Este documento apresenta uma releitura do trabalho de José de Souza Martins sobre fronteiras e a degradação do outro. Apresenta a biografia do autor e discute seus estudos sobre as múltiplas fronteiras existentes, incluindo a fronteira do humano. Também descreve as técnicas de pesquisa utilizadas por Martins e analisa os processos de captura do outro, reprodução do capital e escravidão nas fronteiras.
1. FRONTEIRA. A degradação do
Outro nos confins do humano
Martins, José de Souza
(Uma releitura)
Professor
silvânio barcelos
2. O autor
José de Souza Martins é bacharel e licenciado em Ciências Sociais
(1964) pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, onde fez o mestrado (1966) e o
doutorado (1970) em Sociologia, onde se tornou livre-docente
em 1992 e onde leciona desde 1965. Foi visiting-scholar do
Center of Latin American Studies da Universidade de Cambridge,
Inglaterra, em 1976 e Visiting Professor da Universidade
da Flórida (EUA), em 1983. Em 1992, foi eleito fellow de Trinity
Hall (quinto colégio mais antigo, fundado em 1350 pelo Bispo
William Baterman de Norwich) e Professor Titular da
Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge para o
ano acadêmico de 1993/94. Em 1996, o Secretário Geral das
Nações Unidas nomeou-o membro, pelas Américas, da Comissão
de Curadores do Fundo Voluntário da ONU sobre Formas
Contemporâneas de Escravidão para um mandato de três anos.
3. José de Souza Martins
Nascido em São Caetano do Sul
em 24 de outubro de 1938
4. A fronteira
na visão de José de Souza Martins
Cenário de intolerância, ambição e morte
Esperança: tempo de redenção, justiça, alegria e fartura
Espaço e o homem:ponto limite de territórios (dinamismo)
Linha que separa Cultura da Natureza, Homem do Animal, do
Humano e do não humano.
Figura central da fronteira: A vítima (e não o pioneiro)
Múltiplas fronteiras: fronteira da civilização, espacial, cultural,
étnica, histórica e fronteira do humano.
Fronteira do humano: degradação do outro para viabilizar a
existência de quem o domina, subjuga e explora.
Lugar de renascimento e maquiagem dos arcaísmos
desumanizadores. (A fronteira está longe de ser o “lugar do novo”)
5. Técnicas utilizadas por Martins nos processos da pesquisa
Técnicas artesanais de investigação e pesquisa solitária (conflitos).
Técnicas de inserção pedagógica temporária nos grupos e
comunidades estudadas. (professor itinerante).
Pedagogia investigativa: diferente da pesquisa participante
(comunidade pesquisa sobre si mesma), a pedagogia investigativa
mostra à comunidade o lado oculto dos processos sociais.
Mudança de paradigma: O mito do pioneiro X formas arcaicas de
dominação, reprodução ampliada do capital, escravidão.
Percepção de diferentes tempos históricos: Racionalismo e
modernidade da acumulação capitalista X concepções de mundo e
de vida do camponês = família e comunidade rural voltada para a
subsistência e relações de reciprocidade. (Lógica perversa)
Movimentar-se no interior do conflito e da conflitividade: Guerra
confronta visões de mundo e definições do outro.
6. Recursos que possibilitaram a pesquisa
FAPESP, CNPq, Caronas com funcionários da SUCAM (malária).
20 anos de envolvimento pedagógico com a C P T (cursos sobre
situação dos trabalhadores rurais). Aprendizado de mão-dupla.
“O principal apoio veio, porém, dos próprios trabalhadores. Com
sua habitual generosidade, eles me acolheram e me ajudaram.
Em nenhum lugar deixei de encontrar quem me permitisse armar
minha rede num canto da casa, num alpendre, numa latada, num
paiol de arroz ou num tijupar de roça. E que repartisse comigo a
farofa de carne-de-sol com farinha puba, o prato de arroz com
feijão, um pouco de alvo beiju, uma lasca de rapadura
recém-feita, um punhado de castanha-do-pará, uma porção de
laranjas ou um naco de carne de caça: generosa partilha da
fartura simples que quase sempre há entre os pobres do campo”.
(pp. 22).
7. Capítulo 1
A CAPTURA DO OUTRO
O rapto de mulheres e crianças nas fronteiras étnicas do Brasil
• Realidades sociológicas nas frentes de expansão de Goiás,
Tocantins, Mato Grosso, Pará, Maranhão, Rondônia, Acre e
do Amazonas:
• Concepção dual dos seres humanos: Cristão X Caboclo, Homens
X Pagãos, Humanos X Não-humanos. (Discurso que se repete
desde o Brasil - Colônia e revela os limites étnicos dos
pertencentes e dos não-pertencentes do gênero humano).
• Diferentes tempos históricos: Recente mudança do machado de
pedra para o de aço dos Kamayurá, canibalismo ritual dos
Rikbátksa ao mesmo tempo que entram na era do avião, máquina
fotográfica e da filmadora.
8. O rapto na situação de fronteira
• Indígenas raptados por “civilizados” : Normalmente constituem-se
exceções num quadro geral de ataques de extermínio. Genocida limpeza de
áreas cobiçadas para abertura de novas fazendas. Nesse caso nunca houve
incorporação à estrutura das relações sociais dos raptados, sendo eles
mantidos à margem como prostitutas (no caso das mulheres) e submetido à
condições de servidão (no caso dos homens).
• “Civilizados” raptados por indígenas: Nesse caso os raptados são
incorporados à estrutura social dos raptores, embora sempre na condição de
“estrangeiro”. Na sua grande maioria os raptos destinam-se à suprir uma
carência de parceiros para a reprodução da tribo.
• Caso Helena Valero: Raptada pelos Yanoama, recebeu nome de
Napanhuma (um não-nome: “a estrangeira”). Incorporada como mãe de
filhos de homens yanoama. 20 anos após consegue fugir e também foi tratada
entre os brancos como não-branca.
9. A captura do outro
O estranhamento e a recusa da alteridade
• Definição do raptado como ser “liminar”: Martins
identifica essa condição de fronteira onde o raptado é
reconhecido como o outro, o estrangeiro.
• Tanto de um lado como de outro da fronteira o “outro”
expressa uma alteridade problemática: Seria uma
espécie de sala de espera do processo de humanização
na perspectiva do raptor.
10. Capítulo 2
A r epr odução do capital na fr ente pioneira
e o r enascimento da escr avidão
Escravidão por dívida ou peonagem: O arcaico
(extrativismo na Amazônia) e o moderno perpetuando
a prática da super exploração da mão-de-obra.
Empresas modernas que utilizam da escravidão:
contradição e irracionalidade ? Ou simples lógica da
mais valia? (ler nomes das empresas pp. 82)
Martins demonstra que o quadro teórico marxista-
estruturalista só permite uma única temporalidade, a
do tempo linear.
A escravidão temporária não constitui um modo de
produção, mas um dos seus momentos.
11. O CATIVEIRO NO CAPITALISMO DE
FRONTEIRA
Programa militar ocupação da Amazônia: “integrar para não
entregar”. GEOPOLÍTICA.
Espaços vazios: Ideologia. Índios e população camponesa (XVIII)
Contradição histórica: ocupar espaços com a agropecuária
(dispensa mão de obra e esvazia territórios)
Doação de 75% de capital para as oligarquias tradicionais (bases
de sustentação do próprio regime militar), para empreendimentos
na região Amazônica. Política anti-reforma agrária.
Diferente da expansão para o Oeste dos EUA, no Brasil definiu-se
num quadro fechado de ditadura, repressão e falta de liberdade.
Nesse contexto o proprietário de terra (importante aliado do
regime) torna-se o “grande senhor” de consciências e de
pessoas”.
Os grandes empresários urbanos alimentaram o sistema do
trabalho escravo na figura do capataz (acostumado ao poder
pessoal). Hoje o executivo que anda em Jatos particulares
substitui a figura do Coronel montado no seu cavalo. (grifo meu)
12. Acumulação primitiva no interior da
reprodução ampliada de capital
Desenvolvimento desigual do capital: As forças produtivas
se desenvolvem mais depressa do que as relações sociais.
Assimetria entre realidade econômica e social: No capital a
produção é social, mas a apropriação dos resultados da
produção é privada. DESCOMPASSO HISTÓRICO ENTRE
PROGRESSO MATERIAL E PROGRESSO SOCIAL.
Trabalho escravo utilizado na “formação da fazenda”: 72,7%
dos peões são empregados no desmatamento de florestas,
para formação de pastagens. MOMENTO DO PROCESSO DO
CAPITAL.
Casos de denúncia de escravidão acompanham o avanço da
frente pioneira: Após a ditadura os casos de denúncia de
escravidão no Amazonas salta de 9,8 para 17,7 casos anuais,
ou seja de 47,8% em 1970/73 para 63,2% em 1990/93.
EVIDÊNCIA DE FORMAS DE UTILIZAÇÃO DE TRABALHO
FORA DO PROCESSO USUAL DE PRODUÇÃO CAPITALISTA.
ISTO É: ACUMULAÇÃO PRIMITIVA.
13. EXÉRCITO INDUSTRIAL DE RESERVA
FORÇA DE TRABALHO À DISPOSIÇÃO DO CAPITAL
Super exploração da força de trabalho: trabalho acima
da jornada normal.
Privação dos meios de produção como terra e
ferramentas.
Super exploração introduz dificuldades: doenças,
endividamento e morte.
Acumulação primitiva: processo histórico mais ou
menos lento.
INCORPORAÇÃO DO TRABALHADOR E/OU SUA
FAMÍLIA AO EXÉRCITO INDUSTRIAL DE RESERVA
14. Pr odução de capital no interior do
pr ocesso de r eprodução ampliada de
capital
Conversão de meios não capitalistas em instrumentos de
produção capitalista: o que define o processo não é o
resultado mas o modo como foi obtido. = O que a peonagem
tem promovido na frente pioneira é a “produção de fazendas”
e não de “mercadorias”.
EXEMPLOS: 1) utilização de grande quantidade de trabalhadores
para o desmate de florestas virgens para formação de pastagens.
Depois de pronto apenas alguns peões mantinham a rotina das
fazendas agropecuárias.
EXEMPLOS: 2) Na época da escravidão negra utilizava-se da
mão de obra livre para formação da fazenda, desmatando
terrenos e plantando as mudas de café recebendo em troca o
direito de cultivarem nas novas terras gêneros alimentícios.
Depois de formada a fazenda era utilizada a mão de obra
escrava.
15. A escravidão atual é, no limite, uma variação extrema
do trabalho assalariado
Disseminação da peonagem fora da frente pioneira. Fenômeno
residual e retardatário da passagem da frente pioneira, em
áreas já incorporadas à economia nacional.
Reflorestamento
Olarias
Corte da cana-de-açúcar
Colheita de café
Colheita de semente de capim para formação de pastos.
ATIVIDADES SAZONAIS QUE EMPREGAM A MÃO DE OBRA
DOS CHAMADOS BÓIAS – FRIAS.
EXTRAÇÃO DE MAIS-VALIA ALÉM DO LIMITE DETERMINADO
PELA REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO.
EXÉRCITO DE RESERVA TORNA O TRABALHADOR
“SUBSTITUÍVEL E DESCARTÁVEL”.
16. Transição do trabalho do bóia-fria para o
sistema de peonagem
Necessidade de redução adicional do capital variável
(dispêndios de despesas com salários).
Acentuação da superexploração do trabalho.
Dificuldades em contratar empregados (baixo salários)
Escassez de mão de obra
Falta de investimentos na modernização dos meios de
produção
PEONAGEM
ESCRAVIDÃO POR DÍVIDA
17. Mecanismos sociais de gestação da escravidão
Trabalhos de curta duração: derrubada de matas
Vendas de peões endividados no término da empreitada
Mecanismo da dívida: mesmo quando o peão tem liberdade
de sair garante o seu retorno. QUESTÃO MORAL
Casos de extremo controle: Fazenda Codeara (peão só saía
com salvo-conduto).
MUNDO DA PEQUENA ACUMULAÇÃO: Traficantes que
recrutam trabalhadores, donos de prostíbulos (as
prostitutas também são escravizadas), vendedores de
roupas e bugigangas, donos de pensões, polícia à serviço
dos interesses dos traficantes (peão preso tem que pagar
pelo cárcere), pistoleiros e capatazes utilizados no sistema
de repressão.
18. Condições de extremas dificuldades geram
mão de obra excedente
Membros de famílias de pequenos agricultores pobres são
estimulados a aceitar ocupações temporárias fora do lugar
onde vivem nos períodos entre o fim da colheita e o início
do plantio. FORMA DE NÃO SOBRECARREGAR A ECONOMIA
FAMILIAR NO MOMENTO DE DESOCUPAÇÃO OU
SUBOCUPAÇÃO.
Iniciativa própria dos jovens em busca de algum dinheiro
próprio que a economia familiar não proporciona. (compra
de pequenos luxos: rádio-portátil, roupa vistosa).
Momento de ruptura dos vínculos entre pai e filhos: início
de uma nova unidade familiar ou busca de novas
alternativas de vida, poderosa interferência da necessidade
de dinheiro para as novas gerações (mídia).
19. Origem camponesa alimenta o sistema da
peonagem
Apesar das denuncias de escravidão a peonagem persiste como
sistema de recrutamento da mão de obra que as fazendas
necessitam:
Os peões acreditam estar migrando temporariamente para um
ganho adicional de dinheiro.
Nem todos os peões se tornam escravos. (norma da exceção).
O sistema funciona: nem sempre caem num regime em que se
reconheçam como servis.
As relações de trabalho não são piores do que as que conhece
habitualmente.
O peão só se conscientiza como escravo quando perde a liberdade
de ir e vir ou quando pistoleiros ostentam armas e/ou torturam os
que tentam escapar sem pagar a dívida.
20. Uma questão cultural (mentalidade)
Persistência de antigas relações de trabalho servis ainda
não superadas, em função também da manutenção das
condições de reprodução.
Cultura da servidão e da dependência pessoal que ainda
se difundem entre as populações pobres do campo e da
cidade. (resquícios da Idade Média = grifo meu)
Condições da própria sobrevivência do trabalhador o
impede de exigir uma melhor remuneração.
Caráter lúdico do trabalho fora do lugar (longe da
vigilância dos pais e esposas). Vulnerabilidade e
tolerância com as más condições de trabalho, pouco
ganho e violações de direitos trabalhistas.
21. Capítulo 3
Regimar e seus amigos
A criança na luta pela terra e pela vida
• Trabalho publicado, originalmente, como
capítulo do livro de José de Souza Martins
(org.), O Massacre dos Inocentes (A criança
sem infância no Brasil), Editora Hucitec, São
Paulo, 1991, p. 51-80.
22. A criança como testemunha
• Segundo Martins a informação mais importante que se
pode obter numa entrevista é justamente aquela que
não é dita. O Silêncio.
• As ciências sociais cultivam a concepção do homem que
está permanentemente disposto a enganar os outros, no
jogo da sociedade. No limite a vida social é concebida
como uma fraude.
• Trabalho do sociólogo: fazer a vítima contar o que não
gostaria de revelar, coisas que só tem sentido dentro de
uma matriz interpretativa acessível somente ao
pesquisador.
• O interesse se desloca para o informante “central” da
pesquisa, e descarta os que não falam.
• MAS, Martins identifica importante “filão sociológico” nos
que não falam ou que falam por meio dos silêncios.
23. A criança como testemunha (continuação)
• A pesquisa que originou esse trabalho é um desafio desse tipo:
Compreender o silêncio.
• Maioria das entrevistas era realizada com grandes grupos.
• No meio da platéia um grupo importante que nunca falava mas
ouvia muito sempre chamou a atenção do Autor: AS
CRIANÇAS. Martins resolve entrevistá-las.
• “NESTE TEXTO FALO DA FALA DAS CRIANÇAS, QUE POR
MEIO DELA ME FALAM (E NOS FALAM) DO QUE É SER
CRIANÇA (E ADULTO) NAS REMOTAS REGIÕES DAS FRENTES
DE OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO, EM DISTANTES PONTOS DA
AMAZÔNIA.”
• O material utilizado aqui foi recolhido na colônia de Canarana e
em dois povoados da Pré-amazônia Maranhense: São Pedro da
Água Branca (município de Imperatriz) e Floresta (município de
Santa Luzia).
24. A criança como testemunha (continuação)
• Em São Pedro:
• combate entre posseiros e um grileiro com seus capanga
• Vitória dos posseiros
• Posseiros prendem grupo de soldados PM do Pará que agiam
segundo interesses do grileiro.
• Os grileiros revidaram: amarraram um posseiro num formigueiro
(formigas-de-fogo).
• Grileiros tentam incendiar a aldeia. O vento sopra o fogo na direção
contrária salvando centenas de famílias.
• Em Floresta:
• Um posseiro (chefe de família) é assassinado pouco depois da
partida de Martins daquela região.
• TODA ESSA VIOLÊNCIA FOI PRESENCIADA POR ESSAS
CRIANÇAS.
25. “O protagonista coletivo”
Martins identifica “um protagonista coletivo” , nas falas das crianças,
que se expressa na fala e nos atos de cada um, de cada família. (Ex. da filha
recém-nascida entregue a um casal de posseiros.) = Concepção aldeã de
vida.
Em cada localidade a fala de cada criança é fragmento de um enredo mais
amplo, que protagoniza com os outros.
O espaço de que falam abrangem por vezes centenas de quilômetros. É
nesse espaço que circulam idéias sobre “terras livres”, “trabalho”, “lugares
bons para um pobre viver”.
Adultos e crianças raciocinam a partir de uma concepção de totalidade de
tempo e de espaço: O tempo se abre na certeza do destino da criança de
Canarana e na incerteza do destino das crianças dos povoados do
Maranhão. O espaço é utilizado pelo agricultor gaúcho para assegurar o
futuro dos filhos contrasta com o espaço do posseiro maranhense em sua
constante “caça do destino”.
27. Vista aérea da cidade de Canarana
foto tirada em setembro/2009
http://3.bp.blogspot.com/_rMgrJyH_bZ4/Sb_n7ptXT2I/AAAAAAAAADQ/ywH5AVNKAOo/s1600-
h/Cidade+Canarana+a%C3%A9rea_+(1).jpg
28. Recomeçando a família pelo trabalho
Crianças de Canarana: Infância concebida como
preparação para o futuro. O presente em função do futuro.
Discurso das crianças (perspectiva malthusiana): Alencar
Jr. (14 anos): “nós viemos para Canarana atrás de futuro,
porque lá no Rio Grande do Sul tínhamos pouca terra:
dava só para viver, mas para ajudar um filho não dava...”.
Marcos M. (14 anos): “[...] não haveria lugar para todo
mundo em um pedaço de terra com a quantia de 25
hectares. Como meus pais queriam dar um futuro melhor
aos filhos, viemos para cá”. (pp. 124).
Não havia futuro no lugar antigo: muita gente, terra
insuficiente, secas, geadas. O FUTURO se revelou como
preservação de um modo de vida: FAMÍLIA QUE
TRABALHA NA AGRICULTURA, PARA SÍ MESMA,
QUE NÃO TRABALHA PARA OS OUTROS.
29. Recomeçando a família pelo trabalho (continuação)
TRABALHO E FAMÍLIA:
Para muitos a emigração destinou-se à manter a família unida
e próxima.
Maioria das famílias de Canarana são descendentes de
Alemães e Italianos: histórico marcado por migrações
periódicas desde finais século XIX.
O TRABALHO: As próprias crianças admitem que mudaram
para trabalhar e muitas estudam à noite, para ajudar na lavoura
durante o dia. TRABALHO É MISSÃO, E MISSÃO
FAMILIAR.
Para as crianças melhoria de vida é aumento de condições de
trabalho. Trabalho que paga dívidas: financiamentos,
máquinas e terras.
Em Mato Grosso o trabalho é insuficiente para ocupar toda
terra existente. O arado e o boi é substituído pela alta
tecnologia. EQUILIBRIO.
30. Recomeçando a família pelo trabalho (continuação)
O primado do trabalho é o primado da família
O trabalho reproduz a família na medida em que garante o
futuro dos descendentes com a reserva de terras para o
trabalho. (movimento cíclico).
A riqueza pela riqueza é fator de vergonha, como se fosse
ilícita. Pressupões enriquecimento de uma só pessoa e não do
grupo o que quebraria o ciclo: a herança deve ser repartida.
Uma desacumulação cíclica dos bens do camponês.
A infância é o período da vida em que a criança se prepara
para herdar. Daí a importância do estudo como forma de
preparo para o salto social.
O tempo é circular: O herdeiro se move num tempo finito onde
o ponto de chegada ainda é o ponto de partida (o recomeço da
agricultura familiar do pai provedor). Porém o ponto de
chegada já não é o mesmo: EVOLUÇÃO
31. Recomeçando a família pelo trabalho
(continuação)
Desequilíbrio: empobrecimento das terras do cerrado:
Retorno cíclico à uma nova base para a agricultura
familiar.
O agricultor de Canarana se concebe como trabalhador
que é patrão de sí mesmo. Pensa no salário (fruto do
excedente produzido por seu trabalho) que o capital (a
terra) lhe proporciona.
O salário aqui está presente num tempo e dimensão
cósmica singular. Não constitui-se em parcelas mensais
nas relações de produção mas, na subsistência de toda
a família e sua permanência na agricultura.
Ilusão cruel: apesar do sistema criar a possibilidade da
criança ser “criança” a ocupa com os encargos do
trabalhador e as preocupações do adulto. Uma negação
da infância, portanto.
32. O ADULTO NO CORPO DA CRIANÇA
• As crianças nos povoados de São Pedro da Água Branca e de Floresta no
Maranhão vivem uma realidade muito diversa:
• Povoados de posseiros e pequeno agricultores sem o título da terra
• Sujeitos ao despejo: ação direta de fazendeiros, pistoleiros via de regra
com anuência da polícia.
• Um discurso diferente das crianças de Canarana: mediação do lúdico,
brincadeiras e amizades. (sonhos)
• Dura realidade: Antonio P. (11 anos): “nunca fui feliz em minha vida”.
Ariston C. (11 anos): “Eu sou um menino pequeno. Eu passo mal porque
aqui não tem as coisas que a gente gosta”. Maria de Fátima R. (13 anos):
“é uma vida pensativa. Passa uns tempos bons e outros ruins. Mas, dá da
gente viver assim mesmo. Porque ser pobre em todo lugar é ruim”.
• O espaço da brincadeira é circunstancial e se apresenta como um intervalo
durante o dia. Primeiro trabalham, depois vão à escola e só após brincam,
no fim do dia, na boca da noite. A infância é um resíduo do tempo que está
acabando.
33. O adulto no corpo da criança (continuação)
• Vida marcada por constantes migrações: A migração, a constante
busca é um dado da vida. Aqui a infância não é definida pela
condição de herdeiro. Não há o que herdar. Nascimento B.: “Nós
vamos embora, aqui, nós não pode trabalhar. O pobre não pode
viver onde não pode trabalhar”.
• Cacarecos e bagulhos: A pobreza facilita a migração. Não há o que
carregar. A não ser os apetrechos de sobrevivência, opostos aos
bens de raiz que dão sentido ao trabalho do homem do campo.
• POBREZA TRANSFORMADA EM CARÊNCIA MORAL: Núcleo
problemático do processo = falta de união e o fim das lealdades
básicas.
• O dinheiro (instrumento da trapaça) deixa de ser expressão do
trabalho, para constituir na sua negação:
• Abertura e venda de posses de terra (muitas vezes ameaçadas)
34. O adulto no corpo da criança (continuação)
• A POLARIZAÇÃO QUE INDICA O LUGAR DO POBRE NO
MUNDO:
• Inexistência de terra para o pobre botar roça.
• Em São Pedro os “donos da terra não deixam trabalhar”. É só
alguém começar uma roça e eles chegam e mandam parar.
• “Os polícias não querem deixar os lavradores botarem roça” João.
• Em Floresta “os mineiros querem tomar as terras dos lavradores”
Maria N. (13 anos).
• O não ter terra para trabalhar não deriva do sentido de propriedade,
deriva do advento do “dono” (que também não é proprietário) que
se interpôs entre o “lavrador” e a “livre liberação da terra”. USO DA
FORÇA NA IMPOSIÇÃO DA AUTORIDADE DO PODER PESSOAL
• É na violência do “dono” que as crianças se reconhecem como
pobres. Uma degradação do homem pela mediação do dono.
35. O adulto no corpo da criança (continuação)
• Cercamento das terras para criação de gado:
• Terra para cercar é uma negação da terra para trabalhar (na visão
das crianças): “Gado sem arroz ninguem come”.
• O arroz é a comida do trabalho. A carne é a comida do ócio, da
festa.
• Arroz sem carne tem sentido, Carne sem arroz não o tem.
• A comida não é supérflua na vida do posseiro: Ela é também o
limite. O “ter” se reduz ao “ter o que se pode comer”. REALIDADE.
• Assim o arroz simboliza a própria vida, recurso do limite da
sobrevivência.
• O capital deteriorou as relações no campo: O “ganhar” substitui em
importância a “união de antes”.
36. O adulto no corpo da criança (continuação)
• A humilhação e violência como fatores de expulsão dos
posseiros:
• Bater e colocar no formigueiro
• Uso da palmatória (instrumento de castigo de escravos e crianças)
• Forte simbolismo de classe. Da classe que manda, que tem o
poder.
• “levar bolos na mão é castigo que se inflige a quem está na
condição de menor e subalterno, a quem não tem direito de ter a
própria vontade, a quem está obrigado a obedecer.
• A pequena Regimar F. ao falar de sua vida de adulta e criança
demarcou o espaço agora duplicado, o dos pobres e o dos donos,
numa carta geográfica imaginária, em que toda a força do mundo
que se acaba, e que foi subjugado, ganha contorno de esperança
na aventura de uma nova migração. Só que Já não se trata de
buscar terra livre, mas de escapar da cerca e da humilhação.
37. CONCLUSÕES
CRIANÇAS DE CANARANA:
Trabalham para o grande capital
Possui título das terras que ocupam
Vivem a ilusão da autonomia na coesão da família: Não percebem que o
capital transformou a família em capataz de adultos e crianças.
CRIANÇAS DE SÃO PEDRO E FLORESTA:
Posseiros não tem a propriedade da terra
Agricultura de subsistência. Sua relação com o capital, apesar de tênue, é
insidiosa e corrosiva: dívidas e carências que, no limite, forçam os pobres a
comer tudo que tem. EXPULSÃO, GRILAGEM E VIOLÊNCIA.
O posseiro é um obstáculo ao uso capitalista da terra. É a reprodução do
capital que está em jogo e não a reprodução do trabalhador e da família.
EM AMBOS OS CASOS:
As crianças já nascem para o trabalho. No caso dos colonos a infância já
foi incorporada pelo trabalho, no caso dos posseiros, foi marginalizada pelo
trabalho.
Ambas as crianças pensam a vida em termos de futuro, concebido através
do passado como fonte de esperança, a matriz da utopia.