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CAPITULO I
O testemunho de um terrível massacre
PRODÍGIOS SOBRESALEM
Angélica olhou com compaixão para o adolescente que um guarda usandona cabeça uma espécie de bacia de barbeiroem aço, o cap acete
inglês, introduzia sem deferência na sala do Conselho, empurrando-ocom a haste de madeira de sua alabarda. Podia compreender a
emoção desse jovem rendeirodas fronteiras, arrancadoa suas lavouras e carneiros e projetadodiante de um areópagode graves
doutores vestidos de preto com peitilhos brancos, reunidos ao redor de uma mesa maciça, sob o forro de uma sala mais escura ainda que
suas vestes. Teria de fazer ali a narrativa do horrível massacre perpetradolá em cima, ao pé das montanhas verdes, durante o qual
perdera todos os seus. Seus olhos piscos, nãovendode início senãoessas faces muito brancas e severas cujos olhares estavam fixos nele,
dirigiram-se a esse único rosto de mulher,que tinha uma expressão de bondade.E, como percebesse também que essa grande dama
muito bela dissimulava sob as dobras de um grande mantode seda os sinais de uma maternidade próxima, sentiu um nóna garganta,
pois ela suscitava-lhe a lembrança de sua pobre mãe que,quase anualmente,carregava no ventre e punha nomundouma criança. Mas
essa visão e essa lembrança deram-lhe a coragem de iniciar sua narração e responder às perguntas que começavam a fazer-lhe com uma
voz profunda,voluntariamente solene e lenta, como que para impressioná-lo mais. Estava prontopara dizer tudo.
— Como se chama? — Richard Harper. — De onde vem? — De Eden's Falls, norio Annonnosuc. Teve consciência dos olhares pesados
trocados entre esses senhores de Salem. Examinavam-no,esmiuçando-o da cabeça aos pés, de sua cabeleira cor de palha eriçada, sua
face queimada pelo sol, até seus pés nus,feridos pelas silvas e pedras agudas,metidos em sapatos grandes que lhe haviam emprestado.E
novamente receou romper em soluços. Seus olhos baços de inglesinho prenderam-se de forma patética aos daquela mulher,a única
presente,que lhe lembrava sua mãe,e após um-instante,sua perturbaçãodissipou-se. Um brilho claro parecia ir dos olhos da mulher
para ele, e teve a impressão de que ela lhe dirigia um sorriso. Estava pronto para dar seu testemunho. Isso durava desde a manhã. Na
véspera, Angélica e Joffrey de Peyrac, voltando de um périplo de quase dois meses ao longo das costas da Nova Inglaterra,que os levara
até Nova York, ancoraram nopequenoporto de Salem. Ali estavam de volta, numa visita de boa vizinhança e de negócios. Mas
encontraram a pequena capitalda colônia inglesa do Massachusetts em efervescência e, nos cais, notáveis e ministros reunidos numa
sombria assembleia para os acolher. As incursões dos franceses do Canadá e de seus aliados selvagens tinham se reiniciado, disseram-
lhes, contra os estabelecimentos do norte da Nova Inglaterra. E foi por isso que os responsáveis por esses Estados pediram a seus
hóspedes,cuja visita consideravam como um sinal da ajuda do Senhor,para que assistissem ao conselho extraordinário que iria se
reunir para avaliar a situação.
Na qualidade de vizinhos franceses e proprietários de estabelecimentos no Maine,que consideravam ligado ao Massachusetts,voltavam-
se para o Conde de Peyrac, para pedir-lhe que lembrasse às autoridades de Quebecas promessas que lhes haviam feito, e para Angélica,
por reconhecerem seu poder de deter os chefes índios; corria uma lenda de que os mais selvagens obedeciam a ela. — Se falam de
Piksarett, chefe dos patsuiketts, fiquem sabendoque ignorotudo a seu respeito há mais de um ano— defendeu-se ela.— Havia franceses
à testa das hordas que assaltaram as aldeias inglesas? — perguntou Joffrey.— Perceberam algum jesuíta conduzindo-os aocombate?
Era preciso ouvir as testemunhas. Desde a abertura da sessão, na Council House de Salem, foram ouvidos os que escaparam dos
massacres, que os arrendatários das colinas tinham recolhido, frequentemente feridos ou moribundos,e conduzido até a costa. O
primeiro fora um arrendatáriodesvairadoe balbuciante,ainda sob o efeito das terríveis desgraças que oatingiram. Não tinha visto nada,
nem franceses, nem jesuítas, nem selvagens,pois estava em viagem naquele dia. De sua aldeia e de sua casa reencontrara apenas cinzas e
ruínas enegrecidas, seus velhos pais trespassados por flechas e escalpelados, sua mulher,seus filhos e seus criados desaparecidos,
levados possivelmente como cativos lá para cima, dolado das regiões longínquas e inacessíveis do Saint-Laurent,onde os índios
batizados pelos franceses, juntandoaohorror de seu paganismoidólatra o de se paramentarem de cruzes e de terços papistas, os
manteriam escravos, e nunca mais os reveriam. Lágrimas escorriam pela face curtida do trabalhador,o que parecia agastar um pouco os
puritanos representantes de Salem, pois interpretavam-nas como um sinal de recusa das provações enviadas pela Divina Providência.
Além disso, todas essas pessoas vinham doAlto Connecticut, herdeiras dos dissidentes doMassachusetts que,periodicamente, se
declaravam contrários às leis primeiras da colônia, e partiam para fundar sua própria igreja nas margens das tentadoras praias do
grande rio a oeste. Mas, naturalmente,uma vez que os índios narrangasetts ou os abenakis, descendodo Norte, os ameaçavam, esses
libertários loucos, que achavam pesada a férula dos regentes, voltavam-se para o Massachusetts, cabendoaos habitantes de Boston e de
Salem organizar expedições punitivas, como fora preciso fazer em 1637 com os pequots, que exterminavam os colonos doConnecticut, e
mais recentemente,contra os narrangasetts. Richard Harper falava, agitadocomo um moinho, com os olhos fixos em Angélica, cuja
presença parecia insuflar-lhe forças para prosseguir até o fim. Fez o relato, daí em diante clássico de tanto ser repetido, do despertar da
família, numa manhã calma como as outras, do grupoinimigo que surgiu como um raio, devastandoa cabana isolada, saqueandoalguns
bens: armas, ferramentas,víveres, e raptandoos habitantes da casa que caíam em suas mãos para arrastá-los de camisola, descalços,
atrás de si. Havia quatroselvagens e dois franceses,afirmou. Atrás deles, os prisioneiros, dentre os quais ele mesmo, seu pai, sua mãe,
seus seis irmãos e irmãs, uma criada, andaram durante horas como uns danados. Os irmãos mais jovens, Benjamin e Benoni, dois bebês
gêmeos, de alguns meses de idade, foram criados na mamadeira,pois a mãe não pudera amamentá-los.
Na primeira parada,numa clareira, os índios lhes arrancaram a cabeça; “por piedade”,disseram eles, “por caridade!”, pois não podiam
fornecer-lhes leite durante toda essa dura viagem através da floresta e das montanhas rumoao Canadá. “Por caridade”,tentava explicar
num inglês precário, para acalmá-la, um dos fidalgos franceses à mãe que urrava,louca de dor..., mas ela nãoqueria escutar nada e
urrava cada vez mais. No fim, um dos abenakis quebrou-lhe ocrânio com seu tacape, pois seus gritos poderiam atrair no seu encalço os
arrendatários ingleses de Springway, que nãotardariam a perceber o rapto. Depois, retomaram sua marcha arrastandoas outras
crianças, o paiaterrorizado, a jovem terrificada. Ele, o mais velho, Richard, aproveitara-se da desordem e da balbúrdia causadas por esse
triplo assassinato para se lançar no mato ali perto. Ao ver a caravana desaparecer na outra extremidade da clareira sem que tivessem
notado seu desaparecimento, nãoesperara mais nada e, correndo, saltando, conseguira distanciar-se de seus raptores. Andara durante
vários dias e alcançara regiões habitadas.Confessava que, sob o aguilhão do terror, só pensava em fugir para o mais longe possível.
Naquele momento, censurava-se por haver abandonado assim, sem sepultura cristã e à sanha dos animais carniceiros, sua pobre mãe,
que revia constantemente em seus sonhos, jazendo, com o crânio despedaçado,juntoa seus dois bebes decapitados...
A essa altura da narração, Angélica compreendeu que nãopodia suportar mais e que precisava sair dali. Os rostos embaralhavam-se
diante dela, em contrastes brancos e negros, brancos dos colarinhos, faces e barbas,negros das roupas e dos móveis, numa penumbra
que a claridade dodia, dispensada pelas janelas com caixilhos com vidro pintado, mas conseguia atravessar. Emergindo doafresco em
claro-escuro, a barba pontuda e obrilho do diamante que se balançava na orelha esquerda de Sir Thomas Cranmer,o representante do
governador da Nova Inglaterra cujo sorriso picante mas amigável espreitava sua vertigem, e o perfilde pirata das Caraíbas, de fidalgo
espanhol, de grão-senhor da Aquitânia em resumo, de seu esposo, o Conde de Peyrac, atrás do qual,de pé,o grande servidor negro
Kuassi-Ba nãose distinguia senão pela brancura de ágata de seus olhos e o penachoque guarnecia seu turbante,reconduziam Angélica a
uma visão mais estáveldas coisas.
Reunindoem torno de si seu amplomanto, levantou-se e saiu, abençoandoa discrição dos costumes ingleses que permitiam a qualquer
pessoa deixar uma assembleia sem ter de explicar-se sem que ninguém comentasse o fato, pois indagar sobre os objetivos dessa
ausência seria arriscar lançar na confusão inquiridor e inquirido. Logo que chegou à rua, retirou o chapéu e o gorro. Seus cabelos
colavam-se-lhe nas têmporas pelo suor que a inundava.Andou tão rapidamente quantopossível até a casa da Sra. Cranmer,onde tinham
sido alojados. Seu mal-estar dissipou-se. Mas, quandoquis estender-se na cama do grande quartoque tinham posto a sua disposição,
sentiu uma dor lombar e teve a impressão, uma vez mais, de sufocar. Levantou-se então e se dirigiu para a janela. Pensava nessa nova
maternidade que desejara tanto.
CAPITULO II
Reflexões à janela sobre ama gravidez desejada
Por que desejeitanto isso? perguntava-se Angélica de Peyrac, a bela condessa francesa das orlas americanas, de pé diante da janela que
ela abrira,no primeiro andar da residência de Mrs. Ann Mary Cranmer,na cidade ativa e puritana de Salem, Estadodo Massachusetts,
Nova Inglaterra. Não estava ainda realmente inquieta, apenas um pouco sufocada. Seu olhar errava pelo horizonte embaciado, cor de
pérola, para o qualfugiam em vagas sucessivas as rochas pardas descobertas pela maré baixa,enquanto,como mil pequenos espelhos
esquecidos em seus ocos atapetados de sargaços, cintilava a água dos charcos que o mar deixava ao se retirar. Era uma hora quente,
quase meio-dia, no fim de um verão extenuante.Os ruídos doporto e dos estaleiros, à esquerda,se amorteciam. Mas Angélica, tomada de
uma súbita lassidão, não percebia realmente o que a cercava, ou não experimentava,ela, que habitualmente apreciava a contemplação
do oceano, senão seu aspecto um pouco angustiante, suscitado pela visão de espaços infinitos.
Acrescida aochoque e à decepção que lhe havia causado a audição desses tristes acontecimentos, uma preocupaçãopessoal acabava de
perturbar oestado de quietude e de felicidade permanente em que ela, de certa forma, se habituara a viver no último ano. Consciente de
que certos perigos estavam prestes a ameaçar o equilíbrio dessa felicidade e que certa decisão tomada por ela alguns meses antes a
tornaria responsávelpor isso, experimentava a necessidade de interrogar-se sobre o que a levava a empreender essa aventura que era
de fato — receava percebê-lonaquele momento — uma loucura! — Por que desejeitanto isso? Não teria, uma vez mais, se deixado
apanhar na armadilha pelos impulsos de sua natureza, que mordia a Vida como um fruto, sem se interrogar sobre o dia seguinte? “Louca
Angélica”, repreendeu-se.
Não teria sido um capricho de sua parte? Tudoia tão bem... tudoestava tão perfeito e sólido à volta deles, enfim! Que necessidade tivera
de exigir sabe lá que consagração a uma felicidade sem nuvens,a uma vitória que só se confirmava, quando,em plena saúde e cessando
de temer pelos seus,podia dali em diante usufruir sem apreensões todos os encantos da existência? Não tinha recebido da sorte, por
muito tempo adversa,todas as respostas e todas as recompensas? Não recebera da vida tudoo que uma mulher pode desejar? Um
esposo que adorava e pelo qualsabia ser apaixonadamente amada,dois filhos belos e encantadores que,nobrilho de sua primeira
juventude,eram um dos ornamentos da corte da França, na qualsua animação e facúndia faziam maravilhas!
Dixit a última carta de Florimond, o mais velho, trazida pelos primeiros navios da Europa. Pertodela, na América, restava-lhe uma filha
mais nova, a pequena Honorina,querida por todos, que ela se divertia vendocrescer, esquecendotodas as provações que
compartilharam, de combates, medo, solidão, nas quais ainda se censurava por pensar com muita frequência,pois estavam bem
distantes notempo. Não conhecera, ao lado de Joffrey de Peyrac, seu esposo, todas as vitórias, e não vira realizarem-se em menos de três
anos todos os milagres?
Entre outros, a prosperidade de seus estabelecimentos da América do Norte: Gouldsboro, nas margens do Atlântico, e Wapassu, no
coração das florestas do Maine,fundados nas piores dificuldades,mas que atualmente,graças à sua aliança com a Nova Inglaterra,
conheciam um rápido desenvolvimento. A paz reinava nessa espécie de mar interior a que chamavam baía Francesa, onde pululavam
representações de diversas nações e das quais o Conde de Peyrac se tornara guia, se não o mestre incontestável, estendendo-se sua
influência pacífica e ativa para o interior até as fronteiras do Kennebec,limite extremo de suas possessões.
Mais miraculoso ainda e determinandotudo, nãotinham obtido, ela e ele, o perdão — quase “uma rendiçãoem relação a eles — do
maior monarca do universo, Luís XIV, rei da França, e isso depois de um longo conflito em que os três, Joffrey,o vassalo vencido, ela, a
súdita rebelde,ele, o soberano implacável, se infligiram os piores golpes? Isso ocorrera contra qualquer esperança.Anotícia lhe fora
levada quandose encontravam em Quebec,hóspedes do Sr. Frontenac, governador da Nova França, que sustentara sua causa e esperara
com eles o veredicto do rei. Não continha nenhuma reserva.O rei da França, temido em todos os continentes, inclinava-se diante deles,
os réprobos, os exilados, esquecendo as ofensas, devolvendo-lhes títulos e riquezas, abrindo-lhes de novo as portas do reino, chegando
inclusive a esperar sua volta, deixando-os livres para determinar eles próprios o momento e as circunstâncias para isso.
Angélica, mulher satisfeita, mulher mimada, senhora de seu destino, que estava agora somente em suas mãos, protegida e defendida por
todos os lados, livre para viver feliz e sem tormentos onde e com quem ela escolhera, que necessidade tivera de exigir mais uma vez do
céu um presente,um benefício, um pequenomilagre a mais? Uma criança. Suspirou e sacudiu a cabeça. Você será sempre a mesma!
Levou a mãoaos olhos. A reverberação das poças de água,como luíses de ouro jogados aos punhados através da planície de sargaços
estendida à sua frente causava-lhe uma leve náusea.Viam-se algumas velas brancas bem distantes, balançando,como que incrustadas
nas próprias rochas, na bruma dourada. Ao pé da casa, havia uma praça de terra avermelhada e poeirenta onde transitavam alguns dos
ativos habitantes de Salem, vestidos em sua maioria com roupas escuras e cobertos por um alto chapéu preto com aros de prata ou de
aço na parte da frente,adotadopelos puritanos da Inglaterra por ocasião da Revolução de 1649,fomentada peloausteroOliver
Cromwell.
As mulheres, na maioria vestidas de azul cru, com toucas e grandes golas brancas,traíam por esse uniforme sua situação de “engajadas”,
isto é, de pessoas que nãotinham acabadode pagar sua passagem para o Novo Mundopor anos de serviço junto àqueles que as
comanditaram. O que nãoas impedia de ter o porte desenvolto e segurode mulheres que,pelo menos uma vez, tinham decidido,
aceitando atravessar o oceano, escolher sua própria servidão.
Toda essa multidão se deslocava diligentemente,como todo bom cidadãodo Massachusetts absorvido pelo objetivo a atingir e a tarefa a
cumprir, mas nãoa ponto de nãolançar, de passagem, um olhar curioso e interessado para a residência de Sir Thomas Cranmer,onde
sabia que os hóspedes de Gouldsboro tinham ficado, e ali divisar à janela aquela a quem chamavam,em quase toda parte, ao longo das
margens e até nos estabelecimentos fronteiriços, “a bela francesa”.
Pois, em Salem, como em todos os portos do mundoaonde os leva o mar, quer se queira ou não, quer se tema por sua alma ou se esteja
disposto a perdê-la,embasbacavam-se diante de todos os espécimes da humanidade,por vezes sedutoras, sempre inquietantes, mas com
os quais é contudo preciso tentar acomodar-se, se se quer comerciar.
A grande dama francesa nãoera uma desconhecida para a gente de Salem, e sabia-se muita coisa sobre ela, entre outras, a de que
salvara, do cutelo de escalpo dos índios ou do cativeiro no Canadá,um grupo de lavradores ingleses do Androscoggin, ao norte, noMaine.
Sabia-se também que ela era esposa de um fidalgo dadoa aventuras que,apesar de francês e provavelmente católico, mantinha
excelentes relações com o Massachusetts, a ponto de mandar construir muitos de seus navios nos estaleiros da costa.
Sua vinda trazia, pois, um acréscimo de atividades à cidade, e dissimulava-se, sob a justificativa virtuosa dos negócios, o prazer que se
tinha em observar suas equipagens,suas toaletes e seus costumes, naturalmente mais levianos e supostamente dissolutos, mas que se
desculpavam,pois eram franceses.
Entretanto, nesse dia, muitos homens, após lançar um olhar para a bela estrangeira de pé juntoà janela, desviavam, prontamente os
olhos e fingiam apertar os lábios com reprovação.
Não ficava bem,pensavam — e falariam sobre isso a suas mulheres,para instruí-las, e ao” Conselho, para adverti-lo — , que uma pessoa
do seu sexo, cuja maternidade próxima era tão aparente e, além disso, vestida com roupas por demais suntuosas para um estado que
exigia discrição e mesmo recato, se mantivesse assim à janela à vista de todos.
Realmente, era preciso ser uma papista desavergonhada,que nãorecebera nenhuma educaçãode pudor e de decência, para nãosó se
permitir uma coisa dessas, mas ainda não parecer experimentar qualquer vergonha!
Angélica, vendoos olhares voltarem-se para ela, acabou por suspeitar das reações de alguns. Sabendo que os puritanos eram muito
suspicazes nas questões carnais, sempre se esforçava por prevenir sua suscetibilidade reticente, mas havia amiúde alguns detalhes que
lhe escapavam.
Compreendendoque chocava os transeuntes servindodessa forma como espetáculo, Angélica retirou-se um pouco para o interior do
aposento. Tomada pouco antes por um atordoamento, quase uma sufocação, aproximara-se da janela para respirar um pouco. Agora se
sentia melhor. Muito melhor. Desnorteara-se, pois, até aquele dia,sentira-se em plena forma e não tivera de suportar nenhum dos
inconvenientes de seu “estado”,como dizem as pessoas pudicas.
E, no entanto,estava no sétimo mês de gravidez.
Convidada para a extravagante honraria de assistir ao Conselho dos edis de Salem, coisa que dispensaria perfeitamente,nãohesitara em
retribuí-la com o incomodo de vestir-se com um amplo manto, a fim de dissimular os sinais de sua próxima maternidade a esses
austeros e pudibundos calvinistas que,entretanto, serviam a um Cristo que havia recomendadoinsistentemente a seus discípulos:
Crescei e multiplicai-vos!
Mas, para os severos representantes docredo presbiteriano, era preciso fazê-lo com o máximo de discrição possível, e seria ainda
melhor se se pudesse fazê-lo por obra doEspírito Santo. Lembrando-se também de que São Paulo, de obediência farisaica, denunciara os
cabelos da mulher como um dos instrumentos da tentaçãocarnal, e que os puritanos estavam de acordo com ele sobre esse ponto,
Angélica colocara na cabeça um lenço de tafetá e um chapéu de abas largas, que lhe cobria as têmporas e lhe dera uma terrível dor de
cabeça.
Até ali, durante sua viagem,não sentira qualquer fadiga.Mas começava a sentir-se oprimida pelo pesadocalor úmido que reinava no
lugar, e não estava em condições de ouvir o que oconselho tinha para expor-lhes. Penseique fosse desmaiar. Imaginou aquela pobre
mãe inglesa, morta, com o crânio despedaçado,junto a seus pequenos gêmeos, que jaziam na relva juntoà sua cabeça cortada, como
bonecas quebradas... Tinha de recusar por todos os meios essa visão, senão ficaria de novo doente. No entanto, censurava-se por ter
abandonadoà sua sorte aquele pobre rapazque entrara,segurandoo chapéu redondoornado por uma pluma, e que a fixava como se ela
pudesse ressuscitar seus parentes.
O pior era que esses massacres, que sacudiam convulsivamente o Novo Mundopor todos os lados, tomavam a amplitude de fenómenos
irreprimíveis, pois o sangue chamava o sangue. Era melhor não pensar demais nisso por ora. Angélica olhou o pequenorelógio que
levava à cintura, sacudiu-o, depois, julgando-o parado,acertou-o com uma chave minúscula.
A manhã nãoia tão tarde quantoela julgava. Estava sozinha na casa, pelo menos era o que supunha, pois reinava um profundosilêncio,
como se lacaios e criados tivessem subitamente se afastado. Onde estavam? No mercado? No ofício?
Acostumada por seu instinto, aguçadopor uma vida de armadilhas e de perigos, a perceber rapidamente por sinais imperceptíveis certas
reações humanas bem dissimuladas, Angélica ficara intrigada desde o início pelo comportamento de sua anfitriã em Salem, Mrs. Ann
Mary Cranmer. Com efeito, esta deixava perceber,por sua expressão carrancuda,que ela não compreendia porque consideravam normal
que fosse ela a receber,toda vez que se apresentavam em Salem, hóspedes estrangeiros, como se os julgassem indignos de franquear as
soleiras das casas realmente ortodoxas, por sua fé puritana. Os credos religiosos suspeitos poderiam trazer-lhes os miasmas deletérios
do pecado... Angélica, tendo observadoa atitude da dama que,ao mesmo tempo que os acolhia honrosamente,lhes fazia cara feia,
obtivera de Joffrey uma explicação que lhe parecia correta.
Nascida Wexter, filha de Samuel, um dos mais piedosos e intransigentes fundadores da cidade,desposara, por amor, um anglicano
notório, o encanador e muito aristocrático Sir Thomas Cranmer.Como era costume, após o casamento, deveria ter deixado, para sempre,
mais ou menos banida,as margens de Salem e não mais existir senão para os seus e para os habitantes do Massachusetts,ainda que
reduzida ao estado de uma simples lembrança.Mas essa solução radical mostrara-se de difícil aplicação.
Primeiro, porque oreferido anglicano tinha um posto elevadona administração real. Depois, porque sabiam ser ele aparentado,por suas
origens, a esse Thomas Cranmer, arcebispode Cantuária, conselheiro de Henrique VIII que,nos primeiros tempos conturbados da
Reforma, protegera o grande pregador escocês, John Knox, o qual,como todos sabiam, organizara o protestantismo radical da Inglaterra,
de onde se originara o puritanismo, e, além disso, fora executadono reinadode Maria Tudor, a Católica, cognominada a Sangrenta.
Um sublime reconhecimento ordenava,portanto, que não se mostrasse por demais intolerante em relação a seu sobrinho-bisneto...
enfim, o honorávelSamuel Wexter devia ter receadoperder para sempre sua filha única e, até aquele instante,perfeita. O casal foi assim
aceito em Salem, e acostumaram-se com Sir Thomas Cranmer,suas rendas,seus brincos de pérola na orelha. Seguidamente abandonada
por ele, que nãocessava de navegar entre Boston, a Jamaica e Londres, a filha de SamuelWexter tornou-se mais rígida em sua posição e,
como para compensar uma loucura que a colocara à margem de uma sociedade que ela aspirava edificar, ainda mais rigorosa na
aplicação de seus deveres religiosos. Punição sumamente amarga: a facilidade com que lhe diziam, enviando-lhe possíveis sequazes de
Satã: “Você pode recebê-los!”
Angélica puxou uma poltrona com espaldar revestido de tapeçaria e sentou-se um pouco afastada da janela, mas suficientemente perto
para se beneficiar um pouco da brisa marinha.Salem, que quer dizer “paz” em hebraico, era uma pequena cidade estranha e
encantadora,com seu amontoado de telhados de ripas com empenas pontudas,com cumeeiras de chaminés de cascalhos cinzentos ou de
tijolos vermelhos, para os notáveis e os comerciantes ricos. A legislação ali em vigor era estritamente teocrática, e as instituições,
diretamente derivadas da Escritura Sagrada.
Mas ali floresciam os mais belos lilases do mundo. E, até o alto verão, seus cachos brancos e violeta roçavam os flancos sombrios das
casas revestidos de extrato de nogueira. Nos jardinzinhos, carregados de plantas medicinais e de hortaliças, que acompanhavam cada
moradia segundoa tradição estabelecida pelos primeiros imigrantes do Mayflower, viam-se luzir o amarantoe o verde-pálido das
abóboras e cabaças, culturas generosas, projetando até as ruas, como serpentes velosas, as gavinhas de seus caules de grandes flores
vermelhas visitadas pelas abelhas.
Agora que Angélica estava tranquilizada,julgava-se uma tola. Era inútil fazer-se naquele momento uma pergunta desse tipo: “Por que eu
quis uma criança?” Saber-se-ãoalgum dia as razões que despertam ou acordam nocoração de uma mulher essa grande necessidade vital
de maternidade? Elas são únicas e múltiplas, todas evidentes; no entanto, nenhuma delas é a verdadeira,pois não são, de modo algum,
razoáveis.
Angélica lembrava-se de ter começado a pensar nisso em Quebec,quandovia a pequena Ermelina de Mercourville precipitar-se ao seu
encontro estendendo-lhe os braços. Não seria bom saborear os prazeres de uma maternidade nova, já que nãopudera apreciá-los nas
maternidades precedentes? Reconstruir o ninhodestruído, sacudido por tantas tempestades?
Mas, principalmente, e foi isso que poucoa pouco passou a prevalecer em seu íntimo à medida que tudo se reconstruía em torno deles é
neles próprios, passara a desejar ter um filho dele.Dele, seu amor, seu amante, seu refúgioe seu tormento, dele,o único, o homem de sua
vida inteira, dele, Joffrey de Peyrac, com o qualestava casada havia quase vinte anos.
Ora, tendoalcançado, por uma luta inaudita,através das piores provações, dos caminhos mais tortuosos e imprevisíveis, mas também
por uma constância que frisava a obstinação e uma vontade que poderia com frequência ser julgada culpável, em razão dos perigos nos
quais ela se precipitara cegamente, tendopois atingido seu objetivo, a realização de todos os seus sonhos: o amor, a felicidade, a paz
junto àquele que tanto procurara,julgando-o morto, e do qualpor pouco nãoa separaram novamente as intrigas e os mal-entendidos,
como se o destino ciumento não aceitasse a perenidade de seu amor tãopoderoso, ela quisera concluir sua difícil reconquista,
marcando-a com um selo inapagável. Sonhara com um filho dele, como teria desejadoum novo amante para forjar esse elo que
encarnava para sempre um encontro excepcional. O que era a prova de que tudoera novo entre eles. Pois era preciso fazer-lhe justiça: a
ideia de uma loucura dessas não lhe teria ocorrido nos primeiros tempos de seu reencontro. Logo faria três anos que isso acontecera.
Quandovoltava a pensar nisso, suas lembranças lhe pareciam muito longínquas e irreais, e ela mal se reconhecia. Como eram pouco
caridosos um com o outro nessa época, censurando-se os golpes que a vida lhes infligira, esquecendoque tinham sidoambos vítimas e
que nem isso os impedira jamais de se unirem mais estreitamente. Fora preciso aprendê-lo, e, nessa ocasião, ela se espantava com o que
tinham atravessado juntos.
Como eram estranhos um ao outro, prontos a se rejeitarem, quase a se odiarem e, no entanto, sempre tão próximos, fascinados um pelo
outro! Que milagre, quandopensava nisso! Se não tivesse havido essa irresistível atração de seus corpos, que os aprisionava a cada
olhar, os unia com encantamentos,sonhos e apetites, desdenhandoqualquer outra consideração,teriam podidosuperar tantos
obstáculos, tanto mistério entre eles, tantas decepções e amarguras nascidas de tantas desgraças?
Bênção desse grande mistério dos sentidos que os tragava involuntariamente,os jogava nos braços um do outro, afogados em
esquecimento, delícias, entregando-se loucamente ao caudalcego que apaga o mundo. Contra essa corrente de paixões que os arrastava
num turbilhãode alegrias e de surpresas sem nome, o Diabonão pudera vencer a partida, apesar de assestar contra eles todas as suas
baterias. Pois o Amor é o principal inimigo do grande Destruidor. Entretanto,só depois da experiência de Quebec,cidade francesa do
alto norte da América, para onde tinham ido a fim de negociar uma reconciliação possível com o rei da França e seus compatriotas, e
onde atravessaram, em família, um inverno insólito, mundanoe movimentado, foi que ela se sentira diferente, invadida por um súbito
desejo: ter mais um filho dele,um novo filho para uma nova vida!
Evocou essa volta. Deixavam a pequena capitalda Nova França, enfim liberta de seus gelos. Sua frota descia o rio Saint-Laurent,
atravessava o golfo domesmo nome e Angélica, a bordodo navio-almirante, o Gouldsboro, olhando peloportaló, com Honorina,
rebanhos de marsuínos-brancos que brincavam entre as ondas, conhecera momentos de júbilo intenso e de certeza, em que não mais
intervinham qualquer sombra,qualquer inquietação.
Os problemas estavam resolvidos, as batalhas estavam ganhas,se nãotodas as batalhas,pelo menos a que havia entre eles. Durante esse
inverno em Quebec,não souberam que estavam ligados para sempre por invisíveis e sutis cadeias que nada conseguiria quebrar?
Tinham descoberto que,por mais selvagemente independentes que fossem um em relação ao outro, não podiam realmente viver,
respirar, pensar,um sem o outro. Certamente,Joffrey era um homem misterioso, imprevisível, inalienável, e ela também,embora se
julgasse, com a melhor boa fé e como o faz a maior parte das mulheres, muito transparente em seu comportamento e em suas intenções.
Mas não se teriam amado tanto se fossem mais fáceis e submissos às leis comuns.
Então, enfim, com o espírito e o coração leves, começara a sonhar com esse novo filho e tivera vontade de oferecê-lo a si mesma, sem
nenhuma razãoa nãoser a felicidade! Uma nova criança para uma nova vida. Sentia-se mais jovem e mais alegre do que jamais o fora.A
proteção de um homem que a defendia e a livrava de todas as responsabilidades demasiado constrangedoras ou decisivas, a batalha
ganha sobre o ostracismo do rei, deixavam-na livre de qualquer preocupaçãoe cuidado, e noinício isso era um tanto incômodo. Dava-se
conta de que tivera até entãouma vida séria demais. Pois, excetuando-se os poucos meses do sonho encantadovivido em Toulouse como
uma pausa em seu destino atormentado,o que fora sua vida desde os seus vinte anos, quandose achara lançada na mais profunda
miséria e na solidão?
Uma vida a lutar, a morder, a arranhar,a se defender,a se desculpar,por seus filhos, seu pão, sua honra... Claro, não conservava senão
más lembranças.Esses anos de combate nãohaviam deixadode ter diversões e distrações marcadas com frequência pelohumor, e ela
soubera, sendopor natureza espontânea,rir, nessa oportunidade,da tolice da existência e rejubilar-se com os triunfos adquiridos para
saborear os momentos agradáveis roubados a essa cavalgada de sobrevivência. Não importa! Nesse navio, seu navio, que os levava, como
que fora do tempo, para um futuroque ela podia pressentir finalmente apaziguado e feliz, pareceu-lhe que chegara omomento de depor
as armas e mudar tudo.Ser uma outra mulher. Aquela que ainda nãopudera se permitir ser. Recomeçar tudo, como há vinte anos. E o
que haveria de mais novo do que uma criança? Decidira: Sim, era isso.
Mas, como era livre, graças a seus “segredos” de curandeira,para governar os misteriosos acasos da concepção, continuou a esperar.
Esperou um pouco. A vida ensinara-lhe,de qualquer forma,a contemporizar, a moderar a presteza de seus impulsos. Não se tratava mais
de estratégia militar, na qualse excedera na época de sua revolta contra o rei, e que exige um golpe de vista rápidoe sem falha e a ação
imediata, mas de alicerces da paz, tarefa à qual,muito frequentemente,as nações se aplicam com menos talento e zelo que na guerra.
Queria instalar-se nessa nova era feliz que os augúrios anunciavam,assegurar-se de que nãoera um logro, habituar-se ao estadode
trégua e à existência cotidiana junto dele,seu amor de sempre,seu mestre e seu amigo. Era-lhe necessário mais ainda saborear a certeza
desse entendimentoamoroso que ela sentia queimar entre eles como uma chama ardente,suave e serena, que nada doravante poderia
fazer vacilar. Esperou Wapassu.
E como fosse costume de Joffrey de Peyrac ser o mais louco dos amantes,o mais intuitivo e o mais pródigo, foi ele que tornou a falar
sobre o novo filho com o qualsabia que ela sonhava e que selaria seu Amor. Tinha também ele o instinto de que seu destino, já tão
movimentado, se encaminhava,não para um fim, mas para um começo?
Enquantoa neve continuava a amortalhar Wapassu,nessa época de inverno em que, nos fortes de madeira dos grandes espaços
americanos, quase se esquecia da existência de outros seres humanos na terra, eles conceberam o filho do Amor.
QuandoAngélica descobriu estar grávida, ficou extasiada, estupefata,embora devesse saber que as sábias misturas de medicinas, cuja
supressãoou administração sabia tão bem dosar, conforme “segredos” que lhe ensinara desde a infância a feiticeira Melusina, deviam
naturalmente levá-la aos resultados desejados. Malpodia acreditar!
Em abril, a criança se mexeu dentrodela e, dessa vez também, ela experimentou uma surpresa inaudita, deslumbrante. Era,pois, tão
simples obter docéu aquilocom que sonhava: um filho. Um filho para a felicidade... Sentia-se tão feliz, num estado de euforia tão natural,
que,à parte esses estremeções pelos quais “ele” revelou sua presença, chegava por vezes a pensar que nãoestava grávida. Todos os
inconvenientes que acompanham oinício da gravidez lhe foram poupados. Conservou-se por muito tempomagra. Não experimentando
nenhuma fadiga e mesmo, parecia-lhe, sentindo-se mais bem-disposta e mais vigorosa que em tempos normais, não teve de mudar nada
em sua ativa existência, nem nos projetos de viagens, que deviam se reiniciar na primavera rumo a praias onde se retomaria contato, não
só com os habitantes do porto de Gouldsboro, mas ainda com o resto do mundo.Os navios levavam para ali os correios da Europa e,
conforme as notícias provenientes da baía Francesa, era raroque Joffrey de Peyrac nãotivesse de elaborar um plano completo de
navegação. O verão era, com efeito, um período de intensa atividade naval.
Naquele ano, o conde teve de ir a Nova York, viagem que lhe permitiria ao mesmo tempovisitar, na ida ou na volta, os mais importantes
estabelecimentos da Nova Inglaterra, escalonados ao longo de toda a costa, de Nova York a Portland, passandopor Boston, Salem e
Portsmouth, onde tinha amigos e interesses.
Angélica quis acompanhá-lo. Calando-se sobre a promessa secreta que fizera a si mesma de nunca mais deixar Joffrey partir para onde
quer que fosse sem ela, adiantou-se para convencer seu marido de que precisava a qualquer preçoencontrar, lá pelos lados de Casco, seu
amigo, o medecin's man inglês, George Shapleigh,ao qualtinha todo tipo de pergunta a fazer e junto ao qualdevia se prover de remédios,
especialmente das lascas de raiz de mandrágora,indispensáveis para o fabrico da “esponja soporífera”, cuja provisão estava esgotada.De
qualquer maneira,arguiu,queria ver Shapleigh antes doparto, pois ele possuía, no seu covil da ponta Maquoit, livros de medicina, os
mais eruditos domundo, e que ela queria consultar.
EnquantooArc-en-Ciel, altivo navio de mais de trezentas toneladas,recentemente saído do estaleiro de Salem, singrava rumo aosul,
dirigindo-se diretamente para a embocadura do Hudson, foram enviadas mensagens a Shapleigh,combinandoum encontroem Salem
para o início de setembro. Como o nascimento da criança estava previsto para o fim de outubro, o Arc-en-Ciel e a pequena frota de
Peyracteriam tempo de sobra para voltar a Gouldsboro, onde deveria ocorrer o parto. A seguir, dependeria da estaçãoe da chegada mais
ou menos precoce dos primeiros frios para que o recém-nascido — principezinho ou princesinha? — pudesse empreender seu primeiro
périplo neste mundo, rumoàs nascentes do-Kennebec,para ali atingir esse longínquo feudode Wapassu,onde passariam o inverno, o
que Angélica esperava muito. Apesar de todo o prazer que sempre sentia em reencontrar seus amigos de Gouldsboro, preferia sua vida
retirada nas regiões afastadas àquela vida nas margens.
E atualmente,mais doque nunca,fazia-lhe falta o ar puroe vivificante doMaine. O calor úmido das orlas, sufocante quandose
distanciava do mar,a oprimia. Tinha dificuldade para retomar o fôlego por alguns instantes. Um medohorrível tomou conta dela. Pouco
antes exaltada, vagandonas nuvens a ponto de o presente e o futurolhe aparecerem revestidos das cores mais brilhantes, uma brusca
recordação dos receios que a haviam aflorado derrubava seu otimismo, como uma barca virada por um vagalhão. O medo tornava-se
pânico. Angélica, nesse instante,sentia-se fraca e tocada pela grande apreensãodas mães cuja carne está ligada a uma carne frágil.
Responsável por essa criança, sentia-se também responsável pela desgraça que poderia atingi-la e que,talvez, já pesasse sobre ela, e
censurava-se por sua impotência em afastá-la doperigo. Pois o filho da felicidade estava ameaçado. Essa dor que sentira no fundode si
mesma seria o anúncio de um perigo que,ao ser arrancado,muito mirrado ainda, dorefúgio das entranhas maternas,o condenaria? Era
demasiadocedo para que ele nascesse. Faltava ainda um mês inteiro...
Mas Angélica tinha ainda uma outra razão grave para recear pela sobrevivência desse filho tão desejado, tão sonhadoe tão amado
antecipadamente: os perigos de um parto prematuro,pois, havia alguns dias, ela estava quase certa de que eles eram dois.
CAPÍTULO III
Um pressentimento: serão gêmeos?
De que outro modo interpretar essa sensação de agitação que começara a lhe parecer excessiva e a passagem, bem perceptívelsob sua
mão, quase visível sob a pele, de duas pequenas cabeças redondas?
“QuandooCéu se põe a cumulá-la!...”, dissera a si mesma, inicialmente surpresa,entre incrédula e perplexa.E prestes a explodir de riso,
na verdade encantada, dominara-se, dizendo-se que não havia motivo para rir e não sabendorealmente o que pensar.
O curso de sua vida, bem centrada em perspectivas razoáveis, não iria subitamente tomar proporções insólitas? Gêmeos!... Decidira
esperar para falar disso aos que a rodeavam e mesmo a seu marido. Mesmo porque, a frota de Joffrey de Peyraclançava âncora em
Salem, que nãoestava muito longe de Gouldsboro, e, nocais, algumas personalidades do estabelecimento vindas a negócios se
apresentavam para os saudar.Ali estava o Sr. Manigault, importante armador que comerciava até nas Antilhas, o Sr. Mercelot, papeleiro
rochelês, encarregadode estabelecer moinhos nas colônias inglesas, e sua filha Bertille, que lhe servia de secretária. Começou-se por
trocar novidades sobre todas as famílias. Bertille Mercelot, a egoísta filha única dopapeleiro, olhava Angélica com um sorriso irónico e
satisfeito. Não seria ela, parecia dizer, que deixaria seu belo corpo deformar-se por uma maternidade.
Depois, os notáveis de Salem aproximaram-se, de fisionomia carregada — agora sabiam por quê — , a fim de convidá-los para o famoso
Conselho, já na manhã seguinte,e Angélica, fazendoface a suas obrigações, resignava-se a nãoperceber George Shapleigh na multidão,
ao mesmo tempoque pensava ser ele a única pessoa que teria desejado realmente encontrar à chegada.Ele teria dirimido suas dúvidas
sobre o possível nascimento de gêmeos e a teria tranquilizado. Tinha confiança, não apenas em sua ciência médica, mas também em seus
conhecimentos de velho mágico trocista. Ele nãoestava, portanto, presente,e era preciso sorrir para todos, instalar-se em casa de uma
senhora inglesa de lábios apertados, sofrer as horas de insónia de uma noite de calor acachapante,dirigir-se na manhã seguinte ao tal
Conselho.
Mobilizando toda a sua energia para não deixar de comparecer à reunião, Angélica não encontrara forças para se interrogar ainda mais
sobre o enigma do tesouro que carregava em si — uma ou duas crianças? — nem para falar disso a Joffrey de Peyrac, que naturalmente
era solicitado por todos os lados. Furtivamente, pousara por instantes sobre ela aquele olhar sombrio, cheio de fogo, que talvez
adivinhasse nela a sombra de uma preocupação.
Angélica fazia questãode não deixar que os dissabores ou fraquezas de seu estadointerferissem nobom andamentode seu périplo e nos
imperativos das escalas. Não tinha temperamentopara sofrer com isso. Ademais, pertencia a um século em que as mulheres faziam
pouco das incomodidades de uma gravidez, sendoesse estadoconsiderado, por educação, mais naturalcomo constante doque o
contrário. As mulheres da sociedade, menos ainda que as camponesas, nãotinham tendência a se mimar em tais circunstâncias, e, em
Versalhes, as amantes do soberanoapresentavam-se,em trajes palacianos, na passagem do monarca, menos de uma hora após ter posto
no mundo,numa antecâmara qualquer,por trás de um biombo, um pequenobastardoreal.
Era por isso que Angélica julgava seu desfalecimento matinal inexplicável. Levantou-se para dirigir-se à mesa sobre a qualestava
colocada sua caixinha de viagem, contendopentes, escovas, espelho, joias e bugigangas de primeira necessidade,caixas de unguentos ou
de maquilagem. Pegou um pequenofrascoe um vidro e encaminhou-se para o patamar,onde havia uma talha de apartamentocom um
reservatório e uma bacia de louça azul e branca ornamentada,talvez de Delft. Deixou escorrer a água da torneira de estanho para dentro
do vidro, mais uma vez refletindo que esses puritanos, que pareciam desdenhar tantoos encantos da vida, tinham a arte de rodear-se de
belos móveis e de objetos refinados, cuja proximidade compensava agradavelmente a severidade de costumes e de palavras que,por
outro lado, ostentavam.
Angélica, que apreciava o encantocaracterístico de cada casa, apreciava aquela,habitada na penumbra por fulgores de madeira bem
encerada,de cobres bem polidos, de cristais ou de cerâmicas impecáveis. A colcha sobre a cama era de renda. Angélica engoliu seu
remédio. Era uma miscelânea de plantas que ela própria preparava e cuja eficácia conhecia. Já se sentia melhor, e o pesadoodor de
maresia lá de fora, misturadoao do piche derretido que vinha das docas e ao dos camarões fritos, que se intensificava na hora doalmoço,
parou de incomodá-la.
— Senhora!Senhora!Uma voz a chamava do ladode fora. Sorriu, voltando-se. para a janela. Kuassi-Ba, juntoà casa, erguia para ela seu
rosto negro. — Meu amo mandou-me.Ele está preocupado. — Diga-lhe que fique tranquilo.Eu estou bem. Kuassi-Ba representava a
atenção de Joffrey sobre ela. Imutável e fiel guardião, mais amigo doque servidor, depois de tantos anos ao lado doconde, atento ao
menor sinale adivinhandoas mínimas mudanças de humor naquele com quem partilhara os trabalhos, as viagens, as desgraças, os
perigos, e até a servidão nas galeras, ele era para Angélica como que a encarnação de uma solicitude que ela sentia jamais se desmentir.
Muitas vezes, ele surgia diante dela, transmitindo uma mensagem ou informando-se sobre seus desejos, esperava na soleira de uma
porta para acompanhá-la ou então se apresentava carregandouma pequena salva de prata, na qualfumegava uma xícara de café turco,
no exatomomento em que ela daria sua bolsa e sua vida para beber uma,pois — e nisso é que havia uma certa magia naquiloque os unia
aos três, ela, Joffrey e ele, Kuassi-Ba — era sempre com conhecimento de causa que ele aparecia.
Mais uma vez, Joffrey e seu servidor não deviam ter trocado senãoum olhar para que o grande negrose esgueirasse como uma sombra
para fora da sala do Conselho. Sua presença familiar, benevolente e devotada de corpo e alma, mesclada ademais a uma indulgência e a
uma admiração sem limites por tudoo que ela dizia ou fazia, reconfortou Angélica, e ela quase se surpreendeu por ter estadoabatida
instantes antes.— Deve o amo despedir os regentes e vir ao seu encontro? — informou-se ele. — Não, Kuassi-Ba, os assuntos que esses
senhores precisam debater são muito graves. Eu esperarei pacientemente.Transmita-lhes minhas desculpas. Faça com que
compreendam,o que, eu acho, já compreenderam muitobem, que,tendoessas tristes notícias me abaladoprofundamente,retirei-me a
fim de meditar melhor sobre os meios de ajudá-los.
— Bem! Bem! — disse Kuassi-Ba, com um gesto de adeus e de bênção. Afastou-se, escandindo, sobre os altos tacões de seus sapatos de
fivelas, um passinhode dança.
O grave Kuassi-Ba, que se presumia ser um homem de idade,manifestava uma exuberância nova, desde que soubera da chegada entre
eles de um “pequenopríncipe” ou de uma “pequena princesa”.Comoficaria se viesse a saber que talvez fossem dois!... Os pulos de alegria
não combinariam com seus cabelos brancos. “Mesmo querendosatisfazer todos os votos de Kuassi-Ba”, pensou,tornandoa sentar-se na
poltrona, não posso deixar de recear essa perspectiva inesperada.Tentou imaginar dois menininhos de olhos negros e cabelos espessos
que se pareceriam com Florimond, ou nãoseria mais engraçadoe mais encantador duas menininhas,também morenas, de olhar vivo e
cálido? Não conseguia emprestar-lhes sua loirice ou seus olhos claros, pois sonhara com “ofilho de Joffrey” e só conseguia imaginá-lo à
sua imagem.
Mas dois! O que aumentava sua perplexidade era lembrar-se da prediçãoda adivinha Mauvoisin, a quem jamais levara a sério e que
estivera ausente de suas lembranças durante inúmeros anos. Isso ocorrera em Paris, numa época em que,sozinha e numa situação
precária, trabalhava duramente para ganhar seu pãoe o de seus filhos pequenos,Florimond e Cantor.Com duas amigas, que estavam
como ela em dificuldades,e curiosas por saber se o futurolhes seria mais clemente do que o presente, fora consultar Catarina Mauvoisin,
que chamavam também La Voisin, em seu antrodo Faubourg du Temple, frequentado,desde então,por toda a Paris.
A feiticeira estava naquele dia bêbada comouma cabra.Vestida com seu mantobordadocom abelhas de ouro, ela descera titubeandode
seu trono e, encaminhando-se para as três belas jovens diante dela, dissera a cada uma, após olhar a palma de suas mãos: “O reia
amará”,acrescentandopara a mais modesta e deserdada: E ele até a desposará!, o que deixara furiosa a terceira participante, que estava
certa de ter o destino mais glorioso dentre elas. Angélica ria ainda ao rever a cena.O que a perturbava é que,dirigindo-se de novo a ela,
com o dedo em riste, a bêbada declarará: “Você terá seis filhos”. Essa predição, enunciada com uma voz pastosa, parecera-lhe na época a
coisa mais ridícula e incrível, e procurara esquecê-la logo.
Ora, com a passagem dos anos, nãoestava se encaminhandolentamente para a realização das predições da beberrona? Três jovens
mulheres soberbas, três poitevines, ligadas por amizade por sua origem provinciana, estavam naquele dia diante da feiticeira Mauvoisin,
em Paris: Atenaís de Montespan,nascida Rochechouart, Angélica de Peyrac,nascida Sancé de Monteloup, e Francisca Scarron, nascida
D'Aubigné.
Ora, naquele momento, uns vinte anos mais tarde, a bela Montespan triunfava em Versalhes, tornara-se a mais amada e a mais brilhante
das amantes de Luís XTV, a obscura Francisca Scarron, cujos vestidos remendados iam longe, acabara de ser nomeada por ele marquesa
de Maintenon, e Angélica, que se recusara aomonarca, nãose preparava,em sua longínqua América, a pôr dentroem breve no mundo
duas crianças, o que elevaria a seis o númerodos que concebera? “Seis! E talvez logo. Não”, disse a si mesma, nervosa só de pensá-lo.
“Logo, não! Seria desastroso para essas pequenas vidas! Seja como for, está fora de cogitação fazer o partoem Salem. Tenhode estar em
Gouldsboro.” Por nada desse mundo, queria pôr seu filho — ou filhos — no mundonuma colônia da Nova Inglaterra; e os lilases de
Salem, seus belos olmos em harmoniosos ramalhetes, nãocompensavam para ela a rígida atmosfera que faziam reinar em sua cidade
essas terríveis pessoas de bem, uma cidade onde uma mulher grávida nãopodia respirar à janela sem que a apontassem com o dedo.
Olhou para o horizonte, sonhou em embarcar, singrar rumo a Portland, onde talvez encontrasse Shapleigh,rumo a Gouldsboro, onde sua
amiga Abigail a cercaria de seus cuidados. E lá, estariam “em casa”. Uma sombra repentina se propagou,penetrandocomo uma onda
tenebrosa no aposento, parecendo engolir os móveis e tapeçarias.
Um concerto de gritos estridentes se amplificou. Era uma revoada de pássaros, como ocorria a todo instante, em imensos lençóis que
transpunham a própria cidade, sobre as margens de um continente ainda quase inviolado. Compreendia-se entãoque o ser humano
tinha ali bem pouca importância, diante dopululamentoanimal, e que nãoeram essas poucas cidades e aldeias aqui e ali que faziam
recuar infinitamente a floresta soberana.
Angélica por pouco não soltou um grito. O eco de uma voz odiosa sussurrava de repente em seus ouvidos: “Aprendia odiar o mar porque
você o amava, e também aos pássaros, porque os achava belos, assim como seu extraordinário voo, quandopassavam aos milhares em
nuvens que obscureciam o céu!...” A Diaba!... Só um ser diabólico podia encontrar tais inflexões, de memória tão recente!
Angélica defendia-se por vezes inutilmente, mas conservava o obscuro pressentimentode que a Diaba — apesar de morta e enterrada —
não dissera sua última palavra. Quandose odeia com tal força, não se pode prosseguir até no além seus projetos de vingança? Ela fora
tão hábil, aquela mulher enviada pelo jesuíta para destruí-los!
A luz voltou bruscamente.Os pássaros abatiam-se lá longe em bruscos rastilhos de neve,cobrindo as rochas. Seus gritos diminuíam, e
ouviam-se como eco os dos lobos-marinhos, que passavam em bandos ao largo. O mar se elevava.
Angélica arrependia-se de ter dito a Kuassi-Ba que tudoestava bem e que teria paciência. Não podendoachar um serviçal de Mrs.
Cranmer,perguntou-se onde estariam os seus... E onde estava a jovem Severina Berne, que trouxera para fazê-la ver um mundomenos
rude e mais próximo, daíem diante, da civilização europeia do que seu estabelecimentode pioneiros de Gouldsboro? A gentilSeverina,
de dezesseis anos, bem que merecia passear por uma cidade animada como Nova York, e mesmo Boston e Salem,, depois de ter labutado
corajosamente, desde os três anos, numa terra selvagem onde nãoexistia, quandoalidesembarcara com sua família vindo de La
Rochelle, senão um forte de madeira e alguns casebres. Durante esse périploao longo das costas da Nova Inglaterra,Severina fora para
Angélica uma companhia feminina agradávele que a distraía. Elas restabeleceram seu contato, reatandoos laços de afeição quase
familiar que as uniam desde que Angélica vivera em casa dos Berne, nos tempos de La Rochelle.
Ela também cuidava de Honorina, no barcoe nas escadas. Hesitaram em trazer sua filhinha,que talvez ficasse melhor se calmamente
instalada em terra, cercada pelos melhores cuidados em Wapassu ou em Gouldsboro, como o haviam feito durante algumas curtas
viagens de verão.
Mas, dessa vez, Honorina manifestara uma certa inquietaçãopor ver Angélica afastar-se “em companhia” dofuturoirmãozinho ou
irmãzinha. Foi pelo menos assim que Joffrey de Peyracinterpretou as reflexões que ela proferiu várias vezes à socapa. Honorina dizia
algumas vezes tudo o que pensava sobre certos pontos. Mas não dizia tudo. Era preciso estar atento. Aceitou a amizade de Severina e
rejubilou-se com a viagem. Naquela manhã,deviam ter ido passear juntas,pois havia mil coisas a ver no porto e na cidade, com os
entrepostos, armazéns e lojas abarrotados de mercadorias.
Angélica julgou ouvir suas vozes e, inclinando-se novamente à janela, avistou com efeitoa adolescente, que dobrava a esquina,dandoa
mão à criança. Ambas estavam acompanhadas por um rapaz alto, vestido de roupa escura, como os puritanos do lugar, mas calçando
botas e coberto por um chapéu de abas largas ornadopor uma pluma, que nãodeixava de ter certa elegância. Severina e ele palestravam
com animação e, foi o que pareceu a Angélica, em francês. O que,em todo caso, não era comum em Salem.
CAPITULO IV
Natanael de Rambourg — Almoço no Arc-en-Ciel— O relatório de John Knox Matther — Noite de lua cheia entre puritanos
A porta de baixoestalou, e Severina chamou: — Dame Angélica! Avisaram-me que a senhora tinha voltado para casa de Lady Cranmer.
Trago-lhe um francês que diz ser de sua província e deseja conhecê-la. Surpresa,Angélica voltou para o patamar.O vestíbulo estava
escuro, e ela nãodistinguiu muito bem os traços do recém-chegado.O rapaztirara o chapéu e erguia para ela um longo rosto anguloso e
pálido, a que nãoconseguia dar um nome, mas que lhe inspirava, no entanto,uma vaga reminiscência. Ao vê-la, soltou uma exclamação:
— Oh!Madame du Plessis-Bellière, então é a senhora mesma! Eu não ousava acreditar nisso, apesar de todas as informações que recolhi
por aí e das comprovações que me confirmavam sua vinda para a América. Galgou com suas longas pernas as escadas, pulandoos
degraus de dois em dois, e, ajoelhando-se diante dela,beijou-lhe a mão com fervor.
Angélica continuava perplexa.Quem poderia ser esse jovem que a saudava pelonome que ela usava outrora em Versalhes, quando
ocupava um lugar entre as grandes damas da corte? Ele se ergueu.Grande, magro e desengonçado, era uma cabeça mais alto que ela. —
Não me reconheceu? Sou Natanael de Hamburg.E, como ela ainda hesitasse: — Nossas terras eram vizinhas das suas do Plessis, no
Poitou. Toda a minha infância, brinqueie fiz mil estripulias com seu filho Florimond, e foi mesmo com ele que cometi a loucura de fugir
para a América. — Oh! Já me lembro! — exclamou. — Que surpresa,minha pobre criança!
Os nomes, as palavras, acabavam de ligar num raio algumas imagens antigas para atingir o eco de um duplo galope distanciando-se
através das folhagens do parque de Plessis, e que ela ouvira no seio de uma noite aterradora.Quase cambaleou, depois se recompôs.
— Natanael!Mas claro! estou reconhecendo você!... Sente-se,então. Retomava bruscamente o tratamentofamiliar que empregava
outrora para com o pálido garotinho, já “comprido como um dia sem pão”,dizia Bárbara,e que ela sempre vira arrastar-se atrás de seus
dois rebentos, Florimond e Cantor, quandopermaneciam noPlessis. Escolta com a qualpor vezes fingiam estar aborrecidos, expulsando-
a, rejeitando-a, fazendo-a sofrer mil vexames,reintegrando-a em seguida em suas boas graças, quandose tratava de fomentar algumas
explicações guerreiras ou alguns complôs contra as “pessoas adultas”.
O domínio de Rambourg justapunha-se,com efeito, às terras doPlessis. Pertencia a uma família de nobreza bem antiga que aderira à
Reforma, desde os primeiros sermões de Calvino. Huguenotes havia três gerações com poucos recursos financeiros, prolíficos —
Natanaelera o primogénito de oito ou dez filhos — religiosos fervorosos, tinham tudo para atrair sobre si a desgraça,a perseguiçãoe a
tragédia. Naquele último verão que passara noPlessis, Florimond e Natanael encontravam-se com frequência,conspirando mais doque
nunca.— Ele era tão tagarela, o Florimond — disse o rapaz, rindo — , tão imaginativo e tão convincente, que eu o segui!
Angélica instalara-se novamente na poltrona de espaldar alto. Precisava de um instante de repouso para acostumar-se à notícia.
— Minha querida — disse ela, dirigindo-se a Severina, que se preocupava por vê-la assim — , quer preparar-me uma tisana de passiflora,
e trazê-la numa xícara bem quente? Tome, pega um saquinhoem minha bolsa de medicamentos.
O visitante, dobrandosuas pernas compridas, sentara-se num “quadrado” de tapeçaria,espécie de tamborete de crina que espalhavam
pelas casas. Angélica não podia acreditar que o estivesse vendoali.
Era um espectro!... Mais que isso! Um sobrevivente. Florimond, depois de ser reencontrado, nunca dissera uma palavra sobre isso e,
quandoàs vezes pensava a esse respeito, Angélica se prometia interrogar o filho acerca de seu companheiro de viagem. Depois, esquecia,
guardandoa impressão confusa de que os dois jovens aventureiros tinham se separado antes mesmo de embarcar. Ora,ele estava na
América. O que lhe havia acontecido nesses últimos anos, além de ter crescido desmesuradamente?
Observando-o, Angélica disse a si mesma que,ainda assim, ele era mais bonito que seu pai, o pobre Isaacde Rambourg,ele também,
magro e comprido, mas dotadode um fôlego prodigioso e que morrera soando desesperadamente a corneta, noalto de seu torreão,
reclamandoum socorro impossível, para ele, huguenote,abandonado,nocentro mesmo de sua província, à crueldade dos dragões do rei,
“os missionários de botas”.
Ela sempre ouvira os sinistros apelos docorno de caça planandosobre a floresta, enquantoas primeiras chamas, incendiando
Rambourg, jorravam pelas janelas docastelo. Atormentada, notou que o rapaznão parecia a par do que acontecera com os seus. Falava
deles no presente.
Angélica sentia-se incapaz de anunciar-lhe tão bruscamente que ele perdera toda a sua família e de evocar para ele um outro massacre,
esse perpetradonoVelho Continente,depois da narrativa dos do Novo Continente que tivera de ouvir aquela manhã na assembleia dos
ministros presbiterianos.
E eis que,à sua simples evocação, a inquietante dor, surda e difusa, que acreditara sentir nos rins, se manifestava novamente. Suas
preocupações mudavam de objeto; entretanto,as lembranças voltavam às margens de Salem, varridas por um ventolouco, pela espuma
do mar, por pássaros ruidosos, tão longe dobosquezinho espessoe cerrado, dos campos estreitos cercados por caminhos vazios do
Poitou, na França, onde se desenrolaram e se desenrolariam ainda as tragédias ocultas da perseguição. Um oceano estava entre eles.
— É verdade que,naquele verão,estávamos muito aborrecidos noPlessis, Florimond e eu — dizia Natanael de Rambourg. — Lembra-se,
senhora? Havia a soldadesca em toda parte,e até em sua casa, que nãoera, contudo, uma reformada.E esse... como é que se chamava,
Montadour, que os comandava e se permitia mandar em todo mundona região, católicos e protestantes, nobres e camponeses, que
personagem horrível! Que época horrível!
Severina voltava trazendo uma tigela fumegante numa pequena bandeja de prata.Lançou um olhar de raiva para o intruso, agastando-se
agora com sua presença, pois parecia que fatigava Angélica, cuja alteração de fisionomia ela notava. Ficara encantada por ser abordada
por ele nas ruas de Salem. Um jovem francês de boa linhagem, e huguenote como ela, nãoera coisa tão frequente.Mas agora que via a
fisionomia tensa de Angélica, adivinhava,em sua delicadeza sombria, que essa visita era importuna,e seu único pensamentoela pô-lo
para fora.
— Beba isso, senhora — disse com um tom peremptório — , essa bebida lhe fará bem com esse calor. A senhora diz sempre que as
bebidas quentes matam mais a sede que as frias. E, depois, deveria deitar-se um pouco e repousar.
— Creio que você tem razão, Severina.Caro Natanael, logo será hora de jantar. Deixe-nos sem cerimônia e volte para nos ver à noite.
Falaremos durante mais tempo. — É que — disse ele, desdobrando-se com hesitação — nãosei onde jantar. — Corra até o porto e
compre uma libra de camarões fritos— sacudiu-oSeverina, empurrando-opara a porta — , ou então vá até a Taberna da Ancora Azul, o
dono é um francês. Sem se ofender,o jovem Rambourg pegou o chapéu,afastou-se para beijar a mão de Angélica e se retirou, quase
alegre, lançando-lhe estas palavras,que lhe atravessaram o coração como um punhal: — A senhora me dará notícias sobre minha
família. Talvez tenha alguma nesses anos todos... Eu enviei um ou dois recados. Mas não obtive nenhuma resposta. — Ele deve ter-me
ouvido falandofrancês com Honorina — explicava Severina — , e depois de nos seguir um bom tempo, apresentou-se e nos feztodo tipo
de perguntas,como costumamos fazer, nós, franceses,de modo que depressa nos inteiramos sobre cada um: “De onde você é? De La
Rochelle. Eu sou dos arredores de Melle, no Poitou. Quandochegou à América?”, etc. Dame Angélica, o que há? A senhora nãoestá com
boa cara.
Angélica admitiu que o calor a extenuava. Mas ia beber tranquilamente sua tisana e nãotardaria a sentir-se melhor. — Severina,faça-me
um favor. Estou cansada de esperar nesta casa deserta sem poder me informar com ninguém. Todo mundodeve ter corrido ao porto
para a chegada de nãosei que navio. Vá saber as novidades!Informe-se também sobre se o Conselhoa que o Sr. de Peyracestá assistindo
está acabando.
E também,se nãoouviram falar do velho medecins’man,George Shapleigh.Sua ausência é inexplicável, e estou impaciente, inquieta.
Severina precipitou-se para a escada e depois, para fora, decidida a parar toda a casa do Conde de Peyrac e a sacudir todos os solenes
ingleses suscetíveis de dar-lhe informações sobre esse Shapleigh, pronta a penetrar em todas as tavernas da cidade. Mas iria antes
procurar o Sr. de Peyrac, na Council House, sem preocupar-se com interromper uma assembleia tão solene, com aquele desrespeito
pelos graves problemas dos homens que seu pai, mestre Gabriel Berne, lhe censurava frequentemente; mas ela estimava que os das
mulheres não eram menos graves. E, nocaminho, nãodeixaria de chamar a atenção de todos os membros da criadagem de Mrs. Cranmer
e mandá-los de volta a suas obrigações, pois todas essas pessoas de bem, vestidas de azul ou de preto, criados ou criadas, enquanto
falavam sem parar sobre a santidade de sua tarefa para a glória do Senhor e para o pagamentode sua travessia para o Novo Mundo,que
deviam a seus amos, passavam o dia a ocupar-se com ninharias, segundoela.
Angélica viu-a da janela, passandoa toda pressa, e sorriu. Com a jovem Severina, que a adorava, não precisava preocupar-se. Virando-se,
percebeu na penumbra de um recantocomo que um reflexo de fogo, alguma coisa vermelha que brilhava, e viu que aliestava Honorina,
que devia ter sentido, como ela, necessidade de tirar seu gorro durante o passeio, o que explicava sua bela cabeleira ruiva solta e
esvoaçando, devido ao ventodo mar. Honorina era como um duende.Mal Angélica a avistava, desaparecia de novo. Ouviu-a levando
alguma coisa para o patamar e levantou-se para ir ver, dizendo-se: “Não, nãoestou pertode dar à luz, senãome sentiria mais viva e ágil”.
Todo mundosabia que uma mulher,quandoestá prestes a dar à luz, sente-se tomada por uma nova energia que a impele a arrumar a
casa, a se entregar a todo tipo de atividades; geralmente domésticas. Ora,Angélica sentia, ao contrário, uma grande lassidão.
Encontrou Honorina trepada num pequenocofre,que empurrava para baixodobebedouro,ocupada em encher com água um cálice de
estanho. Angélica chegou no momento em que as mãozinhas dela sabiam muito bem como se separar para fazer parar o filete de água e
manter firme o recipiente que transbordava.Segurou-oe fechou a torneira. — Estava com sede, minha querida? Devia ter-me chamado.
— E para você — disse Honorina, estendendo-lhe ocálice com as duas mãos. — Deve beber água para que os anjos desçam sobre você.
Foi Mopuntukquem me disse! — Mopuntuk? — Mopuntuk,o chefe dos metallaks. Você o conhece! Ele ensinou-a a beber água naquele
passeio ao qual você não me levou... Era uma lembrança um pouco vaga, mas já longínqua, dos primeiros dias de Wapassu,mas
Honorina, quase um bebé na época, que via tudo, não esquecia nada,devia ser como os gatos. Para ela, o tempo não existia... Podia
envolver-se numa situação que lhe tocara a imaginação, abolindo meses e anos transcorridos, como se tudotivesse acontecido na
véspera.
— Ele disse que a água é pesada e que ela ajuda os anjos a descer sobre nós. Tinha dito realmente isso? Angélica reunia suas lembranças,
Mopuntukdevia ter faladomais de espíritos doque de anjos. A menos que ele fosse um índio batizado pelos missionários de Quebec.
Honorina insistia. — A água ajuda os anjos a descer sobre nós e o fogo nos ajuda a subir para eles. Ele disse. Ê por isso que queimam as
pessoas para que subam aocéu. O que ela captara dos discursos do indígena? — Acredito em você — disse Angélica, sorrindo.
Honorina conhecia muito mais coisas do que ela sobre Wapassu,e nãoera de surpreender que sua intuiçãoinfantilpercebesse, por trás
dos discursos dos índios, mais claramente que os adultos, suas intenções e crenças. — Um dia vou tentar — afirmou Honorina
compungidamente.— O quê? — O fogo, para subir! Angélica, que levava o cálice aos lábios, suspendeu seu gesto. — Não, por favor! O
fogo é mais perigoso, que a água. — Então, beba!Angélica bebeu,sob o olhar atentode sua filha. Agora, lembrava-se da devoção de
Mopuntukem relação às fontes. Dava-lhes grande importância e a induzira a andar um dia inteiro e a beber repetidamente,em lugares
diferentes,repetindoque era preciso atrair a proteção dos espíritos sobre ela e Wapassu.
A água!Os poderes da água pura! Nunca refletira sobre o instinto atávico que levava os aldeões do seu Poitou natal para certas fontes da
floresta. Mas a água que estagnava na fonte de faiança de Mrs. Cranmer nãotinha possivelmente essas mesmas qualidades e poderes;
seja como for, era execrável. As criadas nãodeviam se dar aotrabalho de limpar com frequência suficiente o interior do recipiente.
Angélica conteve uma careta, que não escapou ao olhar suspeitoso de Honorina. — Vou buscar água dopoço para você — decidiu,
despencandocom presteza de cima docofre. Angélica só conseguiu detê-la à borda da escada. Já a imaginava, debruçada sobre a beirada
do poço, preocupada em fazer subir um balde de água bem clara. Multiplicou seus protestos e garantias de que não tinha necessidade de
nada,para fazê-la desistir de seu projeto.
— Veja, eu bebi.E agora, sinto-o, os anjos vão descer e me protegerão. Enternecida,segurava entre as mãos a carinha redonda da criança
para contemplá-la melhor. — Querida criaturinha — murmurou. — Como você é boa para mim e como eu te amo! Alguém estava
finalmente voltando, e um ruído de botas ressoou nas lajes do vestíbulo. Dessa vez Honorina escapou. Reconhecera seu pai, o Conde de
Peyrac. Com os braços ao redor de seu pescoço, sussurrou-lhe: — Mamãe está triste, e não consigo consolá-la. — Vou dar um jeito nisso
— prometeu-lhe Joffrey de Peyrac,no mesmo tom de conivência. — Nunca tive uma manhã tão longa — suspirou Angélica quandoele foi
ao seu encontro. — Nem eu. Compreendo-a e felicito-a por ter-se retirado. Que assembleia pavorosa, se é que se pode chamar assembleia
àquilo... E fico pasmo por constatar o quantoo macho humano,seguro e confiante em si mesmo, nãoduvida da excelência de seus atos.
Como não admirar,com efeito, a justeza de senso com que os melhores representantes dessa raça superior à qualo Criador me feza
graça de pertencer, tendodecidido convidar, por extraordinário, a seu Conselho, uma mulher cuja opinião têm em alta conta, sabem
escolher o assunto a debater com ela.
Como era seu hábito, quandoqueria distraí-la de uma preocupação, conseguira fazê-la rir. Sua simples presença já a aliviava, dissipava
sua ansiedade.— Não seja tão severo com seus patriarcas e seus doutores puritanos — disse ela. — Eles não me ocultaram as razões
pelas quais desejavam minha presença entre eles. Não apenas não lhes queromal por isso, mas absolvo-os. Gostaria que lhes garantisse
que levei em consideração esse reinício da guerra indígena às fronteiras de suas colônias. Refleti, além disso, sobre o que poderíamos
obter por intermédio de Piksarett.
— Oh!deixemos de lado guerras e massacres — disse ele num tom leve. — E um jogo que,ai de mim, não acabará tão cedo, e a razão
quer que,embora lhe dandoatenção, saibamos furtar às horas preciosas docotidiano o cuidado de velar par nossa própria paz. Falemos,
pois, doque a preocupa,minha querida. Vejo-a com traços tensos e olheiras, que a tornam certamente muito bela e comovente, mas...
— Shapleigh nãochega — queixou-se ela. — Enviei emissários em todas as direções. Eles o encontrarão. E nós o levaremos a Portland,se
não tiver chegado aquiantes de nossa partida para Gouldsboro. Ele a puxara para juntode si e dava-lhe beijinhos nas pálpebras. —
Alguma coisa a amedronta,meu amor. Diga-me o que é. Confie em mim. Estou aqui, pertode você doravante, para defendê-la,afastar de
você qualquer perigo. — Ai de mim! Trata-se talvez de uma provação que nãoestá inteiramente sob seu poder afastar, pois é a Natureza
que decidirá. Talvez fosse apenas alarme falso, conveio, mas sua indisposição aquela manhã a fazia recear de repente que a criança
viesse ao mundoprematuramente.E verdade,continuou para si mesma, que se sentia agora muito bem e adquirira a convicção de que
esse parto, que,ontem ainda,lhe parecia muito distante, nãopodia estar iminente. Entretanto, não ficaria surpresa se ele ocorresse antes
do previsto. Com sabedoria, Joffrey observou-lhe que nãohavia nenhuma razãoaparente para que houvesse uma mudança,pois, sua
saúde tinha sido até entãoperfeita.Mas, no momento, era preciso considerar que,se a criança nascesse, o calor esmagador, que assolava
a todos na costa do Atlântico, seria um aliado para um bebê fraquinhosuperar as três ou mesmo quatrosemanas iniciais.
Ela o escutava e admirava a bondade com que procurava,com o mesmo cuidadoque dava a todas as coisas, argumentos preciosos nesse
domínio bem feminino e que deveria ser estranhoa um homem de aventuras,considerado por alguns como um pirata temível, um
homem de guerra,seja como for, rude e sem fraquezas.Mas, para ela, para tranquilizá-la, reconfortá-la, ele tinha todas as delicadezas.
Afastou-se dele para sorrir-lhe. Mas seus grandes olhos verdes,como que empalidecidos, permaneciam dilatados e fixos. — Há uma
outra coisa — murmurou com um tom culposo. Então confessou-lhe o que duplicava sua inquietação. Duplicava era exatamente a
palavra. Duas crianças, isso podia anunciar uma felicidade dupla,mas tornaria precária sua sobrevivência, se conseguisse levar “o filho”
tão sonhadoaté o fim da gravidez. Ele viu que ela estava realmente terrificada, ansiosa e angustiada. E subitamente,por sua expressão
aterrorizada e a fragilidade que emanava dela,Angélica lembrou-lhe a criança-fada surgida das florestas do Poitou, a deliciosa aparição
que se erguera diante dele, no sol, na estrada de Toulouse, e que fizera com que sua vida fosse sacudida, ele, o grão-senhor libertino que
julgava ter conhecido todos os prazeres do mundo,nos tormentos, dilaceramentos e transportes inexprimíveis de um verdadeiroamor.
E porque ela sempre estivera ali, porque podia dizer-se que ela nunca deixara de habitá-lo, porque ela soubera preservar as fontes
misteriosas desse encanto, tão pronto a evaporar-se em tantas mulheres ao sopro áridoou medíocre da existência, e porque recebia a
revelação ao mesmo tempo que oanúncio maravilhoso, mirífico, um pouco extravagante da doação dessas duas crianças que ela estava
prestes a fazer-lhe,perguntava-se,não sem medo, se não estaria naquele momento conhecendoa maior alegria de sua vida de homem.A
tal ponto que as lágrimas lhe vieram aos olhos. E para ocultá-las, tomou-a novamente nos braços.
Apertando-a contra si, acariciando seus cabelos, roçando-lhe o corpo, começou a falar-lhe baixinho, dizendo-lhe que tudoestava bem,
que nãoprecisava ter medode nada,que era o mais feliz dos homens, que seus filhos, anunciados por presságios muito auspiciosos,
nasceriam belos e vigorosos, pois a Vida nunca nos causa tanto sofrimento quantopoderia fazê-lo, principalmente com aqueles que
amam e que o provam sem mesquinharia,e repetia-lhe que ela nãoestava sozinha, que ele estava ali, que os deuses estavam com eles, e
que nãose podia esquecer, enfim,de que em toda provação existe um recurso supremo: o Céu.
E acrescentou, com aquele sorriso que parecia ao mesmo temporidicularizar e desafiar um mundo incréduloe pusilânime, que ele se
comprometia, se sua saúde o exigisse, a enviar também emissários até lá, reclamar a ajuda doTodo-Poderoso.
Desejoso de ajudá-la a restabelecer-se e vendoque ela sofria menos pela fadiga do que pela opressão, o Conde de Peyracteve a feliz ideia
de propor-lhe que fossem até o Arc-en-Ciel, seu navio que estava ancoradono porto, para fazer ali a refeiçãodo meio-dia. Um pouco de
brisa marinha sopraria na coberta do navio e, de qualquer maneira,respirar-se-ia melhor lá doque em terra.
Severina e Honorina iriam se refazer,acompanhadas de Kuassi-Ba, em qualquer lugar atraente da cidade que elas pareciam já conhecer.
Queria ficar a sós com ela e que ela repousasse longe das preocupações urbanas.Nada melhor para encarar o futuroe o desconhecidodo
que distanciar-se um pouco.
Essa diversão chegou no momento exato para revigorar a força e a coragem de Angélica. Na coberta do Arc-en-Ciel, protegidos do sol,
que brilhava como ferroem brasa, por uma grande lona estendida na parte dianteira da segunda ponte,foram servidos pelo Sr. Tissot,
seu copeiro, que,quando faziam escala, se preocupava principalmente em levar para bordo víveres frescos e mercadorias de que se
podiam prover nesses lugares: vinhos, rum, café, chá e, ali em Salem, claro, barricas de bacalhau seco numa quantidade impressionante.
A reputaçãode qualidade dos produtos do secadouro mais antigo da costa, estabelecidopelos primeiros imigrantes, já estava firmada.
Mas o copeiro evitava servi-lo à Sra. dé Peyrac, compreendendoque ela nãoapreciaria naquele momento aquele prato rústico, cuja
abundância nessas paragens,geradora de grandes fortunas,fizera com que fosse denominado “ouro verde”.Ainda que pudesse
demonstrar que se podiam fazer com ele pratos muito delicados. Apesar do imprevisto de sua visita, não foi pegodesprevenido.
Apresentou legumes frescos e sumarentos, saladas, carnes assadas na brasa. E, homem muito previdente,tinha uma reserva de grande
quantidade de bebidas frescas preservadas nogelo, e sorvetes de frutas.
Angélica compreendeu que saíra naquela manhã domalfadadoConselho com o estômago quase vazio, pois a tigela de mingau de aveia
(denominado porridgé), que as criadas de Mrs. Cranmer lhe apresentaram,não a inspirara muito, apesar de a terem encorajado a
acrescentar-lhe creme e melaço. Com efeito, após ingerir alguns bocados, ela ressuscitou. Antes de sair de casa, Joffrey de Peyrac
lembrara-a de pegar seu leque.Era preciso realmente que estivesse bem aturdidoe que tivesse esquecido os hábitos da corte da França
para não ter pensadoantes nesse modesto e encantador objeto, que ajuda as grandes damas a suportar a pressa nos salões ou nas
antecâmaras do rei, e o calor que por vezes ali faziam reinar as sarças ardentes das velas acesas nos grandes lustres de cristal.
Reanimada, abanava-se suavemente,rejubilando-se com esse instante de repousojunto a seu marido, com um copo de água fresca ao
alcance da mão. De onde estavam podiam avistar a cidade, cujos contornos, apagados pela bruma de calor que velava no horizonte as
curvas montanhosas dos Apalaches, assemelhavam-se a uma renda recortada por florões de bordados. Era o amontoado de empenas
agudas formadas pelos telhados em- cumeeiras ou em meias-águas,grambell-roof ou lintooroof, nomes que designavam águas desiguais,
descendode um ladoàs vezes quase até o chão, e que faziam pensar que se haviam construído essas moradias acrescentando-lhes
sempre alguma coisa a mais. O todo era um eriçado formado por um regimentode altas chaminés de tijolos em estilo elisabetano, que
marcava a cidade pioneira com um sinal de elegância, vindo do Velho Mundo. Contemplando-a assim de longe, tão pacífica na aparência
e tocante em seu vigor e coragem de existir, Angélica sentiu um certo remorso. — Você me compreende, nãoé? — disse a Joffrey.—
Quandofaleique não desejava que nosso, ou nossos filhos, nascessem na Nova Inglaterra,não quis dizer que sinta hostilidades em
relação a nossos vizinhos ingleses aos quais sei que você está ligado, há muitos anos, pelointeresse de empresas importantes e pelos
quais partilho sua estima. Mas, o que me parece prejudicial a nosso filhoé que ele veja a luz entre pessoas que têm da virtude uma
imagem tão severa,um país onde se pode condenar um homem a duas horas de pelourinho porque,voltando de viagem após três anos
de ausência, beija sua mulher em público num sábado. Foi o que me contaram, e isso aconteceu com o CapitãoKemble. Em Boston, é
verdade.Mas parece que essas duas cidades, Boston e Salem, rivalizam na aplicação da mais intransigente lei divina e com o mesmo
ardor e encarniçamentoque empregam em rivalizar na excelência das construções navais ou na exploração do bacalhau.
Joffrey riu e nãocontestou a justeza de suas observações. Ele reconhecia que trabalhar com os habitantes da Nova Inglaterra,quandose
tratava de mandar construir um navio, de pagar em moeda de ouro ou prata pelos direitos sobre territórios incultos e disputados ou de
lançar as bases de associações comerciais, cujos intercâmbios podiam ser feitos até na China ou nas índias, só apresentava aspectos
positivos e até agradáveis. Pois, nesse domínio, era bom lidar com pessoas escrupulosas, de palavra, e para as quais o trabalhoe o
sucesso eram um dever,o que garantia seu encarniçamentoe sua aplicação em levar a bom termoo que empreendiam,e a respeitar os
contratos. Mas felicitara-se mais de uma vez por não ter de viver sob sua jurisdição, pois as motivações que os haviam impelido para o
Novo Mundonãotinham nada a ver com as suas. Isso foi admitido desde o início em suas relações, pois senãonenhum negócio teria sido
possível entre todos os indivíduos que povoavam as margens desse ladodo Atlântico ou aqueles que começavam a povoá-las. Angélica
observou que era menos desprendida doque ele de uma certa necessidade de comunicar-se e ser compreendida por aqueles que o acaso
de seus deslocamentos fazia encontrar.
Não tinham conhecido nessas pequenas cidades por vezes fervilhantes e exuberantes,onde se falavam todas as línguas, como em Nova
York, ou mais perto em Rhode Island, uma maneira de viver e de pensar que se coadunava perfeitamente com a deles, e que nãodeixava
prever os exageros religiosos de seus vizinhos de Boston ou de Salem, nem o que ela entrevira acerca dos primeiros fundadores,os
Pilgrim Fathers, quandoconhecera o velho Josuah,o funcionário do comerciante holandês, norio Kennebec? E que,explicou-lhe Joffrey,
Salem nãoera a filha desses Pais Peregrinos do Mayflower que alguns julgavam amáveis iluminados e que eram acusados de
desembarcar nocabo Cod, em 1620,por um erro de rota, mas a dosólido pequenocontingente de puritanos congregacionalistas que,
nove anos mais tarde, chegara a esses lugares. Eram conduzidos por um talEndicott, que nãobrincava com a bússola e que levava em
seus cofres um mapa de Sheffield em boa e devida forma, autorizando-os a fundar o estabelecimento docabo Norte, da baía de
Massachusetts. Ele escolheu o lugarejo de Naumbeag,local julgado, por suas informações, “agradávele frutificante”,fundou Salem,
destinada a ser a sede da “Companhia da Baía de Massachusetts”, que ele criou sem consultar ninguém. Englobou-lhe, sem hesitar, os
antigos Plantadores e alguns conseguiram ocupar altas funções sob seu cajado. Mas os últimos que chegaram eram calvinistas, cujo
partido, na Inglaterra, reclamava a “purificação” doserviço religioso na Inglaterra,que caíra nos erros papistas. O fortalecimento de sua
disciplina religiosa tornou-se, pois, um dever da autoridade civil, e, com toda a naturalidade,os votos foram limitados aos membros da
Igreja, pois a elaboraçãodas leis que regem a instituição de uma sociedade virtuosa não podia ser confiada a irresponsáveis, a ignorantes
ou a servos como os “engajados”,endividados pelo preço de sua passagem. Esses burgueses,que tinham deixado uma vida fácil na
Inglaterra para que nãofosse alterada a pureza de sua doutrina, nãoestavam dispostos a tolerar nenhum relaxamentode costumes.
Angélica escutava-o e, mais uma vez, maravilhava-se por ele conhecer tantas coisas e saber discernir tantas nuanças nesses diversos
grupinhos que tinham abordadodurante esse périplo, que ela não imaginara que pudesse ser tão enriquecedor e variado. Iam para a
terra dos ingleses, pensara,e só isso. Mas era uma coisa muito diferente. E descobrira, nãosó toda a história agitada dos aventureiros do
Novo Mundo,mas também todo um lado da existência de Joffrey de Peyracque ela ignorava e que fizera com que apreciasse mais ainda o
homem que amava: o homem de mil facetas, dotado sobretudodesse conhecimento dohumano, que se unia nele a tantos outros dons e
ciências, atraía para si amigos e aliados, tal era sua paixãode interrogar e escutar. Joffrey propôs-lhe que ficasse a bordo e dormisse, mas
ela declinou da oferta.Era preciso que o navio estivesse pronto para a aparelhagem,o que poria a tripulação numa intensa atividade
desde o alvorecer, e, por outro lado, não queria magoar, desdenhandosua acolhida,os anfitriões que lhes franquearam sua casa.
O sol tornava-se menos ardente,e eram cerca de quatrohoras da tarde quandovoltaram para terra firme, escoltados pelohabitual
grupinhode soldados espanhóis que constituía a guarda pessoal do conde e que intrigava e subjugava tanta gente em toda parte por
onde passavam. Sua situação de mercenários, a serviço de um grão-senhor francês, mostrava, desde a primeira abordagem,sua
independência em relação a ele, que não devia sua fortuna senão a seus talentos, sem qualquer submissãoa um dos soberanos deste
mundo.Isso nãodeixava de agradar aos new-Englanders que,em algumas colônias às quais pertenciam, eram martirizados peloverme
roedor da liberdade diante da metrópole, sobretudo desde que fora proclamado pelo reiCarlos II o Novo Ato de Navegação ou Staple Act.
Uma iniquidade!Afirmavam, aliás com veemência, tanto o puritanodo Massachusetts como o católico de Maryland.Eles estavam bem.
Quantoa ele, sentia que não tiraria os olhos dela durante todoo dia. Se não tivesse experimentado tantoprazer em sentir sua atenção
sobre si, ter-se-ia censuradopor lhe haver participado inquietações tão pouco importantes. Sentia-se naquele momentototalmente
refeita. Apesar de tudo, rejubilava-se com o fatode, em consequência de seu desfalecimento, ter-se tomado a decisão de deixar o mais
cedo possível as costas da Nova Inglaterra e zarpar para Gouldsboro, sem escalas. Ainda que ele nãodissesse nada, estava certa de que
havia lançado um verdadeiro raide para encontrar Shapleigh e que tinha se informadosobre os médicos mais competentes que deveriam
procurar, caso fosse preciso. Mas Angélica nãotinha muita confiança nos médicos, de onde quer que fossem,exceto os cirurgiões de
navios, por vezes hábeis, mas pouco asseados. O povo rude da Nova Inglaterra devia se atracar com a doença como com o Diabo. Face a
face. Ao dar os primeiros passos, encontraram, por acaso ou por uma intenção calculada, o mui respeitável John Knox Matther, que os
abordou, dandoaoseu austerorosto uma expressãotão amena quanto possível. Tinham-novisto de manhã noConselho, tendovindo
expressamente de Boston para assisti-lo. Angélica conhecia-o bem,pois recepcionara-o dois anos antes em Gouldsboro, por ocasião de
um memorável banquete realizadona praia e no qualse viram brindar, reunidos em torno da mesma mesa comprida colocada sobre
cavaletes e revestida de uma toalha branca,na mesma euforia bem francesa devida aos vinhos capitosos dessa nação, coriáceos
delegados do Massachusetts e modestos religiosos franciscanos de burelcinzento, huguenotes franceses e curas bretões, piratas das
Caraíbas,oficiais da marinha realbritânica frívolos e anglicanos, assim como fidalgos e colonos da Acádia, escoceses e até índios...
A mesma lembrança bastante feliz devia brilhar por trás da fachada impassível doReverendo Matther, pois ele respondeu aosorriso de
reconhecimento de Angélica com uma mímica que poderia passar por um piscar de olhos, provandoque nãoesquecera aqueles
momentos excepcionais. Mas, encontrando-se naquele momentoem seu território professoral e pastoral, nãopodia permitir-se evocar
tais desbordamentos,que não eram aceitáveis senão por terem ocorrido, sob a égide francesa,num lugar neutroque escapava a todo
controle e,por assim dizer, fora do tempo, como num sonho. Ele apresentou seu neto, que oacompanhava, um rapazinhode quinze anos,
rígido e frio, mas cujos olhos brilhavam num fogo místico, como convém ao herdeirode uma família cujos chefes sempre se assentaram
no Conselhodos Anciãos de suas comunidades,e cujo avô quisera escolher como, patronímico o nome de um reformador escocês, John
Knox, amigo de Calvino, que dera sua forma ao presbiterianismo, irmão do puritanismoe do congregacionalismo. Ao ver esse
adolescente, ninguém diria que soubesse falar e ler com facilidade o grego, o latim e um pouco de hebreu,como era dever de todo aluno
da Universidade de Cambridge (Massachusetts),a que já começavam a chamar familiarmente de Harvard, o nome do mecenas que
consagrara uma parte de sua fortuna para que se edificasse, trinta anos antes, um templo do espírito nesse país desolado, batido pelos
ventos do oceano e rodeado por pântanos horríveis, florestas impenetráveis e índios hostis, mas onde já começavam a despontar, como
cogumelos, as casas de madeira com telhados pontudos.
John Knox Matther lembrou que,presente naquela manhã aoConselho, apreciara a presença do Sr. de Peyrac. — Só um francês pode
governar outros franceses,dizem. Somos suplantados pela dissimulação dos complôs que a Nova França trama contra nós. Pediu ao neto
que lhe passasse um saco, noqualse encontravam inúmeros maços de papéis,alguns dos quais estavam enrolados e selados por um
lacre de cera. — Só posso falar disso com você — disse, após olhar à volta e tirar dosaco a página de um relatório que ele segurava como
se ele pudesse lhe explodir no rosto, como uma carga de pólvora mal acesa. — Você foi o primeiro a falar dos jesuítas, e eu não quis
absolutamente insistir noassunto, a fim de não aumentar a perturbaçãodos espíritos, mas tenhoaquium dossiê secreto, que corrobora
suas suspeitas. Há vários anos venho reunindoos elementos desse dossiê. O eclesiástico no qualnós pensamos, Padre... — olhou o papel
para certificar-se do nome que pronunciou com um sotaque pavoroso — d'Orgeval, um jesuíta, sempre fez passar sua correspondência
por nossos estabelecimentos com uma audácia e uma insolência inusitadas, confiando-a a espiões, às vezes até a religiosos disfarçados.
Comunicava-se assim mais rapidamente com a Europa,a França e a casa matriz de sua ordem, feudopapista de nossos piores inimigos.
Conseguimos prender alguns desses mensageiros e apreender algumas missivas... Fica-se de cabelo em pé ao ler seu conteúdo. Da parte
dele, assim como da de seus correspondentes, que exprimem diretamente o pensamentode seu rei ou de seus ministros, é um apelo ou
um encorajamento a que nos façam guerra ou nos exterminem,mesmo que,isto está sublinhado, “nossos países estejam em paz”.—
Estendeu opapel. — Tome, olhe! aquie aqui! Punha-lhes sob os olhos folhas de papel, algumas das quais eram feitas de uma fina película
de casca de bétula, papelrudimentar dos missionários franceses isolados, nas quais se podiam ler, numa caligrafia nervosa, certas frases
como: Nossos abenakis seencantam por saber que sua salvação depende do número de escalpos que irão retirar da cabeça dos hereges. Isso
combina melhor com seu costume do que a abnegação, e ganhamos almas para o Céu enfraquecendo um inimigo cujo ódio contra Deus e
nosso soberano jamais se aplacará... Numa outra carta vinda da França e dirigida peloMinistro Colbert ao superior dos jesuítas em Paris,
citavam-se as frases de recomendação pelas quais o Padre d'Orgevale sua ação na Nova França foram apresentados aorei nestes
termos: “Padre de grande mérito, excelente para reacender a guerra contra os ingleses, com os quais assinamos a paz, o que paralisa
uma ação demasiado aberta,mas ele encontrará os pretextos...
O que se soube sobre sua dedicação à causa de Deus e dorei nos fortaleceu em nossos projetos. Se ele continuar assim, Sua Majestade
não nutrirá senãoafeição por suas empresas e saberá mostrar seu reconhecimento, não regateandoajuda às missões que ele sustenta.
Ele [o Padre d'Orgeval] deve impedir qualquer entendimento com os ingleses... Angélica via que Joffrey,com o canto do olho, vigiava suas
reações e deu-lhe a entender,por um sinal imperceptível, que não se preocupasse. Contrariamente ao que sentira naquela manhã,as
revelações do governador adjuntode Massachusetts, longe de impressioná-la, davam-lhe vontade de rir. Pois ele estava de tal modo
estarrecida diante de tanto maquiavelismoe irritação, por um comportamento que lhe era totalmente ininteligível, que lhe inspirava
pena.Ora, para eles isso não tinha nada de novo e já o sabiam por experiência própria. O jesuíta erguera sua bandeira de guerra contra
eles, desde que puseram os pés no Novo Mundo.
Enquantofalava,John Knox Matther arrastava-os a passos miúdos para outra direção. Dobrou suas cartas e pergaminhos e recolocou-os
no saco dizendo que essas questões mereceriam ser debatidas num outro, lugar que não fosse na ponta de um cais, em plenosol.
Desculpou-se junto a Angélica e disse que lamentava tê-los retido assim de pé,mas que era assaltado por calafrios incoercíveis e as mais
tenebrosas apreensões quandopercebia,à vista desses documentos, que um representante da temível religião romana estava
emboscado nofundodas florestas, entre os pagãos vermelhos, obsedadopelo único pensamentode destruir aqueles que eram colonos
pacíficos, vindos à América com um só pensamento,um único objetivo: viver, trabalhar e orar em paz. Pois esses homens e essas
mulheres tiveram de fugir de sua própria pátria e se exilar nesse continente selvagem apenas para escapar das perseguições de diversos
governos da Inglaterra, reais ou republicanos, uns adeptos do Diabo, outros demasiado fracos para manter a religião pura e invencível.
Infelizmente, por mais longe que tente fugir, o homem justo tem de encontrar a provação que exige dele uma renovação de seu
comprometimento. Na América, era o jesuíta. Com uma voz lúgubre,citou: Mais temível que o lobo, que o índio cruel, que a floresta hostil é
este inimigo do género humano que ninguém consegue deter: o índio selvagem induzido pelo jesuíta! A fim de mudar o rumo da conversa e
desviá-lo de sua amarga preocupação, Joffrey de Peyrac perguntou-lhe como iam os estudos de seu neto. A voz de John Knox Matther,
como a dos avós, ganhou inflexões mais serenas para reconhecer que ojovem Cotton dava-lhe a maior satisfação, tendojá obtido na
Universidade de Harvard o grau de bacharel, conferido àqueles que sabiam traduzir em latim o texto original do Velho e do Novo
Testamento, e o grau de mestre em humanidades,que oreconhecia capaz de redigir uma dissertação sobre lógica, filosofia, aritmética,
geometria e astronomia.
Lembrando-se de que Florimond e Cantor haviam estudadodois anos em Harvard, sob a férula puritana,Angélica sentiu,pensando
nisso, uma admiração realpor seus dois filhos mais velhos. Imperceptivelmente,o Reverendo John Knox Matther continuou a conduzi-
los e perceberam que era para a taberna da Âncora Azul, dirigida por um francês.Compreendendorepentinamente que os estava
levandopara um lugar pecaminoso, explicou-lhes que desejava ensinar a seu neto como zelar pela boa ordem dos estabelecimentos
daquele tipoe como admoestar os beberrôes apanhados em flagrante. Felizmente, encontraram ali Severina e Honorina, ladeadas por
seus guarda-costas e que já eram o centro de um grupo de amigos dentre os quais muitos franceses, inclusive o jovem Natanael de
Rambourg. Diante da ovação cordial de que foram objeto, a intervenção de John Knox Matther frustrou-se.A lição de pregação contra a
bebedeira foiadiada para depois. Contentaram-se em beber cerveja com gengibre,moderadamente,separando-se em seguida. Fora um
dia tãoocupado, que Angélica, voltando para a casa de Mrs. Cranmer, teve a impressão de que percorrera a cidade inteira,
cumprimentara todos os habitantes e assimilara uns cinquenta anos de história dos pioneiros. Muitas pessoas estavam nesse estado de
deliquescência, disseram-lhe na taberna.Isso por causa do calor esgotante ou por estarem se aproximandoda época de lua cheia, olho
arregaladono fundodas noites, perturbandoosono dos homens.
O sol descia por trás do monte Gallows num céu verde-pálido, alaranjadona linha do horizonte. E a brisa marinha clemente começava a
agitar o calor estagnante.O mar estava azuladoe murmurante, índios vagavam pelas ruas,furtivos e estrangeiros, e nãohóspedes
apreciados, como em Quebece Montreal.As pessoas nãoos viam, e isso era preferívelpara eles, naqueles dias em que os refugiados do
Alto Connecticut chegavam em andrajos, pés ensanguentados e visões mais sangrentas ainda na memória.
Na extremidade da praça,um grupo de pessoas olhava em direção ao mar e discutia com animação. QuandoAngélica e Joffrey cruzaram-
se com eles, eles lhes explicaram que estavam intrigados pelos ladridos de focas que se elevavam ao longe, como se um rebanhoimenso
desses curiosos animais, que os franceses chamavam de lobos-marinhos e os ingleses, seal, sea-calf ou sea-bear, se aproximassem da
praia, o que havia muito tempo nãoacontecia. Dessa vez, a casa de Mrs. Cranmer parecia repleta de gente, como se, para fazer esquecer a
deserção da manhã,toda a família e a criadagem houvessem se reunido e combinado um encontro ali. Esperavam-nos pertode uma
mesa onde estavam colocados xícaras de porcelana fina, copos de cristal, baleiras e compoteiras de prata.
E talvez fosse à presença do amávelLorde Thomas Cranmer,o genro intempestivo, de provocante anglicanismo, com seu colarinho de
renda e seu gibão bordado, que se devesse, nessa casa puritana,tal mobilização em honra aos papistas forasteiros. Sua esposa, Lady
Cranmer,lançava-lhe olhares perdidos, e era evidente que ela estava pronta a receber “pior ainda” se, nessa ocasião, lhe fosse dado
encontrar-se junto a esse belo homem louro-arruivado, de barba pontuda e de que era esposa, mas aoqualraramente via,
provavelmente porque nãose sentia atraído por ela, nem por sua morada em Salem, onde seus próprios filhos o chamavam de “Sr? ” Ou
de “meu honradopai”,olhando-o com uma compunção misturada de medo. Mrs. Cranmer tinha um rosto muito suave e harmonioso, que
teria sido sedutor se ela nãomantivesse os lábios tão apertados. E em sua testa, já estriada por rugas finas, percebia-se a tensão
permanente causada por preocupações domésticas e pelos escrúpulos. Um lenço de musselina ornadode rendas ocultava seus cabelos
castanhos, mas — sem dúvida após muitas hesitações — dera um jeito para que aparecesse o brilhante de seus belos brincos pingentes,
presente de seu esposo, do qualse mostrava evidentemente orgulhosa. Movimento de coqueteria e de vaidade que ela compensava pela
falta de graça do peitilho do vestido, tão teso quantouma golilha e tão prolongado e pontudoque,com sua estatura de varapau,ela
parecia estar saindo de um funil.
O sogro, Samuel Wester, também estava ali, grande anciãode casaco preto, uma calota preta e quadrada pousada em seus cabelos
brancos, que se juntavam, sobre a gola engomada,à sua longa barba branca.Angélica aceitou uns confeitos e uma xícara daquela bebida
de folhas de chá muito consumidas na região. Surpreendeu-se de que nãoacendessem as velas, pois estava muito escuro sob o forro da
sala de jantar. Seria por economia? O dia ainda estava claro. E subitamente os últimos raios de sol penetraram por todos os vidros, com
grandes brilhos dourados,fazendo chamejar e reverberar,nas paredes,retratos e espelhos, revelandoas madeiras bem enceradas dos
móveis e mirando-se nas lajes de mármore pretas e brancas do vestíbulo. Angélica retirou-se tão discretamente quantopossível e subiu
para seu quarto. Ali, como noinício do dia, sentiu o desejo de ficar de pé diante da janela aberta.E, ao se inclinar um pouco para
descobrir a apoteose do poente,a dor surgiu,mas, dessa vez, não aguda e fulgurante,mas surda e ampla,a dor inimiga cuja presença
gostaria de afastar com todas as suas forças. Mas isso, a revolta, nãoservia mais para nada agora. Ela se imobilizou, deixandoo sinal
temível desenvolver-se e depois decrescer, pois sabia que essa dor não podia ser enfrentada com igualdade,a nãoser inclinando-se
diante dela, abandonando-lhe opoder,a diretiva daquilo que se punha em marcha e ia se cumprir, a nãoser aceitandotornar-se sua
cúmplice... Angélica nãose mexia mais. Não pestanejava.O céu verde entrava-lhe nos olhos, mais verde doque o estandarte doprofeta,
onde logo se inscreveria não um crescente, mas uma lua opalina, bem redonda,um escudo de prata. Depois baixou as pálpebras.
A sorte está lançada!, disse a si mesma. Oh! Meu Deus! A sorteestá lançada!
CAPITULO V
Dois anjos para Angélica
Vieram ao mundode noite. Esse mundoque eram chamados a conquistar, saudaram-nocom um grito valente,espantoso de se ouvir em
criaturas tão mirradas que,colocadas na mão de um homem, mala excederiam em tamanho. Angélica fizera por eles tudoo que podia e
tudoo que dependia dela.Colocá-los no mundo, trazê-los à luz com a maior maestria e rapidezpossíveis, poupando-lhes a fraqueza.
Fazendo calarem-se todas as angústias, todos os alarmes, pensou apenas em cumprir da melhor forma possível sua tarefa de mulher. A
angústia e os alarmes começaram em seguida quando,separados dela, sua sobrevivência dependeria tão-somente de suas próprias
forças. A matrona irlandesa — uma papista que acabaram por encontrar e convencer a assisti-la — não lhe ocultara, assim que a
examinou, que se tratava de um nascimento duplo.Por isso, aceitou lucidamente as consequências desse veredicto desde o começo do
parto. Duro combate! Mas, como em todo combate, era preciso consagrar-se a ele sem hesitar, sem tremer, lançar na batalha o melhor de
si mesma. Mal ouviu seus primeiros gritos. Esgotada, um pouco desvairada, foi distraída dos tormentos do instante pelo gesto de Joffrey
de Peyrac, que ela divisava de pé à sua cabeceira e que viu levantar os braços, a fim de fazer passar, por cima de uma cabeleira hirsuta e
escura de occitânico, sua camisa branca de tecido fino, que ele vestira para a ocasião. Com ela cobriu suas mãos estendidas, onde a
parteira pousou dois pequenos corpos indistintos e trémulos. Então, enrolou-os com infinitas precauções e aconchegou-os suavemente a
seu peito moreno e vigoroso, assim como havia feito uns vinte anos antes para seu primogênito, Florimond.
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  • 1. CAPITULO I O testemunho de um terrível massacre PRODÍGIOS SOBRESALEM Angélica olhou com compaixão para o adolescente que um guarda usandona cabeça uma espécie de bacia de barbeiroem aço, o cap acete inglês, introduzia sem deferência na sala do Conselho, empurrando-ocom a haste de madeira de sua alabarda. Podia compreender a emoção desse jovem rendeirodas fronteiras, arrancadoa suas lavouras e carneiros e projetadodiante de um areópagode graves doutores vestidos de preto com peitilhos brancos, reunidos ao redor de uma mesa maciça, sob o forro de uma sala mais escura ainda que suas vestes. Teria de fazer ali a narrativa do horrível massacre perpetradolá em cima, ao pé das montanhas verdes, durante o qual perdera todos os seus. Seus olhos piscos, nãovendode início senãoessas faces muito brancas e severas cujos olhares estavam fixos nele, dirigiram-se a esse único rosto de mulher,que tinha uma expressão de bondade.E, como percebesse também que essa grande dama muito bela dissimulava sob as dobras de um grande mantode seda os sinais de uma maternidade próxima, sentiu um nóna garganta, pois ela suscitava-lhe a lembrança de sua pobre mãe que,quase anualmente,carregava no ventre e punha nomundouma criança. Mas essa visão e essa lembrança deram-lhe a coragem de iniciar sua narração e responder às perguntas que começavam a fazer-lhe com uma voz profunda,voluntariamente solene e lenta, como que para impressioná-lo mais. Estava prontopara dizer tudo. — Como se chama? — Richard Harper. — De onde vem? — De Eden's Falls, norio Annonnosuc. Teve consciência dos olhares pesados trocados entre esses senhores de Salem. Examinavam-no,esmiuçando-o da cabeça aos pés, de sua cabeleira cor de palha eriçada, sua face queimada pelo sol, até seus pés nus,feridos pelas silvas e pedras agudas,metidos em sapatos grandes que lhe haviam emprestado.E novamente receou romper em soluços. Seus olhos baços de inglesinho prenderam-se de forma patética aos daquela mulher,a única presente,que lhe lembrava sua mãe,e após um-instante,sua perturbaçãodissipou-se. Um brilho claro parecia ir dos olhos da mulher para ele, e teve a impressão de que ela lhe dirigia um sorriso. Estava pronto para dar seu testemunho. Isso durava desde a manhã. Na véspera, Angélica e Joffrey de Peyrac, voltando de um périplo de quase dois meses ao longo das costas da Nova Inglaterra,que os levara até Nova York, ancoraram nopequenoporto de Salem. Ali estavam de volta, numa visita de boa vizinhança e de negócios. Mas encontraram a pequena capitalda colônia inglesa do Massachusetts em efervescência e, nos cais, notáveis e ministros reunidos numa sombria assembleia para os acolher. As incursões dos franceses do Canadá e de seus aliados selvagens tinham se reiniciado, disseram- lhes, contra os estabelecimentos do norte da Nova Inglaterra. E foi por isso que os responsáveis por esses Estados pediram a seus hóspedes,cuja visita consideravam como um sinal da ajuda do Senhor,para que assistissem ao conselho extraordinário que iria se reunir para avaliar a situação. Na qualidade de vizinhos franceses e proprietários de estabelecimentos no Maine,que consideravam ligado ao Massachusetts,voltavam- se para o Conde de Peyrac, para pedir-lhe que lembrasse às autoridades de Quebecas promessas que lhes haviam feito, e para Angélica, por reconhecerem seu poder de deter os chefes índios; corria uma lenda de que os mais selvagens obedeciam a ela. — Se falam de Piksarett, chefe dos patsuiketts, fiquem sabendoque ignorotudo a seu respeito há mais de um ano— defendeu-se ela.— Havia franceses à testa das hordas que assaltaram as aldeias inglesas? — perguntou Joffrey.— Perceberam algum jesuíta conduzindo-os aocombate? Era preciso ouvir as testemunhas. Desde a abertura da sessão, na Council House de Salem, foram ouvidos os que escaparam dos massacres, que os arrendatários das colinas tinham recolhido, frequentemente feridos ou moribundos,e conduzido até a costa. O primeiro fora um arrendatáriodesvairadoe balbuciante,ainda sob o efeito das terríveis desgraças que oatingiram. Não tinha visto nada, nem franceses, nem jesuítas, nem selvagens,pois estava em viagem naquele dia. De sua aldeia e de sua casa reencontrara apenas cinzas e ruínas enegrecidas, seus velhos pais trespassados por flechas e escalpelados, sua mulher,seus filhos e seus criados desaparecidos, levados possivelmente como cativos lá para cima, dolado das regiões longínquas e inacessíveis do Saint-Laurent,onde os índios batizados pelos franceses, juntandoaohorror de seu paganismoidólatra o de se paramentarem de cruzes e de terços papistas, os manteriam escravos, e nunca mais os reveriam. Lágrimas escorriam pela face curtida do trabalhador,o que parecia agastar um pouco os puritanos representantes de Salem, pois interpretavam-nas como um sinal de recusa das provações enviadas pela Divina Providência. Além disso, todas essas pessoas vinham doAlto Connecticut, herdeiras dos dissidentes doMassachusetts que,periodicamente, se declaravam contrários às leis primeiras da colônia, e partiam para fundar sua própria igreja nas margens das tentadoras praias do grande rio a oeste. Mas, naturalmente,uma vez que os índios narrangasetts ou os abenakis, descendodo Norte, os ameaçavam, esses libertários loucos, que achavam pesada a férula dos regentes, voltavam-se para o Massachusetts, cabendoaos habitantes de Boston e de Salem organizar expedições punitivas, como fora preciso fazer em 1637 com os pequots, que exterminavam os colonos doConnecticut, e mais recentemente,contra os narrangasetts. Richard Harper falava, agitadocomo um moinho, com os olhos fixos em Angélica, cuja presença parecia insuflar-lhe forças para prosseguir até o fim. Fez o relato, daí em diante clássico de tanto ser repetido, do despertar da família, numa manhã calma como as outras, do grupoinimigo que surgiu como um raio, devastandoa cabana isolada, saqueandoalguns bens: armas, ferramentas,víveres, e raptandoos habitantes da casa que caíam em suas mãos para arrastá-los de camisola, descalços, atrás de si. Havia quatroselvagens e dois franceses,afirmou. Atrás deles, os prisioneiros, dentre os quais ele mesmo, seu pai, sua mãe, seus seis irmãos e irmãs, uma criada, andaram durante horas como uns danados. Os irmãos mais jovens, Benjamin e Benoni, dois bebês gêmeos, de alguns meses de idade, foram criados na mamadeira,pois a mãe não pudera amamentá-los. Na primeira parada,numa clareira, os índios lhes arrancaram a cabeça; “por piedade”,disseram eles, “por caridade!”, pois não podiam fornecer-lhes leite durante toda essa dura viagem através da floresta e das montanhas rumoao Canadá. “Por caridade”,tentava explicar
  • 2. num inglês precário, para acalmá-la, um dos fidalgos franceses à mãe que urrava,louca de dor..., mas ela nãoqueria escutar nada e urrava cada vez mais. No fim, um dos abenakis quebrou-lhe ocrânio com seu tacape, pois seus gritos poderiam atrair no seu encalço os arrendatários ingleses de Springway, que nãotardariam a perceber o rapto. Depois, retomaram sua marcha arrastandoas outras crianças, o paiaterrorizado, a jovem terrificada. Ele, o mais velho, Richard, aproveitara-se da desordem e da balbúrdia causadas por esse triplo assassinato para se lançar no mato ali perto. Ao ver a caravana desaparecer na outra extremidade da clareira sem que tivessem notado seu desaparecimento, nãoesperara mais nada e, correndo, saltando, conseguira distanciar-se de seus raptores. Andara durante vários dias e alcançara regiões habitadas.Confessava que, sob o aguilhão do terror, só pensava em fugir para o mais longe possível. Naquele momento, censurava-se por haver abandonado assim, sem sepultura cristã e à sanha dos animais carniceiros, sua pobre mãe, que revia constantemente em seus sonhos, jazendo, com o crânio despedaçado,juntoa seus dois bebes decapitados... A essa altura da narração, Angélica compreendeu que nãopodia suportar mais e que precisava sair dali. Os rostos embaralhavam-se diante dela, em contrastes brancos e negros, brancos dos colarinhos, faces e barbas,negros das roupas e dos móveis, numa penumbra que a claridade dodia, dispensada pelas janelas com caixilhos com vidro pintado, mas conseguia atravessar. Emergindo doafresco em claro-escuro, a barba pontuda e obrilho do diamante que se balançava na orelha esquerda de Sir Thomas Cranmer,o representante do governador da Nova Inglaterra cujo sorriso picante mas amigável espreitava sua vertigem, e o perfilde pirata das Caraíbas, de fidalgo espanhol, de grão-senhor da Aquitânia em resumo, de seu esposo, o Conde de Peyrac, atrás do qual,de pé,o grande servidor negro Kuassi-Ba nãose distinguia senão pela brancura de ágata de seus olhos e o penachoque guarnecia seu turbante,reconduziam Angélica a uma visão mais estáveldas coisas. Reunindoem torno de si seu amplomanto, levantou-se e saiu, abençoandoa discrição dos costumes ingleses que permitiam a qualquer pessoa deixar uma assembleia sem ter de explicar-se sem que ninguém comentasse o fato, pois indagar sobre os objetivos dessa ausência seria arriscar lançar na confusão inquiridor e inquirido. Logo que chegou à rua, retirou o chapéu e o gorro. Seus cabelos colavam-se-lhe nas têmporas pelo suor que a inundava.Andou tão rapidamente quantopossível até a casa da Sra. Cranmer,onde tinham sido alojados. Seu mal-estar dissipou-se. Mas, quandoquis estender-se na cama do grande quartoque tinham posto a sua disposição, sentiu uma dor lombar e teve a impressão, uma vez mais, de sufocar. Levantou-se então e se dirigiu para a janela. Pensava nessa nova maternidade que desejara tanto. CAPITULO II Reflexões à janela sobre ama gravidez desejada Por que desejeitanto isso? perguntava-se Angélica de Peyrac, a bela condessa francesa das orlas americanas, de pé diante da janela que ela abrira,no primeiro andar da residência de Mrs. Ann Mary Cranmer,na cidade ativa e puritana de Salem, Estadodo Massachusetts, Nova Inglaterra. Não estava ainda realmente inquieta, apenas um pouco sufocada. Seu olhar errava pelo horizonte embaciado, cor de pérola, para o qualfugiam em vagas sucessivas as rochas pardas descobertas pela maré baixa,enquanto,como mil pequenos espelhos esquecidos em seus ocos atapetados de sargaços, cintilava a água dos charcos que o mar deixava ao se retirar. Era uma hora quente, quase meio-dia, no fim de um verão extenuante.Os ruídos doporto e dos estaleiros, à esquerda,se amorteciam. Mas Angélica, tomada de uma súbita lassidão, não percebia realmente o que a cercava, ou não experimentava,ela, que habitualmente apreciava a contemplação do oceano, senão seu aspecto um pouco angustiante, suscitado pela visão de espaços infinitos. Acrescida aochoque e à decepção que lhe havia causado a audição desses tristes acontecimentos, uma preocupaçãopessoal acabava de perturbar oestado de quietude e de felicidade permanente em que ela, de certa forma, se habituara a viver no último ano. Consciente de que certos perigos estavam prestes a ameaçar o equilíbrio dessa felicidade e que certa decisão tomada por ela alguns meses antes a tornaria responsávelpor isso, experimentava a necessidade de interrogar-se sobre o que a levava a empreender essa aventura que era de fato — receava percebê-lonaquele momento — uma loucura! — Por que desejeitanto isso? Não teria, uma vez mais, se deixado apanhar na armadilha pelos impulsos de sua natureza, que mordia a Vida como um fruto, sem se interrogar sobre o dia seguinte? “Louca Angélica”, repreendeu-se. Não teria sido um capricho de sua parte? Tudoia tão bem... tudoestava tão perfeito e sólido à volta deles, enfim! Que necessidade tivera de exigir sabe lá que consagração a uma felicidade sem nuvens,a uma vitória que só se confirmava, quando,em plena saúde e cessando de temer pelos seus,podia dali em diante usufruir sem apreensões todos os encantos da existência? Não tinha recebido da sorte, por muito tempo adversa,todas as respostas e todas as recompensas? Não recebera da vida tudoo que uma mulher pode desejar? Um esposo que adorava e pelo qualsabia ser apaixonadamente amada,dois filhos belos e encantadores que,nobrilho de sua primeira juventude,eram um dos ornamentos da corte da França, na qualsua animação e facúndia faziam maravilhas! Dixit a última carta de Florimond, o mais velho, trazida pelos primeiros navios da Europa. Pertodela, na América, restava-lhe uma filha mais nova, a pequena Honorina,querida por todos, que ela se divertia vendocrescer, esquecendotodas as provações que compartilharam, de combates, medo, solidão, nas quais ainda se censurava por pensar com muita frequência,pois estavam bem distantes notempo. Não conhecera, ao lado de Joffrey de Peyrac, seu esposo, todas as vitórias, e não vira realizarem-se em menos de três anos todos os milagres? Entre outros, a prosperidade de seus estabelecimentos da América do Norte: Gouldsboro, nas margens do Atlântico, e Wapassu, no coração das florestas do Maine,fundados nas piores dificuldades,mas que atualmente,graças à sua aliança com a Nova Inglaterra,
  • 3. conheciam um rápido desenvolvimento. A paz reinava nessa espécie de mar interior a que chamavam baía Francesa, onde pululavam representações de diversas nações e das quais o Conde de Peyrac se tornara guia, se não o mestre incontestável, estendendo-se sua influência pacífica e ativa para o interior até as fronteiras do Kennebec,limite extremo de suas possessões. Mais miraculoso ainda e determinandotudo, nãotinham obtido, ela e ele, o perdão — quase “uma rendiçãoem relação a eles — do maior monarca do universo, Luís XIV, rei da França, e isso depois de um longo conflito em que os três, Joffrey,o vassalo vencido, ela, a súdita rebelde,ele, o soberano implacável, se infligiram os piores golpes? Isso ocorrera contra qualquer esperança.Anotícia lhe fora levada quandose encontravam em Quebec,hóspedes do Sr. Frontenac, governador da Nova França, que sustentara sua causa e esperara com eles o veredicto do rei. Não continha nenhuma reserva.O rei da França, temido em todos os continentes, inclinava-se diante deles, os réprobos, os exilados, esquecendo as ofensas, devolvendo-lhes títulos e riquezas, abrindo-lhes de novo as portas do reino, chegando inclusive a esperar sua volta, deixando-os livres para determinar eles próprios o momento e as circunstâncias para isso. Angélica, mulher satisfeita, mulher mimada, senhora de seu destino, que estava agora somente em suas mãos, protegida e defendida por todos os lados, livre para viver feliz e sem tormentos onde e com quem ela escolhera, que necessidade tivera de exigir mais uma vez do céu um presente,um benefício, um pequenomilagre a mais? Uma criança. Suspirou e sacudiu a cabeça. Você será sempre a mesma! Levou a mãoaos olhos. A reverberação das poças de água,como luíses de ouro jogados aos punhados através da planície de sargaços estendida à sua frente causava-lhe uma leve náusea.Viam-se algumas velas brancas bem distantes, balançando,como que incrustadas nas próprias rochas, na bruma dourada. Ao pé da casa, havia uma praça de terra avermelhada e poeirenta onde transitavam alguns dos ativos habitantes de Salem, vestidos em sua maioria com roupas escuras e cobertos por um alto chapéu preto com aros de prata ou de aço na parte da frente,adotadopelos puritanos da Inglaterra por ocasião da Revolução de 1649,fomentada peloausteroOliver Cromwell. As mulheres, na maioria vestidas de azul cru, com toucas e grandes golas brancas,traíam por esse uniforme sua situação de “engajadas”, isto é, de pessoas que nãotinham acabadode pagar sua passagem para o Novo Mundopor anos de serviço junto àqueles que as comanditaram. O que nãoas impedia de ter o porte desenvolto e segurode mulheres que,pelo menos uma vez, tinham decidido, aceitando atravessar o oceano, escolher sua própria servidão. Toda essa multidão se deslocava diligentemente,como todo bom cidadãodo Massachusetts absorvido pelo objetivo a atingir e a tarefa a cumprir, mas nãoa ponto de nãolançar, de passagem, um olhar curioso e interessado para a residência de Sir Thomas Cranmer,onde sabia que os hóspedes de Gouldsboro tinham ficado, e ali divisar à janela aquela a quem chamavam,em quase toda parte, ao longo das margens e até nos estabelecimentos fronteiriços, “a bela francesa”. Pois, em Salem, como em todos os portos do mundoaonde os leva o mar, quer se queira ou não, quer se tema por sua alma ou se esteja disposto a perdê-la,embasbacavam-se diante de todos os espécimes da humanidade,por vezes sedutoras, sempre inquietantes, mas com os quais é contudo preciso tentar acomodar-se, se se quer comerciar. A grande dama francesa nãoera uma desconhecida para a gente de Salem, e sabia-se muita coisa sobre ela, entre outras, a de que salvara, do cutelo de escalpo dos índios ou do cativeiro no Canadá,um grupo de lavradores ingleses do Androscoggin, ao norte, noMaine. Sabia-se também que ela era esposa de um fidalgo dadoa aventuras que,apesar de francês e provavelmente católico, mantinha excelentes relações com o Massachusetts, a ponto de mandar construir muitos de seus navios nos estaleiros da costa. Sua vinda trazia, pois, um acréscimo de atividades à cidade, e dissimulava-se, sob a justificativa virtuosa dos negócios, o prazer que se tinha em observar suas equipagens,suas toaletes e seus costumes, naturalmente mais levianos e supostamente dissolutos, mas que se desculpavam,pois eram franceses. Entretanto, nesse dia, muitos homens, após lançar um olhar para a bela estrangeira de pé juntoà janela, desviavam, prontamente os olhos e fingiam apertar os lábios com reprovação. Não ficava bem,pensavam — e falariam sobre isso a suas mulheres,para instruí-las, e ao” Conselho, para adverti-lo — , que uma pessoa do seu sexo, cuja maternidade próxima era tão aparente e, além disso, vestida com roupas por demais suntuosas para um estado que exigia discrição e mesmo recato, se mantivesse assim à janela à vista de todos. Realmente, era preciso ser uma papista desavergonhada,que nãorecebera nenhuma educaçãode pudor e de decência, para nãosó se permitir uma coisa dessas, mas ainda não parecer experimentar qualquer vergonha! Angélica, vendoos olhares voltarem-se para ela, acabou por suspeitar das reações de alguns. Sabendo que os puritanos eram muito suspicazes nas questões carnais, sempre se esforçava por prevenir sua suscetibilidade reticente, mas havia amiúde alguns detalhes que lhe escapavam. Compreendendoque chocava os transeuntes servindodessa forma como espetáculo, Angélica retirou-se um pouco para o interior do aposento. Tomada pouco antes por um atordoamento, quase uma sufocação, aproximara-se da janela para respirar um pouco. Agora se sentia melhor. Muito melhor. Desnorteara-se, pois, até aquele dia,sentira-se em plena forma e não tivera de suportar nenhum dos inconvenientes de seu “estado”,como dizem as pessoas pudicas. E, no entanto,estava no sétimo mês de gravidez. Convidada para a extravagante honraria de assistir ao Conselho dos edis de Salem, coisa que dispensaria perfeitamente,nãohesitara em retribuí-la com o incomodo de vestir-se com um amplo manto, a fim de dissimular os sinais de sua próxima maternidade a esses
  • 4. austeros e pudibundos calvinistas que,entretanto, serviam a um Cristo que havia recomendadoinsistentemente a seus discípulos: Crescei e multiplicai-vos! Mas, para os severos representantes docredo presbiteriano, era preciso fazê-lo com o máximo de discrição possível, e seria ainda melhor se se pudesse fazê-lo por obra doEspírito Santo. Lembrando-se também de que São Paulo, de obediência farisaica, denunciara os cabelos da mulher como um dos instrumentos da tentaçãocarnal, e que os puritanos estavam de acordo com ele sobre esse ponto, Angélica colocara na cabeça um lenço de tafetá e um chapéu de abas largas, que lhe cobria as têmporas e lhe dera uma terrível dor de cabeça. Até ali, durante sua viagem,não sentira qualquer fadiga.Mas começava a sentir-se oprimida pelo pesadocalor úmido que reinava no lugar, e não estava em condições de ouvir o que oconselho tinha para expor-lhes. Penseique fosse desmaiar. Imaginou aquela pobre mãe inglesa, morta, com o crânio despedaçado,junto a seus pequenos gêmeos, que jaziam na relva juntoà sua cabeça cortada, como bonecas quebradas... Tinha de recusar por todos os meios essa visão, senão ficaria de novo doente. No entanto, censurava-se por ter abandonadoà sua sorte aquele pobre rapazque entrara,segurandoo chapéu redondoornado por uma pluma, e que a fixava como se ela pudesse ressuscitar seus parentes. O pior era que esses massacres, que sacudiam convulsivamente o Novo Mundopor todos os lados, tomavam a amplitude de fenómenos irreprimíveis, pois o sangue chamava o sangue. Era melhor não pensar demais nisso por ora. Angélica olhou o pequenorelógio que levava à cintura, sacudiu-o, depois, julgando-o parado,acertou-o com uma chave minúscula. A manhã nãoia tão tarde quantoela julgava. Estava sozinha na casa, pelo menos era o que supunha, pois reinava um profundosilêncio, como se lacaios e criados tivessem subitamente se afastado. Onde estavam? No mercado? No ofício? Acostumada por seu instinto, aguçadopor uma vida de armadilhas e de perigos, a perceber rapidamente por sinais imperceptíveis certas reações humanas bem dissimuladas, Angélica ficara intrigada desde o início pelo comportamento de sua anfitriã em Salem, Mrs. Ann Mary Cranmer. Com efeito, esta deixava perceber,por sua expressão carrancuda,que ela não compreendia porque consideravam normal que fosse ela a receber,toda vez que se apresentavam em Salem, hóspedes estrangeiros, como se os julgassem indignos de franquear as soleiras das casas realmente ortodoxas, por sua fé puritana. Os credos religiosos suspeitos poderiam trazer-lhes os miasmas deletérios do pecado... Angélica, tendo observadoa atitude da dama que,ao mesmo tempo que os acolhia honrosamente,lhes fazia cara feia, obtivera de Joffrey uma explicação que lhe parecia correta. Nascida Wexter, filha de Samuel, um dos mais piedosos e intransigentes fundadores da cidade,desposara, por amor, um anglicano notório, o encanador e muito aristocrático Sir Thomas Cranmer.Como era costume, após o casamento, deveria ter deixado, para sempre, mais ou menos banida,as margens de Salem e não mais existir senão para os seus e para os habitantes do Massachusetts,ainda que reduzida ao estado de uma simples lembrança.Mas essa solução radical mostrara-se de difícil aplicação. Primeiro, porque oreferido anglicano tinha um posto elevadona administração real. Depois, porque sabiam ser ele aparentado,por suas origens, a esse Thomas Cranmer, arcebispode Cantuária, conselheiro de Henrique VIII que,nos primeiros tempos conturbados da Reforma, protegera o grande pregador escocês, John Knox, o qual,como todos sabiam, organizara o protestantismo radical da Inglaterra, de onde se originara o puritanismo, e, além disso, fora executadono reinadode Maria Tudor, a Católica, cognominada a Sangrenta. Um sublime reconhecimento ordenava,portanto, que não se mostrasse por demais intolerante em relação a seu sobrinho-bisneto... enfim, o honorávelSamuel Wexter devia ter receadoperder para sempre sua filha única e, até aquele instante,perfeita. O casal foi assim aceito em Salem, e acostumaram-se com Sir Thomas Cranmer,suas rendas,seus brincos de pérola na orelha. Seguidamente abandonada por ele, que nãocessava de navegar entre Boston, a Jamaica e Londres, a filha de SamuelWexter tornou-se mais rígida em sua posição e, como para compensar uma loucura que a colocara à margem de uma sociedade que ela aspirava edificar, ainda mais rigorosa na aplicação de seus deveres religiosos. Punição sumamente amarga: a facilidade com que lhe diziam, enviando-lhe possíveis sequazes de Satã: “Você pode recebê-los!” Angélica puxou uma poltrona com espaldar revestido de tapeçaria e sentou-se um pouco afastada da janela, mas suficientemente perto para se beneficiar um pouco da brisa marinha.Salem, que quer dizer “paz” em hebraico, era uma pequena cidade estranha e encantadora,com seu amontoado de telhados de ripas com empenas pontudas,com cumeeiras de chaminés de cascalhos cinzentos ou de tijolos vermelhos, para os notáveis e os comerciantes ricos. A legislação ali em vigor era estritamente teocrática, e as instituições, diretamente derivadas da Escritura Sagrada. Mas ali floresciam os mais belos lilases do mundo. E, até o alto verão, seus cachos brancos e violeta roçavam os flancos sombrios das casas revestidos de extrato de nogueira. Nos jardinzinhos, carregados de plantas medicinais e de hortaliças, que acompanhavam cada moradia segundoa tradição estabelecida pelos primeiros imigrantes do Mayflower, viam-se luzir o amarantoe o verde-pálido das abóboras e cabaças, culturas generosas, projetando até as ruas, como serpentes velosas, as gavinhas de seus caules de grandes flores vermelhas visitadas pelas abelhas. Agora que Angélica estava tranquilizada,julgava-se uma tola. Era inútil fazer-se naquele momento uma pergunta desse tipo: “Por que eu quis uma criança?” Saber-se-ãoalgum dia as razões que despertam ou acordam nocoração de uma mulher essa grande necessidade vital de maternidade? Elas são únicas e múltiplas, todas evidentes; no entanto, nenhuma delas é a verdadeira,pois não são, de modo algum, razoáveis.
  • 5. Angélica lembrava-se de ter começado a pensar nisso em Quebec,quandovia a pequena Ermelina de Mercourville precipitar-se ao seu encontro estendendo-lhe os braços. Não seria bom saborear os prazeres de uma maternidade nova, já que nãopudera apreciá-los nas maternidades precedentes? Reconstruir o ninhodestruído, sacudido por tantas tempestades? Mas, principalmente, e foi isso que poucoa pouco passou a prevalecer em seu íntimo à medida que tudo se reconstruía em torno deles é neles próprios, passara a desejar ter um filho dele.Dele, seu amor, seu amante, seu refúgioe seu tormento, dele,o único, o homem de sua vida inteira, dele, Joffrey de Peyrac, com o qualestava casada havia quase vinte anos. Ora, tendoalcançado, por uma luta inaudita,através das piores provações, dos caminhos mais tortuosos e imprevisíveis, mas também por uma constância que frisava a obstinação e uma vontade que poderia com frequência ser julgada culpável, em razão dos perigos nos quais ela se precipitara cegamente, tendopois atingido seu objetivo, a realização de todos os seus sonhos: o amor, a felicidade, a paz junto àquele que tanto procurara,julgando-o morto, e do qualpor pouco nãoa separaram novamente as intrigas e os mal-entendidos, como se o destino ciumento não aceitasse a perenidade de seu amor tãopoderoso, ela quisera concluir sua difícil reconquista, marcando-a com um selo inapagável. Sonhara com um filho dele, como teria desejadoum novo amante para forjar esse elo que encarnava para sempre um encontro excepcional. O que era a prova de que tudoera novo entre eles. Pois era preciso fazer-lhe justiça: a ideia de uma loucura dessas não lhe teria ocorrido nos primeiros tempos de seu reencontro. Logo faria três anos que isso acontecera. Quandovoltava a pensar nisso, suas lembranças lhe pareciam muito longínquas e irreais, e ela mal se reconhecia. Como eram pouco caridosos um com o outro nessa época, censurando-se os golpes que a vida lhes infligira, esquecendoque tinham sidoambos vítimas e que nem isso os impedira jamais de se unirem mais estreitamente. Fora preciso aprendê-lo, e, nessa ocasião, ela se espantava com o que tinham atravessado juntos. Como eram estranhos um ao outro, prontos a se rejeitarem, quase a se odiarem e, no entanto, sempre tão próximos, fascinados um pelo outro! Que milagre, quandopensava nisso! Se não tivesse havido essa irresistível atração de seus corpos, que os aprisionava a cada olhar, os unia com encantamentos,sonhos e apetites, desdenhandoqualquer outra consideração,teriam podidosuperar tantos obstáculos, tanto mistério entre eles, tantas decepções e amarguras nascidas de tantas desgraças? Bênção desse grande mistério dos sentidos que os tragava involuntariamente,os jogava nos braços um do outro, afogados em esquecimento, delícias, entregando-se loucamente ao caudalcego que apaga o mundo. Contra essa corrente de paixões que os arrastava num turbilhãode alegrias e de surpresas sem nome, o Diabonão pudera vencer a partida, apesar de assestar contra eles todas as suas baterias. Pois o Amor é o principal inimigo do grande Destruidor. Entretanto,só depois da experiência de Quebec,cidade francesa do alto norte da América, para onde tinham ido a fim de negociar uma reconciliação possível com o rei da França e seus compatriotas, e onde atravessaram, em família, um inverno insólito, mundanoe movimentado, foi que ela se sentira diferente, invadida por um súbito desejo: ter mais um filho dele,um novo filho para uma nova vida! Evocou essa volta. Deixavam a pequena capitalda Nova França, enfim liberta de seus gelos. Sua frota descia o rio Saint-Laurent, atravessava o golfo domesmo nome e Angélica, a bordodo navio-almirante, o Gouldsboro, olhando peloportaló, com Honorina, rebanhos de marsuínos-brancos que brincavam entre as ondas, conhecera momentos de júbilo intenso e de certeza, em que não mais intervinham qualquer sombra,qualquer inquietação. Os problemas estavam resolvidos, as batalhas estavam ganhas,se nãotodas as batalhas,pelo menos a que havia entre eles. Durante esse inverno em Quebec,não souberam que estavam ligados para sempre por invisíveis e sutis cadeias que nada conseguiria quebrar? Tinham descoberto que,por mais selvagemente independentes que fossem um em relação ao outro, não podiam realmente viver, respirar, pensar,um sem o outro. Certamente,Joffrey era um homem misterioso, imprevisível, inalienável, e ela também,embora se julgasse, com a melhor boa fé e como o faz a maior parte das mulheres, muito transparente em seu comportamento e em suas intenções. Mas não se teriam amado tanto se fossem mais fáceis e submissos às leis comuns. Então, enfim, com o espírito e o coração leves, começara a sonhar com esse novo filho e tivera vontade de oferecê-lo a si mesma, sem nenhuma razãoa nãoser a felicidade! Uma nova criança para uma nova vida. Sentia-se mais jovem e mais alegre do que jamais o fora.A proteção de um homem que a defendia e a livrava de todas as responsabilidades demasiado constrangedoras ou decisivas, a batalha ganha sobre o ostracismo do rei, deixavam-na livre de qualquer preocupaçãoe cuidado, e noinício isso era um tanto incômodo. Dava-se conta de que tivera até entãouma vida séria demais. Pois, excetuando-se os poucos meses do sonho encantadovivido em Toulouse como uma pausa em seu destino atormentado,o que fora sua vida desde os seus vinte anos, quandose achara lançada na mais profunda miséria e na solidão? Uma vida a lutar, a morder, a arranhar,a se defender,a se desculpar,por seus filhos, seu pão, sua honra... Claro, não conservava senão más lembranças.Esses anos de combate nãohaviam deixadode ter diversões e distrações marcadas com frequência pelohumor, e ela soubera, sendopor natureza espontânea,rir, nessa oportunidade,da tolice da existência e rejubilar-se com os triunfos adquiridos para saborear os momentos agradáveis roubados a essa cavalgada de sobrevivência. Não importa! Nesse navio, seu navio, que os levava, como que fora do tempo, para um futuroque ela podia pressentir finalmente apaziguado e feliz, pareceu-lhe que chegara omomento de depor as armas e mudar tudo.Ser uma outra mulher. Aquela que ainda nãopudera se permitir ser. Recomeçar tudo, como há vinte anos. E o que haveria de mais novo do que uma criança? Decidira: Sim, era isso. Mas, como era livre, graças a seus “segredos” de curandeira,para governar os misteriosos acasos da concepção, continuou a esperar. Esperou um pouco. A vida ensinara-lhe,de qualquer forma,a contemporizar, a moderar a presteza de seus impulsos. Não se tratava mais de estratégia militar, na qualse excedera na época de sua revolta contra o rei, e que exige um golpe de vista rápidoe sem falha e a ação imediata, mas de alicerces da paz, tarefa à qual,muito frequentemente,as nações se aplicam com menos talento e zelo que na guerra.
  • 6. Queria instalar-se nessa nova era feliz que os augúrios anunciavam,assegurar-se de que nãoera um logro, habituar-se ao estadode trégua e à existência cotidiana junto dele,seu amor de sempre,seu mestre e seu amigo. Era-lhe necessário mais ainda saborear a certeza desse entendimentoamoroso que ela sentia queimar entre eles como uma chama ardente,suave e serena, que nada doravante poderia fazer vacilar. Esperou Wapassu. E como fosse costume de Joffrey de Peyrac ser o mais louco dos amantes,o mais intuitivo e o mais pródigo, foi ele que tornou a falar sobre o novo filho com o qualsabia que ela sonhava e que selaria seu Amor. Tinha também ele o instinto de que seu destino, já tão movimentado, se encaminhava,não para um fim, mas para um começo? Enquantoa neve continuava a amortalhar Wapassu,nessa época de inverno em que, nos fortes de madeira dos grandes espaços americanos, quase se esquecia da existência de outros seres humanos na terra, eles conceberam o filho do Amor. QuandoAngélica descobriu estar grávida, ficou extasiada, estupefata,embora devesse saber que as sábias misturas de medicinas, cuja supressãoou administração sabia tão bem dosar, conforme “segredos” que lhe ensinara desde a infância a feiticeira Melusina, deviam naturalmente levá-la aos resultados desejados. Malpodia acreditar! Em abril, a criança se mexeu dentrodela e, dessa vez também, ela experimentou uma surpresa inaudita, deslumbrante. Era,pois, tão simples obter docéu aquilocom que sonhava: um filho. Um filho para a felicidade... Sentia-se tão feliz, num estado de euforia tão natural, que,à parte esses estremeções pelos quais “ele” revelou sua presença, chegava por vezes a pensar que nãoestava grávida. Todos os inconvenientes que acompanham oinício da gravidez lhe foram poupados. Conservou-se por muito tempomagra. Não experimentando nenhuma fadiga e mesmo, parecia-lhe, sentindo-se mais bem-disposta e mais vigorosa que em tempos normais, não teve de mudar nada em sua ativa existência, nem nos projetos de viagens, que deviam se reiniciar na primavera rumo a praias onde se retomaria contato, não só com os habitantes do porto de Gouldsboro, mas ainda com o resto do mundo.Os navios levavam para ali os correios da Europa e, conforme as notícias provenientes da baía Francesa, era raroque Joffrey de Peyrac nãotivesse de elaborar um plano completo de navegação. O verão era, com efeito, um período de intensa atividade naval. Naquele ano, o conde teve de ir a Nova York, viagem que lhe permitiria ao mesmo tempovisitar, na ida ou na volta, os mais importantes estabelecimentos da Nova Inglaterra, escalonados ao longo de toda a costa, de Nova York a Portland, passandopor Boston, Salem e Portsmouth, onde tinha amigos e interesses. Angélica quis acompanhá-lo. Calando-se sobre a promessa secreta que fizera a si mesma de nunca mais deixar Joffrey partir para onde quer que fosse sem ela, adiantou-se para convencer seu marido de que precisava a qualquer preçoencontrar, lá pelos lados de Casco, seu amigo, o medecin's man inglês, George Shapleigh,ao qualtinha todo tipo de pergunta a fazer e junto ao qualdevia se prover de remédios, especialmente das lascas de raiz de mandrágora,indispensáveis para o fabrico da “esponja soporífera”, cuja provisão estava esgotada.De qualquer maneira,arguiu,queria ver Shapleigh antes doparto, pois ele possuía, no seu covil da ponta Maquoit, livros de medicina, os mais eruditos domundo, e que ela queria consultar. EnquantooArc-en-Ciel, altivo navio de mais de trezentas toneladas,recentemente saído do estaleiro de Salem, singrava rumo aosul, dirigindo-se diretamente para a embocadura do Hudson, foram enviadas mensagens a Shapleigh,combinandoum encontroem Salem para o início de setembro. Como o nascimento da criança estava previsto para o fim de outubro, o Arc-en-Ciel e a pequena frota de Peyracteriam tempo de sobra para voltar a Gouldsboro, onde deveria ocorrer o parto. A seguir, dependeria da estaçãoe da chegada mais ou menos precoce dos primeiros frios para que o recém-nascido — principezinho ou princesinha? — pudesse empreender seu primeiro périplo neste mundo, rumoàs nascentes do-Kennebec,para ali atingir esse longínquo feudode Wapassu,onde passariam o inverno, o que Angélica esperava muito. Apesar de todo o prazer que sempre sentia em reencontrar seus amigos de Gouldsboro, preferia sua vida retirada nas regiões afastadas àquela vida nas margens. E atualmente,mais doque nunca,fazia-lhe falta o ar puroe vivificante doMaine. O calor úmido das orlas, sufocante quandose distanciava do mar,a oprimia. Tinha dificuldade para retomar o fôlego por alguns instantes. Um medohorrível tomou conta dela. Pouco antes exaltada, vagandonas nuvens a ponto de o presente e o futurolhe aparecerem revestidos das cores mais brilhantes, uma brusca recordação dos receios que a haviam aflorado derrubava seu otimismo, como uma barca virada por um vagalhão. O medo tornava-se pânico. Angélica, nesse instante,sentia-se fraca e tocada pela grande apreensãodas mães cuja carne está ligada a uma carne frágil. Responsável por essa criança, sentia-se também responsável pela desgraça que poderia atingi-la e que,talvez, já pesasse sobre ela, e censurava-se por sua impotência em afastá-la doperigo. Pois o filho da felicidade estava ameaçado. Essa dor que sentira no fundode si mesma seria o anúncio de um perigo que,ao ser arrancado,muito mirrado ainda, dorefúgio das entranhas maternas,o condenaria? Era demasiadocedo para que ele nascesse. Faltava ainda um mês inteiro... Mas Angélica tinha ainda uma outra razão grave para recear pela sobrevivência desse filho tão desejado, tão sonhadoe tão amado antecipadamente: os perigos de um parto prematuro,pois, havia alguns dias, ela estava quase certa de que eles eram dois. CAPÍTULO III Um pressentimento: serão gêmeos? De que outro modo interpretar essa sensação de agitação que começara a lhe parecer excessiva e a passagem, bem perceptívelsob sua mão, quase visível sob a pele, de duas pequenas cabeças redondas?
  • 7. “QuandooCéu se põe a cumulá-la!...”, dissera a si mesma, inicialmente surpresa,entre incrédula e perplexa.E prestes a explodir de riso, na verdade encantada, dominara-se, dizendo-se que não havia motivo para rir e não sabendorealmente o que pensar. O curso de sua vida, bem centrada em perspectivas razoáveis, não iria subitamente tomar proporções insólitas? Gêmeos!... Decidira esperar para falar disso aos que a rodeavam e mesmo a seu marido. Mesmo porque, a frota de Joffrey de Peyraclançava âncora em Salem, que nãoestava muito longe de Gouldsboro, e, nocais, algumas personalidades do estabelecimento vindas a negócios se apresentavam para os saudar.Ali estava o Sr. Manigault, importante armador que comerciava até nas Antilhas, o Sr. Mercelot, papeleiro rochelês, encarregadode estabelecer moinhos nas colônias inglesas, e sua filha Bertille, que lhe servia de secretária. Começou-se por trocar novidades sobre todas as famílias. Bertille Mercelot, a egoísta filha única dopapeleiro, olhava Angélica com um sorriso irónico e satisfeito. Não seria ela, parecia dizer, que deixaria seu belo corpo deformar-se por uma maternidade. Depois, os notáveis de Salem aproximaram-se, de fisionomia carregada — agora sabiam por quê — , a fim de convidá-los para o famoso Conselho, já na manhã seguinte,e Angélica, fazendoface a suas obrigações, resignava-se a nãoperceber George Shapleigh na multidão, ao mesmo tempoque pensava ser ele a única pessoa que teria desejado realmente encontrar à chegada.Ele teria dirimido suas dúvidas sobre o possível nascimento de gêmeos e a teria tranquilizado. Tinha confiança, não apenas em sua ciência médica, mas também em seus conhecimentos de velho mágico trocista. Ele nãoestava, portanto, presente,e era preciso sorrir para todos, instalar-se em casa de uma senhora inglesa de lábios apertados, sofrer as horas de insónia de uma noite de calor acachapante,dirigir-se na manhã seguinte ao tal Conselho. Mobilizando toda a sua energia para não deixar de comparecer à reunião, Angélica não encontrara forças para se interrogar ainda mais sobre o enigma do tesouro que carregava em si — uma ou duas crianças? — nem para falar disso a Joffrey de Peyrac, que naturalmente era solicitado por todos os lados. Furtivamente, pousara por instantes sobre ela aquele olhar sombrio, cheio de fogo, que talvez adivinhasse nela a sombra de uma preocupação. Angélica fazia questãode não deixar que os dissabores ou fraquezas de seu estadointerferissem nobom andamentode seu périplo e nos imperativos das escalas. Não tinha temperamentopara sofrer com isso. Ademais, pertencia a um século em que as mulheres faziam pouco das incomodidades de uma gravidez, sendoesse estadoconsiderado, por educação, mais naturalcomo constante doque o contrário. As mulheres da sociedade, menos ainda que as camponesas, nãotinham tendência a se mimar em tais circunstâncias, e, em Versalhes, as amantes do soberanoapresentavam-se,em trajes palacianos, na passagem do monarca, menos de uma hora após ter posto no mundo,numa antecâmara qualquer,por trás de um biombo, um pequenobastardoreal. Era por isso que Angélica julgava seu desfalecimento matinal inexplicável. Levantou-se para dirigir-se à mesa sobre a qualestava colocada sua caixinha de viagem, contendopentes, escovas, espelho, joias e bugigangas de primeira necessidade,caixas de unguentos ou de maquilagem. Pegou um pequenofrascoe um vidro e encaminhou-se para o patamar,onde havia uma talha de apartamentocom um reservatório e uma bacia de louça azul e branca ornamentada,talvez de Delft. Deixou escorrer a água da torneira de estanho para dentro do vidro, mais uma vez refletindo que esses puritanos, que pareciam desdenhar tantoos encantos da vida, tinham a arte de rodear-se de belos móveis e de objetos refinados, cuja proximidade compensava agradavelmente a severidade de costumes e de palavras que,por outro lado, ostentavam. Angélica, que apreciava o encantocaracterístico de cada casa, apreciava aquela,habitada na penumbra por fulgores de madeira bem encerada,de cobres bem polidos, de cristais ou de cerâmicas impecáveis. A colcha sobre a cama era de renda. Angélica engoliu seu remédio. Era uma miscelânea de plantas que ela própria preparava e cuja eficácia conhecia. Já se sentia melhor, e o pesadoodor de maresia lá de fora, misturadoao do piche derretido que vinha das docas e ao dos camarões fritos, que se intensificava na hora doalmoço, parou de incomodá-la. — Senhora!Senhora!Uma voz a chamava do ladode fora. Sorriu, voltando-se. para a janela. Kuassi-Ba, juntoà casa, erguia para ela seu rosto negro. — Meu amo mandou-me.Ele está preocupado. — Diga-lhe que fique tranquilo.Eu estou bem. Kuassi-Ba representava a atenção de Joffrey sobre ela. Imutável e fiel guardião, mais amigo doque servidor, depois de tantos anos ao lado doconde, atento ao menor sinale adivinhandoas mínimas mudanças de humor naquele com quem partilhara os trabalhos, as viagens, as desgraças, os perigos, e até a servidão nas galeras, ele era para Angélica como que a encarnação de uma solicitude que ela sentia jamais se desmentir. Muitas vezes, ele surgia diante dela, transmitindo uma mensagem ou informando-se sobre seus desejos, esperava na soleira de uma porta para acompanhá-la ou então se apresentava carregandouma pequena salva de prata, na qualfumegava uma xícara de café turco, no exatomomento em que ela daria sua bolsa e sua vida para beber uma,pois — e nisso é que havia uma certa magia naquiloque os unia aos três, ela, Joffrey e ele, Kuassi-Ba — era sempre com conhecimento de causa que ele aparecia. Mais uma vez, Joffrey e seu servidor não deviam ter trocado senãoum olhar para que o grande negrose esgueirasse como uma sombra para fora da sala do Conselho. Sua presença familiar, benevolente e devotada de corpo e alma, mesclada ademais a uma indulgência e a uma admiração sem limites por tudoo que ela dizia ou fazia, reconfortou Angélica, e ela quase se surpreendeu por ter estadoabatida instantes antes.— Deve o amo despedir os regentes e vir ao seu encontro? — informou-se ele. — Não, Kuassi-Ba, os assuntos que esses senhores precisam debater são muito graves. Eu esperarei pacientemente.Transmita-lhes minhas desculpas. Faça com que compreendam,o que, eu acho, já compreenderam muitobem, que,tendoessas tristes notícias me abaladoprofundamente,retirei-me a fim de meditar melhor sobre os meios de ajudá-los. — Bem! Bem! — disse Kuassi-Ba, com um gesto de adeus e de bênção. Afastou-se, escandindo, sobre os altos tacões de seus sapatos de fivelas, um passinhode dança.
  • 8. O grave Kuassi-Ba, que se presumia ser um homem de idade,manifestava uma exuberância nova, desde que soubera da chegada entre eles de um “pequenopríncipe” ou de uma “pequena princesa”.Comoficaria se viesse a saber que talvez fossem dois!... Os pulos de alegria não combinariam com seus cabelos brancos. “Mesmo querendosatisfazer todos os votos de Kuassi-Ba”, pensou,tornandoa sentar-se na poltrona, não posso deixar de recear essa perspectiva inesperada.Tentou imaginar dois menininhos de olhos negros e cabelos espessos que se pareceriam com Florimond, ou nãoseria mais engraçadoe mais encantador duas menininhas,também morenas, de olhar vivo e cálido? Não conseguia emprestar-lhes sua loirice ou seus olhos claros, pois sonhara com “ofilho de Joffrey” e só conseguia imaginá-lo à sua imagem. Mas dois! O que aumentava sua perplexidade era lembrar-se da prediçãoda adivinha Mauvoisin, a quem jamais levara a sério e que estivera ausente de suas lembranças durante inúmeros anos. Isso ocorrera em Paris, numa época em que,sozinha e numa situação precária, trabalhava duramente para ganhar seu pãoe o de seus filhos pequenos,Florimond e Cantor.Com duas amigas, que estavam como ela em dificuldades,e curiosas por saber se o futurolhes seria mais clemente do que o presente, fora consultar Catarina Mauvoisin, que chamavam também La Voisin, em seu antrodo Faubourg du Temple, frequentado,desde então,por toda a Paris. A feiticeira estava naquele dia bêbada comouma cabra.Vestida com seu mantobordadocom abelhas de ouro, ela descera titubeandode seu trono e, encaminhando-se para as três belas jovens diante dela, dissera a cada uma, após olhar a palma de suas mãos: “O reia amará”,acrescentandopara a mais modesta e deserdada: E ele até a desposará!, o que deixara furiosa a terceira participante, que estava certa de ter o destino mais glorioso dentre elas. Angélica ria ainda ao rever a cena.O que a perturbava é que,dirigindo-se de novo a ela, com o dedo em riste, a bêbada declarará: “Você terá seis filhos”. Essa predição, enunciada com uma voz pastosa, parecera-lhe na época a coisa mais ridícula e incrível, e procurara esquecê-la logo. Ora, com a passagem dos anos, nãoestava se encaminhandolentamente para a realização das predições da beberrona? Três jovens mulheres soberbas, três poitevines, ligadas por amizade por sua origem provinciana, estavam naquele dia diante da feiticeira Mauvoisin, em Paris: Atenaís de Montespan,nascida Rochechouart, Angélica de Peyrac,nascida Sancé de Monteloup, e Francisca Scarron, nascida D'Aubigné. Ora, naquele momento, uns vinte anos mais tarde, a bela Montespan triunfava em Versalhes, tornara-se a mais amada e a mais brilhante das amantes de Luís XTV, a obscura Francisca Scarron, cujos vestidos remendados iam longe, acabara de ser nomeada por ele marquesa de Maintenon, e Angélica, que se recusara aomonarca, nãose preparava,em sua longínqua América, a pôr dentroem breve no mundo duas crianças, o que elevaria a seis o númerodos que concebera? “Seis! E talvez logo. Não”, disse a si mesma, nervosa só de pensá-lo. “Logo, não! Seria desastroso para essas pequenas vidas! Seja como for, está fora de cogitação fazer o partoem Salem. Tenhode estar em Gouldsboro.” Por nada desse mundo, queria pôr seu filho — ou filhos — no mundonuma colônia da Nova Inglaterra; e os lilases de Salem, seus belos olmos em harmoniosos ramalhetes, nãocompensavam para ela a rígida atmosfera que faziam reinar em sua cidade essas terríveis pessoas de bem, uma cidade onde uma mulher grávida nãopodia respirar à janela sem que a apontassem com o dedo. Olhou para o horizonte, sonhou em embarcar, singrar rumo a Portland, onde talvez encontrasse Shapleigh,rumo a Gouldsboro, onde sua amiga Abigail a cercaria de seus cuidados. E lá, estariam “em casa”. Uma sombra repentina se propagou,penetrandocomo uma onda tenebrosa no aposento, parecendo engolir os móveis e tapeçarias. Um concerto de gritos estridentes se amplificou. Era uma revoada de pássaros, como ocorria a todo instante, em imensos lençóis que transpunham a própria cidade, sobre as margens de um continente ainda quase inviolado. Compreendia-se entãoque o ser humano tinha ali bem pouca importância, diante dopululamentoanimal, e que nãoeram essas poucas cidades e aldeias aqui e ali que faziam recuar infinitamente a floresta soberana. Angélica por pouco não soltou um grito. O eco de uma voz odiosa sussurrava de repente em seus ouvidos: “Aprendia odiar o mar porque você o amava, e também aos pássaros, porque os achava belos, assim como seu extraordinário voo, quandopassavam aos milhares em nuvens que obscureciam o céu!...” A Diaba!... Só um ser diabólico podia encontrar tais inflexões, de memória tão recente! Angélica defendia-se por vezes inutilmente, mas conservava o obscuro pressentimentode que a Diaba — apesar de morta e enterrada — não dissera sua última palavra. Quandose odeia com tal força, não se pode prosseguir até no além seus projetos de vingança? Ela fora tão hábil, aquela mulher enviada pelo jesuíta para destruí-los! A luz voltou bruscamente.Os pássaros abatiam-se lá longe em bruscos rastilhos de neve,cobrindo as rochas. Seus gritos diminuíam, e ouviam-se como eco os dos lobos-marinhos, que passavam em bandos ao largo. O mar se elevava. Angélica arrependia-se de ter dito a Kuassi-Ba que tudoestava bem e que teria paciência. Não podendoachar um serviçal de Mrs. Cranmer,perguntou-se onde estariam os seus... E onde estava a jovem Severina Berne, que trouxera para fazê-la ver um mundomenos rude e mais próximo, daíem diante, da civilização europeia do que seu estabelecimentode pioneiros de Gouldsboro? A gentilSeverina, de dezesseis anos, bem que merecia passear por uma cidade animada como Nova York, e mesmo Boston e Salem,, depois de ter labutado corajosamente, desde os três anos, numa terra selvagem onde nãoexistia, quandoalidesembarcara com sua família vindo de La Rochelle, senão um forte de madeira e alguns casebres. Durante esse périploao longo das costas da Nova Inglaterra,Severina fora para Angélica uma companhia feminina agradávele que a distraía. Elas restabeleceram seu contato, reatandoos laços de afeição quase familiar que as uniam desde que Angélica vivera em casa dos Berne, nos tempos de La Rochelle. Ela também cuidava de Honorina, no barcoe nas escadas. Hesitaram em trazer sua filhinha,que talvez ficasse melhor se calmamente instalada em terra, cercada pelos melhores cuidados em Wapassu ou em Gouldsboro, como o haviam feito durante algumas curtas viagens de verão.
  • 9. Mas, dessa vez, Honorina manifestara uma certa inquietaçãopor ver Angélica afastar-se “em companhia” dofuturoirmãozinho ou irmãzinha. Foi pelo menos assim que Joffrey de Peyracinterpretou as reflexões que ela proferiu várias vezes à socapa. Honorina dizia algumas vezes tudo o que pensava sobre certos pontos. Mas não dizia tudo. Era preciso estar atento. Aceitou a amizade de Severina e rejubilou-se com a viagem. Naquela manhã,deviam ter ido passear juntas,pois havia mil coisas a ver no porto e na cidade, com os entrepostos, armazéns e lojas abarrotados de mercadorias. Angélica julgou ouvir suas vozes e, inclinando-se novamente à janela, avistou com efeitoa adolescente, que dobrava a esquina,dandoa mão à criança. Ambas estavam acompanhadas por um rapaz alto, vestido de roupa escura, como os puritanos do lugar, mas calçando botas e coberto por um chapéu de abas largas ornadopor uma pluma, que nãodeixava de ter certa elegância. Severina e ele palestravam com animação e, foi o que pareceu a Angélica, em francês. O que,em todo caso, não era comum em Salem. CAPITULO IV Natanael de Rambourg — Almoço no Arc-en-Ciel— O relatório de John Knox Matther — Noite de lua cheia entre puritanos A porta de baixoestalou, e Severina chamou: — Dame Angélica! Avisaram-me que a senhora tinha voltado para casa de Lady Cranmer. Trago-lhe um francês que diz ser de sua província e deseja conhecê-la. Surpresa,Angélica voltou para o patamar.O vestíbulo estava escuro, e ela nãodistinguiu muito bem os traços do recém-chegado.O rapaztirara o chapéu e erguia para ela um longo rosto anguloso e pálido, a que nãoconseguia dar um nome, mas que lhe inspirava, no entanto,uma vaga reminiscência. Ao vê-la, soltou uma exclamação: — Oh!Madame du Plessis-Bellière, então é a senhora mesma! Eu não ousava acreditar nisso, apesar de todas as informações que recolhi por aí e das comprovações que me confirmavam sua vinda para a América. Galgou com suas longas pernas as escadas, pulandoos degraus de dois em dois, e, ajoelhando-se diante dela,beijou-lhe a mão com fervor. Angélica continuava perplexa.Quem poderia ser esse jovem que a saudava pelonome que ela usava outrora em Versalhes, quando ocupava um lugar entre as grandes damas da corte? Ele se ergueu.Grande, magro e desengonçado, era uma cabeça mais alto que ela. — Não me reconheceu? Sou Natanael de Hamburg.E, como ela ainda hesitasse: — Nossas terras eram vizinhas das suas do Plessis, no Poitou. Toda a minha infância, brinqueie fiz mil estripulias com seu filho Florimond, e foi mesmo com ele que cometi a loucura de fugir para a América. — Oh! Já me lembro! — exclamou. — Que surpresa,minha pobre criança! Os nomes, as palavras, acabavam de ligar num raio algumas imagens antigas para atingir o eco de um duplo galope distanciando-se através das folhagens do parque de Plessis, e que ela ouvira no seio de uma noite aterradora.Quase cambaleou, depois se recompôs. — Natanael!Mas claro! estou reconhecendo você!... Sente-se,então. Retomava bruscamente o tratamentofamiliar que empregava outrora para com o pálido garotinho, já “comprido como um dia sem pão”,dizia Bárbara,e que ela sempre vira arrastar-se atrás de seus dois rebentos, Florimond e Cantor, quandopermaneciam noPlessis. Escolta com a qualpor vezes fingiam estar aborrecidos, expulsando- a, rejeitando-a, fazendo-a sofrer mil vexames,reintegrando-a em seguida em suas boas graças, quandose tratava de fomentar algumas explicações guerreiras ou alguns complôs contra as “pessoas adultas”. O domínio de Rambourg justapunha-se,com efeito, às terras doPlessis. Pertencia a uma família de nobreza bem antiga que aderira à Reforma, desde os primeiros sermões de Calvino. Huguenotes havia três gerações com poucos recursos financeiros, prolíficos — Natanaelera o primogénito de oito ou dez filhos — religiosos fervorosos, tinham tudo para atrair sobre si a desgraça,a perseguiçãoe a tragédia. Naquele último verão que passara noPlessis, Florimond e Natanael encontravam-se com frequência,conspirando mais doque nunca.— Ele era tão tagarela, o Florimond — disse o rapaz, rindo — , tão imaginativo e tão convincente, que eu o segui! Angélica instalara-se novamente na poltrona de espaldar alto. Precisava de um instante de repouso para acostumar-se à notícia. — Minha querida — disse ela, dirigindo-se a Severina, que se preocupava por vê-la assim — , quer preparar-me uma tisana de passiflora, e trazê-la numa xícara bem quente? Tome, pega um saquinhoem minha bolsa de medicamentos. O visitante, dobrandosuas pernas compridas, sentara-se num “quadrado” de tapeçaria,espécie de tamborete de crina que espalhavam pelas casas. Angélica não podia acreditar que o estivesse vendoali. Era um espectro!... Mais que isso! Um sobrevivente. Florimond, depois de ser reencontrado, nunca dissera uma palavra sobre isso e, quandoàs vezes pensava a esse respeito, Angélica se prometia interrogar o filho acerca de seu companheiro de viagem. Depois, esquecia, guardandoa impressão confusa de que os dois jovens aventureiros tinham se separado antes mesmo de embarcar. Ora,ele estava na América. O que lhe havia acontecido nesses últimos anos, além de ter crescido desmesuradamente? Observando-o, Angélica disse a si mesma que,ainda assim, ele era mais bonito que seu pai, o pobre Isaacde Rambourg,ele também, magro e comprido, mas dotadode um fôlego prodigioso e que morrera soando desesperadamente a corneta, noalto de seu torreão, reclamandoum socorro impossível, para ele, huguenote,abandonado,nocentro mesmo de sua província, à crueldade dos dragões do rei, “os missionários de botas”. Ela sempre ouvira os sinistros apelos docorno de caça planandosobre a floresta, enquantoas primeiras chamas, incendiando Rambourg, jorravam pelas janelas docastelo. Atormentada, notou que o rapaznão parecia a par do que acontecera com os seus. Falava deles no presente.
  • 10. Angélica sentia-se incapaz de anunciar-lhe tão bruscamente que ele perdera toda a sua família e de evocar para ele um outro massacre, esse perpetradonoVelho Continente,depois da narrativa dos do Novo Continente que tivera de ouvir aquela manhã na assembleia dos ministros presbiterianos. E eis que,à sua simples evocação, a inquietante dor, surda e difusa, que acreditara sentir nos rins, se manifestava novamente. Suas preocupações mudavam de objeto; entretanto,as lembranças voltavam às margens de Salem, varridas por um ventolouco, pela espuma do mar, por pássaros ruidosos, tão longe dobosquezinho espessoe cerrado, dos campos estreitos cercados por caminhos vazios do Poitou, na França, onde se desenrolaram e se desenrolariam ainda as tragédias ocultas da perseguição. Um oceano estava entre eles. — É verdade que,naquele verão,estávamos muito aborrecidos noPlessis, Florimond e eu — dizia Natanael de Rambourg. — Lembra-se, senhora? Havia a soldadesca em toda parte,e até em sua casa, que nãoera, contudo, uma reformada.E esse... como é que se chamava, Montadour, que os comandava e se permitia mandar em todo mundona região, católicos e protestantes, nobres e camponeses, que personagem horrível! Que época horrível! Severina voltava trazendo uma tigela fumegante numa pequena bandeja de prata.Lançou um olhar de raiva para o intruso, agastando-se agora com sua presença, pois parecia que fatigava Angélica, cuja alteração de fisionomia ela notava. Ficara encantada por ser abordada por ele nas ruas de Salem. Um jovem francês de boa linhagem, e huguenote como ela, nãoera coisa tão frequente.Mas agora que via a fisionomia tensa de Angélica, adivinhava,em sua delicadeza sombria, que essa visita era importuna,e seu único pensamentoela pô-lo para fora. — Beba isso, senhora — disse com um tom peremptório — , essa bebida lhe fará bem com esse calor. A senhora diz sempre que as bebidas quentes matam mais a sede que as frias. E, depois, deveria deitar-se um pouco e repousar. — Creio que você tem razão, Severina.Caro Natanael, logo será hora de jantar. Deixe-nos sem cerimônia e volte para nos ver à noite. Falaremos durante mais tempo. — É que — disse ele, desdobrando-se com hesitação — nãosei onde jantar. — Corra até o porto e compre uma libra de camarões fritos— sacudiu-oSeverina, empurrando-opara a porta — , ou então vá até a Taberna da Ancora Azul, o dono é um francês. Sem se ofender,o jovem Rambourg pegou o chapéu,afastou-se para beijar a mão de Angélica e se retirou, quase alegre, lançando-lhe estas palavras,que lhe atravessaram o coração como um punhal: — A senhora me dará notícias sobre minha família. Talvez tenha alguma nesses anos todos... Eu enviei um ou dois recados. Mas não obtive nenhuma resposta. — Ele deve ter-me ouvido falandofrancês com Honorina — explicava Severina — , e depois de nos seguir um bom tempo, apresentou-se e nos feztodo tipo de perguntas,como costumamos fazer, nós, franceses,de modo que depressa nos inteiramos sobre cada um: “De onde você é? De La Rochelle. Eu sou dos arredores de Melle, no Poitou. Quandochegou à América?”, etc. Dame Angélica, o que há? A senhora nãoestá com boa cara. Angélica admitiu que o calor a extenuava. Mas ia beber tranquilamente sua tisana e nãotardaria a sentir-se melhor. — Severina,faça-me um favor. Estou cansada de esperar nesta casa deserta sem poder me informar com ninguém. Todo mundodeve ter corrido ao porto para a chegada de nãosei que navio. Vá saber as novidades!Informe-se também sobre se o Conselhoa que o Sr. de Peyracestá assistindo está acabando. E também,se nãoouviram falar do velho medecins’man,George Shapleigh.Sua ausência é inexplicável, e estou impaciente, inquieta. Severina precipitou-se para a escada e depois, para fora, decidida a parar toda a casa do Conde de Peyrac e a sacudir todos os solenes ingleses suscetíveis de dar-lhe informações sobre esse Shapleigh, pronta a penetrar em todas as tavernas da cidade. Mas iria antes procurar o Sr. de Peyrac, na Council House, sem preocupar-se com interromper uma assembleia tão solene, com aquele desrespeito pelos graves problemas dos homens que seu pai, mestre Gabriel Berne, lhe censurava frequentemente; mas ela estimava que os das mulheres não eram menos graves. E, nocaminho, nãodeixaria de chamar a atenção de todos os membros da criadagem de Mrs. Cranmer e mandá-los de volta a suas obrigações, pois todas essas pessoas de bem, vestidas de azul ou de preto, criados ou criadas, enquanto falavam sem parar sobre a santidade de sua tarefa para a glória do Senhor e para o pagamentode sua travessia para o Novo Mundo,que deviam a seus amos, passavam o dia a ocupar-se com ninharias, segundoela. Angélica viu-a da janela, passandoa toda pressa, e sorriu. Com a jovem Severina, que a adorava, não precisava preocupar-se. Virando-se, percebeu na penumbra de um recantocomo que um reflexo de fogo, alguma coisa vermelha que brilhava, e viu que aliestava Honorina, que devia ter sentido, como ela, necessidade de tirar seu gorro durante o passeio, o que explicava sua bela cabeleira ruiva solta e esvoaçando, devido ao ventodo mar. Honorina era como um duende.Mal Angélica a avistava, desaparecia de novo. Ouviu-a levando alguma coisa para o patamar e levantou-se para ir ver, dizendo-se: “Não, nãoestou pertode dar à luz, senãome sentiria mais viva e ágil”. Todo mundosabia que uma mulher,quandoestá prestes a dar à luz, sente-se tomada por uma nova energia que a impele a arrumar a casa, a se entregar a todo tipo de atividades; geralmente domésticas. Ora,Angélica sentia, ao contrário, uma grande lassidão. Encontrou Honorina trepada num pequenocofre,que empurrava para baixodobebedouro,ocupada em encher com água um cálice de estanho. Angélica chegou no momento em que as mãozinhas dela sabiam muito bem como se separar para fazer parar o filete de água e manter firme o recipiente que transbordava.Segurou-oe fechou a torneira. — Estava com sede, minha querida? Devia ter-me chamado. — E para você — disse Honorina, estendendo-lhe ocálice com as duas mãos. — Deve beber água para que os anjos desçam sobre você. Foi Mopuntukquem me disse! — Mopuntuk? — Mopuntuk,o chefe dos metallaks. Você o conhece! Ele ensinou-a a beber água naquele passeio ao qual você não me levou... Era uma lembrança um pouco vaga, mas já longínqua, dos primeiros dias de Wapassu,mas Honorina, quase um bebé na época, que via tudo, não esquecia nada,devia ser como os gatos. Para ela, o tempo não existia... Podia
  • 11. envolver-se numa situação que lhe tocara a imaginação, abolindo meses e anos transcorridos, como se tudotivesse acontecido na véspera. — Ele disse que a água é pesada e que ela ajuda os anjos a descer sobre nós. Tinha dito realmente isso? Angélica reunia suas lembranças, Mopuntukdevia ter faladomais de espíritos doque de anjos. A menos que ele fosse um índio batizado pelos missionários de Quebec. Honorina insistia. — A água ajuda os anjos a descer sobre nós e o fogo nos ajuda a subir para eles. Ele disse. Ê por isso que queimam as pessoas para que subam aocéu. O que ela captara dos discursos do indígena? — Acredito em você — disse Angélica, sorrindo. Honorina conhecia muito mais coisas do que ela sobre Wapassu,e nãoera de surpreender que sua intuiçãoinfantilpercebesse, por trás dos discursos dos índios, mais claramente que os adultos, suas intenções e crenças. — Um dia vou tentar — afirmou Honorina compungidamente.— O quê? — O fogo, para subir! Angélica, que levava o cálice aos lábios, suspendeu seu gesto. — Não, por favor! O fogo é mais perigoso, que a água. — Então, beba!Angélica bebeu,sob o olhar atentode sua filha. Agora, lembrava-se da devoção de Mopuntukem relação às fontes. Dava-lhes grande importância e a induzira a andar um dia inteiro e a beber repetidamente,em lugares diferentes,repetindoque era preciso atrair a proteção dos espíritos sobre ela e Wapassu. A água!Os poderes da água pura! Nunca refletira sobre o instinto atávico que levava os aldeões do seu Poitou natal para certas fontes da floresta. Mas a água que estagnava na fonte de faiança de Mrs. Cranmer nãotinha possivelmente essas mesmas qualidades e poderes; seja como for, era execrável. As criadas nãodeviam se dar aotrabalho de limpar com frequência suficiente o interior do recipiente. Angélica conteve uma careta, que não escapou ao olhar suspeitoso de Honorina. — Vou buscar água dopoço para você — decidiu, despencandocom presteza de cima docofre. Angélica só conseguiu detê-la à borda da escada. Já a imaginava, debruçada sobre a beirada do poço, preocupada em fazer subir um balde de água bem clara. Multiplicou seus protestos e garantias de que não tinha necessidade de nada,para fazê-la desistir de seu projeto. — Veja, eu bebi.E agora, sinto-o, os anjos vão descer e me protegerão. Enternecida,segurava entre as mãos a carinha redonda da criança para contemplá-la melhor. — Querida criaturinha — murmurou. — Como você é boa para mim e como eu te amo! Alguém estava finalmente voltando, e um ruído de botas ressoou nas lajes do vestíbulo. Dessa vez Honorina escapou. Reconhecera seu pai, o Conde de Peyrac. Com os braços ao redor de seu pescoço, sussurrou-lhe: — Mamãe está triste, e não consigo consolá-la. — Vou dar um jeito nisso — prometeu-lhe Joffrey de Peyrac,no mesmo tom de conivência. — Nunca tive uma manhã tão longa — suspirou Angélica quandoele foi ao seu encontro. — Nem eu. Compreendo-a e felicito-a por ter-se retirado. Que assembleia pavorosa, se é que se pode chamar assembleia àquilo... E fico pasmo por constatar o quantoo macho humano,seguro e confiante em si mesmo, nãoduvida da excelência de seus atos. Como não admirar,com efeito, a justeza de senso com que os melhores representantes dessa raça superior à qualo Criador me feza graça de pertencer, tendodecidido convidar, por extraordinário, a seu Conselho, uma mulher cuja opinião têm em alta conta, sabem escolher o assunto a debater com ela. Como era seu hábito, quandoqueria distraí-la de uma preocupação, conseguira fazê-la rir. Sua simples presença já a aliviava, dissipava sua ansiedade.— Não seja tão severo com seus patriarcas e seus doutores puritanos — disse ela. — Eles não me ocultaram as razões pelas quais desejavam minha presença entre eles. Não apenas não lhes queromal por isso, mas absolvo-os. Gostaria que lhes garantisse que levei em consideração esse reinício da guerra indígena às fronteiras de suas colônias. Refleti, além disso, sobre o que poderíamos obter por intermédio de Piksarett. — Oh!deixemos de lado guerras e massacres — disse ele num tom leve. — E um jogo que,ai de mim, não acabará tão cedo, e a razão quer que,embora lhe dandoatenção, saibamos furtar às horas preciosas docotidiano o cuidado de velar par nossa própria paz. Falemos, pois, doque a preocupa,minha querida. Vejo-a com traços tensos e olheiras, que a tornam certamente muito bela e comovente, mas... — Shapleigh nãochega — queixou-se ela. — Enviei emissários em todas as direções. Eles o encontrarão. E nós o levaremos a Portland,se não tiver chegado aquiantes de nossa partida para Gouldsboro. Ele a puxara para juntode si e dava-lhe beijinhos nas pálpebras. — Alguma coisa a amedronta,meu amor. Diga-me o que é. Confie em mim. Estou aqui, pertode você doravante, para defendê-la,afastar de você qualquer perigo. — Ai de mim! Trata-se talvez de uma provação que nãoestá inteiramente sob seu poder afastar, pois é a Natureza que decidirá. Talvez fosse apenas alarme falso, conveio, mas sua indisposição aquela manhã a fazia recear de repente que a criança viesse ao mundoprematuramente.E verdade,continuou para si mesma, que se sentia agora muito bem e adquirira a convicção de que esse parto, que,ontem ainda,lhe parecia muito distante, nãopodia estar iminente. Entretanto, não ficaria surpresa se ele ocorresse antes do previsto. Com sabedoria, Joffrey observou-lhe que nãohavia nenhuma razãoaparente para que houvesse uma mudança,pois, sua saúde tinha sido até entãoperfeita.Mas, no momento, era preciso considerar que,se a criança nascesse, o calor esmagador, que assolava a todos na costa do Atlântico, seria um aliado para um bebê fraquinhosuperar as três ou mesmo quatrosemanas iniciais. Ela o escutava e admirava a bondade com que procurava,com o mesmo cuidadoque dava a todas as coisas, argumentos preciosos nesse domínio bem feminino e que deveria ser estranhoa um homem de aventuras,considerado por alguns como um pirata temível, um homem de guerra,seja como for, rude e sem fraquezas.Mas, para ela, para tranquilizá-la, reconfortá-la, ele tinha todas as delicadezas. Afastou-se dele para sorrir-lhe. Mas seus grandes olhos verdes,como que empalidecidos, permaneciam dilatados e fixos. — Há uma outra coisa — murmurou com um tom culposo. Então confessou-lhe o que duplicava sua inquietação. Duplicava era exatamente a palavra. Duas crianças, isso podia anunciar uma felicidade dupla,mas tornaria precária sua sobrevivência, se conseguisse levar “o filho” tão sonhadoaté o fim da gravidez. Ele viu que ela estava realmente terrificada, ansiosa e angustiada. E subitamente,por sua expressão aterrorizada e a fragilidade que emanava dela,Angélica lembrou-lhe a criança-fada surgida das florestas do Poitou, a deliciosa aparição que se erguera diante dele, no sol, na estrada de Toulouse, e que fizera com que sua vida fosse sacudida, ele, o grão-senhor libertino que julgava ter conhecido todos os prazeres do mundo,nos tormentos, dilaceramentos e transportes inexprimíveis de um verdadeiroamor.
  • 12. E porque ela sempre estivera ali, porque podia dizer-se que ela nunca deixara de habitá-lo, porque ela soubera preservar as fontes misteriosas desse encanto, tão pronto a evaporar-se em tantas mulheres ao sopro áridoou medíocre da existência, e porque recebia a revelação ao mesmo tempo que oanúncio maravilhoso, mirífico, um pouco extravagante da doação dessas duas crianças que ela estava prestes a fazer-lhe,perguntava-se,não sem medo, se não estaria naquele momento conhecendoa maior alegria de sua vida de homem.A tal ponto que as lágrimas lhe vieram aos olhos. E para ocultá-las, tomou-a novamente nos braços. Apertando-a contra si, acariciando seus cabelos, roçando-lhe o corpo, começou a falar-lhe baixinho, dizendo-lhe que tudoestava bem, que nãoprecisava ter medode nada,que era o mais feliz dos homens, que seus filhos, anunciados por presságios muito auspiciosos, nasceriam belos e vigorosos, pois a Vida nunca nos causa tanto sofrimento quantopoderia fazê-lo, principalmente com aqueles que amam e que o provam sem mesquinharia,e repetia-lhe que ela nãoestava sozinha, que ele estava ali, que os deuses estavam com eles, e que nãose podia esquecer, enfim,de que em toda provação existe um recurso supremo: o Céu. E acrescentou, com aquele sorriso que parecia ao mesmo temporidicularizar e desafiar um mundo incréduloe pusilânime, que ele se comprometia, se sua saúde o exigisse, a enviar também emissários até lá, reclamar a ajuda doTodo-Poderoso. Desejoso de ajudá-la a restabelecer-se e vendoque ela sofria menos pela fadiga do que pela opressão, o Conde de Peyracteve a feliz ideia de propor-lhe que fossem até o Arc-en-Ciel, seu navio que estava ancoradono porto, para fazer ali a refeiçãodo meio-dia. Um pouco de brisa marinha sopraria na coberta do navio e, de qualquer maneira,respirar-se-ia melhor lá doque em terra. Severina e Honorina iriam se refazer,acompanhadas de Kuassi-Ba, em qualquer lugar atraente da cidade que elas pareciam já conhecer. Queria ficar a sós com ela e que ela repousasse longe das preocupações urbanas.Nada melhor para encarar o futuroe o desconhecidodo que distanciar-se um pouco. Essa diversão chegou no momento exato para revigorar a força e a coragem de Angélica. Na coberta do Arc-en-Ciel, protegidos do sol, que brilhava como ferroem brasa, por uma grande lona estendida na parte dianteira da segunda ponte,foram servidos pelo Sr. Tissot, seu copeiro, que,quando faziam escala, se preocupava principalmente em levar para bordo víveres frescos e mercadorias de que se podiam prover nesses lugares: vinhos, rum, café, chá e, ali em Salem, claro, barricas de bacalhau seco numa quantidade impressionante. A reputaçãode qualidade dos produtos do secadouro mais antigo da costa, estabelecidopelos primeiros imigrantes, já estava firmada. Mas o copeiro evitava servi-lo à Sra. dé Peyrac, compreendendoque ela nãoapreciaria naquele momento aquele prato rústico, cuja abundância nessas paragens,geradora de grandes fortunas,fizera com que fosse denominado “ouro verde”.Ainda que pudesse demonstrar que se podiam fazer com ele pratos muito delicados. Apesar do imprevisto de sua visita, não foi pegodesprevenido. Apresentou legumes frescos e sumarentos, saladas, carnes assadas na brasa. E, homem muito previdente,tinha uma reserva de grande quantidade de bebidas frescas preservadas nogelo, e sorvetes de frutas. Angélica compreendeu que saíra naquela manhã domalfadadoConselho com o estômago quase vazio, pois a tigela de mingau de aveia (denominado porridgé), que as criadas de Mrs. Cranmer lhe apresentaram,não a inspirara muito, apesar de a terem encorajado a acrescentar-lhe creme e melaço. Com efeito, após ingerir alguns bocados, ela ressuscitou. Antes de sair de casa, Joffrey de Peyrac lembrara-a de pegar seu leque.Era preciso realmente que estivesse bem aturdidoe que tivesse esquecido os hábitos da corte da França para não ter pensadoantes nesse modesto e encantador objeto, que ajuda as grandes damas a suportar a pressa nos salões ou nas antecâmaras do rei, e o calor que por vezes ali faziam reinar as sarças ardentes das velas acesas nos grandes lustres de cristal. Reanimada, abanava-se suavemente,rejubilando-se com esse instante de repousojunto a seu marido, com um copo de água fresca ao alcance da mão. De onde estavam podiam avistar a cidade, cujos contornos, apagados pela bruma de calor que velava no horizonte as curvas montanhosas dos Apalaches, assemelhavam-se a uma renda recortada por florões de bordados. Era o amontoado de empenas agudas formadas pelos telhados em- cumeeiras ou em meias-águas,grambell-roof ou lintooroof, nomes que designavam águas desiguais, descendode um ladoàs vezes quase até o chão, e que faziam pensar que se haviam construído essas moradias acrescentando-lhes sempre alguma coisa a mais. O todo era um eriçado formado por um regimentode altas chaminés de tijolos em estilo elisabetano, que marcava a cidade pioneira com um sinal de elegância, vindo do Velho Mundo. Contemplando-a assim de longe, tão pacífica na aparência e tocante em seu vigor e coragem de existir, Angélica sentiu um certo remorso. — Você me compreende, nãoé? — disse a Joffrey.— Quandofaleique não desejava que nosso, ou nossos filhos, nascessem na Nova Inglaterra,não quis dizer que sinta hostilidades em relação a nossos vizinhos ingleses aos quais sei que você está ligado, há muitos anos, pelointeresse de empresas importantes e pelos quais partilho sua estima. Mas, o que me parece prejudicial a nosso filhoé que ele veja a luz entre pessoas que têm da virtude uma imagem tão severa,um país onde se pode condenar um homem a duas horas de pelourinho porque,voltando de viagem após três anos de ausência, beija sua mulher em público num sábado. Foi o que me contaram, e isso aconteceu com o CapitãoKemble. Em Boston, é verdade.Mas parece que essas duas cidades, Boston e Salem, rivalizam na aplicação da mais intransigente lei divina e com o mesmo ardor e encarniçamentoque empregam em rivalizar na excelência das construções navais ou na exploração do bacalhau. Joffrey riu e nãocontestou a justeza de suas observações. Ele reconhecia que trabalhar com os habitantes da Nova Inglaterra,quandose tratava de mandar construir um navio, de pagar em moeda de ouro ou prata pelos direitos sobre territórios incultos e disputados ou de lançar as bases de associações comerciais, cujos intercâmbios podiam ser feitos até na China ou nas índias, só apresentava aspectos positivos e até agradáveis. Pois, nesse domínio, era bom lidar com pessoas escrupulosas, de palavra, e para as quais o trabalhoe o sucesso eram um dever,o que garantia seu encarniçamentoe sua aplicação em levar a bom termoo que empreendiam,e a respeitar os contratos. Mas felicitara-se mais de uma vez por não ter de viver sob sua jurisdição, pois as motivações que os haviam impelido para o Novo Mundonãotinham nada a ver com as suas. Isso foi admitido desde o início em suas relações, pois senãonenhum negócio teria sido possível entre todos os indivíduos que povoavam as margens desse ladodo Atlântico ou aqueles que começavam a povoá-las. Angélica
  • 13. observou que era menos desprendida doque ele de uma certa necessidade de comunicar-se e ser compreendida por aqueles que o acaso de seus deslocamentos fazia encontrar. Não tinham conhecido nessas pequenas cidades por vezes fervilhantes e exuberantes,onde se falavam todas as línguas, como em Nova York, ou mais perto em Rhode Island, uma maneira de viver e de pensar que se coadunava perfeitamente com a deles, e que nãodeixava prever os exageros religiosos de seus vizinhos de Boston ou de Salem, nem o que ela entrevira acerca dos primeiros fundadores,os Pilgrim Fathers, quandoconhecera o velho Josuah,o funcionário do comerciante holandês, norio Kennebec? E que,explicou-lhe Joffrey, Salem nãoera a filha desses Pais Peregrinos do Mayflower que alguns julgavam amáveis iluminados e que eram acusados de desembarcar nocabo Cod, em 1620,por um erro de rota, mas a dosólido pequenocontingente de puritanos congregacionalistas que, nove anos mais tarde, chegara a esses lugares. Eram conduzidos por um talEndicott, que nãobrincava com a bússola e que levava em seus cofres um mapa de Sheffield em boa e devida forma, autorizando-os a fundar o estabelecimento docabo Norte, da baía de Massachusetts. Ele escolheu o lugarejo de Naumbeag,local julgado, por suas informações, “agradávele frutificante”,fundou Salem, destinada a ser a sede da “Companhia da Baía de Massachusetts”, que ele criou sem consultar ninguém. Englobou-lhe, sem hesitar, os antigos Plantadores e alguns conseguiram ocupar altas funções sob seu cajado. Mas os últimos que chegaram eram calvinistas, cujo partido, na Inglaterra, reclamava a “purificação” doserviço religioso na Inglaterra,que caíra nos erros papistas. O fortalecimento de sua disciplina religiosa tornou-se, pois, um dever da autoridade civil, e, com toda a naturalidade,os votos foram limitados aos membros da Igreja, pois a elaboraçãodas leis que regem a instituição de uma sociedade virtuosa não podia ser confiada a irresponsáveis, a ignorantes ou a servos como os “engajados”,endividados pelo preço de sua passagem. Esses burgueses,que tinham deixado uma vida fácil na Inglaterra para que nãofosse alterada a pureza de sua doutrina, nãoestavam dispostos a tolerar nenhum relaxamentode costumes. Angélica escutava-o e, mais uma vez, maravilhava-se por ele conhecer tantas coisas e saber discernir tantas nuanças nesses diversos grupinhos que tinham abordadodurante esse périplo, que ela não imaginara que pudesse ser tão enriquecedor e variado. Iam para a terra dos ingleses, pensara,e só isso. Mas era uma coisa muito diferente. E descobrira, nãosó toda a história agitada dos aventureiros do Novo Mundo,mas também todo um lado da existência de Joffrey de Peyracque ela ignorava e que fizera com que apreciasse mais ainda o homem que amava: o homem de mil facetas, dotado sobretudodesse conhecimento dohumano, que se unia nele a tantos outros dons e ciências, atraía para si amigos e aliados, tal era sua paixãode interrogar e escutar. Joffrey propôs-lhe que ficasse a bordo e dormisse, mas ela declinou da oferta.Era preciso que o navio estivesse pronto para a aparelhagem,o que poria a tripulação numa intensa atividade desde o alvorecer, e, por outro lado, não queria magoar, desdenhandosua acolhida,os anfitriões que lhes franquearam sua casa. O sol tornava-se menos ardente,e eram cerca de quatrohoras da tarde quandovoltaram para terra firme, escoltados pelohabitual grupinhode soldados espanhóis que constituía a guarda pessoal do conde e que intrigava e subjugava tanta gente em toda parte por onde passavam. Sua situação de mercenários, a serviço de um grão-senhor francês, mostrava, desde a primeira abordagem,sua independência em relação a ele, que não devia sua fortuna senão a seus talentos, sem qualquer submissãoa um dos soberanos deste mundo.Isso nãodeixava de agradar aos new-Englanders que,em algumas colônias às quais pertenciam, eram martirizados peloverme roedor da liberdade diante da metrópole, sobretudo desde que fora proclamado pelo reiCarlos II o Novo Ato de Navegação ou Staple Act. Uma iniquidade!Afirmavam, aliás com veemência, tanto o puritanodo Massachusetts como o católico de Maryland.Eles estavam bem. Quantoa ele, sentia que não tiraria os olhos dela durante todoo dia. Se não tivesse experimentado tantoprazer em sentir sua atenção sobre si, ter-se-ia censuradopor lhe haver participado inquietações tão pouco importantes. Sentia-se naquele momentototalmente refeita. Apesar de tudo, rejubilava-se com o fatode, em consequência de seu desfalecimento, ter-se tomado a decisão de deixar o mais cedo possível as costas da Nova Inglaterra e zarpar para Gouldsboro, sem escalas. Ainda que ele nãodissesse nada, estava certa de que havia lançado um verdadeiro raide para encontrar Shapleigh e que tinha se informadosobre os médicos mais competentes que deveriam procurar, caso fosse preciso. Mas Angélica nãotinha muita confiança nos médicos, de onde quer que fossem,exceto os cirurgiões de navios, por vezes hábeis, mas pouco asseados. O povo rude da Nova Inglaterra devia se atracar com a doença como com o Diabo. Face a face. Ao dar os primeiros passos, encontraram, por acaso ou por uma intenção calculada, o mui respeitável John Knox Matther, que os abordou, dandoaoseu austerorosto uma expressãotão amena quanto possível. Tinham-novisto de manhã noConselho, tendovindo expressamente de Boston para assisti-lo. Angélica conhecia-o bem,pois recepcionara-o dois anos antes em Gouldsboro, por ocasião de um memorável banquete realizadona praia e no qualse viram brindar, reunidos em torno da mesma mesa comprida colocada sobre cavaletes e revestida de uma toalha branca,na mesma euforia bem francesa devida aos vinhos capitosos dessa nação, coriáceos delegados do Massachusetts e modestos religiosos franciscanos de burelcinzento, huguenotes franceses e curas bretões, piratas das Caraíbas,oficiais da marinha realbritânica frívolos e anglicanos, assim como fidalgos e colonos da Acádia, escoceses e até índios... A mesma lembrança bastante feliz devia brilhar por trás da fachada impassível doReverendo Matther, pois ele respondeu aosorriso de reconhecimento de Angélica com uma mímica que poderia passar por um piscar de olhos, provandoque nãoesquecera aqueles momentos excepcionais. Mas, encontrando-se naquele momentoem seu território professoral e pastoral, nãopodia permitir-se evocar tais desbordamentos,que não eram aceitáveis senão por terem ocorrido, sob a égide francesa,num lugar neutroque escapava a todo controle e,por assim dizer, fora do tempo, como num sonho. Ele apresentou seu neto, que oacompanhava, um rapazinhode quinze anos, rígido e frio, mas cujos olhos brilhavam num fogo místico, como convém ao herdeirode uma família cujos chefes sempre se assentaram no Conselhodos Anciãos de suas comunidades,e cujo avô quisera escolher como, patronímico o nome de um reformador escocês, John Knox, amigo de Calvino, que dera sua forma ao presbiterianismo, irmão do puritanismoe do congregacionalismo. Ao ver esse adolescente, ninguém diria que soubesse falar e ler com facilidade o grego, o latim e um pouco de hebreu,como era dever de todo aluno da Universidade de Cambridge (Massachusetts),a que já começavam a chamar familiarmente de Harvard, o nome do mecenas que consagrara uma parte de sua fortuna para que se edificasse, trinta anos antes, um templo do espírito nesse país desolado, batido pelos
  • 14. ventos do oceano e rodeado por pântanos horríveis, florestas impenetráveis e índios hostis, mas onde já começavam a despontar, como cogumelos, as casas de madeira com telhados pontudos. John Knox Matther lembrou que,presente naquela manhã aoConselho, apreciara a presença do Sr. de Peyrac. — Só um francês pode governar outros franceses,dizem. Somos suplantados pela dissimulação dos complôs que a Nova França trama contra nós. Pediu ao neto que lhe passasse um saco, noqualse encontravam inúmeros maços de papéis,alguns dos quais estavam enrolados e selados por um lacre de cera. — Só posso falar disso com você — disse, após olhar à volta e tirar dosaco a página de um relatório que ele segurava como se ele pudesse lhe explodir no rosto, como uma carga de pólvora mal acesa. — Você foi o primeiro a falar dos jesuítas, e eu não quis absolutamente insistir noassunto, a fim de não aumentar a perturbaçãodos espíritos, mas tenhoaquium dossiê secreto, que corrobora suas suspeitas. Há vários anos venho reunindoos elementos desse dossiê. O eclesiástico no qualnós pensamos, Padre... — olhou o papel para certificar-se do nome que pronunciou com um sotaque pavoroso — d'Orgeval, um jesuíta, sempre fez passar sua correspondência por nossos estabelecimentos com uma audácia e uma insolência inusitadas, confiando-a a espiões, às vezes até a religiosos disfarçados. Comunicava-se assim mais rapidamente com a Europa,a França e a casa matriz de sua ordem, feudopapista de nossos piores inimigos. Conseguimos prender alguns desses mensageiros e apreender algumas missivas... Fica-se de cabelo em pé ao ler seu conteúdo. Da parte dele, assim como da de seus correspondentes, que exprimem diretamente o pensamentode seu rei ou de seus ministros, é um apelo ou um encorajamento a que nos façam guerra ou nos exterminem,mesmo que,isto está sublinhado, “nossos países estejam em paz”.— Estendeu opapel. — Tome, olhe! aquie aqui! Punha-lhes sob os olhos folhas de papel, algumas das quais eram feitas de uma fina película de casca de bétula, papelrudimentar dos missionários franceses isolados, nas quais se podiam ler, numa caligrafia nervosa, certas frases como: Nossos abenakis seencantam por saber que sua salvação depende do número de escalpos que irão retirar da cabeça dos hereges. Isso combina melhor com seu costume do que a abnegação, e ganhamos almas para o Céu enfraquecendo um inimigo cujo ódio contra Deus e nosso soberano jamais se aplacará... Numa outra carta vinda da França e dirigida peloMinistro Colbert ao superior dos jesuítas em Paris, citavam-se as frases de recomendação pelas quais o Padre d'Orgevale sua ação na Nova França foram apresentados aorei nestes termos: “Padre de grande mérito, excelente para reacender a guerra contra os ingleses, com os quais assinamos a paz, o que paralisa uma ação demasiado aberta,mas ele encontrará os pretextos... O que se soube sobre sua dedicação à causa de Deus e dorei nos fortaleceu em nossos projetos. Se ele continuar assim, Sua Majestade não nutrirá senãoafeição por suas empresas e saberá mostrar seu reconhecimento, não regateandoajuda às missões que ele sustenta. Ele [o Padre d'Orgeval] deve impedir qualquer entendimento com os ingleses... Angélica via que Joffrey,com o canto do olho, vigiava suas reações e deu-lhe a entender,por um sinal imperceptível, que não se preocupasse. Contrariamente ao que sentira naquela manhã,as revelações do governador adjuntode Massachusetts, longe de impressioná-la, davam-lhe vontade de rir. Pois ele estava de tal modo estarrecida diante de tanto maquiavelismoe irritação, por um comportamento que lhe era totalmente ininteligível, que lhe inspirava pena.Ora, para eles isso não tinha nada de novo e já o sabiam por experiência própria. O jesuíta erguera sua bandeira de guerra contra eles, desde que puseram os pés no Novo Mundo. Enquantofalava,John Knox Matther arrastava-os a passos miúdos para outra direção. Dobrou suas cartas e pergaminhos e recolocou-os no saco dizendo que essas questões mereceriam ser debatidas num outro, lugar que não fosse na ponta de um cais, em plenosol. Desculpou-se junto a Angélica e disse que lamentava tê-los retido assim de pé,mas que era assaltado por calafrios incoercíveis e as mais tenebrosas apreensões quandopercebia,à vista desses documentos, que um representante da temível religião romana estava emboscado nofundodas florestas, entre os pagãos vermelhos, obsedadopelo único pensamentode destruir aqueles que eram colonos pacíficos, vindos à América com um só pensamento,um único objetivo: viver, trabalhar e orar em paz. Pois esses homens e essas mulheres tiveram de fugir de sua própria pátria e se exilar nesse continente selvagem apenas para escapar das perseguições de diversos governos da Inglaterra, reais ou republicanos, uns adeptos do Diabo, outros demasiado fracos para manter a religião pura e invencível. Infelizmente, por mais longe que tente fugir, o homem justo tem de encontrar a provação que exige dele uma renovação de seu comprometimento. Na América, era o jesuíta. Com uma voz lúgubre,citou: Mais temível que o lobo, que o índio cruel, que a floresta hostil é este inimigo do género humano que ninguém consegue deter: o índio selvagem induzido pelo jesuíta! A fim de mudar o rumo da conversa e desviá-lo de sua amarga preocupação, Joffrey de Peyrac perguntou-lhe como iam os estudos de seu neto. A voz de John Knox Matther, como a dos avós, ganhou inflexões mais serenas para reconhecer que ojovem Cotton dava-lhe a maior satisfação, tendojá obtido na Universidade de Harvard o grau de bacharel, conferido àqueles que sabiam traduzir em latim o texto original do Velho e do Novo Testamento, e o grau de mestre em humanidades,que oreconhecia capaz de redigir uma dissertação sobre lógica, filosofia, aritmética, geometria e astronomia. Lembrando-se de que Florimond e Cantor haviam estudadodois anos em Harvard, sob a férula puritana,Angélica sentiu,pensando nisso, uma admiração realpor seus dois filhos mais velhos. Imperceptivelmente,o Reverendo John Knox Matther continuou a conduzi- los e perceberam que era para a taberna da Âncora Azul, dirigida por um francês.Compreendendorepentinamente que os estava levandopara um lugar pecaminoso, explicou-lhes que desejava ensinar a seu neto como zelar pela boa ordem dos estabelecimentos daquele tipoe como admoestar os beberrôes apanhados em flagrante. Felizmente, encontraram ali Severina e Honorina, ladeadas por seus guarda-costas e que já eram o centro de um grupo de amigos dentre os quais muitos franceses, inclusive o jovem Natanael de Rambourg. Diante da ovação cordial de que foram objeto, a intervenção de John Knox Matther frustrou-se.A lição de pregação contra a bebedeira foiadiada para depois. Contentaram-se em beber cerveja com gengibre,moderadamente,separando-se em seguida. Fora um dia tãoocupado, que Angélica, voltando para a casa de Mrs. Cranmer, teve a impressão de que percorrera a cidade inteira, cumprimentara todos os habitantes e assimilara uns cinquenta anos de história dos pioneiros. Muitas pessoas estavam nesse estado de
  • 15. deliquescência, disseram-lhe na taberna.Isso por causa do calor esgotante ou por estarem se aproximandoda época de lua cheia, olho arregaladono fundodas noites, perturbandoosono dos homens. O sol descia por trás do monte Gallows num céu verde-pálido, alaranjadona linha do horizonte. E a brisa marinha clemente começava a agitar o calor estagnante.O mar estava azuladoe murmurante, índios vagavam pelas ruas,furtivos e estrangeiros, e nãohóspedes apreciados, como em Quebece Montreal.As pessoas nãoos viam, e isso era preferívelpara eles, naqueles dias em que os refugiados do Alto Connecticut chegavam em andrajos, pés ensanguentados e visões mais sangrentas ainda na memória. Na extremidade da praça,um grupo de pessoas olhava em direção ao mar e discutia com animação. QuandoAngélica e Joffrey cruzaram- se com eles, eles lhes explicaram que estavam intrigados pelos ladridos de focas que se elevavam ao longe, como se um rebanhoimenso desses curiosos animais, que os franceses chamavam de lobos-marinhos e os ingleses, seal, sea-calf ou sea-bear, se aproximassem da praia, o que havia muito tempo nãoacontecia. Dessa vez, a casa de Mrs. Cranmer parecia repleta de gente, como se, para fazer esquecer a deserção da manhã,toda a família e a criadagem houvessem se reunido e combinado um encontro ali. Esperavam-nos pertode uma mesa onde estavam colocados xícaras de porcelana fina, copos de cristal, baleiras e compoteiras de prata. E talvez fosse à presença do amávelLorde Thomas Cranmer,o genro intempestivo, de provocante anglicanismo, com seu colarinho de renda e seu gibão bordado, que se devesse, nessa casa puritana,tal mobilização em honra aos papistas forasteiros. Sua esposa, Lady Cranmer,lançava-lhe olhares perdidos, e era evidente que ela estava pronta a receber “pior ainda” se, nessa ocasião, lhe fosse dado encontrar-se junto a esse belo homem louro-arruivado, de barba pontuda e de que era esposa, mas aoqualraramente via, provavelmente porque nãose sentia atraído por ela, nem por sua morada em Salem, onde seus próprios filhos o chamavam de “Sr? ” Ou de “meu honradopai”,olhando-o com uma compunção misturada de medo. Mrs. Cranmer tinha um rosto muito suave e harmonioso, que teria sido sedutor se ela nãomantivesse os lábios tão apertados. E em sua testa, já estriada por rugas finas, percebia-se a tensão permanente causada por preocupações domésticas e pelos escrúpulos. Um lenço de musselina ornadode rendas ocultava seus cabelos castanhos, mas — sem dúvida após muitas hesitações — dera um jeito para que aparecesse o brilhante de seus belos brincos pingentes, presente de seu esposo, do qualse mostrava evidentemente orgulhosa. Movimento de coqueteria e de vaidade que ela compensava pela falta de graça do peitilho do vestido, tão teso quantouma golilha e tão prolongado e pontudoque,com sua estatura de varapau,ela parecia estar saindo de um funil. O sogro, Samuel Wester, também estava ali, grande anciãode casaco preto, uma calota preta e quadrada pousada em seus cabelos brancos, que se juntavam, sobre a gola engomada,à sua longa barba branca.Angélica aceitou uns confeitos e uma xícara daquela bebida de folhas de chá muito consumidas na região. Surpreendeu-se de que nãoacendessem as velas, pois estava muito escuro sob o forro da sala de jantar. Seria por economia? O dia ainda estava claro. E subitamente os últimos raios de sol penetraram por todos os vidros, com grandes brilhos dourados,fazendo chamejar e reverberar,nas paredes,retratos e espelhos, revelandoas madeiras bem enceradas dos móveis e mirando-se nas lajes de mármore pretas e brancas do vestíbulo. Angélica retirou-se tão discretamente quantopossível e subiu para seu quarto. Ali, como noinício do dia, sentiu o desejo de ficar de pé diante da janela aberta.E, ao se inclinar um pouco para descobrir a apoteose do poente,a dor surgiu,mas, dessa vez, não aguda e fulgurante,mas surda e ampla,a dor inimiga cuja presença gostaria de afastar com todas as suas forças. Mas isso, a revolta, nãoservia mais para nada agora. Ela se imobilizou, deixandoo sinal temível desenvolver-se e depois decrescer, pois sabia que essa dor não podia ser enfrentada com igualdade,a nãoser inclinando-se diante dela, abandonando-lhe opoder,a diretiva daquilo que se punha em marcha e ia se cumprir, a nãoser aceitandotornar-se sua cúmplice... Angélica nãose mexia mais. Não pestanejava.O céu verde entrava-lhe nos olhos, mais verde doque o estandarte doprofeta, onde logo se inscreveria não um crescente, mas uma lua opalina, bem redonda,um escudo de prata. Depois baixou as pálpebras. A sorte está lançada!, disse a si mesma. Oh! Meu Deus! A sorteestá lançada! CAPITULO V Dois anjos para Angélica Vieram ao mundode noite. Esse mundoque eram chamados a conquistar, saudaram-nocom um grito valente,espantoso de se ouvir em criaturas tão mirradas que,colocadas na mão de um homem, mala excederiam em tamanho. Angélica fizera por eles tudoo que podia e tudoo que dependia dela.Colocá-los no mundo, trazê-los à luz com a maior maestria e rapidezpossíveis, poupando-lhes a fraqueza. Fazendo calarem-se todas as angústias, todos os alarmes, pensou apenas em cumprir da melhor forma possível sua tarefa de mulher. A angústia e os alarmes começaram em seguida quando,separados dela, sua sobrevivência dependeria tão-somente de suas próprias forças. A matrona irlandesa — uma papista que acabaram por encontrar e convencer a assisti-la — não lhe ocultara, assim que a examinou, que se tratava de um nascimento duplo.Por isso, aceitou lucidamente as consequências desse veredicto desde o começo do parto. Duro combate! Mas, como em todo combate, era preciso consagrar-se a ele sem hesitar, sem tremer, lançar na batalha o melhor de si mesma. Mal ouviu seus primeiros gritos. Esgotada, um pouco desvairada, foi distraída dos tormentos do instante pelo gesto de Joffrey de Peyrac, que ela divisava de pé à sua cabeceira e que viu levantar os braços, a fim de fazer passar, por cima de uma cabeleira hirsuta e escura de occitânico, sua camisa branca de tecido fino, que ele vestira para a ocasião. Com ela cobriu suas mãos estendidas, onde a parteira pousou dois pequenos corpos indistintos e trémulos. Então, enrolou-os com infinitas precauções e aconchegou-os suavemente a seu peito moreno e vigoroso, assim como havia feito uns vinte anos antes para seu primogênito, Florimond.