tismo que consultou; já para o período compreendido entre 1799 e 1808, o número saltou para 167.8 Exaustivamente discutida, a roda dos expostos de Vila Rica só se concretizaria, ao que tudo indica, em 1831, apesar de ter sido aprovada pelo Senado e obtido licença real em 1795.9 No penúltimo lustro do século, já em pleno drama da decadência aurífera, era a Camara que continuava arcando com a criação dos enjeitados: ainda em Vila Rica, o Senado aceitava a en- jeitada Rita, exposta na porta de José Alves Maciel na Fazenda dos Caldeirões, batizada na capela do Chiqueiro e entregue pelos verea- dores à crioula forra Filipa Vaz, moradora junto à ponte do Rosário e, a partir de então, paga com 24 oitavas de ouro por ano durante os três primeiros anos, os da lactação do bebê; nos quatro anos restan- tes, a quantia seria de 16 oitavas anuais, conforme estipulado por lei.10 Maria Beatriz Nizza da Silva fornece elementos importantes para melhor se entender o papel das camaras municipais na criação dos expostos durante o período colonial, chamando a atenção para a alternancia que podia se estabelecer, nesta tarefa, entre o Senado e as Misericórdias. Sem citar a data, transcreve um documento dirigi- do à Mesa do Desembargo do Paço por Clara Maria da Conceição, viúva que morava na vila do Sabará e que tinha sido encarregada pelos oficiais da mesma vila de criar "vários enjeitados, uns que fo- ram matriculados, e outros que não o foram, se bem que de todos de uma e outra classe lhe foi incumbida a dita criação, com a conven- ção de pagar-se-lhe o estipêndio do estilo, o que agora recusa a dita Camara".11 Caio Cesar Boschi, por fim, deixa claro que, nas Minas, a cria- ção dos enjeitados recaía basicamente sobre as irmandades ou sobre as camaras, estas últimas, muitas vezes, deixando de cumprir o pro- metido: o pagamento das mensalidades aos criadores ou às amas de leite. Tais mulheres, por sua vez, não obedeciam às determinações
  • 7. de apresentar periodicamente as crianças às camaras, e esta mútua desconsideração explicaria, em parte, o alto número de mortes entre os enjeitados.12 A súplica da viúva Clara revela, de fato, a desobediência da Camara ante a lei, e sugere que, desta forma, o nobre Senado deixava ao desamparo os seres frágeis e pequeninos colocados - pelo menos em tese - sob sua responsabilidade. Por outro lado, é inegável que a vereança municipal se preocupava seriamente com as crianças abandonadas, castigadas, às vezes de forma irreversível, pela rudeza do clima ou pelos animais domésticos. Na carta com que, em fevereiro de 1795, o Senado de Vila Rica explicava a ne- cessidade da roda de expostos ao Ouvidor Geral, ficava dito que as mães, envergonhadas dos frutos de seus amores ilícitos, "logo que os dão à luz os mandam levar às portas de casas particulares, aonde ou os não recebem, ou, se o fazem, é já quando os míseros recém- nascidos se acham a expirar, tendo até sucedido serem devorados por animais, sucessos que fazem gemer a humanidade".13 Para Francisco Antonio Lopes, esses animais seriam sobretudo os porcos que habitualmente vagavam por Vila Rica e, desde a década ante- rior, tinham se tornado objeto de seguidas críticas por parte das dis- posições oficiais. A dureza da vida cotidiana na capitania do ouro, constante- mente fustigada pelo Fisco, a difusão dos concubinatos e uniões es- porádicas, a precariedade das condições de higiene e saneamento nos aglomerados urbanos - os tais porcos que perambulavam pelas vias públicas - servem como indicadores de que seria alta a porcen- tagem de exposição nas Minas. Por outro lado, a fragilidade das Mi- sericórdias no desempenho das funções assistencialistas, a impossi- bilidade das Irmandades assumirem totalmente a criação dos expos- tos e a indefinição legal da Metrópole, vigente até 1775, devem certamente ter contribuído para que grande parte das crianças ex- postas morressem antes mesmo de serem matriculadas nos assentos camerários. Talvez aqui esteja uma possível resposta à questão colo- cada por Maria Beatriz Nizza da Silva no tocante ao menor número de enjeitados paulistas e coloniais quando comparados aos europeus do mesmo período, na Sociedade de Antigo Regime.14 Não quero com isso afirmar, evidentemente, que fosse boa a situação européia: basta ler o terrível artigo de Michelle Perrot sobre as crianças confi- nadas na Petite Roquette, já em pleno século XIX, para afastar tal possibilidade.15 Quero apenas sugerir que a indefinição de uma po- lítica com relação a expostos e o fato de muitas crianças sequer se- rem registradas encobre, talvez, uma taxa de mortalidade mais alta do que a cogitada até o presente momento. Foi em 1775, com um famoso Alvará, que o ministro Sebastião José de Carvalho e Mello regulamentou de forma mais estrita e defi- nitiva a questão das crianças expostas: é, sem dúvida, a mais impor- tante lei existente no século XVIII sobre o assunto, mas se volta so-
  • 8. bretudo para a relação entre enjeitados, Santa Casa de Misericórdia e Juiz de Órfãos, deixando de lado a questão das Camaras. Até en- tão, haviam sido elas as principais responsáveis pela criação dos enjeitados. A partir dessa data-marco, intensificou-se a luta pela criação das rodas de expostos nas Misericórdias ou mesmo em casas de particulares, desde que seus habitantes fossem casais honrados e de bons costumes.16 Voltemos, porém, à documentação dos expostos existente na Camara de Mariana e abaixo transcrita. Num conjunto de 226 matrí- culas, 10 foram declaradas sem efeito por se darem a conhecer o pai e/ou a mãe do exposto, havendo ainda 23 falecimentos. Presume-se que estes digam respeito aos expostos que continuaram sob encargo da Camara, portanto os demais 216: seria, assim, de 10,65% a taxa de mortalidade entre os expostos criados pelo Senado de Mariana- o que novamente remete à questão de uma presumível taxa de mor- talidade elevada entre as crianças expostas que não chegavam a ser matriculadas. Porém, o que mais chama atenção nos documentos abaixo reproduzidos é a recusa da Camara em criar três dos enjeita- dos, que se suspeitava serem mulatos, e a devolução de um exposto escravo ao seu senhor - todos eles, procedimentos inusitados e, pro- vavelmente, ilegais. Comecemos pelos presumidos mulatinhos. Todos os três foram matriculados no mês de maio de 1753, mais de vinte anos, portanto, antes que Pombal legislasse sobre os expostos em seu Alvará. A to- dos os três se prometeu pagar 3 oitavas de ouro por mês, perfazendo 36 oitavas anuais - quantia superior à de 24 oitavas que a Camara de Vila Rica pagavapor ano para a criação da enjeitada Rita, no pe- núltimo lustro do século XVIII, entre 1790 e 1795 (não temos a data precisa). Em quarenta anos, o Senado passara a economizar uma oi- tava mensal no auxílio dado aos expostos durante o período inicial, o considerado de lactação e que equivalia a três anos. A economia mineradora entrara em derrocada, mas certamente teria havido tam- bém alterações legislativas no período - a mais óbvia e evidente sendo, como já foi dito, o Alvara pombalino. Num momento de cri- se, a vereança considerara dispendiosa a contribuição anteriormente estipulada para a criação de menores abandonados. Creio poder afirmar que, mesmo em 1753, a verba destinada a esse fim não sairia dos cofres públicos sem peso. Não foi possível definir qual a legislação seguida pelas Cama- ras mineiras, em meados do século, no tocante à criação de enjeita- dos. As leis proibiam discriminação racial no exercício da caridade camerária ou no das Misericórdias.17 Mas as matrículas de 1753 são bem claras: com declaração porém a todo o tempo que se declarar ser o dito enjeitadinho mulato e não branco lhe não correrá o dito estipêndio das três oitavas, mas antes será o dito obrigado a
  • 9. repor tudo o que tiver recebido por conta da mesma criação... (documento A). A matrícula B repete a mesma fórmula, praticamente sem alte- ração, diferindo apenas no fato de ser a criança do sexo feminino; a matrícula apresenta novidade: com declaração porém que a todo tempo que se vier no conhe- cimento ser mulata e não branca lhe não correrá o dito estipên- dio de três oitavas mas antes será o dito obrigado a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta da dita criação Além de deixar claro - o que não ocorre nas matrículas ante- riores - que a beneficiada pela devolução é a Camara Municipal, este documento revela que a mestiçagem do exposto criado com subvenção pública poderia ser revelada por acusações, por ouvir di- zer, tal como ocorria nas Devassas Episcopais e nas Visitações do Santo Ofício, reforçando a idéia de que, nos tempos coloniais, o po- der se dissolvia nas microestruturas do cotidiano, fazendo da bisbi- lhotice e da delação práticas corriqueiras e aceitas: "a todo tempo que se vier no conhecimento" é uma fórmula significativamente diversa de "a todo tempo que se declarar", pois esta pressupõe um ato vo- lmtário, direto, sem intermediações. De uma ou de outra forma, a Camara expressa claramente o seu propósito de não criar mulatos, e revela que, por ocasião da matrícula, nem sempre se tinha conheci- mento da cor do enjeitado - seja por não ser o mesmo trazido pe- rante os vereadores naquele momento, seja por impossibilidade de se definir a cor de recém-nascidos- como se sabe, é comum que traços étnicos se mostrem após alguns dias ou mesmo meses -, seja ainda por estarem cientes os interessados na criação do exposto de que a legislação vigente ou a prática usual do Senado se furtava à criação de mestiços de sangue negro. Por que o "deslize", o ato falho dos camaristas marianenses que, em três matrículas de expostos, colocaram a nu sua recusa ante a criação de mestiços? Nas matrículas subseqüentes, retoma-se o tom neutro, seco, formal adotado em tais registros. Mas as três matrículas estão lá, como espinho, como nódoa, mas sobretudo como indício aparentemente-insignificante e, na verdade, digno de exame detido. Sobretudo quando se recapitula o modo de inserção do aparelho do Estado nas Minas, muito mais preso a padrões europeus do que em outros pontos da colônia, muito mais presente devido às necessida- des de arrecadação do ouro e, também mais do que nunca, atento e servil ante os interesses da Metrópole e dos segmentos dominantes, surdo e refratário às especificidades coloniais.18 Isolados e excêntricos no conjunto das matrículas de expostos existentes na Camara da Leal Cidade de Mariana, estes três docu- mentos raros devem ser associados a outros tantos, mais numerosos mas que pareceram igualmente extraordinários aos olhos de A. J. R.
  • 10. Russell-Wood, o historiador inglês que melhor estudou a instituição da Santa Casa de Misericórdia no Brasil Colonial e, conseqüentemente, lançou luz sobre a questão da infancia abandonada naqueles tempos. Debruçando-se sobre documentos referentes à vida de Manuel Francisco Lisboa, grande arquiteto que passou para a História antes como o pai de Aleijadinho do que devido a seu próprio e inegável talento, Russell-Wood descobriu que aquele criara um enjeitado que lhe expuseram à porta a 9 de abril de 1759, e que ele, já no dia seguinte, batizou com o nome de Jacinto, na Matriz de Conceição de Antonio Dias. O historiador inglês aproveita para frisar a diferença entre a criação de expostos na Bahia, onde ficavam a cargo da Mise- ricórdia, e nas Minas, onde recaíam sobre as Camaras; mas o ex- traordinário é que aponte para a exigência imposta pelo Nobre Se- nado aos criadores dos bebês abandonados: além da certidão de ba- tismo, deveriam apresentar uma outra, de brancura. Apesar de exi- gido pelas Ordens Terceiras do Carmo, de São Francisco, pela Ir- mandade da Santa Casa de Misericórdia, o estatuto de pureza de sangue não era demandado no caso da criação de expostos: No caso de um enjeitado, tal insistência é bem surpreendente, e nunca foi praticada na Bahia na época colonial, onde enjeita- dos, fossem brancos, fossem pretos, foram aceitos pela Camara e pela Santa Casa sem discriminação racial.19 Manuel Francisco Lisboa, que a essa altura já era pai de um bastardo, um dos maiores gênios que a mestiçagem jamais produziu em terras brasileiras, apresentou o atestado exigido, passado pelo médico e cirurgião daquela Camara. Mas o caso de Jacinto não foi único em Vila Rica: no Primeiro Livro de Enjeitados criados nesta localidade às expensas do Senado, e que corresponde ao período de 1751-1758, exigiu-se certidão de brancura nos anos de 1757,1758 e 1759. Contraditoriamente, em 1763 a mesma Camara aceitaria a criação do "enjeitado Domingos, crioulo ou cabra".20 Na década de 50, portanto, nas Minas como um todo ou parti- cularmente na Comarca de Vila Rica - onde o censo de 1776 acusa- ria um total de 12.679 brancos, 16.791 pardos e 49.148 negros (con- siderando-se ambos os sexos), as autoridades camerárias demonstra- vam, através de medidas restritivas e racistas, um temor ante a mis- cigenação que tinha raízes nos primeiros decênios do povoamento das Minas.21 Um após o outro, os governantes coloniais se alarmaram ante o número crescente de negros - Assumar, que governou Minas entre 1717 e 1721, passou toda a sua gestão aterrado com a possibilidade de uma insurreição escrava- e desqualificaram das mais diversas formas a gente mestiça que ia surgindo a partir das inevitáveis uniões mistas. Quando, no início da década de 30, a Coroa estudava as possibilidades de se estabelecer nas Minas o imposto da capita-
  • 11. ção, dirigiu ao governador André de Mello e Castro, conde das Gal- vêas, uma série de cartas ordenando que examinasse as vantagens e desvantagens da alforria. O governante respondeu que, apesar de se- rem meio atrevidos, os forros trabalhavam nas lavras e contribuíam para o pagamento dos impostos, afirmando, em seguida, que o ver- dadeiro flagelo eram os mulatos, "porque a mistura que têm de brancos, os enche de tanta soberba e vaidade que fogem ao trabalho servil, com que poderiam viver, e assim vive a maior parte deles como gente ociosa". Alarmado, o rei pediu a Galvêas que opinasse sobre a necessidade de se "dar alguma providência acerca dos mu- latos forros que vivem também em grande liberdade".22 Como bem viu Julita Scarano em trabalho extremamente sensível às contribui- ções do racismo numa sociedade escravista e mestiça, pardos e for- ros eram vistos como perturbadores da ordem.23 Pilares do poder metropolitano em Minas, as camaras revela- ram, em inúmeras representações, temor ante a sociedade mestiça que se ia inevitavelmente formando na região. Na década de 50, as autoridades ligadas ao Contrato da Extração de Diamantes no Dis- trito Diamantino achavam que o contrabando desapareceria com a destruição dos arraiais de pardos e forros, "porquanto os ladrões que mais perseguem e roubam as terras dos diamantes são negros forros, mulatos, cabras, mestiços e outros desta qualidade".24 Em 1775, os mesmos camaristas de Mariana que, vinte anos antes, recusaram-se a criar mulatos, criticavam "a muita desenvoltura com que vivem os mulatos, sendo tal a sua atividade que não reconhecendo superiori- dade nos brancos, se querem igualar a eles"; diziam ainda aqueles "homens bons" que os "mulatos gastam em superfluidades e ofensas a Deus".25 Em 1779, no seu famoso Relatório, o vice-rei marquês do La- vradio via a mestiçagem colonial como a principal responsável pelos defeitos da população do Brasil, composta de "tão más gentes". Era impossível sujeitar e acalmar os "negros, mulatos, cabras, mestiços e outras gentes semelhantes", pois eram "gentes da pior educação, de um caráter o mais libertino".26 A reprovação da mestiçagem tomava assim forma oficial, era endossada pelo vice-rei, que sistematizava temores difusos e esparsos, tais como os que, em Minas, embasaram atitude ilegal, racista e discriminatória assumida pela Camara da Leal Cidade de Mariana no tocante à criação de bebês mulatos. Resta agora refletir um pouco para a igualmente inusitada ma- trícula do enjeitado José (documento D). O bebê fora exposto na ca- sa de Manoel Pires da Costa, que, mediante pagamento das mesmas três oitavas mensais, apresenta-se ao Senado da Camara com a dis- posição de criá-lo. Entre esta matrícula e as anteriores, haviam-se passado sete anos: talvez por isso ela se mostre mais enfática no que diz respeito à real condição de enjeitado do menino, ou seja, ao fato de não se conhecerem seus pais carnais: Pires da Costa apresenta petição com despacho para matricular o pequeno José, "ao qual o
  • 12. dito Juiz Presidente deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em um livro dele em que pôs sua mão direita sob cargo do qual lhe en- carregou declarasse se sabia quem eram os pais do dito exposto, e por declarar não sabiam quem eram, mandaram se matriculasse..." Os dados secos que se seguem não permitem senão conjecturas: dois anos depois, constatou-se que o menino era filho de uma escrava de Antonio de Magalhães Nunes, que passou então a criá-lo. Diz o do- cumento: "sem efeito este termo por sair dono a este enjeitado, que é Antonio de Magalhães Nunes..." Camara e senhor passavam por cima da lei, consciente ou inconscientemente, para recuperarem, respectivamente, as oitavas gastas e o escravo extraviado. Maria Beatriz Nizza da Silva chamou a atenção para o fato de que a questão dos expostos dizia respeito apenas à população livre, pois, segundo o Alvará de 1775, o exposto de cor negra ou mulata gozaria automaticamente de liberdade.27 . Em seu admirável trabalho, Perdigão Malheiro mostra que re- monta a Roma a legislação que declara a liberdade dos escravos ex- postos, mesmo contra a vontade de seus senhores: seria esta a dispo- sição legislativa incorporada pelo Alvará pombalino: "Por nosso di- reito, devemos, igualmente, consignar que a liberdade pode vir ao escravo, mesmo contra a vontade do senhor, por virtude da lei": dentre tais casos, encontra-se o do "escravo enjeitado ou exposto", que pelo Alvará ficava livre e ingênuo.28 Não se pode afirmar que o exposto José tenha de fato sido reescravizado, mas tudo indica que sim: foram freqüentes os casos de reescravização de forros e libertos nas Minas, conforme analisei em trabalho anterior.29 Numa capitania em que, conforme já se disse, as Santas Casas eram praticamente inexistentes, as práticas extravagantes do senado de Mariana refletem a fluidez das atitudes camerárias ante questões de assistência social, ou sugerem atitudes arbitrárias e indiferentes ante a lei que, de resto, devia ser comum a todo o Império colonial português. A recusa em criar mulatinhos às expensas do erário público se insere num contexto geral de horror à mestiçagem: a lei pode- ria aparecer como justa, mas a prática acusava a mentalidade dis- criminatória dos colonizadores e colonos brancos, bem situados na escala social. A situação era tanto mais estranha quando se conside- ra que a sociedade se tornava cada vez mais mulata, e mais difíceis de cumprir os estatutos de pureza de sangue que vedavam o acesso de portadores de sangue impuro às camaras e ao clero: a esquizofre- nia e a hipocrisia brasileiras no que diz respeito à mestiçagem já se delineavam e se constituíam nas práticas cotidianas mineiras no século XVIII. O caso do enjeitado reescravizado poderia passar como confu-
  • 13. são. O fato se deu em 1762, antes do Alvará que colocaria na letra a lei romana, possivelmente já contida nas Ordenações portuguesas ou no corpo de Leis Extravagantes desde o fim da Idade Média. De qualquer forma, as quatro matrículas de expostos existentes nos Có- dices da Camara Municipal de Mariana e a exigência do Senado de Vila Rica no tocante à apresentação de atestados de brancura para enjeitados sugerem que teoria e prática andavam apartadas com fre- qüência maior do que normalmente se imaginou - mesmo na Capita- nia do Ouro, as Minas Gerais que, por todo o século XVIII, foi pe- las riquezas que escondia "a pérola preciosa do Brasil"30 e, nesta qualidade, mais vigiada do que qualquer outra região da Colônia. Tais deslizes e "atos falhos" vinham ao encontro dos interesses me- tropolitanos, mas talvez tenham se autonomizado algumas vezes. Por outro lado, o fato de o senado agir de forma contrária às leis que passariam a vigorar vinte e dois anos depois pode sugerir hipótese diversa: a prática confusa e contraditória das camaras, que agiam se- gundo suas próprias cabeças, teria alertado a metrópole no sentido de criar uma legislação específica para a matéria - o que, ao fim e ao cabo, não significa que ela viesse a ser sistematicamente cumprida. Não sou estudiosa de demografia nem da infancia abandonada. As considerações acima devem ser vistas como alerta ou sugestão de que, pelas camaras do Brasil, talvez existam outros documentos es- tranhos e sugestivos. O fato de serem poucos ou esparsos não deve assustar o pesquisador, nem inibir hipóteses: a extravagancia e a ra- ridade são às vezes mais significativas do que a quantidade e a re- petição, alertando o historiador para as limitações que envolvem o esforço de compreensão do passado. Vários significados se perde- ram para sempre, no decorrer do tempo; outros podem e devem ser resgatados por investigações que, muitas vezes, não têm outra saída a não ser a utilização de um paradigma indiciário, assentado em hi- póteses, conjecturas e intuição.33 TRANSCRIÇÃO DAS MATRICULAS ANALISADAS José de Jesus Martins A) Termo de Matrícula do Enjeitado José (p. 28V). "Aos dezesseis dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três anos nesta Leal Cidade e casas de moradas de mim escrivão adiante nomeado e sendo aí por Domingos Moreira me foi apresentada uma sua pehção com o seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular o enjeitado por nome José ao qual assiste este Se- nado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação com declaração porém que a todo o tempo que se declarar ser o dito enjeitadinho mulato e não branco lhe não correrá o dito estipêndio das três oitavas, mas antes será o dito obrigado a repor tudo o que tiver recebido por conta da mesma criação tudo
  • 14. na forma do despacho inserto na mesma petição que fica neste cartório e de como assim o disse e se obrigou por sua pessoa e bens assinou com as teste- munhas presentes Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto mora- dores nesta cidade e reconhecidos de mim escrivão da Camara João da Costa Azevedo que o escrevi". Assinaram: Domingos Moreira, Manoel Coelho Varella e José de Al- meida Barreto. Consta em baixo: "Faleceu este enjeitado em 15 de agosto de 1753. Está pago." (Rubricado pelo escrivão da Camara.) B) Termo de Matrícula da Enjeitada por nome Maria (p. 29V). "Aos dezenove dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de mim escrivão adiante - nomeado e sendo aí por José do Couto Cruz morador nos Camargos me foi apresentada uma sua petição com o seu despacho nela posto pelo Doutor Pre- sidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular a Enjeitada por nome Maria a qual assiste este Senado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação com declaração porém que a todo o tempo que se declarar ser a dita enjeitada mulata e não branca lhe não correrá o dito estipêndio de três oitavas mas antes será o dito obrigado a repor tudo o que tiver recebido por conta da mesma criação tudo na forma do despacho inserto na mesma petição que fica neste cartório, e de como assim o disse e se obrigou por sua pessoa e bens, assinou com as testemunhas presentes Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto moradores nesta cidade e reconhecidos de mim escrivão da Camara João da Costa Azevedo que o escrevi". Assinaram José do Couto Cruz, Manoel Coelho Varella e José de Al- meida Barreto. C) Termo de Matrícula da enjeitada por nome Maria digo por nomee Clara (pp. 30V e 31) "Aos vinte e três dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de mim escrivão adiante nomeado apareceu presente Manoel Rodrigues Viana morador nesta cidade e reconhecido de mim escrivão e por ele me foi apresentada uma sua petição com o seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular a enjeitada por nome Clara à qual as- siste o Senado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação, com de- claração porém que a todo o tempo que se vier no conhecimento ser mulata e não branca lhe não correrá o dito estipêndio de três oitavas mas antes será o dito obrigado a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta da dita criação tudo na forma do despacho inserto posto na dita petição que fica neste cartório, e de como assim o disse e se obrigou assinou com as testemunhas presentes Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto moradores nesta cidade e reconhecidos de mim escrivão da camara João da Costa Azevedo que
  • 15. o escrevi. E declaro que a dita enjeitada a deu a criar a Luiza Rodrigues do Couto preta forra moradora nesta cidade e reconhecida de mim escrivão a quem pertence o dito ordenado enquanto criar a dita enjeitada e de como a re- cebeu assinou/ com uma cruz por não saber ler nem escrever, João da Costa Azevedo escrivão da camara que o declarei" Assinaram: Luiza Rodrigues do Couto - com cruz -, Manoel Coelho Varella e José de Almeida Barreto Consta em baixo: "Faleceu esta enjeitada em 22 de agosto e até esse dia se mandou pagar Está pago" (rubricado pelo escrivão da camara.) D) Termo de Matrícula do Enjeitado por nome José (p. 63V) "Aos nove dias do mês de novembro de mil setecentos e sessenta anos nesta Leal Cidade de Mariana e casa de moradas de mim escrivão adiante no- meado e sendo aí presente Manoel Pires da Costa morador em São Caetano por ele me foi apresentada uma sua petição com despacho nela posto pelo Juiz Presidente e mais oficiais da camara para efeito de se matricular o Enjeitado por nome José que lhe foi exposto, ao qual o dito Juiz Presidente deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em um livro dele em que pôs sua mão di- reita sob cargo do qual lhe encarregou declarasse se sabia quem eram os pais do dito exposto, e por declarar não sabia quem eram, mandaram se matricu- lasse e se lhe assistisse com três oitavas de ouro por mês por tempo de três anos na forma dos Provimentos do Doutor Corregedor, de que para constar fiz este termo de Matrícula que assinou e eu João da Costa Azevedo escrivão da camara que o escrevi". Assina: Manoel Pires da Costa Consta: "Sem efeito este termo por sair dono a este enjeitado que é Antonio de Magalhães Nunes por ser filho de uma sua escrava ao qual se en- tregou em 2 de janeiro de 1762. Não pagou nada o Senado". (Rubricado pelo escrivão da camara.) NOTAS 1. VENANCIO, Renato Pinto. Infancia sem destino: o abandono de crian- ças no Rio de Janeiro no século XVIII, dissertação de mestrado apresen- tada na USP, 1988, ex. mimeo. Iraci del Nero da Costa, Vila Rica: Po- pulação (1719-1826), Coleção Estudos Econômicos, 1, São Paulo, FIPE- .USP,1979. 2. BOSWELL, John. The Rindness of Strangers - the abandonment of Cha- dren in Western Europe Fro~n Late Antiquity to the Renaissance, Nova York, Pantheon Books, 1988. Devo esta referência a minha colega Mary Del Priore. 3. Ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. "O problema dos expostos na Ca- pitania de São Paulo", in Anais do Museu Paulista, tomo XXX, São Pau-
  • 16. lo, 1980/1981, p. 148. Para a sociedade européia, com ênfase no caso milanês, o artigo interessantissimo de V. Hunecke, "Les enfants trouvés: contexte européen et cas rnilanais (XVIII-XIX siècles)", in Revue d'His- toire Moderne et Contemporaine, tomo XXXII, 1985, pp. 3-28. 4. BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português. Lisboa, Edições 70,1977, cap. 12, "Conselheiros Municipais e Irmãos de Caridade". 5. MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884). São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, p. 170. 6. MENEZES, Furtado de. Templos e sodalícios - Bi-centenário de Ouro Preto, Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1911, pp. 273- 274. 7. ROCHA, José Joaquim da. "Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais", Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. II, 1897, pp. 457, 460 e 470. 8. COSTA, Iraci del Nero da. "Ocupação, povoamento e dinamica popula- cional", in Minas Colonial: Economia e Sociedade, São Paulo, FIPE- PIONEIRA, 1982, pp. 27-28. 9. CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Preto, Belo Horizonte, 1969,pp.61-62. 10. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto, Códice 116, fL 37. Citado também em Francisco Antonio Lopes, Os Palácios de Vila Rica - Ouro Preto no ciclo do ouro, Belo Horizonte, 1955. 11. Apud Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., p. 152. 12. Caio Cesar Boschi, "O assistencialismo na Capitania do Ouro", in Revista de História (nova série), n° 116, janeiro/junho 1984, p. 35. 13. Apud LOPES, Francisco Antonio, op. cit., p. 188. 14. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., p. 147-148. 15. PERROT, Michelle. "As Crianças da Petite Roquette", in Revista Brasileira de História, n-° 17, São Paulo, set. 88/fev.89, pp. 115-128. 16. Cito o Alvará conforme transcrição de Renato Pinto Venancio, op. cit., pp. 114-118. Em fevereiro de 1795, após resposta positiva do ouvidor à consulta que a Camara de Vila Rica fizera sobre a possibilidade de se criar uma roda de expostos na vila, o nobre Senado resolve estabelecer tal roda na morada de "um casal honrado, e de bons costumes". Apud Fran- cisco Antonio Lopes, op. cit., p. 188. Tudo indica que a roda só foi criada no século seguinte, conforme dito acima.
  • 17. 17. O mais importante conjunto de leis sobre o assunto encontra-se em An- tonio Joaquim de Gouveia Pinto, "Compilação das providências, que a bem da criação e educação dos expostos ou enjeitados se têm publicado, e acham espalhadas em diferentes artigos de legislação pátria, a que acres- cem outras, que respeitando ao bom regimen, e economia da sua admi- nistração, e sendo contudo filhas das mesmas leis, tem a experiência pro- vado a sua utilidade". Cito esta obra a partir de Maria Beatriz Nizza da Silva e Renato Pinto Venancio, pois não tive acesso a ela. 18. Ver a esse respeito FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, 2a ed., Porto Alegre/São Paulo, Globo/USP, 1975. 19. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Manuel Francisco Lisboa - Juiz de Ofício e Filantropo, Belo Horizonte; Escola de Arquitetura da UFMG, pp. 31-32. O grifo é meu. 20. Arquivo Público Mineiro, Camara Municipal de Ouro Preto, cód. 61, fl. 57V, apud Russell-Wood, op.cit., p. 32. 21. "Tábua dos habitantes da Capitania de Minas Gerais e dos Nascidos e Falecidos no ano de 1776", apud José Joaquim da Rocha, op. cit., p. 511. 22. Carta Régia de 17/6/1733, Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, Códice 18. No mesmo códice, ver também Carta de 20/5/1732. A respeito deste assunto, ver MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro - a pobreza mineira no século xVIII. Rio, Graal, 1982, p. 106. Ver também SCARANO, Julita. Devoção e escravidão - a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976, pp. 120-121. 23. SCARANO, Julita, op. cit., p. 116. 24. Arquivo Histórico Ultramarino, cx. 35, "Proposta a Sua Majestade a res- peito do Contrato da Extração dos Diamantes, 1753-1754, cap. 18". Ver SCARANO, Julita, op. cit., p. 120. 25. AHU, Minas Gerais, cx. 37, 3-12-1775. Apud Scarano, op. cit., p. 121. 26. "Relatório do Marquês do Lavradio -1779" in Revista do Instituto Histó- rico e Geográfico Brasileiro, vol. IV, p. 424. 27. Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., p. 148. 28. MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico, Jurí- dico, Social. 2 VOlS 3a ed., Petrópolis, Ed. Vozes/INL, 1976, VOl. 1, pp. 95-96 para a questão em Roma; p. 98 para o Brasil, inclusive nota 537. 29. MELLO E SOUZA, Laura de, op. cit., cap. 4: "Os protagonistas da mi- séria".
  • 18. 30. MACHADO, Simão Ferreira, "Prévia alocutória" ao Triunfo Eucarístico edição fac-simile de Afonso Avila, Resíduos Seiscentistas em Minas - textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Belo Hori- zonte, Centro de Estudos Mineiros, 1967, VOI. 1 , p. 25 31. A problemática dos significados que se perdem para o historiador é ex- plorada por DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio, Graal, 1986, principalmente na "Apresentação". É ainda uma problemática cara aos historiadores da fei~çana, mas não cabe aqui nos determos neste assunto. Para a questão do paradigma indiciário, remeto a GINZBURG, Carlo. Mitos- Emblemas - Sinais. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Sobretudo no ensaio intitulado "Sinais raízes de um paradigma indiciário". PEDOFILIA E PEDERASTIA NO BRASIL ANTIGO * Luiz Mott "E o Mestre disse: Deixai vir a mim os pequeninos. . . " (Lucas, 18:16) Dentre os tabus sexuais mais repelidos pela ideologia ocidental contemporanea estão a pedofilia - relação sexual de adulto com criança pré-púbere - e a pederastia - relação sexual de adulto com adolescente - também chamada efebofilia (Dynes, 1985: 109-110). Tendo como pressupostos que o sexo é sinônimo de pecado, que a sexualidade destina-se à reprodução da espécie e só pode ser prati- cada dentro do casamento, por seres maduros - considerando-se a criança como inocente e imatura- aproximá-la dos prazeres eróticos equivaleria a profanar sua própria natureza. Daí a dessexualização da infancia e adolescência impor-se como um valor humano funda- mental de nossa civilização judaico-cristã. Diz nosso Código Penal: "Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa menor de 18 anos e maior de 14, com ela praticando ato de libidinagem ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo, incorre o infrator na pena de até 4 anos de reclusão" (artigo 218). · TRulo original: "Cupido na Sala de Au la: Pedofilia e Pederastia no Brasil Antigo". Mais grave ainda, para a opinião pública, são as relações se- xuais envolvendo homem adulto com menino ou adolescente, na medida em que dois tabus cruciais são desrespeitados: o erotismo intergeracional e a homossexualidade. Sobretudo nos Estados Uni- dos, um dos maiores preconceitos contra os gays é a acusação de que representam uma ameaça à integridade física das crianças (chil- dren molesters), embora pesquisas repetidamente comprovem que são sobretudo os heterossexuais os responsáveis pelo maior índice de violência sexual contra os menores de idade (Hoffman, 1970;
  • 19. Harvey & Gocm~s, 1977). Alguns historiadores têm mostrado que a dessexualização da criança é fenômeno recente na história ocidental, e que até meados do século XVII, meninos e meninas - inclusive nos palácios reais- viam, falavam, ouviam e agiam com mais soltura em matéria de sexo do que seus sucessores do período vitoriano (Ariès, 1981; Foucault, 1980; Schérer, 1974). Em outras sociedades, como na Grécia antiga, a relação sexual entre adultos e jovens fazia parte do próprio proces- so pedagógico (Dover, 1978), e contemporaneamente, em dezenas de sociedades tribais da Melanésia, ainda se pratica a pederastia ri- tual compulsória para todos os adolescentes, através da qual os ho- mens adultos transmitem seu sêmen, quer por via anal, quer oral, acreditando que só assim as novas gerações crescerão fortes e pos- suirão a semente da vida (Herdt, 1984). O que para muitos é chocante, cruel e considerado como grave desrespeito à inocência infanto-juvenil, noutras sociedades é con- duta normal, método pedagógico ou ritual de iniciação no mundo adulto. Um bom exemplo de como em nossa própria tradição oci- dental as intimidades físicas entre adulto e criança não causavam es- panto, é o celebérrimo milagre de Santo Antonio de Pádua, nosso santinho casamenteiro natural de Lisboa, sempre representado com o Menino Jesus no braço. Eis um relato: "segundo a prodigiosa e ad- mirável visão de um seu devoto, (...) espreitando acaso o que o santo fazia, chegando-se à porta do quarto com silêncio e cautela, altas horas da noite, reparou pelos resquícios das desunidas táboas da porta e viu um belo e formosíssimo infante, todo rei na majestade da presença, toda aurora nos risos da boca, todo Cupido nas nudezas do corpo, e todo amor na ternura dos afetos, que se entretinha nos braços de Antonio que venturosamente serviam de setas àquele amor. Viu que Antonio se regalava com aquele menino entre doces e amo- rosas cancias com ele nos braços..." (Abreu, 1725: 138). Mesmo pa- ra um santo, convenhamos, era demasiada a intimidade, embora na época fosse naturalmente aceita. Ó temporal Ó mores! Em nossa tradição luso-brasileira, parece que as relações se- xuais entre adultos e adolescentes, além de freqüentes, não eram conduta das mais condenadas pela Teologia Moral, pois mesmo quando realizada com violência, a pedofilia em si nunca chegou a ser considerada um crime específico por parte da Inquisição. Os dois episódios que se seguem exemplificam nossa asserção: Em 1746, chega ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa a se- guinte denúncia: Maria Teresa de Jesus, mulher casada, moradora na Vila de Santarém, "saindo de sua casa um seu filho, Manoel, de 5 anos, foi levado por um moço, Pedro, criado, para um porão e usou do menino por trás, vindo o menino para casa todo ensanguenta- do.
  • 20. Em 1752, outro caso semelhante chega à Inquisição: no po- voado de Belém, junto a Lisboa, um moço de 25 anos, José, mari- nheiro, agarrou um menino de 3 anos incompletos, João, o levou pa- ra um armazém, "do qual saiu a criança chorando muito, todo en- sangüentado e rasgado seu orifício com a pica do moço" 2 Malgrado a perversidade desses atos, a pequenez das vítimas, a revolta dos pais e a identificação fácil dos estupradores, os reveren- dos inquisidores não deram a menor importancia a essas cruéis vio- lências, arquivando as denúncias. A naturalidade com que esse outro pedófilo confessa seus "desvios" é estarrecedora: trata-se de um sacerdote brasileiro, resi- dente em Salvador, o cônego Jácome de Queiroz, 46 anos. Confes- sou perante o visitador do Santo Ofício, em 1591, que "uma noite, levou à sua casa uma moça mameluca de 6 ou 7 anos, escrava, que andava vendendo peixe pela rua, e depois de cear e se encher de vi- nho, cuidando que corrompia a dita moça pelo vaso natural, a pene- trou pelo vaso traseiro e nele teve penetração sem polução. E outra vez, querendo corromper outra moça, Esperanza, sua escrava de idade de 7 anos, pouco mais ou menos, a penetrou também pelo tra- seiro". O remorso do cônego - e seu crime - teria sido a cópula anal na época referida como "abominável pecado de sodomia". A infan- 46 tilidade e pureza dessas duas meninas, ambas com sete anos, não provocou qualquer preocupação ou prurido ao pedófilo: seu medo era unicamente ter cometido "o mais torpe e imundo pecado, a có- pula anal. A corrupção de menores não constituía motivo sequer de advertência. Analisando a farta documentação inquisitorial arquivada na Torre do Tombo, em Lisboa, encontramos diversas denúncias contra cidadãos do Reino e Ultramar, acusados de terem mantido relações homossexuais com meninos e adolescentes. Diversos foram os pro- fessores de meninos que tiveram seus nomes registrados nos volu- mosos Cadernos do Nefando, acusados de atos torpes com seus dis- cipulos. Somente os casos mais graves, quando havia muitas teste- munhas de repetidos atos sodomiticos, redundaram em prisão do réu, alguns poucos chegando à fogueira. Em 1510, por exemplo, André Araújo, 39 anos, professor de viola em Lisboa, é degredado por 10 anos para as galés, como castigo por ter mantido cópulas com vários de seus alunos com idades variando entre 14 e 15 anos; Antonio Homem, 60 anos, preso em 1619, famoso mestre de Canones na Universidade de Coimbra, foi acusado de ter acessos sodomiticos com mais de vinte estudantes, cujas idades variavam de 11 a
  • 21. anos: morreu queimado num Auto de Fé, embora sua principal culpa fosse a prática do judaismo;5 Frei João Bote1ho, 43 anos, ex-frade Jerônimo, era mestre de música, e entre um solfejo e outro, tinha o costume de açoitar as nádegas de seus alunos travessos, ocasião em que os possuia à moda de Sodoma: por ser considerado muito devas- so e incorrigivel no "mau pecado", foi também condenado a foguei- ra em 1638;6 Teotônio Bonsucesso, 40 anos, mestre de meninos, em 1723 foi condenado a dez anos de galés por culpas de somitigaria com seus pupilos, o mais jovem com 9 anos e o mais crescidinho com 14. Mesmo preso não abandonou a pedofilia, sendo visto no cárcere com um estudantinho sentado no seu colo "fazendo com o corpo as mesmas ações que faz o homem quando dorme com uma mulher. Em todos esses casos observamos a mesma regularidade: um dos meninos reclama em casa o assédio do mestre, o pai leva o me- nor ao Tribunal do Santo Oficio e os inquisidores registram a de- núncia Nos dias seguintes, espontaneamente ou por convocação, os demais alunos do nefando professor prestam queixa e somente apos ouvir uma dezena de testemunhas, entre crianças, seus parentes e vi- zinhos da escola, é ordenada a prisão do professor. Na maioria des- ses casos, além do tormento, o pederasta é degredado para as galés, via de regra por 10 anos. O fato de serem pré-púberes os parceiros, ou da sodomia ter-se realizado com violência, não era matéria agravante para o castigo: o que se levava mais em conta era sobretudo a ocorrência ou não da sodomia perfeita (penetração com ejaculação) e a repetição dos atos venéreos, as duas matérias-primas para a punição por parte do Santo Ofício (Mott, 1988, a). O episódio que analisaremos a seguir, e que constitui o fulcro deste ensaio, ocorreu em Minas Gerais no ano de 1752. Pela riqueza de detalhes, por suas implicações e desdobramentos, constitui peça importante para apreendermos alguns aspectos estruturais das rela- ções entre professor e aluno no ambito da sociedade colonial brasi- leira, assim como para vislumbrarmos a reação dos mais velhos à se- xualidade infantojuvenil e os mecanismos repressores acionados pela Igreja Católica na correção dos desvios sexuais. Trata-se de um swnário contra um professor acusado de ter mantido repetidas e violentas cópulas anais com seu aluno.8 Francisco Moreira de Carvalho era um proprietário rural resi- dente nas Lavras da Lagoa, freguesia de São João del Rei, na Co- marca do Rio das Mortes. Casado, tinha dois filhos: Luiz, com 9 pa- ra 10 anos e Antonio, com 8. Devia ser homem remediado, tanto que contratou João Pereira de Carvalho como professor particular de linguagem e latim para seus filhos. Tais aulas eram ministradas tam- bém para outros meninos da vizinhança, provavelmente na sala da
  • 22. frente da casa do mestre, tal qual se observa ainda hoje nas escolas particulares de nossa zona rural. A documentação apresenta várias versões para o mesmo episó- dio. Eis o primeiro relato. Certo dia, o menino Luiz assim dirigiu a palavra a seu progenitor: "Senhor meu Pai: meu Mestre João Pereira de Carvalho dormiu comigo por de trás lá na Lagoa". ("Dormir por de trás", ou "dormir no 6º Mandamento", ou "dormir carnalmente pelo vaso traseiro" eram eufemismos para descrever a cópula anal nos tempos da Inquisição.) A outra variante tem várias vertentes: uma testemunha declarou que o jovem professor teria enviado ao menino Luiz um bilhete que inadvertidamente caiu nas mãos do dono da casa. Três testemunhas dão versões diferentes do mesmo bilhetinho: um roceiro de 42 anos, Inácio de Souza, declarou que o escrito do professor dizia: "Luiz: vós, se me quereis bem, eu também Vos quero, e se me quereis mal, eu também Vos quero". A segunda testemunha, João Gonçalves ~lagro, 25 anos, português de Braga, deu outra redação mais hedo- nística e não menos romantica: "Luiz, meu amorzinho, minha vidi- nha! Vinde para o bananal que eu já lá vou, com a garrafinha de aguardente". A terceira testemunha diferiu pouco da anterior. "Luiz, minha vida: Vinde para o bananal que lá temos o que comer e beber". "Vós" era o tratamento comum nos séculos passados mes- mo entre um professor e um aluno; as expressões "amorzinho" e "vidinha" para tratar afetuosamente quem se ama aparecem também em outras cartas de amor de sodomitas lusitanos e o diminutivo era forma usual de se manifestar o sentimentalismo amatório (Mott, 1988, b). Mesmo o bananal, como local para encontros amorosos fortuitos, aparece em outros documentos mineiros da época, lugar sombrio e asseado, cujas grandes folhas secas, amontoadas, servem de colchão para amantes clandestinos. O tom apaixonado dos bilhe- tinhos e a simpática mise-en-scène desses encontros amorosos, en- tremeados de aguardente e comida - numa zona tradicionalmente pobre de abastecimento - levam-nos a concluir que a relação entre mestre e discípulo ia de vento em popa, mostrando que também nas Gerais havia adeptos da mesma didática helênica, associando a pe- derastia à pedagogia - postura ressuscitada por alguns teóricos con- temporaneos, para escandalo e execração dos donos do poder (Sché- rer, 1974; Lapassade & Schérer, 1976; Pinard-Legry & Papouge, 1980; Sanford, 1987). Tamanho idílio homoerótico não podia ser tolerado no berço da "tradicional família mineira", moldada pela moral cristã, tão for- temente marcada pela homofobia e machismo, onde a violência, agressividade e dureza constituíam valores inerentes à masculinida- de, condição necessária para a manutenção da supremacia da raça branca e da classe dominante, sempre ameaçadas pela rebeldia dos
  • 23. escravos e gentes de cor. Urgia, portanto, que este nefando romance fosse exemplarmente castigado, afastando o imoral professor do convívio de crianças inocentes. Arma-se então um ardiloso enredo para incriminar o suposto sodomita: uma enxurrada de fuxicos alastra-se pelas Lavras da La- goa, chegando tais mexericos até o Tribunal do Santo Ofício de Lis- boa. Sigamos aboataria. Ninguém sabia ao certo quem era, de que família procedia e de que terra viera o tal professor: uns diziam que vinha do Rio de Ja- neiro, outros que seu pai possuía um engenho. Sua desgraça parece ter começado quando um moleque escravo, Manoel, crioulo de 12 anos, ladino como ele só, contou à preta forra Bernarda, 25 anos, que o professor "estava fazendo cousa má com a gente por de trás". (Cousa má, mau pecado, sodomia, eram alguns dos muitos termos correntes nos tempos antigos para descrever a cópula anal homosse- xual - relação que ainda no tempo de Oscar Wilde era chamada de "o amor que não ousa dizer o nome"). A negra Bernarda ficou espavorida com tal informação, tanto que logo atalhou: "Cala a boca! Não fale isso, que se o pai do Luiz o saber, é crime!" Podemos fazer duas leituras desta exclamação: a negra quis dizer ou que a sodomia era crime, como de fato tinha ra- zão, merecendo o sodomita a pena de morte, quer pela Justiça do Rei, quer pelo Tribunal da Inquisição - ou então, quer por razão desta "cousa má", o pai do menino poderia cometer um crime, justi- çando com as próprias mãos o professor indecente. Esta negra forra terá um papel fundamental na divulgação deste insólito quiproquó: em seu depoimento posterior, disse que por três vezes fora procurada pelo menino Luiz para tratar de lesões no anus: "com as vias deitando sangue". Bernarda devia ser uma espé- cie de curandeira local, quiçá parteira, pois a descrição que fez do estado mórbido do coitadinho reflete bastante familiaridade no trato das partes pudendas: além do sangue, observou "na entrada (do anus) algumas rachaduras e bostelas secas (pequenas feridas com crosta) que lhe faziam ardores e tinha a via muito larga, tanto que lhes metia dois dedos - e caberiam três se lhes metesse - e que quando metia os dedos estes saiam com sangue." Diagnóstico, diga-se en passant, que só mesmo um bom proc- tologista seria tão minucioso em realizar, antecedendo de um século o célebre professor de Medicina Legal de Paris, Dr. Ambroise Tar- dieu, quem primeiro e melhor qualificou os "traços de violência so- domítica" (1873: 247). Solícita, Bernarda tratou do coitadinho "dando-lhe alguns ba- nhos e colocando algumas pírulas (sic) nas vias do menino". Nas duas primeiras visitas Luiz não lhe revelou a causa de seu padecer - só na terceira lhe confiou o segredo, "pois seu mestre o ameaçava
  • 24. de matar se o revelasse". Imediatamente Bernarda manda chamar a mãe do menino e lhe conta tal ocorrência. A mãe de Luiz fica muito irritada "dando algumas bofetadas no filho, queixando-se de não ter- lhe dito antes". Luiz fica adoentado, e ao perguntarem à senhora Moreira os motivos da doença, em vez de ocultar a vergonha, res- pondia encolerizada: "É por causa das velhacadas do mestre!" (Ve- lhacada e velhacaria são termos usados nos séculos XVII e XVIII como sinônimos de homossexualidade, embora já no século XIX o dicionarista Antonio Morais os registre apenas como "ação deso- nesta"). Velhacadas, segundo corria à boca pequena, que não teriam poupado sequer o irmãozinho menor, Antonio, 8 anos, o qual acusa- va também o Mestre de obrigá-lo a praticar descaMções, "tendo po- lução na mão do menino". OUtra versão desses episódios informava que tão logo a proge- nitora de Luiz tomou conhecimento de tais nefandices, ipso facto entrou em ação o ultrajado pater-familias. Colérico, mandou chamar o professor João Pereira de Carvalho, conservando-o amarrado com cordas: "quis pegar umas foices para dar no mestre", sendo contudo impedido pelos vizinhos. Aqui também as informações das testemu- nhas são contraditórias: uns dizem que a relação amorosa do profes- sor João com Luiz tornou-se conhecida do Sr. Francisco quando seu próprio filho entregou-lhe o bilhetinho "por não saber ler". Aí en- tão, apenas no dia seguinte o pai do menino teria chamado o mestre para acertar as contas, dizendo-lhe textualmente: "que tinha sido chamado em sua casa para ensinar seus filhos, e o fez pelo contrário, ensinando-os somiticarias". Aqueloutros que referiram a cena mais violenta - o espavorido mestre manietado e o pai injuriado com foi- ces na mão - dizem que o professor teria exclamado nesta ocasião: "Senhor Francisco Moreira de Carvalho, que sua prudência me va- lha!". ("Prudência", segundo o dicionarista Morais é a virtude que faz conhecer e praticar o que convém na ordem da vida política ou moral; circunspecção; gênio cordato.) A prudência falou mais alto, e o pai de Luiz curvou-se perante a lei: procurou então a principal autoridade eclesiástica local, o vi- gário da Vara da Comarca do Rio das Mortes, dando-lhe sua versão deste nefando imbróglio. Incontinenti, a 10 de abril de 1752, o vigá- rio manda ofício ao comissário do Santo Ofício, padre Antonio Leite Coimbra, o qual efetua a prisão do acusado "mantendo-o bem guar- dado para ser enviado para a Inquisição de Lisboa". No dia seguinte o infeliz professor já está preso. Passa-se duas semanas e o Comissário Coimbra inicia o su- mário, chamando e ouvindo quatro testemunhas, que reconstroem e acrescentam alguns detalhes à estória contada pelo pai da vítima. No documento redigido pelo comissário, as velhacarias, velhacadas, somitigarias e cousas mas referidas pelas testemunhas são agora traduzidas bombasticamente como "o pecado em que se não pode falar" - a melhor e mais concisa definição que encontramos nos
  • 25. processos inquisitoriais como sinônimo de homossexualidade, exa- tamente com as mesmas palavras como é definido o pecado nefando pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). O Comissário Coimbra revelava ser bom conhecedor da Teologia Mo- ral e fiel cumpridor das diligências pertencentes ao Santo Ofício. Envia então as informações coletadas para o Tribunal de Lisboa, sumariando o disse-que-disse sobre essa nefanda estória das Lavras da Lagoa. Até ser embarcada sua documentação no Rio de Janeiro, chegar à Casa do Rocio, ser analisada pelo promotor do Santo Ofí- cio, passam-se dez meses. Prudentes, e já com mais de duzentos anos perseguindo os sodomitas, os inquisidores ordenam a 9 de fevereiro de 1753 que o comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro proce- desse a um minucioso sumário para elucidar a denúncia. Tudo leva a crer, portanto, que não havia nessa época comissários inquisitoriais nas Minas Gerais, caso contrário não teria Lisboa ordenado que as diligências fossem efetuadas pela Comissaria do Rio de Janeiro. Gastan-se mais oito meses até que tem início nova inquirição de testemunhas, inaugurando-se este segundo sumário aos 6 de outubro de 1753, dia de São Bruno. O murmúrio contra o desafortunado professor continuava: ne- nhuma das testemunhas sabia de seu paradeiro - uns diziam que ti- nha sido mandado para o Rio de Janeiro, outros, que já estava sendo julgado nos cárceres da Inquisição, no Reino. Novas testemunhas acrescentam alguns detalhes, alguns deles em flagrante contradição com as informações originais. Dizem que o mestre já tinha antes dormido carnalmente com outro crioulo; que outro menino servira de mensageiro para convidar o "amorzinho" para o rendez-vous no bananal; confinnam terem sido três as cópulas do professor com seu pupilo. Duas inforrnações contraditórias são fundamentais na avaliação deste caso: o moleque Manoel, quem primeiro contou à negra Ber- narda que o mestre fazia "cousa má por de trás" com seus alunos, agora "tira o cu da seringa", minimizando sua primeira denúncia, dizendo tão-somente ter visto o mestre "agachado no chão junto com Luiz, na casa do professor". De vítima ele próprio, passou a espec- tador de ato neutro da ótica da Teologia Moral. O outro delator, o menino Antonio, agora com 9 anos, também deixa de acusar o pro- fessor João de tê-lo obrigado a masturbá-lo, nem se reconhece ví- tima de violência sexual, dizendo perante o Comissário "que seu mestre desapertando os calções, lhe pedira que com a mão lhe fizes- se as sacanas, e ele não quis, fugindo". (Fazer as sacanas, sacana- gem e maganagem eram termos correntes no Brasil e Portugal desde o século XVII, sinônimos de masturbação recíproca ou alheia, rotu- lados pelos inquisidores de molicie.) Portanto, também este menor inocenta o professor de atos sodomiticos, limitando-se a acusá-lo de solicitacao não consumada. Uma última testemunha dá ainda uma quarta versão da reação do Sr. Francisco Moreira de Carvalho quan-
  • 26. do notificado do namoro do mestre com seu filho primogênito - teria dito: "Venha cá, velhaco! É esse o ensino que dá a meus filhos?! andando somitigando com eles! E deu-lhe muitas pancadas..." Terminado o inquérito, o comissário Coimbra envia o sumário ao Tribunal de Lisboa. Nova travessia do Atlantico, e somente a 22 de julho de 1754 vem o veredicto dos reverendos inquisidores. Cer- tamente, para decepção dos moradores das Lavras da Lagoa- e sur- presa dos leitores atuais - mais uma vez a Inquisição mostrou-se mais tolerante do que usualmente se esperava. Eis o despacho: "Foram vistos os autos deste sumário de culpas, e parece a to- dos os votos que as culpas não eram bastantes para proceder à prisão do delatado. Que seja posto em liberdade imediatamente". Após dois anos e três meses de prisão, o professor João Pereira de Carvalho é liberado por ordem da Santa Inquisição: os inquisido- res não encontraram nas acusações culpas suficientes para abrir pro- cesso formal e efetuar a prisão do acusado nos Cárceres Secretos do Rocio. Raposas velhas na arte de inquirir, tarimbadíssimos no ofício de desvencilhar mentiras e desmascarar calúnias, farejadores ini- gualáveis na descoberta de cripto-herejes e sodomitas encobertos, os inquisidores devem ter rapidamente se dado conta de que o quipro- quó da distante Lavras da Lagoa não passava de uma réles maquina- ção de um desconhecido Francisco Moreira de Carvalho contra um chinfrim professor de primeiras letras com veleidades de latinista. Algumas falhas e contradições do sumário tornaram-no peça judicial insustentável, e verdade seja dita, no mais das vezes, o Santo Ofício só mandava prender um denunciado após rigoroso exame das peças processuais e evidências sobejas de que as acusações não eram calú- nias e aleivosias. Eis algumas das principais falhas processuais dessa denúncia e que certamente influenciaram o despacho favorável ao suposto réu: - a má fama do acusado originou-se da fofoca de um moleque de 12 anos, o crioulinho Manoel, que entre um sumário e outro mo- dificou completamente sua acusação, que de vítima ele próprio de atos sodomíticos, passa a observador de certa proximidade física entre o professor e seu discípulo, ato vago que não constituía em si matéria suficiente para ser qualificada como sodomia, sequer como connatus ou molicie (atos próximos à cópula), posto que somente a sodomia perfeita constituía crime da alçada do Santo Ofício; - o suposto bilhete do mestre para seu aluno, interceptado pelo progenitor, caso existisse de fato, deveria ter sido incluído no processo como peça importante na comprovação da nefanda amizade entre ambos- o que nunca ocorreu, e além do mais, as três versões distintas de uma única mensagem sugerem que tal missiva jamais te-
  • 27. ria existido, acrescido do fato de que segundo uma testemunha, o estudantinho "não sabia ler", tanto que teria pedido ao pai que o decifrasse, mais uma evidência abalizadora de que o mestre João certamente nunca teria rabiscado os tais bilhetes; - as diferentes versões do desfecho deste nefando imbróglio, a variação dos diálogos entre o pai ultrajado e o suspeito professor somítico, a negação do contato sexual do filho mais novo, que num primeiro momento afirmara ter sido obrigado a "fazer as sacanas" a seu mestre, e sobretudo, a não acareação dos principais envolvidos no suposto delito - a vítima e o estuprador- são evidências cabais de que tudo não deve ter passado de fuxico de crianças e negros, ca- tegorias sociais que na época eram muito afeitas ao disse-que-disse e mentirinhas quejandas. A experiência secular dos inquisidores torna- ra-os escolados em identificar calúnias, maquinações e interposições de terceiros e segundas intenções nas denúncias destas timoratas categorias de pessoa; - quanto ao testemunho da crioula Bernarda, duas hipóteses: sabedora que sodomia era crime, talvez para vingar-se de algum malquerer contra o professor forasteiro, inventou toda essa sangrenta história, tendo a cumplicidade do crioulinho Manoel, ou então, de fato, o menino Luiz recorreu a seus préstimos para curar-se dalguma hemorróida ou do famigerado mal-del-culo, doença muito corrente no Brasil de antanho, hoje diagnosticada como retite ulcerante, con- secutiva à desinteria. Já em fins do século XVI Fernão Cardim a in- cluiu entre as doenças mais freqüentes na América portuguesa, cau- sando "ardor e corrupção do anus com ulceração corrosiva, sem ou com fluxo doloroso de sangue, corroendo o músculo esfíncter e a boca das veias hemorroidais, ficando o anus largamente distendido à moda de cloaca" (Santos Filho, 1977: 193). E a partir deste deplo- rável estado mórbido, "tendo a veia (do anus) muito larga", arqui- tetou todo esse enredo. Não podemos deixar de aventar a hipótese de que, de fato, pro- fessor e aluno mantiveram relações amorosas, sem bilhetes, sem sangue derramado, sem garrafinha de aguardente, e que o pai ultra- jado pela infamia de ter em casa um filho velhaco, aumentou a histó- ria para vingar-se do indecente mestre e atemorizar para sempre seu filho afanchonado. Mesmo dando crédito a essa conjectura, somos obrigados a ter indulgência com esse mestre abusado, pois até agora, no imaginário do leitor, como ocorreu comigo ao entrar em contato com esse sumário, e o mesmo com os inquisidores lá em Lisboa, ao lê-lo de primeira mão em 1753, ficamos todos com a idéia de que o professor é um adulto, posto não haver no manuscrito qualquer in- formação ou deixa sobre a idade do mestre. Pesquisando as Efemé- rides de São João del Rei, de autoria de Sebastião de Oliveira Cin- tra, localizamos no índice onomástico o nome de nosso professor, cujo pai tinha o mesmo nome, João Pereira de Carvalho, português, e a mãe, Ana Maria do Nascimento, mineira também filha de reinóis
  • 28. das Ilhas. Aí encontramos o registro de batizado do professor João Pereira de Carvalho, realizado na Capela do Rio das Mortes Peque- no, filial da Matriz de São João del Rei, aos 23 de fevereiro de 1739. Só então, fazendo as contas, ficamos sabendo que o abusado professor, ao ser denunciado em 1752, mal acabava de completar 13 anos de idade! Um sodomita acusado de estuprador aos 13 anos! A omissão no sumário, da idade do professor, a nosso ver foi proposital, tendo como finalidade tornar ainda mais hedionda a acu- sação de violência sexual, pois jamais passaria pela imaginação dos leitores, quer dos reverendos inquisidores, quer da nossa, no século XX, que o professor João Pereira de Carvalho fosse um rapazote que nem bigode, nem pentelhos devia ter. Tal omissão reforça nossa ilação de que todo este imbróglio não passou de uma calúnia e ma- quinação dos pais dos meninos Luiz e Antonio contra o professorzi- nho de primeiras letras. É difícil acreditar que um moçoilo de 13 anos, pré-púbere, fosse fisicamente capaz de repetidas violências se- xuais no anus de um menino de 9 para 10 anos. O pesadelo em que estivera envolvido o jovem professor em pouco tempo deve ter se desfeito, tanto que passados sete anos do final deste sumário, em 1761, João Pereira de Carvalho requer junto à Cúria Episcopal de Mariana sua "habilitação de génere et móri- bus", peça indispensável para a admissão de todo candidato ao es- tado sacerdotal. Em seu processo, com 123 folhas, nenhuma das testemunhas inquiridas a respeito dos costumes e moral do habilitan- do refere-se ao episódio das Lavras da Lagoa, nem a qualquer outra conduta desabonadora de sua retidão e honestidade9, tanto que a 24 de setembro de 1762 nosso professorzinho, agora com 23 anos, é ordenado padre pelo bispo D. Frei Manoel da Cruz, exercendo o magistério sacerdotal na vila do Coqueiral até 1769. Até o momento não localizamos em nenhum dos arquivos pesquisados qualquer in- dício de que padre João Pereira de Carvalho praticasse o "vício dos clérigos" - outro eufemismo como desde a Idade Média costumava o povo rotular a homossexualidade. 1821 é o ano da extinção do Santo Ofício: a sodomia deixa de ser crime religioso. 1822, a Independência do Brasil. 1823, a promulgação da primeira Constituição do Império: a homossexualidade deixa de ser crime civil. A rainha Vitória com- pletava quatro aninhos. O século XIX, herdeiro do Iluminismo e do liberalizante Códi- go Napoleônico, transfere o controle dos desvios sexuais da enfra- quecida Igreja, para as Delegacias de Policia. Os direitos humanos e o respeito à pluralidade ganham cada vez mais adeptos. A infancia e a identidade infanto-juvenil adquirem foros de cidadania, tímidos
  • 29. ainda, porém, crescendo dia a dia Cabe agora ao Estado zelar pela moral e inocência dos imaturos, tanto que é aos próprios presidentes das províncias que os cidadãos injuriados se dirigem para exigir jus- tiça quando suas crianças são alvo de suposta corrupção por adultos. Estes dois exemplos ocorridos na Província de Sergipe, com os quais concluimos estas reflexões, mostram claramente a intromissão do Estado no controle da sexualidade infanto-juvenil, ao mesmo tempo em que revelam a preocupação do poder civil, muito mais ni- tido do que ocorria nos tempos inquisitoriais, em proteger a infancia contra os perigos representados pelos "corruptores de menores". Em 1845 um morador de Itabaianinha, no agreste sergipano, Antonio Batista de Fonseca e Oliveira envia um requerimento ao presidente da provincia, Antonio Joaquim Álvares do Amaral, de- nunciando o professor de primeiras letras, Francisco José de Barros Padilha, acusando-o de "atropelar tanto seus dois filhos de 13 e 10 anos, para fins ilícitos, que os puxava para um quarto forçosamente, para saciar seus ilícitos apetites, os quais não aceitando seus vis convites, principiou a ser mal afecto aos filhos do representante, que viu-se obrigado a tirar os filhos da escola, assim como outro pai, pa- gando 2$000 réis por mês a outro professor".10 Vasculhando a documentação do Arquivo Público de Sergipe minuciosamente, esta foi a única acusação de pederastia por nós en- contrada relativamente à primeira metade do século XIX. Outro pes- quisador, trabalhando com esse mesmo período para a vizinha pro- víncia da Bahia, localizou tão-somente um episódio em que um mestre é acusado, em 1830, de ter castigado violentamente um ado- lescente por surpreendê-lo "em acto torpe consigo mesmo..."11 ne- nhum caso de homossexualidade intergeracional. Ou as coisas aconteciam mui sub-repticiamente, ou os pais e tutores dos infantes não chegavam a denunciar eventuais acessos desonestos por parte dos docentes, ou então, de fato, o medo da repressão e estigma so- cial eram tão grandes que os pedagogos não ousavam qualquer pro- ximidade libidinosa com seus pupilos; exceção feita aos professores sádicos, rigorosos demais, que açoitavam as nádegas ou davam gol- pes de palmatória em seus pequenos delinqüentes - como este último mestre baiano, acusado pelo pai do menino masturbador de ter dado 36 bolos em seu filho de 9 anos! Coitadinho! Voltemos à denúncia do professor de Itabaianinha: preocupado com tão grave e insólita representação, o presidente de Sergipe to- mou a providência de encarregar o inspetor parcial e o juiz de di- reito da vila de Itabaianinha de investigar a acusação. Após cuida- doso exame da matéria, sua conclusão foi categórica: "O que o su- plicante alega não foi provado", encerrando-se aí esse caso sem qualquer sanção ao delato. Tudo não passara de uma calúnia. No ano seguinte, 1846, novamente outra ocorrência envolve um professor com a pedofilia: o chefe de polícia de São Cristóvão,
  • 30. então capital da província de Sergipe, envia ofício ao presidente Amaral informando ter recebido despacho da Secretaria de Polícia da Corte, proibindo o professor José Feliciano Dias da Costa de exercer perpetuamente o magistério em qualquer casa de educação, colégio ou qualquer outro estabelecimento onde possa haver alunos e educandos ou tutelados sob sua guarda "por haver abusado da confiança que os pais de seus alunos nele haviam depositado, e de haver concitado a inocência para o vício, pervertendo a moral, que aliás lhe cumpriria ensinar".l2 Nossas pesquisas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e alhures têm redundado infrutíferas na localização de mais informa- ções sobre esse desafortunado professor pedófilo, cuja licença peda- gógica fora cassada em todo o Império devido a seu vício e perver- são. De onde era natural, onde ensinava, que estrepolias cometeu, a que processos foi submetido, tudo ignoramos e agradecemos a quem nos der alguma pista desse proscrito mestre José Feliciano Dias da Costa A mudança de atitudes por parte dos donos do poder em face da "corrupção de menores" é evidente: da cruel indiferença dos in- quisidores aos estupros infantis do século XVI ao XVIII, à vigilan- cia em todo o território nacional por parte dos chefes de polícia contra um pedagogo pedófilo na segunda metade do século XIX- à mesma época em que nosso imperador Pedro II era declarado maior de idade aos 15 anos - tal mudança de postura pode ser interpretada sob dois angulos: de um lado a instauração de uma moralidade ultra- repressora - a vitoriana- que sob o pretexto de proteger a inocência infanto-juvenil, reprime e dessexualiza completamente os meninos e adolescentes; de outro, o início dos direitos humanos dos jovens e crianças, não mais tratados como tábula rasa - como ainda postula- va o pai da sociologia, Émile Durkheim em 1925 na obra L'Educa- tion Morale- nem como reles objetos sexuais dos mais velhos, mas criaturas merecedoras de respeito, capazes da livre orientação sexual e dos prazeres eróticos, e donas de sua privacidade individual. NOTAS Este ensaio faz parte de uma pesquisa mais ampla, "Moralidade e Se- xualidade no Brasil Colonial", financiada pelo CNPq, a quem renovo meu agradecimento. Devo também favor aos professores Sebastião de Oliveira Cintra e Jairo Braga Machado, de São João del Rei, assim como a Luiz Carlos Villalta e Joaci Pereira Furtado, de Mariana, pelo importante auxílio que me prestaram na obtenção de dados complementares dessa pesquisa. Este artigo foi primeiramente publicado nos Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), n° 69, maio 1989. 1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n° 20, fl. 40. 2. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n° 20,
  • 31. fl. 121. 3. Confissoes da Bahia, 1591-1592, Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1935: 46-47. 4. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-° 5720. 5. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-° 15421 . 6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-° 71 18. 7. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n-° 2664. 8. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Nefando n-° 20, fl. 192 e ss, de 24 de abril de 1752; Museu Regional de S. João del Rei, In- ventário de Francisco Moreira de Carvalho, 1814. 9. Arquivo da Cúria de Mariana, processo de Genere et Moribus n-°885. 10. Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 594, de 29 de agosto de 1845. 11. Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 3112, de 16 de março de 1830, Requerimento contra o Professor Lázaro da Costa. Devo ao prof. João José Reis a gentil indicação deste documento. 12. Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 69, ofício do chefe de Polícia Henrique Jorge Rebello ao presidente da Província, de 3 de março de 1846. BIBLIOGRAfIA CITADA ABREU, Frei Braz Luiz. Vida de Santo Antonio. Lisboa, Livraria Francisco Franco, 1725, 340 p. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981,280p. CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del Rei. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, volumes I e II, 1982, 622 p. DOVER, K. J. Greek Homosexuality. Nova York, Vintage Books, 1978, 245 DYNES, Wayne. Homolexis. A Historical and Cultural Lexicon of Homose- xuality. Nova York, Gai saber monograph n-° 4,1985,177 p. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Rio de Janeiro, Edições Gra- al, 1980,152 p.
  • 32. HERDT, Gilbert. Ritualized Homosexuality in Melanesia. Berkeley, Univer- sity of California Press, 1984, 410 p. HARVEY, L. & GOCHROS, J. The sexualy oppressed. Nova York, Asso- ciation Press, 1977, 296 p. HOFFMAN, Martin. O Sexo Equívoco. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1970, 180p. LAPASSADE, G. & SCHERER, R. Le Corps interdit. Essais sur réducation négative. Paris, ESF, 1976. MOTT, Luiz. "Pagode Português: A Subcultura Gay em Portugal nos Tem- pos Inquisitoriais", Ciência e Cultura, v. 40 (2), fevereiro: 120-139, 1988. "Love's Labors Lost: Five letters from a XVIIth Century Portuguese Sodomite", The Pursuit of Sodomy, Nova York, The Haworth Press, 1988 b. PINARD-LEGRY, J. L. & LAPOUGE, B. L'Enfant et le pédéraste. Paris, Edition du Seuil, 1980. PORTER, Eugene. Treating the Young Male Victrme of Sexual Assault. Syra- cure, Safer Society Press, 1986, 96 p. SANFORD, Theo. Boys ant their contacts with men: A study of sexually ex- pressed friendships. Nova York, Global Academic Publishers, 1987, 175 p. SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo, Hucitec 1977, 436 p. SCHÉRER, René. Emile perverti ou des rapports entre l'éducation et la se- xualité. Paris, Robert Laffont, 1974. "Interview avec René Schérer", Paidika, The Journal of Paedophilia, Ams- terdam, n° 2, vol. 1: 2-12,1987. TARDIEU, Ambroise. Les Attentats aux Moeurs. Paris, Lib. J-B. Baillière 1873,304 p. O FiLHO DA ESCRAVA * Kátia de Queirós Mattoso Analfabeto por vontade expressa da sociedade dominante, o escravo brasileiro é, para nós, testemunha silenciosa de seu tempo. São, de fato, raras as oportunidades que lhe permitem expressar-se por si próprio: quando escravo, ele fala pela rebelião, pela fuga,
  • 33. pelo suicídio, e até mesmo pelo crime, falas que são gestos de pro- testos violentos. mas gestos corajosos, gestos de homens indomáveis e desesperados. Quando libertável1 ou liberto, o ex-escravo fala através daqueles documentos que lhe restituíram a liberdade, e que, tirando-o do anonimato, deram-lhe um rosto e existência própria. Todavia, parece que a maioria dos 3 milhões e 500 mil escravos tra- zidos para o Brasil não foi nem rebelde, nem fugtiva, nem suicida, nem criminosa, e morreu escrava sem nunca ter se libertado das "malhas do poder" escravista 2. Anônimo para a sociedade que o oprimia, esse escravo encon- trava em seu trabalho meios para se expressar, desenvolvendo es- tratégias de sobrevivência que, como se poderia pensar, nem sempre fora transigentes e acomodatícias. Lidos com essa intenção, testa- mentos, inventários e cartas de alforria são documentos reveladores desse tipo de atitudes que redundam em resistências brandas, mas qlle são tão significativos e importantes quanto os atos de protesto violento. *Este artigo foi publicado na Revista Brasileira de História v. 8 nº 16 1988, com o título "O Filho da Escrava (Em Torno da Lei do Ventre Livre)". No entanto, qualquer que seja a leitura que possamos fazer da documentação acima referida, não deixa de ser verdade que nos é di- fícil encontrar, nesse tipo de material, traços das alegrias e penas dos escravos ou dos vínculos que estes estabeleciam com o seu Deus ou com os seus Orixás, com os seus parentes, seus amigos ou mesmo seus inimigos3. Sua palavra torna-se volátil, seus gestos desvane- cem-se, no anonimato redutor da escravidão. O que se pode então di- zer das crianças escravas que são duplamente mudas, e duplamente escravas, uma vez que, geralmente, entende-se que todo escravo, mesmo adulto, é criança para o seu senhor, menor perante a lei e eterno catecúmeno para a Igreja? Nos relatos dos viajantes estrangeiros, nas estampas e dese- nhos que alguns deles produziram, vêem-se, em papéis decorativos, crioulinhos e pardinhos, filhos de mães negras ou mestiças, sempre acompanhados por mulheres, e, por homens, quase nunca. Quando novos, brincam na casa de seu senhor, ou então acompanham suas mães nas suas tarefas do cotidiano; mães sem marido, "Irmãs de So- lidão", como as apelidou, com tanta propriedade Arlette Gauthier4. Quando ainda muito novos para correrem nas ruas e nas longas ca- minhadas, vão os meninos arrimados nas costas de suas mães por panos bonitos, ricos em cores variadas. Teresa de Baviera pintou em 1888 uma negra baiana em -todo seu esplendor: negra que carrega na cabeça um imenso tabuleiro, re- pleto de bananas, levando nas costas um crioulinho de mais ou me- nos dois anos de idade, cuja ponta de pé balança-se alegremente fora de sua cadeira de pano; assim, a mãe tem as mãos totalmente livres
  • 34. para servir seus fregueses e para segurar seu tabuleiro quando sobe e desce as íngremes ladeiras da cidade.5 Várias são as gravuras de Rugendas e de Debret que nos descrevem as mesmas atitudes, o mesmo porte altivo de mãe9 os mesmos gestos graciosos das crianças que seus autores querem alegres e felizes.6 Na sua passagem pela Bahia em 1833, o francês Dugrivel dizia-se impressionado pelo es- petáculo de negras seminuas sentadas no meio das ruas da cidade a dar o seio a filhos completamente nus.7 Assim, a criança escrava é representada ora de maneira avantajada, e então é o anjinho barroco de cor preta, ora de maneira menos romantica, e então é o menino nu, um peso a carregar, uma boca a alimentar. Embora no Brasil da época, e principalmente nas classes dominantes, a criança seja prin- cipe, na verdade, o que sabemos da criança escrava? É evidente que a minha indagação refere-se à criança como ser social, como inte- grante de uma comunidade da qual é membro à part entière, e que dela recebe proteção ou abandono.8 Minha primeira questão é, entretanto, uma questão de defini- ção. A que idade, e como o filho da escrava deixa de ser criança e passa a ser percebido como escravo? Não há dúvida de que tal inda- gação tem que levar em conta certas precauções antes que se tente definir o que se entende por criança escrava. Há que considerar, primeiro, a própria noção de criança que forçosamente remete à no- ção de idade. Para nós, homens do século XX, o conceito idades de vida encobre realidades diferentes das do século XIX, e seria puro anacronismo, por exemplo, utilizar o termo criança para caracterizar jovens escravos que na época passam por adolescentes. Como regra geral, as idades de vida que correspondem às cate- gorias de infancia, adolescencia, idade adulta e velhice são as mes- mas para a população livre e para a população escrava. Há, porém, entre uma e outra uma diferença de monta, ligada à função social desempenhada pelas categorias de idade: a criança branca livre e até mesmo a criança de cor livre podem ter seu prazo de ingresso na vi- da ativa protelado, enquanto a criança escrava, que tenha atingido certa idade, entra compulsoriamente no mundo do trabalho.9 Há, pois, um certo momento em que o filho da escrava deixa de ser a criança negra ou mestiça irresponsável para tornar-se uma força de trabalho para os seus donos. Através dos documentos que conhecemos, e particularmente dos testamentos e inventários post-mortem, parece que podemos lo- go distinguir duas idades de infancia para os escravos: de zero aos sete para oito anos, o crioulinho ou a crioulinha, o pardinho ou a pardinha, o cabrinha ou a cabrinha, são crianças novas, geralmente sem desempenho de atividades de tipo econômico;10 dos sete para os oito anos até os doze anos de idade os jovens escravos deixam de ser crianças para entrar no mundo dos adultos, mas na qualidade de aprendiz, de moleque ou de moleca, termos que designavam outrora todo pequeno negro ou jovem e que hoje tomaram um sentido um
  • 35. pouco crítico, um pouco pejorativo, pois passam a designar o jovem, de sexo principalmente masculino, considerado irresponsável! Na realidade, toda piramide de idades referente a escravos deve ser pág 79 Tabela 1 não escaneável manuseada com cuidado, porque com freqüência o apelido de moleca é dado a uma moça de seus 20 anos ou a umajovem de 9 para 10 anos. Essa distinção de duas idades na faixa muito jovem das crian- ças escravas é, aliás, referendada não somente pelas evidências co- lhidas em inventários, testamentos e cartas de alforria, mas também em documentos oficiais dos quais os mais importantes são, sem dú- vida, os que emanam da legislação civil e eclesiástica. É por demais conhecido que, para a Igreja, a idade de razão de todo cristão jovem situa-se aos 7 anos de idade, idade de consciên- cia e de responsabilidade. Para a Igreja, aos sete anos a criança ad- quire foro de adulto: de ingênuo torna-se alma de confissão.11 Por sua vez, na sua parte de direito civil, o Código Filipino mantido em vigor durante todo o século XIX, fixava a maioridade aos 12 anos para as meninas, e aos 14 anos para os meninos.12 Finalmente, a lei de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), ao colocar em po- der e sob a autoridade dos senhores os filhos de escravos nascidos ingênuos, obriga a estes "crial-os e tratal-os até a idade de oito anos completos. Chegando o filho de escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a Indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos".13 Pelo que se infere nos documentos que são os inventários, e pelas normas e leis da sociedade civil e religiosa, há, ao lado da maioridade religiosa e civil, uma terceira maioridade, esta afeta ao início de uma atividade econômica produtiva. Terceira maioridade que nos parece muito mais importante que as outras duas porque não somente é própria à condição escrava14 como também indica claramente que, tratando-se de criança escrava, o divisor de águas entre infancia e adolescencia colocava-se bem antes dos doze anos, porque assim exigiam os imperativos de ordem econômica e social. Mas mesmo encurtada, o que é a infancia para um escravo? É evidente que todo escravo, até mesmo o mais desprotegido, foi criança em algum momento de sua vida. Mas em que condições e por quanto tempo? Eis uma pergunta cuja resposta não pode ser úni- ca, porque existem vivências e experiências qwe são diversas. Diver- sas, por exemplo, se o escravo nasceu na África ou se nasceu crioulo; diversas, também, se o escravo chegou criança no Brasil, freqüentemente nesta fase de idade que o transforma em jovem tra- balhador.15 Quantos foram os escravos vindos crianças da África, não sa- bemos; no entanto, sabemos que, já na idade adulta, quando interro-
  • 36. gados sobre a sua filiação, vários dentre eles confessaram não mais se lembrar do nome de seus pais. Como se a violência com que fo- ram arrancados de seus meios, o esforço em adaptar-se num novo ambiente, tivessem obscurecido toda e qualquer memória.16 Mas voltemos ao nosso propósito inicial: afinal, até que idade um escravo é ainda percebido como criança? Como vimos, o escravo permanece criança até a idade de sete para oito anos. Nas grandes propriedades de engenhos de açúcar, as crianças escravas passeiam com toda liberdade, participando das brincadeiras das crianças bran- cas e das carícias das mulheres da casa, verdadeiros "cupidos de ébano", como os classificou um viajante ao descrever a admiração beata dos senhores - inclusive do capelão - ante as cambalhotas dos negrinhos brincando com cachorros de grande porte.17 Na cidade, a exigüidade do espaço ocupado pela família do senhor com freqüên- cia relega os filhos da escrava aos alojamentos reservados aos escra- vos ou a outras áreas como, por exemplo, pontos de mercado e la- goas onde se lava a rowpa. A vida dos folguedos infantis é curta. É nos seus sete para oito anos que a criança se dá conta de sua condi- ção inferior em relação principalmente às crianças livres brancas. As exigências dos senhores tornam-se precisas, indiscutiveis. A passa- gem da vida de criança para a vida de adolescente era o primeiro choque importante que recebia a criança escrava.18 Embora do nas- cimento à morte, a vida do escravo tivesse sido sempre uma enfiada de choques sucessivos, tentaremos cercar aqui os que eram próprios à infancia. Nossa fonte serão os inventários; nosso período, os últimos trinta anos da escravidão; nosso método, transformar em texto corri- do os dados das inevitáveis tabelas, apenas nesse tipo de estudo.19 Cada criança escrava que nasce é um filho desejado pela mãe ou mera conseqüência de um ato sexual? É evidente que, por mais que queiramos encontrar uma resposta clara a essa pergunta, a nossa documentação não a fornece de modo explícito. Com efeito, nunca encontrei referências sobre a atitude da escrava em relação à mater- nidade: se ela alegrava-se ou entristecia-se de ser ou de vir a ser mãe, não tenho como saber. No entanto, da observação da escrava- tura feminina, através da análise de dados referentes a sua idade, al- guns traços interessantes oferecem comentários: Tabela 2 - Mulheres escravas (1860-1880) - Faixas Etárias Períodos | 1??? a 40 anos 12 ???~ 20 = 21 (3)* q 21 a 30 = 29 (15) 31 a 40 = 21 (~)
  • 37. ~ declarada 41 a 50 = 16 (1) moças = 24 (5) 51 a 60 = 7 ainda mocas = 4 61a70= 7 velhas = 15(1) 34(3) 12a20 = 17 (0) 41 a50 = 18(3) mocas = O 1870 79 21 a30 = 16 (2) 51 a60 = 4 aindamoças = O 31a40= 13 (1) 61a70 = I velhas = O + de70 = I - 12a20= 27(7) 188G 89 21aqO--27(10) TO r r 184 (52) 41 a 50 = 14 (2) 51 a 60 = 9 (3) 61a70 = 1~0) ! de 70 = 1(~) 80 (9) ~ Entre parênteses: n~mero de escravas mães Apesar de nos encoll~nos nos últimos trinta anos do regime escravista, o padrãc de reprodução do escravo brasileiro é fraco: das 214 mulheres em idade de procriar, somente 59 ~27,6%) chegam à condição de mãe, isto é, menos de i/3 da população feminina.20 Mesmo se ampliarmos o niimero de mães escravas incluindo, tam- bém, ~quelas que per~encem a outras ~aixas et~rias, ou cuja idade é desconhecida, notamos que seu numero é mais baixo ainda: sanente 19,7% do nosso universo femiII~no é constituído por mães escravas Porém, se de outro la~o, ~OIIIIOS olhar cada fai~ca elá~ia em separado; observaremos que pa~a as muiheres cuja idade é compreendida-elltre 12 e 40 anos, há dois compor~nentos que se tornarn perceptíveis: nos períodos 186(K9 e 188~81 O n~unero de mulhe~es que procriarn é sensivelrnente superior ao das mulhe~es do período de 1870-79~ 35,6 e 34,3~o con~ra 7,5~o. Dir-se-ia que na década que se seguiu à abolição do tráfico, a vontade de procriar permaneceu firme, mesmo se o modelo de reprodução é fraco; na década seguinte, teria havido uma queda devido a um certo retraimento, favorecido pelas próprias ambigüidades da Lei do Ventre Livre, que na realidade contribuía em alforriar o escravo nascido ingênuo aos seus 21 anos de idade! Pelo contrário, o último período da escravidão, sustentado pela pro- paganda abolicionista, e pela atitude dos senhores escravos em alfor-