“Inusitados moradores da cidade grande” - Moisés Sarraf
E o que é que Belém tem - Alvaro Machado
1. | belém do pará |
p o r A lv a r o M a c h a d o
E o que é que
Belém tem?Não é só de Mercado Ver-o-peso, Círio de Nazaré e pato no tucupi que a capital
paraense vive. Manifestações populares, como os cortejos do Pavulagem, animam
a cidade e estimulam seus participantes a resgatar a cultura de raiz da região
O
bom brasileiro não recusa
o convite à festa, que está
em sua cultura e em seu
sangue. Viagens de milha-
res de quilômetros e o sa-
crifício da vida profissional
por dias a fio são vistos
como ocorrências normais
quando se trata de grandes
comemorações populares. Nesse sentido, há
duas décadas nasceu em Belém do Pará o Ins-
tituto Arraial do Pavulagem. Seu objetivo desde
o início, claro, era a condução de festas “de raiz”
do estado, mas derivou para um aspecto mais
universalista: estimular entre seus participantes
ações e reflexões que abrangem muito além do
que o momento do folguedo.
Formalizada como órgão social sem fins
lucrativos em 2003, a instituição promove em-
basamentos culturais em torno de cada uma
das brincadeiras populares anunciadas em seu
calendário. “Nosso povo está preparado para
prestigiar o Carnaval carioca, o frevo pernam-
bucano, a micareta baiana, a procissão do Círio
de Nazaré ou o tecnobrega paraense, mas igno-
ra, em geral, os aspectos mais importantes que
garantem a saúde e a longevidade das festas – e,
neste momento, a maioria está poluída em vá-
rios aspectos”, sentencia o cientista social, com-
positor e músico Ronaldo Silva, um dos quatro
diretores do Arraial.
Com grande concorrência de público, os
cortejos do Pavulagem já foram prestigiados
tanto por músicos regionais – entre eles Mes-
tre Verequete, a maior expressão do carim-
bó, morto em 2009 –, quanto por fenômenos
pop de visibilidade nacional, como a cantora
Gaby Amarantos.
Para além de se envolver em músicas e dan-
ças que regem os três arrastões anuais pelas
ruas da cidade, dirigentes e voluntários ava-
liam ao longo do ano os impactos possíveis de
um evento de massas sobre o meio ambiente e
também seus efeitos secundários sobre o teci-
do social. Estudam como se dá a transmissão
de dados culturais de uma para outra geração,
informam os participantes sobre a origem de
cada proposta e, embora vias e praças públicas
sejam livres, dão atenção especial ao entorno
das confraternizações, a fim de manter à dis-
tância indesejáveis poluições.
fotos:NaiaraJinknss
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2. CORDÕES E ARRASTÕES
Em um galpão centenário cedido pela San-
ta Casa de Misericórdia de Belém, está montada
a sede do grupo. Em frente à baía do Guajará, o
imóvel é vizinho do célebre mercado Ver-o-peso
e da Estação das Docas, complexo de restaurantes,
lojas, teatro e passeio inaugurado há dez anos com
fins de revitalização do comércio e do turismo no
centrohistóricodacapital.Eéatéessaáreafrontei-
riça à sede que a organização deseja estender a in-
fluência do Pavulagem. Para isso, planeja a criação
de uma feira permanente de produtos culturais
paraenses. Porém, por enquanto, o cuidado maior
ainda diz respeito à formatação das três grandes
saídas anuais. A primeira, nos dias que antecedem
o Carnaval, é o Cordão do Peixe-Boi, alegoria le-
vada pelos participantes, entre canoas de frutas,
redes de pesca e bandeiras, a uma concentração de
mais de 5 mil pessoas no Cais do Porto.
No segundo domingo de junho, sai o Arras-
tão do Pavulagem, ou do Boi Azul, que atrai até
40 mil seguidores e finca mastro de São João
na Praça da República. Em outubro, às vésperas
das procissões do Círio de Nazaré, quando as
ruas de Belém são tomadas por até 2,5 milhões
de pessoas, há o Arrastão da Cobra Grande, ini-
ciado com romaria fluvial e encerrado em um
grande show na Praça do Carmo.
Há alguns anos o Pavulagem – neologismo
“originário de pavão, o bonito que gosta de apa-
recer e fanfarrear” – deixou de promover cortejos
nos dias de Carnaval, quando não há maneira de
controlar excessos e sujeira. Paira aí uma preocu-
pação constante da instituição: combater a “con-
taminação”, termo específico escolhido por eles
para nomear a incidência crescente, nas festas de
rua, de mazelas como alcoolização, prostituição
infantil, assédio sexual às crianças, circulação
ilegal de comidas preparadas sem cuidados sa-
nitários e, ainda, degradação de letras musicais e
danças tradicionais por conteúdos espúrios. “As
pessoas querem festa, mas esquecem de refletir
um pouco sobre a celebração. Ter consciência de
tudo o que ela significa e conhecer suas raízes
fazem com que o participante curta a folia com
muito mais intensidade, sem necessidade da eu-
foria ilusória do álcool, para não mencionar o
consumo de drogas ilegais, um problema grave
na região”, assinala Silva.
A organização enfrenta um exemplo literal
de contaminação, a partir de estatísticas de saú-
de: “Em muitas festas populares às quais não se
oferece a devida infraestrutura, se fazem neces-
sidades na rua, ao mesmo tempo que se vendem
comidas preparadas ali mesmo”, observa. “Mas
como repassar a cultura de uma forma mais res-
ponsável?”, pergunta o diretor.
A “outra festa”, com um mínimo de contami-
nações, promovida pelo Pavulagem, demanda
meses de preparativos e formatação. Para cada
festejo, são montadas oficinas de ritmo e percus-
são, cantos populares, sopro em metais e con-
fecção de objetos simbólicos. A produção mu-
sical original é gravada em CDs, esgotados em
poucos meses. Compostas para a “roda cantada”,
momento que precede o arrastão, as músicas
podem ser ouvidas também no site do instituto
arraialdopavulagem.wordpress.com.
Os apoios em nível governamental ficam mui-
to abaixo do desejável: “Participamos às vezes de
Cenas de atividades, festas e shows
promovidos pelo Arraial do Pavulagem
fotoMASTRODESãoJoão:MarioValmontfotoarrastão:déboraflor/fotoshow:NaiaraJinknss
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3. | belém do pará |
Cabelos ainda molhados do banho, cheiros de sa-
bonete e perfume, mulheres de batom. O público chega
à central Praça da República quarenta minutos antes do
início da sessão única, às 18h30, e, sem precisar pagar
ingresso ou retirar senha, vai ocupando ordeiramente os
lugares da comprida sala de exibição com traços de art
déco em suas paredes. O programa é diferente a cada
dia e,na tarde de 5 de julho último,ocupava a tela o clás-
sicodeterrorOlobisomem,comLonChaneyJr.,feitoem
1941. O cerimonial acontece desde 2006, quando o Ci-
nema Olympia obteve patrocínio da Prefeitura de Belém,
liberou ingressos e,com programação de cineclube,pas-
souaregistrarafluênciade2,5até5milpessoaspormês.
Mais antigo cinema do Brasil em funcionamento
ininterrupto (salvo para breves reformas) e manten-
do sempre o mesmo nome, o Olympia completou
100 anos em abril deste ano, com vários festejos.
A dinâmica programação tem seleção de Marco
Antonio Moreira, presidente da Associação de Críti-
cos do Pará. “A intenção é a mesma de um cine-
clube tradicional, de formação de público, com fil-
mes de qualidade”, diz o cinéfilo, mineiro de Itaúna
transferido para a capital paraense ainda criança.
Há alguns meses, o Festival Chaplin registrou o re-
corde de público na nova fase,que o programador consi-
dera muito mais importante do que as épocas comerciais
do cinema, ainda hoje pertencente ao grupo Severiano
Ribeiro. A empresa, aliás, tentou fechar Olympia em
2006, mas centenas de belenenses transformaram o
que seria a última sessão em um ato político histórico,
com protestos de rua e leitura de manifestos.A defesa foi
encampada pela prefeitura, que resolveu alugar a sala,
transformando-a em espaço municipal.
Com a maioria de filmes de arte e lançamentos
de curtas-metragens realizados no Pará, o novo cine-
ma também investe em festivais populares, como os
de Mazzaropi e Chaplin. “A primeira exibição de Cha-
plin completará 100 anos em 2014, e o público ain-
da o aplaude aqui, fato que precisa ser registrado”,
observa Moreira. Mas o programador também escala
filmes que põem à prova o gosto popular, como Tio
Boonmee (2010), do tailandês Apichatpong Weerase-
thakul, e um festival de cinema polonês com títulos
inéditos no país.
Um pedido de reconhecimento do edifício como
patrimônio histórico e cultural foi aprovado neste ano
pela Câmara Municipal. Agora, o Iphan e esferas es-
taduais devem analisar processos de tombamento
para que a desapropriação seja negociada e a fa-
chada de 1912 reconstituída.“Sairemos, então, atrás
de patrocínios para fortalecer essa rara iniciativa na
cidade, de um programa cultural de alto nível e popu-
larmente acessível”, crê Moreira.
De Chaplin a Mazzaropi
inaugurações, como a da nova orla fluvial pela
prefeitura, mas o potencial educacional da rua
não é plenamente percebido pelos poderes pú-
blicos; poderíamos dar aulas de retumbão (dan-
ça paraense) a um bocado de gente hoje”, la-
menta Silva. Porém, com apoios como o do Sesc
nacional, o instituto já fez apresentações em vá-
rias cidades do país e recentemente foi ao Recife.
A TRADIÇÃO DO MARAJÓ
Na vizinha Marajó, o Pavulagem tem tra-
balhado junto à comunidade de Cachoeira do
Arari, uma das mais desassistidas socialmente
na grande ilha fluvial, com municípios que re-
gistram baixos índices de desenvolvimento hu-
mano, alta mortalidade por malária etc. De pais
nascidos ali mesmo, Ronaldo Silva pesquisa em
especial a Festa de São Sebastião, que acontece
há mais de cem anos no local, de 10 a 20 de ja-
neiro. Alguns meses antes, a imagem do santo
começa a percorrer as casas de quatro cidades, a
cavalo, de barco etc. Uma comissão de violeiros,
tamborineiros e bandeireiros vai desfiando o re-
pertório de músicas em reverência. “Essa festa é
um patrimônio imaterial da humanidade, mas a
pobreza e a utilização de bebidas estão compro-
metendo seus formatos tradicionais”, diz Silva.
Arari também sedia o Museu do Marajó,
que merece atenção à parte. Fruto do admirável
trabalho de um padre jesuíta, o italiano Giovan-
ni Gallo (1927-2003), a instituição fundada em
1972 é reputada hoje como caso singular de ori-
ginalidade, mas também de abandono. Instalado
em uma antiga fábrica de óleos vegetais, o museu
exemplifica os costumes marajoaras por meio de
aparatos artesanais interativos que seu criador
chamava de “computadores caboclos”. “O modo
expositivo lembra bastante a linguagem dos hi-
perlinks e da internet, e esteve muito à frente de
seu tempo”, avalia o professor de arquitetura Flá-
vio Nassar, coordenador do Fórum Landi, que
promove a preservação das obras paraenses do
arquiteto bolonhês Antonio Landi, do século 18.
Sobre o museu, Celso Fioravante, crítico de ar-
tes visuais e curador do prêmio Marcantonio Vila-
ça, tem opinião contundente: “O fantástico acervo,
por vezes científico, por vezes etnológico ou an-
tropológico, está em situação lamentável e deveria
ser tratado com mais dignidade, no mínimo pela
prefeitura local, mas também por alguma univer-
sidade ou fundação estadual. Pode ser visitado de
maneira ortodoxa ou interativa, por manuseio,
mas hoje está à mercê de goteiras, vidros quebra-
dos e falta de conservação de peças, incluindo va-
liosa cerâmica marajoara”, diz o jornalista, que há
25 anos visita a região e publicou um mapa turís-
tico do Marajó. O quadro de penúria é confirma-
do pelo site oficial do museu, que também expõe
uma série de fotos realizadas pelo visionário pa-
dre Gallo na comunidade marajoara do Jenipapo.
Casos de abnegação como o do pároco, que
deixou a Europa para se empenhar em suprir
carências essenciais de uma região privilegia-
da de belezas e recursos naturais, repetem-se
desde os tempos da capitania do Grão-Pará.
Atualmente, ao lado de paraenses como os fun-
dadores do Arraial do Pavulagem, migrantes de
outros estados também compõem forças para
oferecer à população de baixa renda um míni-
mo de acesso a bens culturais.
Uma das muitas fotos registradas pelo padre italiano Giovanni Gallo (1927-2003) em Marajó
foto:giovannigallo
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