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A coletânea Africanidades brasileiras e educação,organizada por Azoilda Loretto Trindade,é composta de textos que foram produzidos para o programa Salto para o Futuro, da TV Escola, ao longo da última década .
O projeto surgiu e ganhou força durante a produção do documentário Africanidades
brasileiras e educação, exibido em outubro
de 2008, pela TV Escola.
Para a realização do documentário foi necessário realizar uma pesquisa que envolveu
uma seleção de textos sobre a temática nas publicações eletrônicas, além do visionamento de séries e transcrição de entrevistas que compõem o acervo do programa. Daí para esta coletânea, estava dado o primeiro passo.
3. 3
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
AFRICANIDADES BRASILEIRAS
E EDUCAÇÃO
Salto para o Futuro
Organização
Azoilda Loretto da Trindade
ACERP
TV Escola/MEC
Rio de Janeiro/ Brasília
2013
4. AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
Sumário
Apresentação ............................................................................................................ 8
Introdução ...............................................................................................................10
Capítulo 1 – Abordagens gerais sobre multiculturalismo e diversidade
cultural.................................................................................................................18
I. Multiculturalismo ou de como viver junto...........................................................21
Mary Del Priore
II. Por um multiculturalismo democrático ......................................................... ...28
Sueli Carneiro
III. Pluralidade e diversidade .................................................................................. 33
Carla Ramos
IV. Saberes culturais e educação do futuro ............................................................. 39
Edgard de Assis Carvalho
V. Redes de convivência e de enfrentamento das desigualdades............................. 47
Elizeu Clementino de Souza
VI. Diversidade e currículo ..................................................................................... 55
Nilma Lino Gomes
VII. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para
todos ....................................................................................................................... 58
Azoilda Loretto da Trindade
Capítulo 2 – AFRICANIDADES................................................................................... 64
5. 5
A. Aspectos gerais
I. Africanidades, afrodescendências e educação..................................................... 68
Henrique Cunha Júnior
II. Humilhação, encorajamento e construção da personalidade............................. 80
Azoilda Loretto da Trindade
III. A lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil
e transforma a educação escolar............................................................................ 86
Bel Santos
IV. África viva e transcendente! .............................................................................. 92
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
V. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental ............ 101
Véra Neusa Lopes
VI. O legado africano e a formação docente ..........................................................108
Marise de Santana
VII. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto
político-pedagógico................................................................................................ 119
Lauro Cornélio da Rocha
B. EDUCAÇÃO INFANTIL
I. Valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil................................ 131
Azoilda Loretto da Trindade
II. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileiras na educação
infantil ...................................................................................................................139
Regina Conceição
III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira
(uma reflexão)........................................................................................................144
Azoilda Loretto da Trindade
6. 6
C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
I. Os quilombos e a educação ................................................................................153
Maria de Lourdes Siqueira
II - Quilombo: conceito...........................................................................................158
Gloria Moura
III. Saberes tradicionais de saúde ..........................................................................162
Bárbara Oliveira
IV. Organização social e festas como veículos de educação não-formal................168
Verônica Gomes
V. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos
quilombos ..............................................................................................................172
Ana Lucia Lopes
VI. Lei nº 10.639/2003 e educação quilombola – inclusão educacional e população
negra brasileira .....................................................................................................178
Denise Botelho
D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS
Documentário: “Africanidades Brasileiras e Educação”.........................................184
Capítulo 3 – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS – MULTICULTURALIDADES,
DISCIPLINARIDADES E AFRICANIDADES .................................................................199
I. Ciência multicultural .........................................................................................202
Ubiratan D’Ambrosio
II. Afroetnomatemática, áfrica e afrodescendência ..............................................208
Henrique Cunha Junior
III. A multiculturalidade na educação estética ......................................................220
Ana Mae Barbosa
7. 7
IV. A Construção estético-cultural de um espaço ..................................................226
Laura Maria Coutinho
V. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre
afro-brasileiros ......................................................................................................232
Heloisa Pires Lima
VI. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ...........................237
Maria Elisa Ladeira
VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores ...............245
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
VIII. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória iorubá ....................253
Juarez Tadeu de Paula Xavier
IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras ..................................257
Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza
X. Conto popular, literatura e formação de leitores...............................................272
Ricardo Azevedo
XI. Literatura e pluralidade cultural.......................................................................280
Marisa Borba
XII. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil ..............................288
Carlos Moore
XIII..Enfrentando os desafios: a história da África e dos africanos no Brasil na nossa
sala de aula.............................................................................................................301
Mônica Lima
XIV. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e
afro-brasileira ........................................................................................................307
Mônica Lima
8. 8
APRESENTAÇÃO
Africanidades Brasileiras e Educação
Rosa Helena Mendonça1
A coletânea Africanidades brasileiras e educa-
ção, organizada por Azoilda Loretto Trinda-
de, é composta de textos que foram produzi-
dos para o programa Salto para o Futuro, da
TV Escola, ao longo da última década2
.
O projeto surgiu e ganhou força durante a
produção do documentário Africanidades
brasileiras e educação, exibido em outubro
de 2008, pela TV Escola.
Para a realização do documentário foi ne-
cessário realizar uma pesquisa que envolveu
uma seleção de textos sobre a temática nas
publicações eletrônicas, além do visiona-
mento de séries e transcrição de entrevistas
que compõem o acervo do programa. Daí
para esta coletânea, estava dado o primeiro
passo.
Caberia à organizadora explicitar, a partir
da linha editorial, a concepção teórica que
fundamenta o trabalho e a organização
dos capítulos, de acordo com as temáticas
subjacentes aos textos. Ela foi além, empre-
endendo uma busca que excedeu às séries
realizadas especificamente para subsidiar a
implementação da Lei n. 10.639/03. Nessa
perspectiva, a obra traz infinitas possibili-
dades de leitura e combinações temáticas
desafiadoras. O capítulo 1 trata de Abor-
dagens multiculturais amplas; o capítulo
2, que inclui o texto complementar ao do-
cumentário, enfoca as Africanidades; e o
capítulo 3 aponta para Entrecruzamentos
temáticos, ao destacar as contribuições da
ciência e da literatura nas abordagens mul-
ticulturais.
Este livro é mais uma iniciativa da Secretaria
de Educação Básica (SEB), do Ministério da
Educação, que, por meio do programa Sal-
to para o Futuro, da TV Escola, tem buscado
contribuir para a formação continuada de
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED-UERJ.
2 Os créditos dos autores correspondem à época em que os textos foram escritos. Considerando que um dos
objetivos da publicação é refletir o pensamento sobre a temática ao longo desse tempo, optamos também em não
solicitar aos autores a atualização dos textos, preservando, assim, a perspectiva histórica dos mesmos.
9. 9
professores da Educação Básica na implan-
tação da Lei 10639/03.
A realização desta obra não teria sido possí-
vel sem a colaboração de Ana Maria Miguel
e de Carla Ramos, analistas educacionais do
programa, que participaram da seleção ini-
cial do material, e de Magda Frediani Mar-
tins, revisora, que foi responsável pela pre-
paração e revisão do livro, contribuindo na
edição com sua experiência e sensibilidade.
Devemos, ainda, a Fernanda Braga, analista
educacional, a formatação inicial dos textos,
a organização de notas, títulos e outros as-
pectos gráfico-editorais, o que possibilitou a
primeira versão dos originais. Também par-
ticiparam deste projeto a analista educacio-
nal Mônica Mufarrej, que organizou um CD
com os textos, e Amanda Souza, estagiária
do Salto para o Futuro, que fez a transcrição
das fitas com entrevistas.
De minha parte, sinto especial satisfação em
ter idealizado esta publicação e supervisio-
nado todo o processo de edição. Ao longo
de vários meses, tive o privilégio de fazer a
interlocução entre a organizadora da coletâ-
nea e os demais profissionais envolvidos, to-
dos empenhados em fazer chegar às escolas
brasileiras mais esta obra de referência para
a implementação da Lei nº 10.639/03 e da Lei
nº 11.645/08.
Vale destacar que a maior parte dos textos
que compõem esta publicação foi produzida
para séries que foram realizadas pelo Salto
para o Futuro/TV Escola por demandas fei-
tas pela Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECA-
DI), do Ministério da Educação. O objetivo
comum é o de colocar em pauta a questão
da diversidade, tão significativa para a cons-
trução de uma escola mais equânime, numa
sociedade que precisa, cada vez mais, se
assumir como multicultural e pluriétnica,
ultrapassando exclusões e preconceitos de
todas as ordens.
É com prazer que fazemos chegar aos pro-
fessores e professoras esta obra, no ano em
se comemoram os 10 anos da promulgação
da Lei 10639/03. Desejamos uma excelente
leitura, que possa se desdobrar em traba-
lhos e em outros textos, criando e alimen-
tando essa rede de educação que constitui o
programa Salto para o Futuro.
10. 10
INTRODUÇÃO
Azoilda Loretto da Trindade 13
A todas as pessoas irmãs da pátria (mátria) amada que não fogem à luta, nem
temem segurar a clava forte da justiça quando isto se faz necessário.
A tarefa de organizar um livro sobre Africani-
dades Brasileiras e educação, a partir do ma-
terial produzido pelo programa Salto para o
Futuro, foi, sem dúvida, muito desafiadora,
tendo em vista que a produção de saberes
e fazeres no campo da educação é um dos
compromissos que assumimos no enfrenta-
mento do racismo e na construção de uma
sociedade que respeite os direitos humanos,
sociais, civis e, em especial, o direito à vida
– em todas as suas manifestações. Uma so-
ciedade em que a deusa Justiça, entidade
mitológica cultuada desde a Antiguidade
clássica, seja, efetivamente, para todos e to-
das.
O acervo do programa Salto para o Futuro
representa um patrimônio para a história da
educação do Brasil. São mais de vinte anos
de programa, com a presença de educadores
e educadoras compartilhando suas reflexões
e ações educativas, seja como acadêmico(a)
s, docentes ou ativistas, atravessando gover-
nos e gestores diversos, sem perder o com-
promisso com a Educação de qualidade neste
país.
O contato com todo este material escrito,
disponível na página do programa, também
nos coloca diante de reflexões sobre a diver-
sidade de visões, contradições e paradoxos.
São produções que nos inspiram e, a partir
delas, temos ideias que podem gerar, tanto
projetos para a ação pedagógica cotidiana,
quanto outras produções escritas e novos
documentários... Sentimo-nos como o me-
nino do conto A função da arte, de Eduardo
Galeano4
:
Diego não conhecia o mar. O pai, San-
tiago Kovadloff, levou-o para que desco-
brisse o mar.
Viajaram para o Sul.
3 Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta
coletânea
4 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Ed. LP&M, 2005.
11. 11
Ele, o mar, estava do outro lado das du-
nas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcança-
ram aquelas alturas de areia, depois de
muito caminhar, o mar estava na frente
de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar,
tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!
São muitas informações, muitos conheci-
mentos, muitos conteúdos, muitos saberes,
quer no acervo das produções do Salto, quer
nos espaços instituídos de produção de co-
nhecimento, como as escolas, as universi-
dades, as instituições da sociedade civil, or-
ganizada ou não. Os textos são muito ricos
e inspiradores, os minidocumentários gera-
dores dos debates são igualmente ricos, so-
bretudo em possibilidades pedagógicas. Por
tudo isto, fica difícil escolher, decidir e sele-
cionar, inclusive pela atualidade dos temas
e dos textos a eles relacionados e pelo valor
que este material constitui para a educação
no Brasil.Com relação à organização do li-
vro, convém destacar dois pontos:
O primeiro relacionou-se à seleção dos tex-
tos e dos conteúdos a serem privilegiados
com sua presença nos currículos escolares
e no dia a dia propriamente dito. A relevân-
cia e a escolha foram mediadas pela menta-
lidade inclusiva e antirracista dos educado-
res e educadoras presentes nas instituições
de ensino e por sua força de convencimen-
to, argumentação e luta. Destaco, assim,
que se trata de compromisso político, de
desafio e de pacto com a justiça e com uma
proposta de escola feliz, inclusiva, capaz
de mudanças de mentalidade e comporta-
mentos. Essa perspectiva também atende
às questões políticas, dentre elas a da com-
preensão de que currículo é um documento
de identidade. Se o currículo é o documen-
to de identidade da escola, da sociedade e/
ou de um grupo, imaginem o desafio que
é mudá-lo. Porque, historicamente, a insti-
tuição escola vive processos contraditórios,
dialéticos, complexos. É, muitas vezes, uma
escola que tem uma identidade negadora
da sua população, da sua imagem, da sua
riqueza cultural e que precisa, por isso, se
modificar.
Ao pensarmos qual é o papel da escola, fica-
mos de frente com a necessidade de mudar
essa sua identidade, mudar esse documento
de identidade, “trocar” este documento por
outro que olhe e que diga da riqueza que
é o Brasil, da riqueza que é um país plural
como o nosso. A nossa escola frequente-
mente nega isso, hierarquiza as diferenças
humanas, frontalmente. O que acontece se
formos, em qualquer dia, numa sala de aula,
e observarmos o que mostram os murais e
quem são as crianças e os adolescentes que
12. 12
estão naquela escola? Observar é um exer-
cício simples, não só na nossa escola espe-
cificamente, mas também se ampliarmos
a observação para outros espaços. Que
identidade é essa? Que escola é essa? Que
imaginário é esse que atravessa e perpassa
a nossa prática e a nossa ação docente? A
escola e os currículos podem ter um papel
importante, na medida em que eles se pro-
ponham a se transformar, a se olharem no
espelho e a não ter vergonha do que veem. É
um grande desafio docente, este que se co-
loca para todos nós, educadores e educado-
ras, que queremos transformar essa escola,
transformá-la na sua imagem, na sua estru-
tura, nas suas ações, na sua eficácia e nos
seus conteúdos.
Outro ponto relevante nesta introdução é
o fato de estarmos focados na história e
cultura africana e afro-brasileira, na im-
plementação da Lei n. 10.639, de janeiro
de 2003, que neste ano completa dez anos,
num tema que faz parte de um dos mais
graves, viscerais e emblemáticos proble-
mas brasileiros: as desigualdades étnico-
-raciais.
Sabemos e reconhecemos como importante
aspecto de análise e intervenção a questão
das desigualdades, dos preconceitos, dos es-
tigmas e do racismo na escola. E sabemos
também que esses processos não se limitam
aos pretos e pardos (negros), mas a vários
grupos: mulheres, indígenas, pessoas com
deficiências, com necessidades especiais...
A escola e a sociedade estão marcadas por
essa problemática que afeta, não só os afro-
-brasileiros(as), mas a outros grupos hu-
manos. Estamos marcados pelo machismo,
pelo patrimonialismo, pelo elitismo... Lidar
com isso é, portanto, uma escolha política,
uma vez que também sabemos o quanto de
invisibilização, de desconhecimento e de es-
tereotipias existem com relação às histórias
e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem
sabe podemos ter, em breve, e o acervo do
programa indica isso, coletâneas sobre os
povos indígenas (Lei n. 11.645/2008), sobre as
questões de gênero e orientação afetivo-se-
xual, como já temos sobre Cultura popular
e outros temas? E quem sabe, um dia, não
precisemos mais nos ocupar com inclusão,
com preconceito e racismo? Por ora, como
poderemos ver na primeira parte desta cole-
tânea, temos ainda um longo caminho a ser
trilhado.
Por que trabalhar as
africanidades nas escolas
brasileiras?
Embora a pergunta feita seja única, ela tem
múltiplas e inúmeras respostas. Vamos a al-
guns pontos de vista:
13. 13
Provérbio africano
“Até que os leões tenham seus próprios
historiadores, as histórias de caçadas
continuarão glorificando o caçador” 5
.
Para Elisa Larkin6
(intelectual, pesquisado-
ra):
Eu acho que em primeiro lugar a gen-
te não pode falar em humanidade sem
falar nos africanos. Inclusive porque a
África, hoje existe um consenso na an-
tropologia, na arqueologia, a África foi
o berço realmente do nascedouro da
própria espécie humana. Então, há esse
aspecto que, na verdade, o próprio ser
humano nasce na África e vai desenvol-
vendo na África sua cultura, em épocas
muito remotas, vai povoando o mundo.
Se a escola é um campo, um espaço de pro-
dução e de apropriação de conhecimentos,
então é fundamental, justo e função da es-
cola que os saberes africanos, que são um
patrimônio da humanidade, sejam compar-
tilhados, aprendidos, conhecidos. A escola
não deve negar à população este patrimô-
nio, não pode subtrair um direito, que é de
todos, de conhecer o repertório cultural dos
povos africanos. Se a escola não veicula es-
tes saberes, está tirando o direito das pes-
soas de se informarem sobre isso. Isso não
é justo, não é bom. O patrimônio cultural
produzido pelos africanos tem muito mais
do que 500 anos. E tudo que a África pro-
duziu e espalhou pelo mundo em termos
de conhecimentos, de sentimentos, de sa-
beres, de arquiteturas, de engenharia? Isso
foi como que subtraído da nossa memória
social. Assim, nossa escola hoje tem esse de-
safio, a educação formal tem esse desafio,
os educadores e as educadoras têm esse de-
safio, de aprender o que a África produziu,
que patrimônio é esse que foi tirado da nos-
sa formação. E há um outro desafio maior
ainda: que nós, educadores, educadoras, ao
aprendermos sobre isso, transformemos a
nossa prática docente, de modo a incorpo-
rar todo este conhecimento no cotidiano. E
incorporar não só na “cabeça”, no campo
da racionalidade, mas incorporar também
nas entranhas, no campo da corporeidade,
do ser humano na sua completude. Porque
não basta, por exemplo, trabalharmos com
a história africana, afro-brasileira e indíge-
na, isso só não dá conta. É preciso incorpo-
rar esses saberes no cotidiano da escola. É
possível, a partir desse patrimônio africano
ou indígena, ou de outros patrimônios cul-
turais, transformar o cotidiano da escola?
Isso, sem dúvida, é bastante desafiador! E
fantástico! Imaginem o que de revolucioná-
rio pode acontecer quando incorporarmos
na escola os valores civilizatórios afro-bra-
sileiros, que levem em conta, por exemplo,
5 Provérbio africano citado por Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”.
6 Série Currículo, Relações Raciais e Cultura afro-brasileira (2006).
14. 14
a questão do comunitarismo? Juntos com-
partilharemos os conhecimentos, a alegria,
a ludicidade e a ciência, para fazerem parte,
não apenas de uma grade curricular, mas
também da vida e do dia a dia da escola,
com potência, riqueza, garra.
Para Muniz Sodré (intelectual e escritor):
Não há como negar a presença da cultu-
ra europeia e das ciências nas escolas do
Brasil. Mas em relação à cultura negra,
dá pra negar e é por isso que demorou
tanto, porque se esqueceu deliberada-
mente de colocar nos livros escolares,
nas mentalidades dos professores das
escolas, a contribuição que o negro deu
para a formação da sociedade brasilei-
ra, da cultura, historicamente, ao longo
dos tempos. Essa contribuição não foi só
de trabalho. (...) Foi principalmente cul-
tural (...). É ai que se dá o esquecimento,
a contribuição foi também na cultura
erudita, porque não se diz ao estudan-
te na escola e não se fazem manuais
para dizer que até a abolição os gran-
des escultores e pintores da Academia
Imperial fundada pelo imperador, eram
negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas
de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,
os pintores e escultores eram negros e
mulatos. Não se diz que os músicos da
corte do Império eram negros e mula-
tos, não se diz que o maior compositor
da corte no Império, o padre José Mauri-
cio, era um negro, grande compositor e
grande maestro da corte, e que estadis-
tas, deputados, parlamentares do Im-
pério também eram negros e mulatos.
Há um livro que recomendo muito para
as escolas A mão negra brasileira, que
foi editado por Emanuel Araújo, artista
plástico, que foi diretor do museu de
Arte Moderna de São Paulo, livro edita-
do por Valter Brest, onde se faz um rela-
to dessas figuras que integraram a cha-
mada cultura erudita. O maior escritor
brasileiro de todos os tempos, Machado
de Assis, se diz que era mulato escuro.
Machado de Assis era crioulão mesmo.
Lima Barreto era negro, ninguém diz
que o Brasil teve um presidente negro,
não se conta essa história, todo mundo
pensa que só houve presidente branco
no Brasil! Tivemos um presidente qua-
se negro chamado Nilo Peçanha, que é
retocado nos retratos para parecer que
não é negro. Assim como se retoca o
senhor Rui Barbosa, grande intelectu-
al baiano, mulato escuro, se retoca no
retrato para parecer que era branco.
Nilo Peçanha era negro, mulato escuro,
negro. Agora a família dele não era, era
mais clara. Então, o que eu quero dizer
é que a presença dos negros na cultu-
ra erudita foi forte com a abolição. E
o século XX foi esquecer isso, começou
a deixar de lado e, a partir daí, toda a
inserção do negro na cultura brasileira
foi só através da chamada cultura popu-
15. 15
lar, através da música, que foi gloriosa:
Pixinguinha, os grandes compositores,
o samba vem daí, o futebol, o carna-
val, os folguedos. (...) Por isso que digo
que houve uma denegação histórica da
contribuição do negro, da sua presen-
ça. É importante que o negro atue em
novelas, apareça em publicidade, mas
eu acho mais importante começar a di-
zer às pessoas, aos meninos nas escolas
sobre tudo isto (...). Na cultura erudita,
tanto quanto na cultura popular, o ne-
gro brilhou, é preciso contar também às
pessoas que até os anos 20, na Bahia, os
professores de matemática e de piano
eram todos negros malês, que sabiam
ler muito bem, inclusive em árabe, liam
árabe, liam o Alcorão e ninguém conta
isso.
E, para completar estas reflexões, nada me-
lhor que os versos da canção de Nei Lopes e
Wilson Moreira:
Em toda cultura nacional
Na arte, até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
O negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas origens .
Entre fundamentos, argumentos e informa-
ções sobre Africanidades, organizamos esta
coletânea.
“Me ajuda a olhar”
Nosso processo de organizar e selecionar os
textos não foi fácil, já que nos deparamos
com muitas vicissitudes acerca do tema. O
acabamento, o embelezamento, os ajustes
e os retoques ficaram sob a responsabilida-
de da equipe pedagógica do Salto – fato que
merece destaque, pois produções para o co-
letivo são também coletivas, por mais indivi-
duais que pareçam. Ao pesquisar, ler e reler
o material selecionado, nós nos conectamos
com algumas percepções que não nos fur-
taremos a compartilhar. Deparamo-nos com
caminhos que chamo de “exunicidades”, por
tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades
que demandam encontros, comunicação,
articulação, negociação, conflitos... E, as-
sim, devemos fazer esta alusão a um deus
da mitologia africana: Exu.
Assim como não existe a África homogênea,
nem a história e a cultura africana e afro
-brasileira, já podemos dizer, com certeza,
que não existe um pensamento único sobre
a temática. Isso tudo, articulado com a di-
versidade de pensamento e de ações peda-
gógicas brasileiras, nos permite afirmar que
7 Ao povo em forma de arte. Composição de Nei Lopes e Wilson Moreira.
16. 16
a implementação da lei também é plural e
complexa. Por exemplo, existe uma varieda-
de de denominações, concepções, conceitos
e visões que podem se associar a essa diver-
sidade pedagógica, como educação bancá-
ria, tradicional, formal, conservadora, sócio-
-histórica, liberal, conteudista...
Paradoxalmente, não há uma relação biuní-
voca entre o acesso ao conhecimento ou ao
patrimônio africano e afro-brasileiro e a di-
minuição das desigualdades étnico-raciais.
O sistema de apropriação, o racismo e o pa-
trimonialismo não estão abalados na nossa
sociedade. Temos muito a aprender e a ca-
minhar na direção da eliminação do racismo
e das mentalidades e práticas racistas.
Embora esteja na lei maior da educação bra-
sileira, a LBBEN, não temos a garantia da
introdução nos currículos escolares da(s)
história(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e
afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)
mil municípios brasileiros. A temática das
relações étnico-raciais ainda é controversa,
o mito da democracia racial ainda é forte,
muitos não acham este tema relevante e o
racismo recrudesce no Brasil e no mundo.
Temos, por outro lado, um significativo acer-
vo sobre as temáticas da Lei n. 10.639/2003
em livros, sítios, núcleos de estudos nas
universidades, organizações do movimento
negro, organizações governamentais, filmes
e documentários, experiências pedagógicas,
quer na sua especificidade (segunda parte
desta coletânea), quer em interação com
áreas diversas de conhecimento (terceira
parte deste livro), o que nos leva a afirmar
que, a despeito do esforço abnegado de mui-
tas pessoas, sejam educadoras, educadores
ou ativistas, esta temática necessita de
compromisso político por parte, sobretudo,
dos gestores e dos definidores e definidoras
de recursos e ações para coletivos, incluindo
aí o reconhecimento dos saberes e fazeres
dos(das) docentes e dos educadores/as das
instituições escolares e da comunidade es-
colar como um todo. Cremos que a imple-
mentação da lei precisa, para tal, suplantar
as visões equivocadas de ação afirmativa
como sinônimo de paternalismo e condes-
cendência, para visões de ação afirmativa
como potência e reconhecimento do direito
e potência do outro.
Posto isto, esta coletânea, tentando estar
em sintonia com o que foi dito nesta intro-
dução, está dividida em três capítulos;
1º – ABORDAGENS MULTICULTURAIS AM-
PLAS: uma articulação da temática do
livro com o multiculturalismo, a diver-
sidade, as narrativas e a complexida-
de, além, obviamente, do currículo;
2º – AFRICANIDADES: as africanidades em
foco;
17. 17
3º – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS
– MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-
NARIDADES E AFRICANIDADES: nesta
parte da coletânea se pretende uma
interseção entre as temáticas das Afri-
canidades e áreas de conhecimento,
como uma trama, uma tessitura.
Fios do tear das moiras
fiandeiras8
MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |
INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |
AFRICANIDADES | EDUCAÇÃO INDÍGENA | EDUCA-
ÇÃO ESPECIAL | EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
| EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER
| ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAÇÃO RELIGIOSA |
EDUCAÇÃO POPULAR | EDUCAÇÃO PÚBLICA | AFRI-
CANIDADES | PEDAGOGIA DIASPÓRICA | PEDAGOGIA
DA DIFERENÇA | PEDAGOGIA BRASILIS.
Existe um rico repertório metodológico no
campo da multiculturalidade e, no que se
refere à educação étnico-racial, várias abor-
dagens podem e devem ser experimentadas,
vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do
Axé, dos terreiros, do samba, dos valores ci-
vilizatórios afro-brasileiros, em diálogo, em
confronto, encontro, encanto com as de-
mais pedagogias, quer sejam as oficiais, do-
minantes, quer sejam a dos povos indígenas
ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ára-
bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-
ciência, com necessidades especiais... Todo
este repertório, como o fio do destino tecido
pelas moiras, pode contribuir para construir
as bases da pedagogia brasilis, uma pedago-
gia voltada para a real e diversa população
brasileira.
8 Na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto é provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e
mitos das várias origens que povoam nosso imaginário.As moiras e/ou as mouras?
18. 18
CAPÍTULO 1
Abordagens gerais sobre multiculturalismo
e diversidade cultural
Neste capítulo selecionamos, entre os textos
do Salto para o Futuro, alguns que lidam di-
retamente com questões conceituais gerais
que dão suporte para as reflexões ligadas às
Africanidades ou que com elas dialogam.
A opção de não seguir uma linearidade cro-
nológica dos textos tem como objetivo visi-
bilizar a não linearidade do pensamento e
das reflexões sobre os temas em questão:
multiculturalismo e diversidade cultural.
Esta introdução antecipa algumas indaga-
ções, presentes no texto da organizadora
desta coletânea, que encerram este primei-
ro capítulo. Afinal, uma educação multi-
cultural, criativa e inclusiva, no sentido de
incluir na pauta as diferenças, o contato, o
diálogo e a interação com as diferenças, co-
loca a própria escola num lugar de questio-
namento quanto ao seu papel, seu sentido e
seu significado.
Vamos aos questionamentos:
• Qual deve ser o papel da escola num con-
texto multicultural que se sabe político,
e que não se supõe racista, nem elitista,
nem machista, nem etnocêntrico?
• O que nós, como educadores, devemos fa-
zer na escola? E como o faremos? Como
nosso currículo se configurará?
• Como serão e deverão ser nossas aulas,
nossa avaliação, nossa sala de aula? Como
será nossa postura?
• Como não sermos tão individualistas e
julgarmos que os outros são muito dife-
rentes de nós? E como não sermos tão
universalistas a ponto de apagarmos as
singularidades culturais, políticas, sexu-
ais, sociais, intelectuais?
• Como levar em consideração todos os
segmentos da escola? Como enfrentar
que nossas mais belas intenções e ações
são ainda incipientes, que são muito pou-
cas, embora necessárias?
Ao formular essas questões buscamos evi-
denciar que trabalhar o multiculturalismo
na escola não é apenas colocar imagens de
todas as etnias que compõem nossa escola
nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia
do Índio e o Dia Nacional da Consciência
Negra. Não é apenas debater as políticas de
19. 19
cotas e outras ações afirmativas. Ou, ainda,
ter a imagem de uma Virgem negra como
padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta
do século l, um homem preto, como um íco-
ne nacional (sobretudo se o que se destaca,
nesse caso, é o dinheiro como submetendo
as questões relacionadas à cor da pele).
Para buscar respostas para essas e outras
questões, selecionamos os textos que se se-
guem, acreditando que, ao reorganizá-los
nesta coletânea, sob o tópico multicultura-
lismo e diversidade cultural, estaremos pro-
pondo novas e possíveis leituras:
I. Multiculturalismo, ou de como viver
junto, de Mary Del Priore - onde a au-
tora faz uma apresentação panorâmi-
ca de questões muito caras à temática
multicultural deixando-nos a questão
desafio: COMO VIVER JUNTO?
II. Por um multiculturalismo democráti-
co, de Sueli Carneiro – destacando a
democracia como um fim, a autora
apresenta-nos variáveis contemporâ-
neas que põem em fragilidade a pers-
pectiva universalista e hegemônica de
conformação de sujeitos, convidando-
-nos a pensar um multiculturalismo
democrático brasileiro
Depois de dois textos, com seus desafios,
apresentamos o texto anunciado pelo título:
III. Pluralidade e diversidade, de Carla
Ramos – objetivando discutir os con-
ceitos do título num mundo em movi-
mento, em mudanças, focando-se na
cidade como espaço onde estes movi-
mentos nos desafiam a pensar outra
geopolítica
IV. Saberes culturais e educação do futu-
ro, de Edgard de Assis Carvalho. Dis-
cutindo os saberes culturais na pers-
pectiva da integração dos saberes, o
texto transita entre a poesia, a arte
e os saberes culturais como pistas
para a educação na sua complexida-
de e inclusividade, apresentando-nos
autores e perspectivas não hegemô-
nicas de pensar o mundo a partir do
paradigma, digamos, europeu, mas
como que anunciando um hibridismo,
mestiçagem cultural, e termina apre-
sentando-nos Fernando Diniz, talvez
paradigmático para este livro.
V. Identidade e diferença no cotidiano
escolar: práticas de formação e de fa-
bricação de identidades docentes, de
Elizeu Clementino de Souza. Este texto,
nesta coletânea, coloca os e as docen-
tes no centro da roda como produtores
e produtoras de histórias de vida (s), no
fio de prumo da Identidade e da Dife-
rença.
20. 20
VI. Diversidade e Currículo, de Nilma
Lino Gomes. De volta à discussão da
diversidade, agora focando-se o Cur-
rículo, o que se torna mais um dos
desafios da escola que “normatiza”
a diferença sem hierarquizá-la e bus-
cando não ser uniformizadora. O tex-
to indica, prescreve e sinaliza alguns
desafios para esta arrojada ação polí-
tico-pedagógica.
VII. Reinventando a roda: experiências
multiculturais de uma educação para
todos, de Azoilda Loretto da Trindade.
Este texto é um convite à criação e ao
compromisso com uma educação para
a vida em expansão.
21. 21
I. Multiculturalismo ou de como viver junto1
Mary Del Priore2
Multiculturalismo: como
viver junto?
Nas democracias pluralistas, assistimos a
um movimento generalizado de incremento
das identidades particulares. Minorias, po-
pulações autóctones, grupos de migrantes
e imigrantes manifestam seu desejo de re-
conhecimento cultural. “Viver junto” é uma
questão cada vez mais premente.
O termo “multiculturalismo” designa tanto
um fato (sociedades são compostas de gru-
pos culturalmente distintos) quanto uma
política (colocada em funcionamento em
níveis diferentes) visando à coexistência pa-
cífica entre grupos étnica e culturalmente
diferentes. Em todas as épocas, sociedades
pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de
10% dos países do planeta podem ser consi-
derados como culturalmente homogêneos.
Por outro lado, o tratamento político da di-
versidade cultural é um fenômeno relativa-
mente recente.
Há menos de trinta anos, as primeiras me-
didas políticas de inspiração multicultura-
lista foram colocadas em ação na América
do Norte (Canadá e EUA). Lá, a indiferença
frente à cor da pele foi substituída pelo prin-
cípio de consciência da cor. O debate sobre
multiculturalismo foi crescendo de intensi-
dade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na
Europa e América do Sul. A doutrina multi-
culturalista avança essencialmente na ideia
de que as culturas minoritárias são discri-
minadas e devem merecer reconhecimen-
to público. Para se realizarem ou consoli-
darem, singularidades culturais devem ser
amparadas e protegidas pela lei. É o Direito
que vai permitir colocar em movimento as
condições de uma sociedade multicultural.
Entre universalismo e
multiculturalismo
Mas, de que diferenças culturais nós fala-
mos? Muitas vezes reduzidas à questão da
1 Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 1.
2 Historiadora e Coordenadora Geral do Arquivo Nacional.
22. 22
etnicidade (condição ou consciência de per-
tencer a um grupo) ou, em alguns casos,
reduzidas até mesmo à “questão racial”, as
diferenças culturais não concernem apenas
aos particularismos de origem ou de tradi-
ção (religiosas ou linguísticas).
As reivindicações se enraízam cada vez mais
no particularismo dos mores (preferências
sexuais, por exemplo), de idade, de traços
ou de deficiências físicas (obesos, cegos,
paraplégicos). O multiculturalismo comba-
te o que ele considera como uma forma de
etnocentrismo, ou seja, combate à visão de
mundo da sociedade branca dominante que
se toma – desde que a ideia de raça nasceu
no processo de expansão europeia – por
mais importante do que as demais. A políti-
ca multiculturalista visa, com efeito, resistir
à homogeneidade cultural, sobretudo quan-
do esta homogeneidade afirma-se como
única e legítima, reduzindo outras culturas
a particularismos e dependência.
Um detalhe importante nesta discussão é
que, em nossos dias, um cidadão raramen-
te “esquece” sua condição particular para
encarnar um pretenso universalismo. O
universalismo dificilmente se combina com
as condições da modernidade. Com a libe-
ração dos mores e a emancipação sexual, a
vida privada foi maciçamente reconstruída,
revestindo-se de grande potencial político.
Nesta perspectiva, identidade e individuali-
dade quase se sobrepõem. Isto pode parecer
paradoxal, mas a reivindicação cultural está
claramente associada ao individualismo
moderno, ao primado do “sujeito individu-
al”. Ela emana da subjetividade pessoal da-
queles que se reconhecem neste ou naquele
particularismo e resolvem se engajar coleti-
vamente em reivindicações identitárias.
O debate de ideias entre monoculturalismo
e multiculturalismo funciona, de certa for-
ma, em duas vertentes de pensamento. Ele
se organizou, primeiramente, em torno de
uma querela de filosofia política norte-ame-
ricana: os liberais, ou individualistas, sus-
tentavam que o indivíduo é mais importante
e antecede à comunidade. Liberais recusam
a ideia de que direitos minoritários possam
ferir a preeminência legítima do indivíduo.
O comunitarismo ou coletivismo, ao contrá-
rio, acredita que os indivíduos são o produto
das práticas sociais e que é preciso prote-
ger os valores comunitários ameaçados por
valores individuais e, principalmente, reco-
nhecer as diferenças culturais.
Tal debate, contudo, já é coisa do passado.
Pensadores como Charles Taylor e Michael
Walzer avançaram posições mais nuança-
das. Inúmeros teóricos acreditam que os
direitos minoritários podem promover as
condições culturais de liberdade potencial
dos membros de grupos minoritários. Na
Europa, este “multiculturalismo liberal” pa-
rece ter se imposto por falta de alguma ideia
melhor. Abandonou-se, então, o modelo que
23. 23
prevalecia desde a Revolução Francesa e que
propugnava o cidadão unificado.
Vejamos, num exemplo, como procede esta
vertente: a sopa passada no liquidificador
transforma tudo num todo homogêneo, no
qual não se distinguem mais os elementos
que a compõem. Apenas um paladar avisa-
do poderá adivinhar, no sabor, cada um dos
ingredientes. Na salada composta, por outro
lado, cada ingrediente se distingue dos ou-
tros, conservando sua aparência, seu gosto
e sua textura. Nos EUA, o mito do “melting-
-pot”, ou seja, da encruzilhada na qual todas
as culturas se fundem ao adotar o “ameri-
can way of life” – jeito americano de viver –,
sucedeu o modelo do mosaico, ou da “sala-
da”, imagem possível do multiculturalismo:
uma justaposição um pouco heterogênea de
grupos étnicos e minorias culturais coabi-
tando num mundo de concordância.
As políticas multiculturais
Além do Canadá (desde 1982), vários países
têm constituições multiculturais: Austrália,
África do Sul, Colômbia, Paraguai. Mas fo-
ram os EUA que, antes de qualquer outro
país, colocaram a luta contra a discrimi-
nação no centro de suas preocupações. No
prolongamento da luta dos afro-americanos
por direitos cívicos, militantes e intelectuais
consideraram uma injustiça que as culturas
minoritárias não acedessem a um mesmo
patamar de reconhecimento do que a cul-
tura dominante branca, saxônica e protes-
tante.
Em reação a esta “etnicização majoritária”,
na verdade, uma assimilação dissimulada –
leia-se, o mito do “melting pot” – operou-se
uma “etnicização das minorias”. O reconhe-
cimento público das identidades coletivas
resultou, por sua vez, de redes políticas vol-
tadas para a consolidação da ideologia do
“politicamente correto”.
Na Europa, as práticas multiculturalistas
são ainda pouco desenvolvidas. O modelo
do Estado-Nação afirmou-se no século XIX,
praticando uma política de redução de dife-
renças culturais e de assimilação de popula-
ções imigradas. Nos países europeus, apesar
das importantes diferenças nacionais (na
Inglaterra, por exemplo, está bem avançada
a luta contra discriminações étnicas), o par-
ticularismo é percebido como uma divisão e
uma regressão culturais. O multiculturalis-
mo, por sua vez, é um desafio fundamental
para a consolidação da União Européia. So-
bretudo, quando lá se pergunta se a Europa
irá optar por uma cultura comum ou por
um regime multicultural constituído por
um mosaico de nações.
Na França, por exemplo, as políticas de tra-
tamento preferencial são aplicadas para
combater as desigualdades socioeconômi-
cas ou as desigualdades entre gêneros (ho-
24. 24
mem-mulher). Lá, cada vez mais, a etnicida-
de é reconhecida e respeitada nas práticas
(no Direito, ainda não): são dadas subven-
ções diretas a associações étnicas, são cria-
das políticas em favor de imigrantes, exis-
tem Fundos de Ação Social voltados para a
questão.
O modelo da diversidade francesa foi come-
morado no Campeonato Mundial de Fute-
bol de 1998, quando os jogadores de origens
diferentes (França, África do Norte e África
Central) tornaram-se campeões do mundo.
A imagem de uma equipe multiétnica fun-
diu-se com aquela de uma “equipe que ga-
nha”.
Os limites do
multiculturalismo
Para vários autores, o multiculturalismo
aparece como um mal necessário. Discute-
-se muito como aperfeiçoar o sistema, limi-
tando seus efeitos perversos e melhorando
a vida dos atores sociais. Em alguns casos,
o multiculturalismo provoca desprezo e in-
diferença, como acontece no Canadá entre
habitantes de língua francesa e os de língua
inglesa.
Nos EUA, esta militância só fez acentuar as
rivalidades étnicas. Ao denunciar seus ad-
versários, tais políticas terminam por estig-
matizá-los e acabam, também, por dar uma
dimensão étnica às relações sociais.
A pergunta a fazer é: será que os fins justi-
ficam os meios? O princípio da discrimina-
ção positiva se choca com as exigências de
igualdade do Direito e à imparcialidade do
Estado? Caminhamos no sentido da justiça
social? A busca de uma igualdade real pode
ser incompatível com os princípios de igual-
dade formal?
Sabemos que nem todos os membros das
minorias são desfavorecidos e os que sabem
aproveitar as vantagens são raramente os
mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-
tem grupos da população realmente desfa-
vorecidos que não pertencem às minorias
étnicas.
Neste caso, todas as diferenças podem ser
defendidas? Sabemos que há o risco de
opressão do grupo cultural sobre seus mem-
bros: como proteger a minoria das outras
minorias, os explorados dos excluídos? Por
vezes, ocorre até o contrário, pois foi invo-
cando a noção de Direito que os brancos de
origem holandesa defenderam o sistema do
“apartheid”. Muitos pensadores, entre eles
Charles Taylor, autor de Multiculturalismo,
Diferença e Democracia, acreditam que ne-
nhuma política identitária deveria ultrapas-
sar a liberdade individual. Indivíduos, no seu
entender, são únicos e não poderiam ser ca-
tegorizados.
A quem cabe a legitimidade de atribuir uma
identidade? Não é o indivíduo o único capaz
25. 25
de escolher a sua, ou as suas identidades de
pertença? Mais ainda, quando pensamos que
identidades individuais são construídas em
oposição ao grupo de pertença, os especia-
listas concordam sobre o princípio de que as
diferenças culturais não podem colocar em
causa os direitos do homem e do cidadão.
Novas perspectivas
Não podemos analisar tudo em termos de
culturas. A denúncia das discriminações e as
reivindicações pelo reconhecimento cultu-
ral parecem ter se sobreposto à luta de clas-
ses e à denúncia da exploração socioeconô-
mica que caracterizaram a primeira metade
do século na Europa, e na segunda metade,
no Brasil.
Mas, na luta contra as discriminações, o es-
quema dominados/dominantes não é mais
possível. Os conflitos sociais são cada vez
menos óbvios, menos maniqueístas. Cada
um de nós pode ser ao mesmo tempo discri-
minado e discriminador. Um operário pode
ser discriminado socialmente, mas também
discriminar como homem, como pai e como
marido. Existe, hoje, uma oposição entre as
políticas sociais e as políticas multiculturais.
Os que são objeto de discriminação cultural
são também os que mais sofrem as desigual-
dades socioeconômicas. Por trás da tensão
entre brancos e negros, há, antes de qual-
quer coisa, a tensão entre ricos e pobres.
Vale lembrar, ainda, que o reconhecimento
de uma cultura minoritária não implica o fim
de sua alienação socioeconômica. O grande
desafio consiste em conciliar as políticas de
reconhecimento e as de redistribuição.
Pesquisadores de todas as áreas insistem
sobre a necessidade de construir uma ver-
dadeira “educação intercultural”. Apresen-
ta-se, aí, a ocasião de um aprendizado de-
mocrático. É a ideia de uma democracia de
mores proposta por Farhad Khosrokhavar,
na qual a comunicação cultural é possível:
democracia feita de respeito à alteridade
cultural e de tolerância. É, também, a ideia
de uma “democracia inclusiva”, na qual as
comunidades não se definiriam mais pela
exclusão.
É também a vontade de viver junto que
funda uma cultura e permite uma relativa
homogeneidade social. Quando uma socie-
dade se diz multirracial, ela se bate, igual-
mente, contra a desigualdade racial. Taylor,
por exemplo, definiu a democracia como a
política do reconhecimento do outro, logo,
da diversidade. Mais adiante, o debate so-
bre o multiculturalismo obriga também a
redefinir o conceito de cultura, sobretudo,
a alargá-lo para aí incluir um conjunto de
diferenças comportamentais. As culturas
são menos feitas de tradição do que de re-
presentações construídas pela história, sus-
cetíveis de mudanças tal como vemos nas
reivindicações de uns e outros.
26. 26
Como já demonstraram o sociólogo Michel
Wieviorka e o historiador Serge Gruzinski,
o hibridismo e a maleabilidade das cultu-
ras são, igualmente, fatores positivos de
inovação. Considerar a cultura como algo
que não é variável, bem como julgar sobre
diferenças culturais são também formas de
marcar a cultura com um selo de autenti-
cidade que não existe e fixá-la num molde
único. Uma saída possível seria considerar
as vantagens da mestiçagem cultural, este
poderoso fator de mudanças, de criativida-
de e de invenção, e que não é objeto de ne-
nhuma reivindicação. Mas o que dizer de
mulatos que, na Bahia e no Caribe, despre-
zam os negros?
Foi se apoiando em suas raízes culturais
que a ação dos negros brasileiros tomou a
dimensão de um movimento social de mas-
sas. Nas ruas das grandes cidades brasilei-
ras já é possível ler, em muitas camisetas,
“100% negro!”. Desde os anos 80, a questão
racial está nos espaços públicos e teve iní-
cio um debate interno sobre as representa-
ções coletivas, sua história, sua diversidade
cultural e racial. A maior parte deles acedeu
à consciência negra pela brecha da cultura
popular. A música afro-brasileira e as escolas
de samba tiveram aí um importante papel
mobilizador. A busca da “pureza africana”
acompanhou-se também de uma crítica fe-
roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação
de cotas para os afro-brasileiros na univer-
sidade e no funcionalismo público acabou
por negar a fábula do encontro harmonioso
entre as três raças. Durante muitos anos, os
negros aceitaram a ilusão de que a mestiça-
gem poderia ser a solução para a discrimi-
nação racial, diluindo a cor em casamentos
mistos. Mas a questão da raça está também
ligada à da posição social: quanto mais so-
bem na escala social, mais os negros se tor-
nam brancos.
O processo de reafricanização do Brasil tal-
vez melhore o status social, artístico ou reli-
gioso de muitos de nós. Mudanças, contudo,
dependem diretamente da redistribuição
de renda e do fim das desigualdades imen-
sas entre ricos e pobres. Aí, sim, estaremos
prontos para construir uma democracia in-
clusiva e intercultural.
Referências
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ou l’Afrique réinventée. In: Cultures – La
construction des identités. Sciences Humai-
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2001).
27. 27
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a liberal theory of minirity rights. London:
Clarendon Press, 1995.
SOUTY, Jérôme. Multiculturalisme: com-
ment vivre ensemble. In: Les grandes ques-
tions de notre temps. Sciences Humaines,
dez. 2001, p. 78-82.
TAYLOR, Charles. Multiculturalisme, différen-
ce et démocracie. Paris: Aubier, 1994.
WALTZER, Michel. Pluralisme et démocracie.
Paris: Esprit, 1997.
WIEWIORKA, Michel; OHANA, Jocelyne (dir.).
La différence culturelle. une reformulation
des débats. Paris: Balland, 2001.
28. 28
II. Por um multiculturalismo democrático1
Sueli Carneiro 2
Gênero, raça/etnia, orientação sexual, reli-
gião e classe social são algumas das variá-
veis que se impõem contemporaneamente,
conformando novos sujeitos políticos que
demandam ao Estado e à sociedade por re-
conhecimento e políticas inclusivas.
A emergência desses novos atores decorre
da insuficiência da perspectiva universalista
para contemplar as diferentes identidades
sociais e realizar um dos fundamentos da
democracia, que é o princípio de igualdade
para todos. A imposição de um sujeito uni-
versal ao qual todos os seres humanos seriam
redutíveis obscureceu, ao longo dos tempos,
as ideologias discricionárias que promovem
as desigualdades entre os sexos, as raças, as
classes sociais, as religiões etc... São elas: o
patriarcalismo, que, ao instituir como natu-
ral a hegemonia do sexo masculino, justifi-
ca todas as formas de controle, violência e
exclusão social da maioria dos seres huma-
nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-
tismo classista determinado por modos de
produção que instituem classes minoritárias
abastadas, que submetem e exploram maio-
rias despossuídas; homofobia decorrente da
imposição da heterossexualidade como for-
ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-
xual e condenação arbitrária, muitas vezes
violenta, do relacionamento entre pessoas
do mesmo sexo; fundamentalismo religioso,
responsável por grande parte dos martírios
ocorridos na história da humanidade, em
que cada denominação religiosa, ao buscar
impor o seu Deus aos outros, transforma-o,
paradoxalmente, em uma das principais fon-
tes de intolerância do mundo; racismo que,
ao eleger que um grupo racial é superior ao
outro, provoca a desumanização de grupos
humanos, justificando as formas mais abje-
tas de opressão, tais como a escravidão, os
holocaustos e genocídios e a discriminação
étnica e racial.
Essas são algumas das ideologias que cons-
piram contra a consolidação da democra-
cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania
1 Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 2.
2 Diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-graduanda em Filosofia da Educação pela Universidade
de São Paulo e articulista do Jornal Correio Braziliense.
29. 29
para a maioria da população em nosso país,
tornando o homem branco, de classe supe-
rior e heterossexual, no único tipo humano
a desfrutar plenamente do exercício de di-
reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,
esse tipo humano, embora se constitua uma
minoria, está em absoluta maioria nas ins-
tâncias de mando e de poder da sociedade.
É em função dessa evidência que adentram
à cena política os movimentos de minorias
políticas, como o Movimento de Mulheres
lutando pela igualdade de gênero, de gays
e lésbicas pelo direito e respeito à orienta-
ção sexual diferente, de negros ou afrodes-
cendentes por igualdade de direitos, etc. Ou
seja, a afirmação da diferença constitui-se
num pressuposto para conquistar a igualda-
de. E, dentre esses movimentos, a questão
racial aparece no momento como aquela
que maior peso tem na estruturação das
desigualdades sociais no Brasil, impactando
todos os indicadores sociais, como se pode
auferir pelos estudos realizados pelo IBGE,
IPEA, DIEESE entre outros. Por isso, a enfati-
zamos nesse texto.
A temática da diversidade sempre esteve
presente no debate nacional e informou as
principais teses sobre a identidade nacional
ou a formação do País enquanto nação.
Triunfou, neste debate, um discurso ufa-
nista em relação ao caráter plural de nossa
identidade nacional, a despeito de esta ter
sido construída a partir de uma perspectiva
hierárquica, segundo a qual, no topo, se en-
contram os brancos responsáveis pelo nosso
processo civilizatório e, na base, os negros e
indígenas, contribuindo com pinceladas cul-
turais exóticas, que caracterizariam o jeito
especial de ser do brasileiro.
A primeira questão que esta visão coloca é
a despolitização dos processos de exclusão
e discriminação que os “diferentes” sofrem
em nossa sociedade, como também escamo-
teia a forma pela qual historicamente este
“diferente” vem sendo construído em opo-
sição a uma universalidade cultural branca
e ocidental, supostamente legítima para se
instituir como paradigma, segundo o qual
os diversos povos do mundo são avaliados.
Há um outro viés neste debate sobre diver-
sidade. Ele é tão mais aceito quanto mais
for capaz de encobrir um elemento básico
e estruturante da nossa sociedade, que é o
racismo, o maior tabu da sociedade brasi-
leira, em relação ao qual há uma verdadeira
conspiração de silêncio.
As organizações negras vêm, ao longo das
últimas três décadas, denunciando os pro-
cessos de exclusão a que os negros estão
submetidos na sociedade brasileira, seja no
mercado de trabalho, sensibilizando as enti-
dades sindicais para a incorporação da luta
contra o racismo e pela utilização dos me-
canismos internacionais que combatem as
30. 30
discriminações no âmbito do trabalho, seja
no setor empresarial, sensibilizando-o para a
adoção de políticas de diversidade em seus
processos de seleção. Ocupam-se ainda em
projetos de capacitação e reciclagem da mão-
-de-obra negra para o mercado de trabalho.
As ações que vêm sendo realizadas pelas
organizações negras no campo da educa-
ção expressam-se em diferentes dimensões
dessa temática, incidindo sobre a educação
formal nos diferentes níveis; na produção e
avaliação crítica de instrumentos didáticos;
em projetos de formação para o exercício da
cidadania, para a capacitação para o merca-
do de trabalho e/ou para o fortalecimento
da capacidade de pressão sobre o Estado.
A compreensão de que o racismo e a discri-
minação impedem a distribuição igualitária
da Justiça no Brasil vêm motivando diversas
iniciativas. A Constiuição de 1988, ao tornar
o racismo crime inafiançável e imprescrití-
vel, criou uma oportunidade nova de enfren-
tamento do racismo na esfera legal. Desde
então, essa perspectiva jurídica fez surgir
projetos exemplares e pioneiros, como os
SOS Racismo, serviços de assistência legal
para vítimas de discriminação racial, uma
experiência exitosa que já se multiplicou em
diversos estados do país e em alguns dos pa-
íses da América Latina.
No campo da cultura, são inúmeras as ex-
periências de politização das expressões cul-
turais negras, no sentido do fortalecimento
da identidade étnica e racial da população
negra, tais como as oriundas dos terreiros
de candomblé, das bandas de rap ou dos
blocos afros. Avançou a organização política
das comunidades remanescentes de quilom-
bos, adquirindo dimensões nacionais, e elas
demandam, cada vez com maior contun-
dência, ao Estado, o direito pela titulação
de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-
mento sustentado.
As organizações negras vêm monitorando
e denunciando as práticas discriminatórias
presentes nos veículos de comunicação de
massa e, através dos casos exemplares de
discriminação, mobilizam a opinião pública
para o debate da questão racial. Essas de-
núncias e críticas vêm obrigando os veículos
de comunicação a ampliarem e diversifica-
rem a presença de negros nesses veículos,
em especial na televisão.
As organizações de mulheres negras, por sua
vez, vêm desenvolvendo uma série de expe-
riências-modelo em diversos campos, tais
como em comunicação, novas tecnologias,
advocacy em mídia; atendimento jurídico e
psicossocial a mulheres vítimas de violência
doméstica e sexual; experiências inovado-
ras na abordagem das sequelas emocionais
produzidas pelo racismo. E, sobretudo, as
organizações de mulheres negras impulsio-
naram a intervenção do ponto de vista racial
na questão da saúde, dando visibilidade às
31. 31
questões das doenças étnicas/raciais ou do-
enças de maior incidência entre a população
negra, denunciando o viés controlista sobre
a população negra que a esterilização tem
no Brasil.
Portanto, as organizações negras vêm de-
senvolvendo um conjunto de “boas práti-
cas”, ou de experiências exemplares, em
nível nacional, para a inclusão efetiva dos
negros na sociedade brasileira.
Essas experiências expressam a responsabili-
dade que os negros organizados têm em re-
lação à população negra, na busca de cons-
trução de uma rede de solidariedade baseada
na identidade racial e na consciência do per-
tencimento a uma comunidade de destino
fundada numa experiência histórica com-
partilhada. Essas práticas visam à superação
da discriminação racial e, sobretudo, visam
oferecer ao Estado e aos governos modelos
para políticas públicas que, ao beneficiarem
a comunidade negra, promovam a realização
da igualdade de direitos e oportunidades.
A sociedade civil negra vem fazendo a sua
parte: denuncia, reivindica, formula e im-
plementa propostas inclusivas. No entanto,
essas ações alcançam baixa visibilidade e
pouca adesão e solidariedade do conjunto
da sociedade.
A problemática racial requer vontade políti-
ca dos governos, empresas e demais institui-
ções da sociedade para a adoção de políticas
que rompam com a apartação racial existen-
te no Brasil, que se exprime nos índices de
desigualdades raciais em alguns indicadores
superiores aos encontrados para a África do
Sul.
Como indica uma propaganda, “é hora de
mudar os nossos conceitos”. Isso implica,
por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-
lidade, a hegemonia masculina, a suprema-
cia branca. Nesse último caso, exige, sobre-
tudo, no rompimento com o “conforto” do
mito da democracia racial, em prol do reco-
nhecimento de que é imperiosa a correção
das injustiças sociais motivadas pela exclu-
são dos negros, em especial das mulheres
negras em nossa sociedade.
É uma exigência ética, um pressuposto para
a consolidação da democracia e condição de
reconciliação do país com sua história, no
sentido da construção de um futuro mais
justo e igualitário para todos.
Uma inspiradora abordagem da questão do
multiculturalismo no Brasil nos é oferecida
por Jacques Dadesky em seu livro Racismo
e anti-racismo no Brasil. Partindo da noção
hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos
anuncia que é o desejo de reconhecimento
que nos leva à luta. Desejo de reconhecimen-
to de nossa igualdade e dignidade humanas,
o que se traduz politicamente na luta pelo
direito igualitário aos bens materiais e sim-
32. 32
bólicos de prestígio da sociedade. Desejo de
reconhecimento de nossa identidade cultu-
ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo
direito de sermos quem somos, sem precisar
nos negar para sermos aceitos.
Para Jacques Dadesky, são esses os eixos de
luta que estruturam o discurso e a práxis
antirracista dos Movimentos Negros Brasi-
leiros, em resposta ao racismo característi-
co de nossa sociedade que, segundo ele, ao
fundar-se num tipo de pluralismo étnico que
prescinde de um tratamento igualitário das
diferentes culturas, legitima as hierarquias
e desigualdades materiais e simbólicas entre
os grupos étnicos e raciais.
Da exegese das contradições colocadas por
essa forma de racismo e do tipo de antirracis-
mo que ele produz, Dadesky retirará o subs-
trato para a formulação de sua concepção de
um multiculturalismo democrático capaz de
realizar, a um só tempo, o reconhecimento
da igualdade da cidadania e do valor igualitá-
rio intrínseco das diferentes culturas.
Tal como afirma o jurista Jorge da Silva: “a
cidadania plena se afirma pela conjugação
do desfrute dos direitos civis, dos direitos
políticos e dos direitos sociais. A situação
dos cidadãos negros pode ser aferida pela
garantia desses direitos: de liberdade de ir
e vir (e não ser molestado pela polícia como
‘suspeito’ em função da cor da pele); de ser
lembrado para ocupar posições de confian-
ça e destaque; da possibilidade de acesso ao
trabalho digno e à moradia; de educar-se
nas mesmas condições dos cidadãos da clas-
se média e de acesso aos sistemas de saúde,
público ou privado”.
Portanto, da forma pela qual a sociedade
brasileira enfrentar estas questões depen-
de o projeto de nação inclusiva que todos
desejamos ou a consolidação do projeto
de nação excludente que vem sendo cons-
truído há mais de 500 anos de extermínio
dos povos indígenas e de marginalização
social dos negros em prol do desejado em-
branquecimento racial, étnico e cultural do
país.
Referências
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multi-
culturalismo - Racismos e antirracismos no
Brasil. Ed. Pallas, 2001.
33. 33
III. Pluralidade e diversidade1
Carla Ramos2
Uma pequena história ou
quando significados e
sensações estão juntos
Gosto da idéia de que as palavras têm sen-
tido e de que muitas delas carregam sensa-
ções3
. Primeiramente, vamos ao significado:
Diversidade: qualidade daquilo que é diver-
so, diferente, variado; Pluralidade: fato de
existir uma grande quantidade, de não ser o
único; multiplicidade, diversidade4
.
E, para debater estes conceitos, reporto-
-me a uma pequena história. Em outubro de
2005, um homem com aproximadamente 60
anos para o seu carro numa rua da tranquila
cidade de Malmo, sul da Suécia, e inicia uma
discussão fervorosa com um grupo de jovens
estudantes. Os gritos começam a chamar a
atenção dos vizinhos, que abrem as janelas
para olhar o que estava acontecendo. Eu e
a minha amiga, na época radicada naquele
país, saímos apressadas para a rua, na ten-
tativa de entender o motivo daquele inusita-
do acontecimento. Quando chegamos bem
perto, um carro de polícia tinha acabado de
estacionar. O homem, visivelmente trans-
tornado, afirmava que aqueles jovens “só
podiam ser estrangeiros”, “só podiam ser
árabes” “porque não sabiam e nem respeita-
vam as regras de trânsito”. Ao passo que os
estudantes, um deles mais exaltado, respon-
deu que os seus pais eram “chilenos”, e que
ele era “sueco”! A briga durou cerca de duas
horas e terminou com os policiais contem-
porizando a situação, os vizinhos fechando
silenciosamente as janelas, o homem indo
embora e os estudantes dispersando-se pelo
caminho.
A razão deste sério desentendimento foi
uma suposta infração do código de trânsito
cometida por um daqueles jovens, quando
andava de bicicleta. As regras para o trá-
1 A Cidade como Espaço Educativo – 2008 / PGM 5
2 Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ/PPGSA e Analista Educacional do Salto para o Futuro
3 Bauman, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. Bibliografia).
4 Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.
34. 34
fego em vias suecas são rígidas e dizem
respeito também às pessoas que utilizam a
bicicleta como meio de transporte diário.
Mas qual seria a importância deste evento
para pensarmos as noções de diversidade e
pluralidade? Além de nos dar uma pequena
mostra das relações sociais daquele país, o
conflito nos permite observar, por exemplo,
que percepções de ordem moral e racial,
como o fato de atribuir comportamentos
desviantes a grupos estigmatizados social-
mente – neste caso: “árabes” e “estrangei-
ros” – fazem parte do repertório do nosso
mundo contemporâneo, tão marcado pelo
fenômeno da imigração e de um regime de
verdades, de um sistema de representações
– por que não dizer? – ainda tributário do
colonialismo5
.
Todos os dias somos bombardeados com
imagens, capturadas por agências de notí-
cias internacionais, que trazem o mundo
para dentro das nossas casas via telejornais,
jornais impressos, revistas, internet e outras
mídias. No entanto, cabe perguntar: como o
mundo está sendo representado? Como as
“pessoas” aparecem? De que modo os luga-
res são retratados? Podemos observar, por
exemplo, uma notícia bastante conhecida
por todos nós: o conflito envolvendo israe-
lenses e palestinos. Na maioria das reporta-
gens, os palestinos são mostrados como hor-
das de homens barbudos, que correm de um
lado para outro, aos berros, carregando cor-
pos de companheiros vitimados no confron-
to. As suas mulheres vestem exóticos trajes
cobrindo a cabeça e o rosto e perambulam
como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas
devastadas; uma paisagem inóspita, digna
dos filmes de ficção científica hollywoodia-
nos. Na África, que vale sublinhar, não é um
país, mas um continente, o que em geral é
mostrado são epidemias, mortes, guerras,
fome, desespero e brutalidade. Diante disso,
cabe perguntar: quem são estes “árabes pa-
lestinos” e quem são estes “africanos”? Eles
sequer têm uma língua porque não têm voz;
não têm família, porque vivem aos bandos
e raramente são mostrados seus núcleos fa-
miliares. O que resta deste diferente, senão
a sua diferença estereotipada pela mídia? E
a pluralidade de vozes, de visões de mundo,
de pensamentos, de ideologias, de corpos,
de histórias, de História? Tudo é facilmen-
te suplantado diante do fast food diário de
onde retiramos punhados de narrativas es-
tereotipadas sobre o Outro6
.
Ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-
nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-
tra a população da cidade de Los Angeles,
nos Estados Unidos, na iminência de um co-
5 No Brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada
pela opção sexual, etc. Estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país.
6 Só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as
práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.
35. 35
lapso causado por um excesso de, digamos,
diversidade e pluralidade, e pela consequente
impossibilidade de convívio e comunicação
em tal contexto. Neste caso, a emergência
das diferenças e do fundamentalismo das
identidades guetorizadas com nuanças es-
sencialistas desarticularam o aparato das
regras de convívio social que, idealmente,
serviria a todos da mesma maneira. A partir
de então, qualquer desentendimento pas-
sou a ser motivo para acusações de cunho
racial, todo problema é interpretado como
de fundo étnico, todos os desencontros são
causados por barreiras linguísticas ou de
costumes/tradições particulares, e as insti-
tuições operam de maneira a privilegiar gru-
pos religiosos, castas, etc. Estes são momen-
tos profundamente dolorosos e traumáticos
para todo e qualquer grupamento humano.
Não obstante este cenário pouco atraente,
os personagens permaneciam ligados; to-
dos estavam implicados nos rumos da tra-
ma, nos rumos daquela sociedade; os laços,
mesmo esgarçados, sobreviviam e aponta-
vam para algumas saídas e uma delas foi
o afeto. O afeto foi/é um dispositivo capaz
de reordenar, por exemplo, contextos mar-
cados por dinâmicas violentas de conflito e
cisão, como aconteceu na África do Sul, no
pós-apartheid7
.
Dinâmicas de cisão e de
reconstrução
Alguns autores apontam, e eu me identifi-
co com esta perspectiva, que estamos em
meio a um turbilhão de mudanças que
atingem, em cheio, os padrões de identida-
de que conhecemos na chamada moderni-
dade tardia8
. De acordo com isso, teríamos
o seguinte quadro interpretativo: temos o
mundo social e os indivíduos que, por sua
vez, se ligam ao primeiro por um conjun-
to de referências e estas podem ser cultu-
rais, por exemplo. Tais referências atuam
“estabilizando” os indivíduos em seus con-
textos. O meu objetivo neste texto é fazer
um exercício de reflexão acerca da noção
de diversidade e pluralidade num mundo em
movimento, não é demais lembrar, onde
as tradicionais fontes de representações
culturais, de significados, como o Estado-
-Nação, deixam de ser hegemônicos. As
consequências são variadas e é preciso um
esforço de investigação amplo e extenso
para dar conta de mapeá-las. No entanto,
é importante seguir algumas pistas que po-
dem nos levar na direção destas mudanças
na ordem das identidades culturais: se por
um lado os padrões de identificação tradi-
cionais do Estado-Nação perderam força
7 Esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana Nadine Gordimer
chamado: Engate.
8 Não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor
jamaicano Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.
36. 36
no embate com a diversidade e a pluralidade
reivindicadas pelos grupos que antes esta-
vam silenciados sob o plácido manto “na-
cional”; de outro lado, acompanhamos o
ressurgimento de um nacionalismo de tipo
étnico/racial e fundamentalista religioso.
Diante deste quadro, quem sabe, podería-
mos resgatar a tese de Gramsci, e trabalhar
a partir do entendimento de que o mundo
das disputas políticas é o palco para a con-
quista de mentes e corações para esta ou
aquela ideologia. A diversidade e a plurali-
dade, como valores para serem celebrados,
não nascem por geração espontânea, não
são algo genético, alguma coisa inevitável.
Pelo contrário, são ideologias, forjadas, la-
pidadas, escolhidas e levadas a cabo por
obra e engenharia humana, dos grupos so-
ciais, portanto, são históricos9
! O Brasil, por
exemplo, no século XIX, foi condenado pela
ciência europeia eugenista a poucos anos
de sobrevivência como nação; isto porque
era escandaloso verificar as variações de
cores e tipos de pessoas que conviviam nas
cidades do antigo Império Português. “Es-
candaloso” é uma boa palavra para resumir
o sentimento de estranhamento e horror
declarado por renomados cientistas e po-
líticos franceses e ingleses depois de um
pequeno passeio pelas ruas do Rio de Janei-
ro. Não tínhamos saída! Estávamos fadados
ao fim por causa de um povo/raça fraco e
doentio; um contingente de homens e mu-
lheres resultante de assombrosos intercur-
sos sexuais entre negros, brancos e índios.
Uma população cuja força havia se enfra-
quecido biologicamente, havia se tornado
impura, sem chances de vida.
Sobrevivemos a isso? Alcançamos o século
XXI! Mas de que maneira nos livramos desta
sentença de morte e alcançamos a condição
de “País do Futuro”10
? Que engenharia so-
cial foi responsável por este acontecimento?
Vou ressaltar, de maneira bastante sintéti-
ca, apenas uma dimensão desta luta por um
contra-argumento bastante representativo:
foram muitos anos de intensa produção
intelectual por estas terras e pelo mundo
afora até que a tese das diferenças culturais
conseguisse um campo maior de hegemo-
nia, em prejuízo do biologismo, da hipótese
segundo a qual a humanidade devia as suas
diferenças às divisões raciais que classifi-
cavam os grupos humanos de acordo com
a sua localização numa linha evolutiva11
. O
Brasil começou a ganhar fôlego e horizonte
a partir da celebração da mistura – genéti-
ca e cultural – do povo que por estas terras
está12
. Misturar, mesclar, sincretizar, tornar
híbrido tanto pessoas quanto tradições cul-
turais: a celebração destas possibilidades
precisa ser inventada.
9 Uma leitura interessante é o artigo de Claude Lévi-Strauss chamado Raça e História.
37. 37
A cidade como espaço a
ser permanentemente
conquistado
Visto isso, podemos pensar a respeito do
papel da cidade neste grande panorama
que acabamos de desenhar. A cidade é o
lugar onde estes embates se dão, ela é mol-
dada, ela está organizada, ela reflete e é
refletida nestes encontros promovidos sob
a égide da diversidade e da pluralidade. Em
suma, a cidade é um ente pulsante neste
jogo. A geofísica, as fronteiras, a arquite-
tura, o seu desenho sociopolítico: a cida-
de é chão e abstração. Quando emigram,
as pessoas levam consigo as suas cidades.
Com elas viajam hábitos, cheiros, gostos,
festas, paisagens, sotaques característicos,
etc. Neste sentido, a cidade está inscrita
em nossos corpos. Dessa maneira, quão
desnorteador deve ser o desaparecimento
súbito de uma cidade que sucumbe à guer-
ra... Dá para imaginar o quanto de agonia
está disseminada entre milhares de pesso-
as que vivem há anos nos campos de re-
fugiados espalhados pelo planeta, que vi-
vem neste vácuo, neste espaço provisório
que teima em não permitir que elas deitem
raízes? Mas a cidade também é raivosa e,
muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. E
quando isso acontece, os movimentos so-
ciais – os coletivos organizados – precisam
retomá-la à força. Por isso, será necessário
apropriar-se do patrimônio da cidade, de
sua pedra e cal, da sua intangibilidade para
depois colocar no plural a História e, por
fim, afirmar como é diversa a cidade que
antes se fez arredia.
A cidade precisa ser constantemente captu-
rada por seus cidadãos, afinal de contas, são
eles que lhe imprimem sentido. A educação
formal e a não-formal nos dão instrumentos
mais eficazes para colocar em prática este
intenso processo de reelaboração das “his-
tórias locais” sem perder de vista os “pro-
jetos globais”13
. Quando olhamos ao nosso
redor, quando descobrimos e organizamos
as histórias sobre o lugar onde nascemos,
o bairro onde vivemos, a cidade em que
transitamos, estamos refazendo a paisa-
gem, apresentando nossas vozes e nossas
percepções sobre aquele espaço. É como
me explicou um jovem participante do gru-
po “Reperiferia”, do Rio de Janeiro, dizendo
que “Reperiferia” significa repensar a peri-
10 Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de Stefan Zweig: Brasil um país do futuro.
11 Sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo dos Santos Ventura; Intenção
e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, da antropóloga Olívia Cunha.
12 Ver Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).
13 Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter Mignolo. O
livro em questão tem o título: Histórias Locais, Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento
liminar. (2003).
38. 38
feria; pensar novamente alguns lugares da
cidade que já estiveram submetidos ao olhar
de outras pessoas, muitas vezes descoladas
daquela realidade. A ideia é recolocar-se na
cidade a partir de um entendimento amplo
dos procedimentos de construção de sua ge-
opolítica e das dinâmicas culturais e sociais
que algumas vezes nos separam, e em ou-
tras refazem laços afetivos que imagináva-
mos não mais existir.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca
por segurança no mundo atual. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar Editor, 2003.
CUNHA, Olivia M. Gomes da. Intenção e Ges-
to: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)
diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio
de Janeiro: Editora Record, 1998.
GORDIMER, Nadine. Engate. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras.
HALL, Stuart. A Identidade cultural da pós-mo-
dernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
Dicionário HOUAISS. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2001.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In:
Raça e Ciência I São Paulo: Unesco/Editora
Perspectiva, 1970.
MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ven-
tura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de
Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996.
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Proje-
tos Globais. Colonialidade, saberes subalter-
nos e pensamento liminar. Belo Horizonte:
HB/Ed. UFMG, 2003.
ZWEIG, Stefan. Brasil um país do Futuro. Por-
to Alegre: L&PM, 2006.
39. 39
IV. Saberes culturais e educação do futuro1
Edgard de Assis Carvalho2
O que são saberes culturais? São o acervo
de conhecimentos, entendimentos, realiza-
ções, progressos, regressões, utopias, desen-
cantamentos, produto de uma aventura que
nós construímos no planeta Terra, datada
de pelo menos 130 mil anos. As sociedades
humanas, tal como as conhecemos hoje,
são o produto de uma longa evolução que
possibilitou a um pequeno bípede, com um
cérebro muito assemelhado ao de um chim-
panzé, e ainda mais ao de um bonobo, criar
cognições, transmiti-las, codificá-las. Nos-
sas diferenças para com os primatas não hu-
manos diminuem a cada dia. O genoma das
duas espécies tem semelhanças de 99%. Mês
passado, foi identificado o FOXP2. Humanos
que apresentam defeito nesse gene apre-
sentam graves problemas de fala. Chimpan-
zés, orangotangos, resus e gorilas também
o possuem. Talvez uma dissipação genética
tenha sido responsável pelo fenômeno da
fala, essa fantástica marca dos primatas hu-
manas que tornou possível criar e transmitir
saberes. De qualquer modo, denominou-se
Cultura a esse patrimônio material e imate-
rial de proporções milenares.
Desde que o mundo passou a ser explica-
do pela ciência, instituiu-se uma fronteira
entre humanos e não humanos que nunca
foi suficientemente explicitada. Essa divisão
entre animalidade e humanidade foi respon-
sável por muitas das definições pelas quais
o conceito de cultura passou a ser entendi-
do. Em finais do século XIX, por exemplo, a
cultura era definida como a mera soma de
fatos que incluía desde tecnologias, artes,
até magias, religião, parentesco. Em meados
dos anos XX, o conceito adquiriu contornos
mais precisos, dado que o Ocidente voltou
seu olhar e sua cobiça para outros mundos,
considerados por uns como inferiores, por
outros simplesmente como diferentes, nati-
vos, primitivos, selvagens.
Instalou-se, a partir daí, a pulsão da desco-
berta e a compulsão da descrição, definido-
1 Complexidade e seus reflexos na educação (2002).
2 Professor titular de Antropologia. Coordenador de COMPLEXUS – Núcleo de Estudos da Complexidade da
Faculdade/PG de Ciências Sociais da PUC/SP.
40. 40
ras do metiê antropológico. As sociedades
humanas passaram a ser identificadas a or-
ganismos, cujas partes garantem, por vezes
precariamente, a continuidade harmoniosa
do todo. Embora a analogia fosse precária,
os pesquisadores passaram a admitir que o
funcionamento das instituições era o único
responsável pela regulação da engrenagem
da sociedade. Se, por um lado, esse tipo de
explicação propiciou uma radiografia por-
menorizada de usos e costumes, delibe-
radamente não levou em conta que essas
diferenças já faziam parte de um processo
histórico altamente desigual, que opunha, e
opõe até hoje, Oriente a Ocidente, civilizado
a primitivo, moderno a arcaico, capitalista a
nativo ou indígena.
No final dos anos 40, a distinção entre o
natural e o cultural passou por alteração
significativa, mesmo que a ideia da nature-
za como universalidade dos instintos e a de
cultura, como diversidade de padrões tenha
sido mantida. Passou-se a postular que entre
a natureza e a cultura havia algo simultane-
amente universal e particular, um fenôme-
no que se encontrava presente em todas as
sociedades humanas e que, ao mesmo tem-
po, era diferente em muitas delas. Esse algo
mais era a proibição do incesto. O respon-
sável por este estudo foi Claude LéviStrauss.
Se o incesto não tinha nada a ver, neces-
sariamente, com uniões consanguíneas, o
apelo da “voz do sangue” tornou-se inútil,
preconceituoso para explicar a essência dos
interditos. De qualquer forma, a proibição
passou a sinalizar a passagem da natureza
à cultura, da universalidade à diversidade,
garantia da perpetuação e reprodução do
mundo, propiciada pela circulação de mu-
lheres, bens econômicos e mensagens.
Em decorrência disso, passou-se a questio-
nar se essas alteridades eram mesmo dife-
rentes em natureza (primitivo/civilizado),
em grau (inferior/superior) e pensamento
(pré-lógico e lógico). Admitir que outros po-
vos pensavam como nós e, por vezes, me-
lhor do que nós, representou um duro golpe
para muitos, já narcisicamente abalados pe-
las impertinências e ferimentos provocados
pelas revoluções copernicana, darwiniana e
freudiana. Mesmo que não tivessem escri-
ta para registrar seus saberes, os mitos que
construíram para entender melhor a reali-
dade em que viviam atravessaram gerações
e, até hoje, surpreendem leitores e pesqui-
sadores.
O arrogante pensamento domesticado, mo-
derno, científico, que se consolidou a partir
do século XV, cercado de certezas, leis, de-
terminismos, causalidade, teleologias, dei-
xou de lado a preocupação com a totalidade,
com a intuição, com o imaginário, passando
a se concentrar no entendimento do frag-
mento, da parte, supondo que através deles
seria possível atingir uma objetividade sem
parênteses. Com isso, virou as costas para
41. 41
o sujeito, para a incerteza e para a comple-
mentaridade, privatizou terras e mares, con-
siderou magias e mitos como algo irracio-
nal, produto descartável criado pela mente
obscura de selvagens, ou por alucinações
dos civilizados.
A principal consequência dessa visão de
mundo, no plano da educação, acabou por
consagrar, em décadas posteriores, a figura
do especialista, esse humano fechado em si
mesmo, egoísta, que descarta e desconsi-
dera tudo aquilo que ocorre para além dos
contornos infinitamente pequenos de sua
existência e de seu objeto de pesquisa.
O final dos anos 60 provocou outra altera-
ção no entendimento entre nós e os outros,
só que agora referente às formas materiais
de vida, às relações com a natureza pro-
priamente dita. Um número considerável
de pesquisadores, identificados com o ma-
terialismo histórico, debruçou-se sobre po-
pulações não capitalistas, demonstrando
que uma vida igualitária, regida por normas
coletivas e solidárias não era coisa do outro
mundo. Constatou-se, também, que não era
necessário trabalhar arduamente em tempo
integral para que a comunidade sobrevives-
se dignamente. Maurice Godelier e tantos
outros foram os responsáveis por essa esto-
cada no relativismo substantivista, que sem-
pre se traveste de tolerante para justificar e
manter a dominação.
Para surpresa de muitos, esses estranhos
mundos passaram a ser considerados como
as primeiras “sociedades da afluência”, pois
dedicavam poucas horas ao trabalho e, em
muitas delas, a palavra trabalho nem existia.
O restante do tempo era dedicado aos ritu-
ais reforçadores da vida e da solidariedade
coletivas.
Essa ampliação cognitiva não conseguiu
abalar o sólido edifício do grande paradigma
do Ocidente, e isso porque ainda mantinha
a definição do humano dentro de padrões
normativos demais. Afinal de contas, fazen-
do parte do gênero homo, a espécie sapiens é
igualmente faber, porque fabrica instrumen-
tos, loquens, porque articula fantásticos jo-
gos de linguagem, ludens, porque se encan-
ta com jogos e rituais, simbolicus, porque
atribui significados ao mundo e acumula e
transmite saberes.
Não foi fácil admitir que não éramos ape-
nas sapiens. Se chimpanzés, bonobos, gori-
las já exibem sapientalidade, ganhamos um
segundo adjetivo e passamos a ser definidos
como sapiens sapiens. A repetição do ter-
mo não se deu por acaso. As pesquisas de
Richard e Louis Leakey, Jane Goodall, Frans
de Waal mostram a todos nós que a cultu-
ra, antes privilégio nosso, é algo muito mais
amplo do que supúnhamos anteriormente.
O “antropocentrismo satírico” de Wall fun-
damenta-se no pressuposto de que chim-
42. 42
panzés, por exemplo, vivem em sociedades
complexas, e se arranjam como podem para
enfrentar alianças, conflitos e lutas pelo po-
der. Bonobos preferem fazer amor sob for-
mas as mais variadas, para que as contendas
se anulem e a reconciliação seja reposta.
A diminuição da distância intelectual e cog-
nitiva entre primatas exigiu que o conceito
fosse visto de modo menos excludente, o
que de fato ocorreu a partir dos anos 70. Ao
manter acopladas as noções de unidade e
diversidade, a cultura passou a ser entendi-
da como um conjunto complexo de saberes,
por vezes contraditório, por outras harmô-
nico, de regras, normas, valores, mitos, so-
nhos, que primatas, humanos preferencial-
mente, acionam ao se defrontarem com os
desafios do ecossistema circundante.
Semelhantes e diferentes, universais e par-
ticulares, produzimos diferenças locais que
não devem ser entendidas como ilhas inco-
municáveis de um arquipélago, mas como
um continente de objetos complexos, mani-
festações de algo mais profundo e universal,
construído num longo processo evolutivo
não linear, que envolveu sempre perdas, ga-
nhos, avanços e recuos.
Longe de serem consideradas como uma
dualidade de fronteiras intransponíveis, é
preciso acionar os operadores da recursivi-
dade e da dialógica e enxergar a natureza na
cultura e vice-versa. Somos naturais porque
inscritos numa complexa ordem biológica;
somos culturais porque capazes de elaborar
estratégias de sobrevivência e adaptação, a
curto, médio e longo prazos, onde quer que
nos encontremos. Em resumo, e a ideia é de
Edgar Morin, somos 100% natureza, 100%
cultura, ou melhor dizendo, somos seres vi-
vos uniduais, carregamos conosco uma tra-
jetória biológica milenar, ao mesmo tempo
em que somos portadores de um vasto acer-
vo cultural constituído pela memória coleti-
va da espécie.
Porque falamos, comunicamos, planejamos,
calculamos, competimos, amamos e odia-
mos, passamos a nos autoatribuir uma su-
perioridade ímpar perante os demais seres
vivos. Em cada um de nós existe algo que es-
capa a essas características normativas de-
mais, sistemáticas demais. A cada momen-
to, somos invadidos por delírios, sonhos,
excessos, loucuras, descomedimentos que
escapam a nosso controle explícito, cons-
ciente.
Treinados pela educação familiar e escolar a
afastá-los de nossa imaginação e a recalcá-
-los em nossa psique, temos que reaprender
a conviver e dialogar com eles, ou seja, in-
trojetar em nossas cabeças que somos sá-
bios e loucos, unos e múltiplos, duplos, e
que é exatamente isso que vialibizará, sem
excessos, processos civilizatórios solidários
e processos educativos religados. Sapiens sa-
piens demens, eis nossa condição, plano de
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imanência que nos permite viver, sobreviver,
afrontar, e talvez superar, a insignificância
dos mal-estares pós-modernos comandados
pela unidimensionalidade da tecnociência,
pela compulsão da conectividade, pela des-
razão da política, pela insuficiência dos afe-
tos.
Precisamos de um novo sujeito do conhe-
cimento, que não seja tecnofóbico e muito
menos antropofóbico, que reconheça o pa-
pel das tecnologias do infinitesimal, sem
atribuir-lhes papel determinante para desti-
nos futuros. O planeta tem urgência de ser
mais integrativo e interdependente. Se fosse
possível traduzir esse ponto de vista em slo-
gans de um programa político, as palavras de
ordem dessa biocosmopolítica serão: conser-
vação em lugar de destruição, religação em
lugar de fragmentação, cooperação em lugar
de competição, partilha em lugar de concen-
tração, inclusão em lugar de exclusão.
A UNESCO, ao promover os quatro pilares
da educação para o século XXI, em torno de
quatro formas de aprendizagem, a saber:
conhecer, fazer, viver junto e ser, estava cer-
tamente imbuída da ideia de que a humani-
dade, a Terra-Pátria, não pode ser concebida
como um meio de obter lucros e vantagens
para poucos, mas como um fim a ser cons-
truído por todos e para todos. Na verdade,
trata-se de um aprendizado complexo, a ser
exercitado não apenas nas escolas, mas na
vida em geral. Um amplo processo partici-
pativo, restaurador do homem genérico,
que envolve princípios, valores, utopias e,
certamente, um contrato planetário, social
e natural, no qual animais e homens, natu-
reza e cultura não se separem mais.
Traduzir esses pilares para a sala de aula é
uma tarefa complexa, dadas as condições
em que o ensino se encontra, debatendo-
-se entre uma utopia democrática, a escola
para todos, e uma realidade meritocrática, a
escola para alguns. Além disso, a fragmen-
tação disciplinar, empenhada em transmitir
conteúdos e gerar competências, esquece-se
de que a formação do sujeito responsável re-
quer como ponto de partida a religação dos
saberes, cabeças bem-feitas, como preten-
dia Montaigne.
Uma vez perguntaram a um poeta, mais
exatamente a Yves Bonnefoy, porque ele
considerava fundamental o ensino da po-
esia nas escolas. Sua resposta foi direta e
incisiva. Disse ele que a poesia propiciava
a prática da liberdade para com as palavras
e a vivência da responsabilidade com um
mundo melhor, com o sentido da vida. A po-
esia e a literatura em geral, as artes, com as
imagens que constroem, criam uma fantás-
tica reserva de emoções, abrem janelas para
o mundo, acionam níveis de realidade não
percebidos pela linguagem fria e distante
dos conceitos. Quando se aprende um po-
ema de cor, quando se lê um romance pela
décima vez, ou se guarda a imagem de uma
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pintura, eles permanecem para sempre em
nossa mente, como fiéis companheiros que
nos convidam a encarar a desregulação do
mundo de modo menos pessimista, a per-
ceber a realidade de forma menos linear, a
descrer dos ditames da razão, a usufruir das
delícias do imaginário.
Essa escuta do mundo não implica obrigar
as escolas a incluírem a poesia em seus cur-
rículos, embora isso fosse até desejável. Ela
alerta, porém, para o fato de que ciência e
imaginação não se excluem, mas se comple-
mentam, empenhadas que estão na decifra-
ção dos enigmas da vida. Não é mais possí-
vel que a educação do século XXI mantenha
a separação entre as duas culturas, a saber: a
cultura científica e a cultura das humanida-
des. Refiro-me, mais uma vez, aos propósi-
tos da UNESCO que pregam os princípios de
educação permanente, sociedade educativa,
reciclagem e atualização contínua dos con-
teúdos, sinergia entre alunos e professores.
Um ensino compartimentalizado não conse-
guirá jamais promover esses objetivos. A re-
ligação exige não apenas cabeças bem-feitas,
mas disponibilidade e revolta docentes para
abrir compartimentos, fomentar incertezas,
promover o diálogo, reinventar o mundo.
Se o século XX presenciou a irrupção da de-
sordem, da incerteza e da complementari-
dade e expôs como nunca a interface en-
tre ciência e política, o século XXI tem pela
frente a inédita possibilidade de restaurar o
conhecimento pertinente e não se deixar se-
duzir pelos confortáveis apelos da fragmen-
tação e da hiperespecialização. Restaurar o
conhecimento pertinente implica integrar
razão e paixão, onda e partícula, unidade e
multiplicidade, arte e ciência, em acionar
uma espécie de significante flutuante, uma
força primordial que circula por toda parte,
que atravessa todos os códigos, que recupe-
ra o sentir, o agir e o pensar, que religa indi-
víduo, sociedade e cosmo, que se situa além
e aquém da vida e da morte.
Toda vez que pensadores instauradores de
discursividade utilizaram-se da forma meta-
fórica da arte para aclarar o conteúdo som-
brio e metonímico da ciência, os saberes
culturais se enriqueceram, as duas culturas
se interligaram, a educação sentiu-se mais
gratificada. Vejamos alguns poucos momen-
tos escolhidos ao acaso na vasta história do
pensamento em que isso ocorreu.
Claude LéviStrauss, em 1962, muniu-se de
um pequeno quadro de François Clouet do
século XVI (1515-1572), Elisabeth da Áustria,
para construir a ideia de modelo reduzido
como elemento propiciador da emoção es-
tética e da visibilidade dialógica entre a par-
te e o todo, magia e ciência, arte e ciência,
jogo e rito.
Humberto Maturana e Francisco Varela
abrem seu fabuloso livro, A Árvore do conhe-
cimento, com Hieronimus Bosch (1450-1516),
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“O Cristo coroado de espinhos”. Para Ma-
turana e Varela, o quadro expressa as ten-
tações da certeza. Cristo, no centro, revela
imensa paciência diante dos verdugos, coisa
que precisamos muito diante da vigilância
cognitiva que nos ataca constantemente. O
personagem do canto direito segura Jesus
pelo manto. Restringe sua liberdade, parece
dizer “eu sei, eu sei”. Certezas demais, con-
vicções demais.
Edgar Morin refere-se, com certa frequência,
a Guiseppe Archimboldo (1527-1593). Quan-
do tomamos contato com suas pinturas,
nos surpreendemos com o caráter alegórico
da harmonia e do caos, a interdependência
dos quatro elementos, das estações do ano,
a comple¬mentaridade de flores, frutos e
peixes, as agruras e o peso da acumulação
dos saberes. O Livreiro, um de seus quadros
mais comentados pelos críticos de arte, en-
contra-se literalmente embriagado de livros,
tragado pelo conhecimento. Descarnado, a
cortina o livra das intempéries do frio. Um
pouco de todos nós estamos contidos nas
imagens desse Livreiro, que acumula e religa
saberes sem saber ao certo o que fazer com
eles, como operacionalizá-los.
Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de
1977, debruçou-se recentemente sobre René
Magritte (1898-1967). Para Prigogine, Magrit-
te enfatiza sempre os mistérios da existên-
cia humana, insistindo que a obra de arte
os explicita e a ciência pretende, apenas, de-
cifrá-los e analisá-los. Se a história humana
possui sempre um caráter não determinista,
devemos privilegiar as experiências da cria-
tividade, esse algo mais que resiste ao pen-
samento em detrimento das experiências da
repetição, prosaicas, equilibradas demais.
A arte de viver expressa exatamente isso: a
luminosidade da criatividade e a singeleza
da repetição. Simetricamente irreversíveis,
nos debatemos entre essas duas dimensões
existenciais, pulsões constitutivas do serno-
mundo, como se a ordem nascesse sempre
da desordem, a vida sempre da morte, e as-
sim sucessivamente.
Finalmente, reencontramos Fernando Diniz
(1918-1999). Em 1944, foi preso e levado para
o manicômio judiciário, porque, segundo
dizem, andava nu pelas areias de Copacaba-
na. Em 1949, foi internado no Centro Psiqui-
átrico D. Pedro II, de onde não saiu nunca
mais. Iniciou-se nos ateliês de artes coorde-
nados por Nise da Silveira, a doutora Nise,
odiada pela vigilância cognitiva instalada
na psiquiatria cartesiana, que considerava
os coterapeutas utilizados pelos clientes
simplesmente como animais destituídos de
emoções. A doutora sabia muito bem que
seus gatos e cachorros sofreriam muito nos
corredores hospitalares do Pedro II. Não
esmoreceu. Colocou tintas, pincéis, barro,
tecidos, linhas nas mãos de Artur Bispo do
Rosário, Adelina, Carlos, Raphael, Emygdio,
Fernando, permitindo que “inumeráveis es-
tados do ser” aflorassem, mesmo diante das
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tristes consequências que choques, medica-
mentos, desafetos e abandonos provocam
na psique. Qualquer visita ao Museu das
Imagens do Inconsciente, criado em 1952 no
Rio de Janeiro, produz uma infinita sensação
de êxtase diante dos símbolos que as forças
do inconsciente acionam e explicitam.
Fernando Diniz produziu não apenas tape-
tes digitais e mandalas, mas um mosaico de
imagens figurativas, abstratas, orgânicas,
inorgânicas. Trinta mil obras: telas, dese-
nhos, modelagens, tapetes, alguns titulados
outros não. Diz ele: “mudei para o mundo
das imagens”. Instado a definir o que era
um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro
que não tem fim”. Desfez a separação entre
arte e loucura, consciente e inconsciente,
religou saberes.
Afinal de contas, como ele mesmo afirma
num texto que escreveu, “a estrela existe,
antes de tudo, em cima da estrela se dese-
nham círculos, e em cima dos círculos bor-
boletas ou margaridas”. Em 1996, foi pre-
miado no Festival de Gramado na categoria
de melhor curta-metragem com o desenho
animado “A estrela de oito pontas”, para o
qual realizou cerca de 40 mil desenhos. Rea-
lizou sua última exposição em 1998, no Mu-
seu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Morreu em 1999.