1. Assim narrou Santa Benedita
Irmã Pilar Sanz
Editoras Beneditinas
Brasília – DF . 2009
2. MINHA VIDA
Assim narrou M. Benedita...
Eu vivi uma infância feliz, no meio da
roça, rodeada do carinho dos meus pais e irmãos,
que gostavam muito de mim. Ainda me lembro
dos campos verdes por onde brincava, dos
mananciais cristalinos onde matava a minha
sede... Junto aos colegas da minha idade divertia-
me fazendo brincadeiras.
Eu tinha 11 anos quando a preocupação
começou a percorrer o coração e as conversas dos
mais velhos... eu intuía que estava acontecendo
alguma coisa muito grave.
Um dia, muito cedo, minha mãe comentou:
filha temos que ir embora, as tropas de Napoleão
já estão muito perto e arrasam tudo por onde
passam, não podemos ficar aqui por mais
tempo...
Eu vivia a dor de deixar alquilo que mais
amava...Olhei os montes pela ultima vez.
Naquele dia, mal avistava o alvorecer no
horizonte, uma brisa suave e fresca o inundava
todo. Pouco a pouco, no entanto, íamos deixando
a cidade, tudo desaparecia diante de mim. Ao
meu lado, meus pais e irmãos caminhavam
cansados, todos nós desejávamos ver um novo
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3. horizonte se abrir e que o sol brilhasse
novamente.
Aos 15 anos de idade, me brotou uma
alegria profunda, um gozo em minha alma, algo
que eu não sabia definir, decifrar, uma atração.
Deus era o meu confidente, meu amigo, aquele
que eu partilhava todo sorriso, toda lágrima,
minha felicidade, eu era feliz... Sentia-O perto de
mim, como o toque do vento em meu rosto, o
perfume das flores que envolvia todo ar... Ele me
chamava de forma tão clara, que não havia
dúvida, era ELE. Era como uma segurança sem
limites no meio do oceano.
Nesses momentos, compreendia que Ele
era o próprio Oceano, onde minha vida tinha
sentido.
Tal loucura de amor tinha que ser
correspondida... Por isso, um dia, enquanto todos
dormiam, no silencio da noite, me levantei com
cautela, peguei a mala que eu mesma havia
preparado e fui procurar um lugar fora da cidade,
onde eu pudesse realizar meu sonho.
Caminhei durante algumas horas, já
começavam a se desenhar os raios do sol, quando
cheguei à caverna... Olhei com atenção, procurei
um canto e coloquei minhas coisas... Tirei uma
imagem da virgem Maria e outra de Cristo,
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4. “O nosso ser é um conjunto
de perguntas que só em Deus
tem as respostas certas e uma
feliz realização.” (HP)
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5. improvisei um pequeno altar. Ali comecei minha
experiência de solidão e silencio... Algo maior
que qualquer amor humano me havia levado até
aquele lugar, não era capricho meu.
O primeiro dia passou... Quando a fome
começava a apertar o estomago, comi raízes para
me alimentar, bem como ervas, ali era um lugar
de muita vegetação. Depois de comer o que a
natureza me oferecia dava graças a Deus por
tanta generosidade... Sentia-me feliz. Quando
caia a noite, a escuridão envolvia tudo... Dei-me
conta, enfim, que estava longe de minha casa, de
minha mãe e de todo carinho que me doavam.
Pensava na preocupação que poderiam estar
sentindo com minha ausência, mas dormia em
paz, pois o que eu sentia, naquele momento, era
maior que a preocupação dos meus familiares.
Assim passaram-se cinco dias, não havia
tempo para o aborrecimento, cada manhã era uma
oportunidade para amar, para dedicar-me Aquele
pelo o qual eu amava e me sentia amada por Ele,
sentia-me seduzida.
O pior aconteceu no sexto dia, enquanto
passeava entre as plantas, pensando na beleza da
criação, assustei-me com uns fortes gritos,
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6. pronunciavam meu nome, então dei-me conta
que eram vozes conhecidas, eram meus pais.
Despertei como de um sonho. Enquanto
tentava explicar o porquê de minha fuga, ouvia
meu Pai dizer: “Deixe de bobagem, você se
casará como todas as jovens. Que ridículo se
torna para toda a família! Para toda a cidade, que
só fala em você! Tens consciência do que queres
fazer?”.
Não pude defender-me. Voltei para casa,
era muito nova, me submeti as ordens de meus
pais, não tinha opção.
Enquanto seguia minha vida, no trabalho
das vendas de verduras e frutas, ouvia com
atenção o que as pessoas me diziam e, a cada
escuta, percebia que meu coração se inflamava ao
ouvir histórias de meninas livres, que
perambulavam pelas ruas e amavam livremente,
sem que ninguém se preocupasse com elas.
Para meus pais eu era apenas uma menina
que cuidavas dos afazeres de casa, no entanto, em
meu coração, ardia um desejo que eu mesma não
podia compreender, deixando-me guiar por uma
mão misteriosa que levava-me ao rumo de minha
nova história.
Passados cinco anos, parecia que a
monotonia começava a rondar meu espírito,
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7. “Na medida em que a Igreja ondeie
a bandeira da “vida intima com Deus”
como missão evangélica,
enxergaremos uma nova primavera
na maneira de ser Cristão.” (HP)
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8. quando apareceu em minha vida um jovem. Ele
era alegre, piadista... encantei-me com seu jeito
de ser, e a recíproca foi verdadeira. Meu pai
percebeu, mas aquele tempo às coisas não
andavam tão rápidas como os dias de hoje, ele se
chamava João.
Floresciam os pés de amêndoas e eu me
sentia como eles, florescendo por dentro, algo
novo invadiam-me por dentro como se eu
descobrisse uma nova forma de amar.
Meus pais ficaram muito contentes em
saber que meu coração ardia por um jovem, pois
desde minha adolescência, sofriam achando-me
um pouco diferente das outras meninas.
Decidimos nos casar na Basílica de Pavia,
em 7 de fevereiro de 1916. Estava tudo enfeitado
com flores. João e eu embarcamos em um projeto
novo, que víamos como o “Projeto de Deus”.
Tínhamos tudo para sermos felizes:
trabalho, de onde tirávamos o dinheiro para o
nosso sustento, uma pequena casa, amor mutuo,
compromisso e entrega e...o mistério que nos
envolvia, fazendo-nos engrandecer cada dia mais
a nossa entrega.
Mas em meu coração, ressoava novamente
as conversas das senhoras ricas que passavam
pela minha tenda, e “essas meninas deixadas ao
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9. seu livre prazer”, os dias passados na gruta, tudo
me fazia pensar em uma entrega de vida mais
profunda. Mas como isso poderia acontecer se
havia João em minha vida? O que ele pensaria?
Estávamos casados há dois anos e, certa
noite, como de costume, quando fechamos a
tenda, nos sentamos cansados em frente à lareira,
foi ai que ele se deu conta que algo me
preocupava... “Deus não nos concedeu filhos”...
ele me acariciava perguntando se era esse o
pensamento que me perturbava! Fiquei
completamente comovida com sua atitude.
Naquela noite conversamos muito, nos
compreendemos. João não podia ver-me triste,
estava sempre disposto a me animar. Confessou
que já havia percebido minha tristeza e sabia
exatamente o que me incomodava, me
angustiava.
Juntos, João e eu resolvemos engrandecer
o amor que nos inflamava por dentro. Com o
coração livre, decidimos viver uma vida „casta‟,
sacrificada, mas que nos conduzia a uma vida
mais fecunda. Naquela noite dei graças a Deus
por saber conversar sobre meus anseios e por
João compreender a minha vida. Vibrei tanto em
meu interior, que me sentia embriagada por um
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10. Esta é a minha vocação: dar resposta
ao amor de Deus que me
ama desde a eternidade!.
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11. “amor divino”. O sonho que meus pais haviam
matado ressurgia novamente em meu ser.
Minha irmã Maria ficou doente por oito
anos, a ela ofereci toda minha atenção e ajuda.
Não poupei forças nem tempo a ela, pois sabia e
sentia que Deus me pedia essa entrega. Uma luz
me conduzia por caminhos que eu não
imaginava.
Em 1825, Maria veio a falecer. João
continuava ao meu lado. Certa manhã,
compreendi que o que eu fazia, era pouco diante
da grandiosidade da vida e seus apelos. Foi
quando decidi entregar-me a Deus... Iria a um
convento, algo que cultivava em meu ser a muito
tempo.
João fez o mesmo, foi até o convento dos
Somascos e pediu que o aceitassem como leigo.
Ali, no silêncio, me senti livre. Meu
coração vibrava ao ouvir o som do Evangelho.
Passou a primavera e chegou o verão, com o
outono enxergava os ramos secos através da
minha janela. Meus sonhos, minhas lembranças
tomavam uma nova cor e, mais uma vez,
ressurgia à mente as meninas de Pavia! As via
perambulando, de um lado para o outro, sem que
ninguém as enxergassem ou lhes transmitissem
um gesto, um olhar de carinho.
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12. A noite surgia, mais uma vez em minha
vida, como uma sinfonia de silêncio, quebrado,
somente, pelo ritmo suave do som das águas que
desciam das cascatas de uma cachoeira, levando
consigo tudo aquilo que conseguia atingir... Ali
estava Ele, o jovem que me mostrava as meninas
perdidas, sem rumo...!
Sim, eu serei a mãe destas jovens, eu
prometo! Neste momento acordei! Estava em
minha cama, suava e ardia-me em febre, o meu
coração batia muito forte.
Foi assim que, não me lembro bem como,
me curei. Novamente peguei minha trouxa e,
como em outros tempos, percorri cada passo do
longo caminho, cantando de alegria. Um novo
horizonte se abria para mim. Aquelas meninas
haviam roubado meu coração e tornei-me
peregrina dos caminhos apaixonados da vida.
Tinha vontade de abraçar as montanhas,
cruzar rios, subir nas arvores, até chegar
novamente em Pavia.
João nunca me deixou sozinha, era um
bom homem, carinhoso. Acompanhou-me à
Pavia nessa nova aventura, quis viver ao meu
lado sem que os outros o vissem, na humildade.
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13. “Precisamos silenciar o nosso interior
para escutar a voz de Deus no meio
das preocupações de cada dia.
Jesus está vivo!
Caminha sempre ao nosso lado.”
(HP)
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14. Ali estávamos eu e João. Convidamos as
primeiras jovens que queriam começar uma vida
nova.
Partilhamos tudo com elas, aprenderam a
ler, escrever... Dialogávamos sobre o sentido da
vida, como deveria ser vivida e valorizada, dando
um novo sentido à ela. Conversávamos sobre as
dificuldades, os amigos... A maioria delas estava
sozinha. Necessitavam dar e receber carinho de
uma mãe que as ensinassem a enxergar a vida de
outra forma. Que cuidasse delas e lhes desse
coragem, que as ajudasse a compreender quando
algo desse errado. Elas preenchiam a minha vida,
e meu coração se emocionava. Nelas, via o rosto
de Deus sem fazer nenhum esforço, era uma
experiência gratificante.
Uma noite, na capela, Deus fez-me sentir
uma forte sensação, meus olhos brilhavam com
uma surpreendente emoção. Fez-me provar os
sabores de uma repetida e incomparável
experiência. Eu me abria ao presente de Deus e
me deixava acariciar por sua amizade, a mais
eloqüente de todas em meio ao perfume da
primavera.
Para mim, restava o caminho mais
desafiador, mais doloroso e, muitas vezes, Deus
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15. nos faz experimentar o amor, antes de enfrentar o
calvário, para que não desfaleçamos.
Contava com o apoio de João e algumas
companheiras que desejavam partilhar esse
trabalho. Doar minha vida e minhas energias por
aquelas jovens, e descobrir a cada amanhecer,
essa fonte que borbulha no coração, que só vive
para Deus.
Em minha alma ardia uma chama que me
consumia, foi quando foram lançados os
primeiros golpes, começara o martírio: “... era
uma farsa! Mata suas filhas! As prende no porão
de sua casa! Neste momento, meu coração se
estremeceu. Como poderiam pensar algo assim?
As falsas afirmações, inclusive, chegaram ao
Bispo.
A cruz chega quando menos esperamos.
Deus reservou esta provação num momento de
maturidade de espírito, antes seria impossível
suportar. Estava disposta a receber todas as
pedras, mas não consentiria que fizessem algum
mal às minhas filhas.
Aconteceu que, em Outubro de 1837,
diante da imagem de Cristo Crucificado, percebi
que minhas mãos encontravam-se vazias.
As mesmas mãos que haviam dado banho
naquelas jovens, que acariciavam seus rostos e
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16. enxugava as lágrimas que teimavam em cair por
causa do sofrimento e da dor, mãos que as
ensinaram a escrever... Chorei muito a princípio,
as noites escuras tomavam conta de mim e o
abandono invadiu meu ser. Mas, neste momento,
compreendi que se o grão de trigo não cair e
morrer, não voltara a dar frutos, compreendi que
o amor eterno está exposto na cruz e que os
caminhos de Deus são surpreendentes. É preciso
deixar o remo nas mãos de Deus, para possamos
cruzar o “grande oceano”: Por Deus, estava
começando a compreender a vida. A dança da
vida seguia no ritmo de Deus. Eu tinha que
percorrer o caminho de Deus, não o meu.
Confesso que foi um desprendimento
terrível, como um forte vendaval. A presença de
João e das três companheiras que seguiam
comigo, me ajudaram a suportar aquele momento
de entrega total e sem limites que Deus me pedia.
Pois, somente os verdadeiros amigos
permanecem conosco nas horas de sofrimento e
provações e não apenas nas horas de felicidade.
Mais uma vez, seguia o caminho indicado
por Deus. Não importava a direção; senti-me
livre como um pássaro para cruzar o horizonte,
experimentando a generosidade do Pai. Aqueles
que seguem com ele, o caminho da salvação,
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17. “Eu sei que posso ser fiel a Deus
apoiado na sua própria fidelidade,
porque Ele se entregou por mim.” (HP)
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18. partilham o sofrimento, tirando-lhes o peso e
fazendo-lhes caminhar mais rápido.
Acompanhada de João e minhas
companheiras, chegamos a Ronco, povoado de
João. Ele também merecia voltar a pisar o chão
de sua terra e sentir-se acolhido por ela, pois, ali
vivera com muitos sacrifícios. Por este motivo,
permaneceríamos ali por alguns dias...
Esses caminhos tortuosos nos deixariam
com calos nos pés, mas nos conduziriam ao
Espírito Divino. Logo após nossa chegada, as
pessoas nos convidariam a cuidar das meninas do
povoado, o que era, desde o início, nossa
intenção. João iniciou o trabalho, se
comprometendo a ficar mais tempo no local.
A vida era tranquila e podíamos descansar
bastante. As jovens que me acompanharam
queriam me ver comprometida com o ideal da
consagração. Por isso, após muita oração,
partilhamos os mesmo sonhos, decidimos nos
consagrar a Deus e nos dedicar às jovens e
crianças que necessitavam de ajuda em todos os
sentidos.
Vi na decisão de nossa pequena
comunidade, ser manifestada a vontade de Deus.
O som do sino anunciava-nos o melhor momento
do dia: levantar, rezar, comer... O ambiente
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19. silencioso de Ronco se convertia em uma grande
sinfonia, embora tivesse o grito das crianças, das
classes, das irmãs e da oração, ali o silencio de
fato reinava. À noite, enquanto todos dormiam,
eu discretamente me levantava e ia até a capela.
Depositava toda a minha confiança em Deus e
Ele me presenteava, deixando-me levantar vôo.
Quando menos esperava, já era dia.
Compreendíamos que a vida era cheia de
encantos e beleza. Para tanto, devíamos dar
graças a Deus por tudo, assim, nos reuníamos em
uma só oração, uma só fé. Sentíamos felizes,
pois, nossos sonhos e esperanças chegavam em
nossas mãos.
Muitas vezes, tinha que me ausentar e
atender outros lugares que me requisitavam,
também me chamavam em Pavia. Ali, em outra
casinha, hospedamos várias meninas, que abriam
sorriso nos lábios.
Sofri muito, quando tive que deixar tudo
para traz. Obrigada a desfazer-me daqueles
momentos tão fundamentais em minha vida, senti
como se me arrancassem a pele... Mas agora,
Deus havia me presenteado momentos de prazer,
de amor.
Minhas forças declinavam, assim ia-me
abandonando nas mãos de Deus como um
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20. instrumento fiel. Desci a casa do oleiro e deixei-
me ser modelada por ele.
Escrevi normas para minhas filhas. Via a
trajetória de suas vidas como uma luz, que
desaparecia na imensidão do caminho e
começava uma aventura nova, um novo
horizonte.
Aproximava-se o dia 21 de março... Havia
proposto que este dia fosse destinado ao encontro
com o Amor. Reuni as meninas e as jovens
companheiras em um lugar, em silêncio. João
também se fez presente. Naquele dia, ele se
despediu de mim, me provocando um nó na
garganta, um pequeno momento de intimidade!
Quantas renúncias por um amor sublime... E
minhas filhas, essas filhas as que tanto queria.
Choravam, rezavam... o meu olhar ficou fixo
num raio de luz, meus ouvidos já não percebiam
seus gemidos. A fé me surpreendeu nos braços
do Pai e vi saciados todos os meus desejos no
Amor! Tudo era claridade. Era a eternidade.
Aqui não tem passado nem futuro. Tudo é
presente. Vivo numa quietude dinâmica. Tenho
minha morada na Paz infinita.
20
21. “Amemos com todas as nossas forças,
além de nossas forças,
até nos perder no mesmo ato de amar!
Assim se abrirão no nosso peito
as asas da ressurreição!”
(HP)
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