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Universidade federal de mato grosso 
Programa de pós-graduação em história 
Minicurso: 
A ASSUNÇÃO QUILOMBOLA E OS LIMITES ENTRE 
MEMÓRIA E HISTÓRIA 
BARCELOS, Silvânio1 
1Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Mato Grosso, sob orientação do Prof. Dr. Marcus Cruz. Bolsista CAPES/FAPEMAT. Email: silvaniobarcelos@hotmail.com
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RESUMO 
O presente minicurso tem como eixo central a reflexão sobre os limites entre memória e história presentes nos processos da assunção quilombola, desenvolvidos a partir de levantamentos histórico/ antropológicos para identificação de comunidades remanescentes de quilombos, tendo como base nossa própria experiência em pesquisas de campo. Existem na atualidade três casos distintos de comunidades que requerem o reconhecimento da identidade quilombola: 1) remanescentes diretos de quilombos tradicionais; 2) remanescentes diretos de escravos sem ligação com quilombos e 3) comunidades que não possuem nenhum vínculo com quilombos e, também com escravos. Excetuando-se o primeiro caso, por tratar-se de comunidades que efetivamente possuem descendência de quilombos formados antes da Abolição, o segundo e o terceiro constituem temas históricos que requerem uma análise crítica relacionada diretamente ao fazer historiográfico, tendo como objetivo levantar os limites impostos entre a memória e a história. Posicionamos-nos além da realidade refletida pelas lutas políticas e sociais de grupos que lutam pela propriedade de suas terras, uma militância sem dúvida alguma louvável e justa, para questionar a posição da disciplina história, no que se refere ao tratamento teórico/epistemológico dos conceitos e categorias desenvolvidos ao longo do tempo, que lhe confere o estatuto de uma ciência humana. Desta forma, entendemos a assunção quilombola, que possui como premissa básica a invenção de tradições, como um campo de experimentações, e de lutas políticas, que se identificam mais à memória que à própria história. 
PALAVRAS-CHAVE: Assunção quilombola; memória e história. 
PROPOSTA DO MINICURSO 
Refletir sobre os conceitos e categorias escravidão da era moderna, quilombo tradicional, quilombo contemporâneo e a ressemantização do conceito de quilombo tradicional, memória e história oral, a partir de nossa experiência em pesquisas de campo. Não é nenhuma novidade, entre os historiadores, entender que os conceitos e categorias constituem ferramentas necessárias à identificação da disciplina história enquanto ciência humana. Utilizando como estudo de caso os processos de levantamentos histórico/antropológicos, necessários à identificação jurídica de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombos, visando à titulação de suas terras, experimentaremos no campo da teoria os limites e as fronteiras entre memória e história.
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Este problema foi por nós levantado na analise dos processos de construção de identidade junto à Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca, localizada no município de Livramento, MT. A partir da década de 1990, em função dos trabalhos desenvolvidos pela antropóloga Drª Maria de Lourdes Bandeira e equipe, visando a elaboração de laudo histórico antropológico, a referida comunidade passou a identificar a si mesma como remanescente de quilombo, uma forma de luta política que visa a titularidade definitiva de suas terras. De acordo com os resultados de nossas pesquisas, esta comunidade é, segundo sua própria história, remanescente de escravos, tendo em vista que seus integrantes são descendentes diretos de 33 escravos forros e cativos que herdaram em forma de doação as terras da Sesmaria Boa Vida, no ano de 1883, por parte de sua senhoria D. Anna da Silva Tavares. 
Grupo de Siriri, Comunidade da Mutuca, 
6ª Festa da Banana Quilombola/2014 
Acervo: Prof. Silvânio Barcelos 
A festa da Banana Quilombola é realizada anualmente pela Comunidade do Mutuca, em Nossa Senhora do Livramento. Além das festividades onde são apresentadas a Dança do Siriri, Cururu, Eleição da Garota Quilombola, a festa conta com a realização de feira destinada à comercialização e divulgação dos produtos produzidos pela comunidade. É também espaço político e de socialização entre lideranças quilombolas do Estado de Mato Grosso.
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Esta constatação nos levou a questionar os limites entre a memória e a história, tendo em vista que o complexo compreendido pela Comunidade de Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, do qual faz parte a comunidade do Mutuca, entrou para a história e o imaginário da sociedade mato- grossense, de modo geral, como remanescentes de quilombos, tornando-se, nesta dinâmica, um truísmo aceito sem maiores problemas inclusive pela comunidade acadêmica. Não se trata, obviamente, de uma crítica à militância político/acadêmica, entendida por nós como justa na medida em que atende às necessidades de grupos subalternos em nossa sociedade, mas sim à relativização do conceito à luz da própria disciplina história. 
Antonio Mulato: patriarca do complexo Quilombo Mata Cavalo 
Acervo: Prof. Silvânio Barcelos 
Não obstante, neste caso, a assunção quilombola, tendo como consequência a formação dos “quilombos contemporâneos”, deve ser entendida como processo político e social enraizado no campo da memória e não como fato histórico, tendo em vista que a formação de quilombos no Brasil foi extinta com o evento da Abolição, em 1888. Assim, a grande questão que permeia nossa proposta de reflexão é a identificação dos limites entre a memória e a história, propondo-se um debate sobre até que ponto aquela pode determinar, ou legitimar, o fazer historiográfico.
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ESCRAVIDÃO DA ERA MODERNA: o legado do racismo 
Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... 
Astros! Noites! Tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 
(Navio Negreiro – Castro Alves) 
De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, no dia 25 de setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”. Ainda tratando da mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo artigo, o tráfico de escravos significa todo e qualquer ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo. Significa, também, qualquer ato de aquisição de um escravo com a finalidade de vendê-lo ou trocá- lo, ou seja todo ato deliberado de “comércio, bem como de transporte de escravos.”2 
O canadense Paul E. Lovejoy, historiador e africanista, professor da York University, em Toronto, onde ocupa a cátedra de História da África e da Diáspora Africana, defende a ideia de que os escravos eram, em termos absolutos, uma propriedade, e que também: “eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor”3. Estas observações permitem entender, de alguma forma, a transformação do africano escravizado em coisa, em mero feixe de músculos a serviço do regime que o oprime. De nosso ponto de vista, esta visão estereotipada do escravo como coisa, no limite, como um ser desprovido de história, contribui para a difícil posição social ocupada pelos negros no interior das sociedades contemporâneas. 
2 Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , acesso em 22 de Junho de 2014. 
3 Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29.
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1. Diáspora negra: as interações africanas no Novo Mundo 
Paul Gilroy, sociólogo londrino, com doutorado em filosofia pela Universidade de Birmingham, um dos expoentes do movimento negro mundial, analisa o mundo contemporâneo a partir das interações dos afro-americanos, percebendo o absurdo e a contradição nas vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade sem, ao menos, considerar a hipótese da contribuição dos africanos escravizados com a formação do mundo capitalista, condição relevante à sua própria existência. Para ele, torna-se necessário um esforço no sentido de fazer com que a cultura e a história negras “sejam levadas a sério nos círculos acadêmicos, em lugar de serem atribuídas, via a ideia de relações raciais, à sociologia, e, daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as questões políticas intratáveis vão aguardar seu falecimento”4. 
Stuart Hall5, sociólogo e professor da Open University, utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro- caribenho, vivendo em Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”6. Este autor aponta que, curiosamente, o pensamento pós-colonial prepara o indivíduo para viver uma relação diaspórica com a identidade. Para ele, a experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a recuperação de uma terra ocupada por outros povos. No esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a diáspora negra ele aponta a experiência de sofrimento, exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de alguma forma, porque os adeptos do Movimento Rastafári7 utilizam com frequência a bíblia, pois ela “conta a história de um povo no exílio dominado por um poder estrangeiro, distante de casa e do poder 
4 Gilroy, Paul. O Atlântico Negro : Modernidade e dupla consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40. 
5 Esse jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais no contexto colonizado da Jamaica, uma sociedade marcada por políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de “coolie” uma espécie de pária entre os seus, por ser de todos os membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se para a Inglaterra onde mais tarde filiou-se à “Nova Esquerda Inglesa”. 
6 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415. 
7 Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos Rastas procuraram formas de subsistência através da arte, entre elas o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. Entretanto, onde a cultura Rasta desenvolveu- se, tanto na Jamaica quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae, um estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao som de instrumentos metálicos que foram inspirados na Black music norte- americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, originou o Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo Rocksteady passa a denominar-se Reggae
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simbólico do mito redentor”. Em suas conclusões, o que marcou definitivamente o rastafarianismo foi o fato de ter tornado definitivamente negra a Jamaica, descolonizando as mentes. “Como todos os movimentos, o rastafarianismo se representou como um retorno. Mas, aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê-lo produziu a África, novamente, na diáspora”8. 
Paul Gilroy, na já citada obra, nos lembra que as comunidades negras que se formaram no entorno do Atlântico, são conectadas de alguma forma através das expressões da arte e da música, uma síntese da influência cultural africana no Novo Mundo. Foi exatamente na confluência expressiva das conexões lúdicas que surgiu, no bojo da diáspora africana, o que podemos denominar de consciência negra, formas culturais e sociais de valorização étnica, elos de solidariedade inconfundíveis utilizados, freqüentemente, como forma de atendimento às demandas políticas dos afro-americanos. 
2 A contradição da modernidade 
Argumentando sobre o impacto violento da escravidão racial na sociedade marcada pela modernidade, Gilroy afirma que uma parte muito expressiva da novidade que representa o pós- moderno se oblitera, de forma inexorável, quando analisada sob a perspectiva histórica que representou os encontros entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e escravizaram, de uma forma brutal e inconsequente. Assim, o estudo da diáspora negra “é essencial para nossa compreensão da categoria de ‘raça’ em si mesma e da gênese do desenvolvimento das formas sucessivas da ideologia racista. É pertinente acima de tudo, na elaboração de uma interpretação das origens e da evolução da política negra”.9 Se a inclusão dos processos de racialização que deram origem ao estado social, político e econômico das sociedades ocidentais contemporâneas é importante segundo as hipóteses levantadas pelo autor, acreditamos que tais esforços historiográficos devem seguir os próprios caminhos de sua superação. Daí a importância da inclusão do estudo da diáspora nos períodos moderno e do pós-moderno para historicizar a presença do negro no ocidente e sua narrativa, incluindo, de forma racional e despida de preconceitos, a participação efetiva dos afro- americanos na história ocidental para além das relações de dominação e subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. 
8 Hall, Stuart. Da diáspora [...] Op. Cit. P. 417. 
9 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 106.
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Gilroy se preocupa com a evolução do racismo científico para formas culturais novas, um tipo mais complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar da hierarquia biológica simples tratada pelo cientificismo no século da razão. Para ele o racismo científico, propugnado em meados do século XIX, foi o produto intelectual mais durável da modernidade. Como sabemos, a questão da dominação racial e suas consequências não faz parte da agenda de debates da modernidade. Em seu lugar, afirma ele, aparece uma modernidade inocente que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim ou Londres. 
Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos povos sem história, cujas vidas degredadas poderiam levantar questões incômodas sobre os limites do humanismo burguês. A famosa pergunta de Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ permanece obstinada e deliberadamente sem resposta (Gilroy, 2001, p. 107). 
Jürgen Habermas, citado por Gilroy, filósofo, eminente representante da Escola de Frankfurt e assistente do também filósofo e sociólogo Theodor Adorno, em suas obras, foi hábil defensor do potencial democrático da modernidade. No entanto Habermas não atenta para o fato de que os ideais iluministas não consideravam a questão da raça, central no pensamento de Gilroy em cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se uma profunda contradição: “Há uma tênue percepção, por exemplo, de que a universalidade e a racionalidade da Europa e da América iluministas foram usadas mais para sustentar e transplantar do que para erradicar uma ordem de diferença racial herdada da era pré-moderna”.10 Como vimos no exemplo citado, e de acordo com Gilroy, os pensadores da modernidade em sua grande maioria não observaram, em suas numerosas formulações, a importante questão da escravidão racial como um dos elementos que a constitui e lhe confere sua condição privilegiada nas vias das grandes inovações do mundo pós-guerras. Desta forma, contribuem com os continuísmos históricos, presentes nas políticas socioculturais, capazes de fazer sombra à importante movimentação das comunidades negras ao mesmo tempo em que legitima as relações de poder no seu interior. 
Paul Gilroy utiliza-se da obra e do pensamento de Frederick Douglass, intelectual e ativista político em meados do século XIX, um forte candidato a ser o pai do “nacionalismo negro”, pois entre grandes expressões do universo de pensadores do Atlântico negro [tais como: Martin Delany, 
10 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 114.
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Edward Wilmot Blyden e Alexander Crummell]11 foi o único marcado por sua condição de ex- escravo, fator que lhe confere uma posição privilegiada no estudo da escravidão. Em sua complexa relação com a modernidade, evocava o iluminismo maior que supostamente traria um pouco de luz para a escuridão ética da escravidão. Para ele a Plantation escravista era marcada pelo arcaísmo anti- modernista. Gilroy cita uma passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage and my freedom (Minha escravidão e minha liberdade), “[...] a Plantation é uma pequena nação em si mesma, tendo seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes. As leis e instituições do Estado aparentemente não a afetam em parte alguma. As dificuldades que surgem aqui não são resolvidas pelo poder civil do Estado”.12 Reiteradamente, Douglass entendia a Plantation escravista como uma própria antinomia da modernidade, um sistema atrasado, pré-capitalista e comparável às relações de trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele ia mais além ao afirmar que, junto ao cristianismo que não fez outra coisa senão servir à causa burguesa, com seus aparatos ideológicos da sujeição escrava, a Plantation significava estagnação, quando não recuo, que encerrava a civilização na parte externa do mundo iluminista. 
Concordamos com Douglass em sua evocação da essência do iluminismo, não obstante, convém lembrar de que este movimento produzido pela elite europeia setecentista, como acontece também no mundo contemporâneo, possui uma relação ambígua com relação aos outros povos, e, também com as outras classes sociais. Por outro lado, foi exatamente com as riquezas produzidas com o trabalho escravo, a acumulação de capital daí advinda, que tornou-se possível o progresso desta elite desde o século das luzes. Só para corroborar com a ideia dos continuísmos históricos, asseverada por Gilroy, vale lembrar de que o trabalho análogo ao escravo presente nos campos brasileiros, conforme nos lembra José de Souza Martins, é utilizado sem grandes problemas por uma elite industrial/agrária privilegiada. Ou seja, o que interessa ao capital é a maximização dos lucros, não importando os meios, mas sim os objetivos. Neste contexto específico, verifica-se uma profunda contradição. De um lado, proprietário de grandes áreas de terras do agronegócio, abastados, 
11 Martin Delany foi um importante ativista político de sua época, século XIX, um dos primeiros ideólogos do afrocentrismo, explorador, conferencista, editor de jornal, correspondente, major das forças armadas dos EUA, autor de romance e diversos folhetos; Edward Wilmot Blyden considerado o pai do Pan-Africanismo, foi educador, escritor, diplomata e político, além de idealizar o que chamou de “etiopianismo”, baseado no sionismo judeu, um lugar na África para onde poderiam retornar os afro-americanos; Alexander Crummell foi um sacerdote episcopal nos EUA, também defensor do Pan-Africanismo, militou à favor da abolição da escravidão. Acrescentamos à lista dos notáveis pensadores negros do Atlântico Negro, citada por Gilroy, Abdias do Nascimento, certamente um dos maiores defensores dos negros no Brasil. Participou da Frente Negra Brasileira, do movimento integralista, foi ator e diretor teatral tendo criado o Teatro dos Sentenciados, palco que revelou grandes nomes da dramaturgia brasileira como Ruth de Souza e Léa Garcia, foi também professor emérito da Universidade do Estado de Nova Iorque, doutor honoris causa por diversas universidades, indicado ao Prêmio Nobel em 2009, e ex-senador da República. 
12 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 49.
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civilizados, que se ufanam de pertencerem a uma elite pós-moderna utilizando-se, em alguns casos, de mão-de-obra semiescrava em suas fazendas, enquanto desfrutam felizes suas riquezas. 
3 Escravidão no Brasil: o triunfo do racismo 
Na palestra de abertura do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Escravidão Africana no Brasil, realizada em Junho de 2010 na cidade de Natal – RN, Luis Felipe de Alencastro, cientista político e historiador, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne, alerta para a defasagem dos estudos da história atlântica que atribui pouco valor à história do Atlântico Sul. De acordo com suas formulações, esse silêncio na produção historiográfica escamoteia, parcialmente, a própria história do Brasil no que se refere aos movimentos de migração forçada de africanos às terras brasileiras. Os dados estatísticos divulgados pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2010 confirmam o caráter do que podemos inferir como uma espécie de “contra-colonização” africana no Brasil, ao revelar que mais da metade da população brasileira é afro descendente. 
LEMBRE-SE... 
A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade. O tráfico de escravo significa todo ato deliberado de comércio, bem como de transporte de escravos. 
Foi com a mão-de-obra do africano no Novo Mundo que tornou possível a acumulação primitiva de capital e a expansão capitalista no Ocidente. As interações culturais e sociais do africano na diáspora negra contribuíram para a constituição da própria modernidade ocidental. Esta realidade é marcada por uma profunda contradição: como agentes sociais, culturais e econômicos da própria modernidade, os africanos no Novo Mundo foram, e continuam sendo marginalizados pela própria história ocidental. 
Torna-se imperativo considerar as premissas do racismo para o estudo da condição social, política e econômica do afro-americano no interior da História do Ocidente. 
A plantation escravista pode ser considerada como uma antinomia da própria modernidade, se levarmos em conta que a produção de riquezas capitalistas foram geradas à partir do trabalho escravo.
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Perdigão Malheiros, como era mais conhecido, advogado e historiador, notável abolicionista, publicou em 1866 o livro “A escravidão no Brasil”, um importante ensaio histórico, jurídico e social que aborda esta temática através de uma discussão sobre seus aspectos jurídicos, em um período da história onde juridicamente era legal o comércio, a posse e o uso de escravos. À partir da categoria “mercadoria humana” (grifo nosso) o autor desenvolve uma série de estudos sobre os aspectos legais do próprio instituto da escravidão, para levantar questões morais e éticas importantes àquela sociedade, como sabemos, composta em sua maioria por africanos escravizados, mas também por uma elite escravocrata privilegiada que fazia tudo ao alcance para a manutenção do regime. Para o autor, o uso de mão de obra escrava constituía um sintoma de atraso social que deveria ser superado, pelo bem da própria nação. Também nos lembra Malheiros que os africanos escravizados só se tornaram sujeitos de direito jurídico através da aplicação de penas à transgressões, ou seja não portadores de direitos civis, políticos e sociais, ainda assim estavam sujeitos ao Código Legal em seus aspectos disciplinares. 
Segundo Manolo Florentino, doutor em História pela UFF, professor associado da UFRJ e presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, “[...] 40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas Américas desembarcaram em portos brasileiros”.13 Não constitui grande problema identificar no fluxo contínuo externo da oferta de mão de obra escrava barata a própria permanência do sistema escravista. Não podemos desconsiderar os cálculos econômicos da empresa colonial, que certamente faziam parte das preocupações de todos que se envolveram de alguma forma no rentável negócio da escravidão. Certamente, os comerciantes da empresa escravista colonial perceberam que à reprodução física dos homens correspondia, na escala dos cálculos econômicos, a reprodução da própria oferta de mão de obra e da força disponível para o trabalho. 
Sociólogo, considerado pioneiro na sociologia brasileira, antropólogo, escritor, político, pintor, jornalista, idealizador do projeto de criou a Fundação Joaquim Nabuco, detentor de diversos títulos Doutor Honoris Causa e de Cavaleiro do Império Britânico, Gilberto de Mello Freyre é imortalizado no cenário internacional através das páginas de sua mais importante obra: Casa Grande & Senzala, publicada em 1933. Para o autor, Casa Grande & Senzala é um ensaio de sociologia genética e, também de história social capaz de interpretar alguns dos aspectos mais marcantes da formação da família brasileira, e por extensão da própria sociedade, agrícola, latifundiária, escravocrata e patriarcal. Ao substituir a ideia de raça pela de cultura, propõe uma visão democrática 
13 Florentino, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P. 23.
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onde o caldeirão composto pelas influências europeias, africanas e ameríndias, teoricamente, contribuiu para a formação da própria identidade brasileira. Consoante Freyre, a casa grande, completada pela senzala, representa todo: 
[...] um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”14, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos.15 
Para o autor, foi graças aos senhores de engenho que se criou na América hispânica, o tipo de civilização mais estável, representada pela imponência da arquitetura da casa grande, ampla, de linhas horizontais, cozinhas espaçosas, salas de jantar suntuosas, acomodação para filhos casados, um sem número de quartos, camarinhas para moças solteiras, conforme suas palavras, representava a alma do brasileiro. A casa grande, nos lembra Freyre, foi sincera expressão das “necessidades, dos interesses, do largo ritmo de vida patriarcal que os proventos do açúcar e o trabalho eficiente dos negros tornaram possível.”16 A casa grande, entendida em seu contexto histórico e social é a história do próprio brasileiro. À partir desta constatação, o gênio literário e sociológico de Freyre entende a formação da sociedade brasileira, numa perspectiva evolucionista, civilizatória e elitista, como resultante da força e do poder do senhoriato, de sua plasticidade, da capacidade de se acomodar à situação cotidiana, de suas interações com as outras raças, mas, sobretudo pela imposição de suas vontades mal disfarçadas pela mentalidade patriarcal. Um nível de dominação peculiar que cria dependências eternas e o sentimento de gratidão, uma dívida perene que as camadas subalternadas se arrogam como obrigações inefáveis devidas aos pater famílias à elas impostas por contingência da miséria e da pobreza. 
Percebe-se nas páginas de Casa Grande & Senzala, o deslocamento da análise do conceito de raça para o de cultura. Desta forma, conclui o autor, todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra, 
14 O “tigre” era um barril, ou outro vasilhame qualquer, utilizado como recipiente de urina e fezes que eram transportados na cabeça dos africanos escravizados para serem atirados em rios, nos mares ou nas matas, um sistema sanitário movido à energia humana. Nota do autor. 
15 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala. – 12ª Ed. Brasileira, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963. P. 10. 
16 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 18.
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ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro. Segundo Freyre, a influência cultural do africano se verifica: 
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no conto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias (sic) de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.17 
Este autor entende, também, que a influência do africano escravizado no Brasil não se verificou só na formação agrária e na constituição da sociedade, como visto acima. Para ele, a mineração de ferro, o trabalho e o domínio da manufatura do ferro e a técnica de criação de gado compuseram parte da cultura e da civilização agregadas ao meio social brasileiro. Freyre enfatiza a ação civilizadora dos africanos escravizados em suas interações com os índios, elevando a cultura indígena e, raramente, sendo por elas influenciados. Para ele, diante dos caboclos, “os negros foram elemento europeizante.”18 Mais ainda, elemento fundamental de ligação entre europeus e ameríndios, e entre estes e a fé católica, que transcendia o papel de mediadores plásticos entre culturas, sendo que em alguns casos, exerciam “função original e criadora, transmitindo à sociedade em formação elementos valiosos de cultura ou técnica africana.”19 Em sua sensibilidade sociológica, Freyre desvela nas ricas páginas desta obra uma questão fundamental para o entendimento da influência dos afro-brasileiros na conformação de nossa sociedade. Para ele, superando estereótipos que o senso comum historiográfico postula em relação aos negros, devemos levar em consideração a atuação destes não enquanto sujeitos ativos na história, senão na condição degradante de escravos. Ou seja, entendendo-os em toda sua complexidade na única condição que o regime da escravidão à eles impuseram. De acordo com nossa orientação epistemológica, compreender os negros em suas interações no interior de tal regime consiste, antes de tudo, entender as limitações que a falta de liberdade impõe aos sujeitos históricos. 
Destarte, ao contrapor-se à uma ideia generalizada da depravação do negro, como do índio, Freyre pondera a impossibilidade de responsabilizá-los pelo comportamento que não caracteriza suas 
17 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 331. 
18 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 353. 
19 Id. Ibidem.
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obras, o modo de ser, a moral, pois se tal condição social persiste esta é resultante do sistema social e econômico onde foram obrigados a sobreviverem, de forma passiva, e muitas vezes mecanicamente. O autor vai mais longe, ao postular que é mesmo da essência do regime, a deterioração dos costumes. Freyre reforça este pensamento, ao citar uma frase recolhida por Joaquim Nabuco de um manifesto escravocrata de fazendeiros, presente em sua obra O Abolicionismo: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador”.20 Não obstante a promiscuidade que subjaz à ironia da assertiva, tal ideia, cristalizada no imaginário colonial, concordamos, deriva de questões objetivas e práticas largamente difundidas entre as camadas mais abastadas daquela sociedade. Ora, como uma mercadoria altamente valorizada no regime da escravidão, nada poderia ser mais sensato que o desejo senhorial pela reprodução escrava. Assim, disserta o autor, como ponto de partida para o entendimento da condição do escravo, e não do negro enquanto pessoa humana, lembramos, “o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias.”21 Não se trata de costumes exclusivos da sociedade colonial, nos lembra Freyre, “fora assim em Portugal, de onde a instituição se comunicou ao Brasil, já opulenta de vícios”.22 Assim, entre os escravos mouros e negros da metrópole lusitana era costume de seus senhores favorecer a desagregação social da escravaria para a reprodução física de seu plantel, da mesma forma que administraria um produtor agropecuário qualquer seu rebanho. 
Para Décio Freitas, advogado, jornalista, historiador, ativista político e autor de diversas obras que se tornaram referência nos meios especializados que tratam da escravidão no Brasil, enquanto persistiu o regime da escravidão os escravos se revoltaram, marcando sua revolta via protestos armados com tamanha intensidade que não existiu paralelo em nenhum outro país do Novo Mundo. Não obstante, para o autor este importante momento na vida brasileira ainda requer o seu direito à história. Uma história mal conhecida, e quando reconhecida, apenas apêndice marginal de um contexto social homogeneizante. Constitui preocupação de Décio Freitas o papel desempenhado pelos africanos escravizados no Brasil como atores e autores de suas próprias histórias. Desterrados violentamente de suas origens, nos lembra Freitas, estrangeiros na própria terra que tornaram fecunda, nem súditos, nem cidadãos, mas mesmo assim homens, mulheres e crianças negras se incorporaram à sociedade brasileira, ignorados pela história, dela fizeram parte. Da mesma forma que Paul Gilroy, em sua obra “O Atlântico negro”, nos exorta a considerar a massiva presença dos afro-americanos na parte mais nobre desta história, preenchendo o buraco negro com sua real 
20 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 360. 
21 Id. Ibidem. 
22 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 361.
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presença, Freitas encontra nos caminhos da resistência escrava a superação de insistentes estereótipos, praticamente inoxidáveis ao tempo, sujeitos à vontade dominante e aos poderes hegemônicos. 
Fato bastante conhecido pelo senso comum, bem como intensamente trabalhado na historiografia especializada que se dedica ao estudo da escravidão no Brasil, o africano escravizado trabalhava muito, contudo “produzia pouco e mal”.23 Esta condição, assevera Freitas, denotava o desejo, consciente ou inconsciente, demonstrado pelo negro, de prejudicar de alguma forma seu algoz, sendo que para este aquele não passava de animal capaz de articular palavras, de dominar a linguagem. Não obstante, truísmo importante, o negro não era somente instrumento material de trabalho, tinha ele consciência de si próprio, um ser humano que quando se revoltava revelava o “esforço para recuperar a sua identidade humana sequestrada pelo escravismo”.24 
Ainda pouco estudado no Brasil o conceito “brecha camponesa”25 revela, em larga escala, os mecanismos de controle em sua forma mais sutil, uma negociação em níveis mais profundos, considerando-se seus aspectos psicológicos. O silêncio em torno dessa delicada questão, na historiografia tradicional, se prende, segundo Silva, à própria lógica cristalizada pela memória da escravidão que, via de regra, não admitia que os escravos fossem senhores de sua história, “enquanto res, instrumentos de produção, propriedade de outrem, não teria, simplesmente, uma economia própria”.26 Na verdade, a possibilidade fornecida aos escravos de uma margem de economia própria, através da cessão de pedaços de terra para o plantio e a folga de um dia por semana para o manejo da plantação, consistia numa poderosa “moeda de troca” à disposição dos senhores e proprietários de escravos. Desta forma, a “brecha camponesa”, de acordo com Silva, “aumentava a quantidade de gêneros disponíveis para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão”.27 Essa última questão, a segurança, de acordo com esses autores, é central nas relações entre senhores e escravos, buscando da melhor forma possível um ambiente de relativa paz. A farta documentação visitada por esses pesquisadores, nos arquivos relativos ao Rio de Janeiro do século XIX, conecta as práticas de cessões de terras com 
23 Freitas, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Editora Movimento, 1976. P. 15. 
24 Id. Ibidem. 
25Segundo Eduardo Silva e João José Reis, o conceito brecha camponesa, “embora razoavelmente estudado nos Estados Unidos e, sobretudo, no Caribe”, tem sido negligenciado pela historiografia brasileira. Página 22 de sua obra já citada. Apesar de não referido por estes autores convém lembrar que o conceito “brecha camponesa” foi desenvolvido inicialmente por Lepkowski, conforme desvela Cyro Flamarion Cardoso em obra publicada em 1987, sob o título: Escravo ou camponês: o protocampesinato negro nas Américas. 
26 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 22. 
27 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 28.
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a questão do interesse na manutenção da segurança. Entre os documentos pesquisados por esses autores, o conjunto de seis medidas adotadas pelos cafeicultores do município de Vassouras, que se reuniram em agosto de 1854, constitui um típico exemplo do que temos dito. De acordo com esse documento, três das seis medidas a serem tomadas pelas fazendas daquele município se prendem a fatores de ordem ideológica, tais como o incentivo à diversão, desenvolvimento de idéias religiosas e, “finalmente, permitir que os escravos tenham roças e se liguem ao solo pelo amor da propriedade28 [sic]; o escravo que possui nem foge, nem faz desordens”.29 
A família escrava é tema que produz intensos debates na historiografia atual30. Velhos paradigmas são obliterados em consequência das pesquisas atuais que buscam, auxiliadas pelas novas tecnologias, uma visão mais crítica acerca desta temática instigante. Entre as inovações técnicas, a demografia histórica constitui-se num instrumento racional para uma nova abordagem da história da vida privada nas senzalas. Manolo Florentino e José Roberto Góes souberam explorar bem esse filão historiográfico, cujos trabalhos culminaram num novo entendimento acerca dos processos de constituição de núcleos familiares no regime da escravidão racial no Brasil. Pensar a família e a própria dinâmica da empresa escravista em cálculos econômicos31 afasta a compreensão do que racionalmente consistia a lógica senhorial. Num contexto permeado de subjetividades, o empresário escravista se via obrigado a conformar suas necessidades às necessidades de seus escravos se quisesse, e isto é relevante, obter a maior produtividade possível. A racionalidade, portanto, apontava para as práticas que respeitassem, mantidas as devidas proporções, determinados níveis de direito que o escravo minimamente, e às vezes mesmo sem o perceber, exigia em troca de sua super exploração. “As estratégias senhoriais, antes de mais nada, deveriam ser políticas” assevera Florentino e Góes.32 
28 Obviamente, o termo “propriedade” utilizado na citação não corresponde ao seu significado literal pois os escravos somente utilizavam aquelas terras, não sendo em hipótese alguma proprietários. Explica-se, dessa forma, a utilização do [sic] pelo autor da presente. 
29 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 29. 
30 Segundo Manolo Florentino, à página 27 do seu “A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790/1850”, existe na atualidade uma sólida bibliografia acerca do tema família escrava tanto no Brasil, como no Caribe e, também nos Estados Unidos. 
31 Como o fez Jacob Gorender, citado por Florentino e Góes, que buscou na economia empresarial escravista a lógica de sua própria (ir)reprodução demográfica (1997, p. 28), ou na superexploração do escravo, exaurindo suas energias vitais ao limite, e provocando um altíssimo desperdício de mão de obra, farta e facilmente substituível, conforme conclusões de Celso Furtado, também citado por Florentino e Góes (1997, p. 28) 
32 Florentino, Manolo/Góes, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 C. 1850. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. P. 30.
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QUILOMBOS TRADICIONAIS 
Adelmir Fiabani, doutor em História pela Universidade do Vale do Rio Sinos e professor adjunto da Universidade Federal do Pampa, entende que a escravidão colonial alcançou seu apogeu no Brasil, sendo, portanto, impossível a compreensão de nossa história sem levar em consideração a herança escravista que conformou, em vários aspectos, a nossa própria sociedade. Para ele, a economia escravista produziu uma grande variedade de mercadorias, destacando-se o “açúcar, arroz, café, charque, fumo, pau-brasil, ouro etc.” (Fiabani, 2005, p. 21). Outra questão relevante percebida pelo autor se refere à relação escravizador/escravizado, permeada pela presunção do paternalismo, 
LEMBRE-SE... 
À partir da análise dos dados estatísticos do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que estima nada menos que mais da metade de nossa população é composta por afro-brasileiros, entende-se historicamente que houve uma espécie de contra-colonização africana no Brasil, em função da escravidão. 
Nos cálculos da escravidão o africano, que para cá veio na condição de escravo, constituía a mercadoria mais valiosa, sendo considerado o motor da economia do Brasil Colônia e Império. 
De acordo com Gilberto Freyre, a identidade brasileira foi resultado das interações entre os povos ameríndios, africanos e europeus. Para o autor o instituto da escravidão transformou o africano em coisa, sendo que os estereótipos negativos do negro, presentes no imaginário de nossa sociedade, deve referir-se ao escravo em si e não à sua própria pessoa. 
É questão central entender que enquanto existiu escravidão no Novo Mundo, persistiram as mais variadas formas de resistência, de negação da condição escrava, resgatando assim a própria humanidade do africano. 
A resistência pertinaz à própria condição escrava do africano pode ser exemplificada em formas mais sutis, tais como a conquista da “brecha camponesa” (pequenas áreas de terras cedidas aos escravos para cultivo), e a constituição de núcleos familiares no interior das senzalas, indicando alto nível de socialização mesmo em condições totalmente adversas.
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por um eficiente sistema de controle, via de regra pela violência, mas também pela resistência e oposição, estas, nem sempre tão evidentes. 
No percurso conhecido da história onde houve escravidão houve, também, resistência das mais variadas formas, desde as mais simples e cotidianas às mais complexas e elaboradas. Mesmo sob a real ameaça de severas punições, os trabalhadores feitorizados barganhavam com seus senhores pequenos espaços de autonomia no interior do regime nefasto de cooptação de almas e corpos. Numa atitude clara de humanidade, em seu sentido psicológico, faziam “corpo mole no trabalho”, quando podiam quebravam “ferramentas”, incendiavam “plantações”, agrediam os responsáveis por suas penúrias, e esta, também, constitui uma lista “longa e conhecida”. (Reis e Gomes, 1996. p.9). Não obstante, reflexo de resistência total à opressão, outra forma, além das já conhecidas rebeliões, motins, revoltas e insurreições a formação de quilombos tornou-se, no tempo e no espaço da escravidão, sua mais completa e decisiva negação. Reis e Gomes nos lembram, contudo, que nem todo trabalhador escravizado fujão, isolado ou coletivamente, aquilombava-se, sendo comum a procura do anonimato da “massa escrava e de negros livres” nos ambientes urbanos e rurais. (Reis e Gomes, 1996, p.9). 
Mario Maestri, de nacionalidade brasileira e italiana, nascido em Porto Alegre – RS,refugiado na Bélgica, por questões políticas, onde concluiu a graduação, mestrado e doutorado em ciências históricas no Centro de História da África da Universidade Católica de Louvain, na apresentação da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004)”, cogita sobre as fugas dos trabalhadores escravizados no Brasil. Para ele, as fugas constituíram-se em uma “hemorragia incessante na produção escravista”. Utilizavam-se do recurso da fuga, crianças, jovens, adultos e até os mais idosos, de “ambos os sexos”. Escapavam, sempre que possível, “cativos das cidades, das residências, das embarcações, das chácaras, das fazendas, das olarias, das charqueadas. Fugia o cativo crioulo, que não conhecia outra vida, e o africano apenas ou há muito chegado ao Brasil, que vivera em liberdade.” (Fiabani, 2005, p.8). Segundo Maestri, na citada apresentação, via de regra os fujões escapavam sozinhos, nada obstante havia casos de fuga em grupos ou aos pares. Múltiplos eram os motivos destas fugas, sendo as mais usuais: “visitar amigos e parentes; viver como negros livres libertos nas cidades e nos campos; procurar a proteção de acoitador cúmplice; encontrar o abrigo em um ermo no interior”. (Fiabani, 2005, pp. 8-9).
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Fenômeno amplo e abrangente, a formação de quilombos no Novo Mundo recebeu diversas denominações e foram entendidas de variadas formas por um número expressivo de intelectuais contemporâneos que dedicaram parte de suas obras ao entendimento destes fatos históricos, como veremos nos exemplos a seguir. 
1. Visões do quilombo na historiografia 
Existe na historiografia recente uma profusão de significados acerca do conceito de quilombos no Brasil. Segundo Kabengele Munanga, graduado em antropologia cultural pela Université Oficielle du Congo à Lubumbashi, doutorado e livre-docente em antropologia social pela Universidade de São Paulo, em 1977 e 1997 respectivamente, onde exerce o cargo de Professor Titular, kilombo (quilombo em português) é uma palavra de origem Bantu. Sua presença no Brasil certamente tem a ver com alguns segmentos desses povos que foram trazidos a bordo dos navios negreiros na condição degradante de escravos. “A história do quilombo como a dos povos Bantu é uma história que envolveu povos de regiões diferentes entre o Zaire e Angola” (MUNANGA, 1995- 96, p.58). A tradição oral, ainda nos dias de hoje, constitui uma das principais fontes de informação em boa parte do Continente Africano. Munanga se utiliza destas fontes para reconstituir a origem histórica do quilombo nas tribos Bantu. Através de uma vertente mitológica, a tradição oral situou a gênese dessa instituição no império Luba, localizado entre o centro e o sudeste do atual Zaire, em finais do século XVI, governado por Kalala Llunga Mbidi. 
Numa análise do mito do quilombo no império Luba, Munanga conclui que: “A palavra quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem” (MUNANGA, 1995-96, p. 60). Localizados em contextos históricos diferentes, os quilombos tradicionais no Brasil diferem-se de seu equivalente africano quanto à questão da segurança. Aqui os quilombolas, em sua maioria, adotavam táticas de resistência e defesa do território, ao passo que para os povos nômades dos atuais Zaire e Angola, essas instituições representavam forças de expansão e conquistas territoriais, bem como de poderio bélico. 
Fiabani, ao referir-se a José Jorge de Carvalho, afirma que na América o fenômeno relacionado às comunidades que se formaram com trabalhadores escravizados, que fugiram de seus senhores e resistiram à recaptura, receberam variadas denominações nas diversas regiões do Novo
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Mundo: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti e nas demais ilhas do Caribe Francês; [...] cimarrones em diversas partes da América Espanhola; maroons na Jamaica, no Suriname e no Sul dos Estados Unidos”. (FIABANI, 2005, p.282). Desvela o autor que os nomes marrons e maroons derivam do nome dado pelos colonizadores ao gado doméstico fugido, na região da ilha de Hispaniola, atual Haiti e Santo Domingo. Trata-se de um discurso civilizatório, de acordo com o senso comum, que equipara o africano escravizado ao gado, quando em condições de liberdade encontra-se em “estado de selvageria”. No Brasil, nos lembra Fiabani, os habitantes dos quilombos recebiam diversos nomes, destacando-se entre eles: “quilombola, calhambola, mocambeiro, mucambeiro, mocambista, palmarinos, papa-mel. (FIABANI, 2005, p.282). 
Dentre todos os objetivos que moviam os trabalhadores escravizados que no percurso da história organizaram extensa e variada gama de quilombos no Brasil, Fiabani destaca como de maior relevância a liberação de sua força de trabalho cativa. Para ele, numa crítica bem fundamentada aos representantes de uma historiografia neo-patriarcal, que entende a formação do quilombo pelo viés culturalista33, ao contrário da ideia dos trabalhadores escravizados que fugiam para construir comunidades “africanizadas” por não se adaptarem à cultura dos senhores, seus objetivos eram a busca pela liberdade, individual ou coletiva. Liberdade plena, neste contexto relativo, significava para o trabalhador escravizado a liberação de sua mão-de-obra, o que permitia em seu cotidiano recuperar sua própria humanidade. Esta nova visão historiográfica, presente na obra e no pensamento de vários intelectuais contemporâneos entende a formação de quilombos como a mais completa negação da ordem escravista, como já foi dito anteriormente, constituindo-se, deste modo, em parte integrante da própria história do Novo Mundo e principalmente do Brasil. Irrefutavelmente, ainda existem silêncios incômodos a serem superados neste esforço, como aqueles relacionados à ocupação de parte expressiva do território brasileiro pelos quilombolas ao longo da história. 
Mario Maestri, na já citada apresentação à obra de Adelmir Fiabani, desvela a importância que esse novo conceito34 acerca da formação de quilombos representa para os segmentos negros no Brasil, bem como para sua própria história. No entanto, nos lembra Maestri, estes valiosos estudos 
33De todos representantes da historiografia que entende a formação de quilombos pelo viés culturalista, o autor destaca: Gaspar van Barleu, Raimundo Nina Rodrigues, Ernesto Ennes, Arthur Ramos e Édison Carneiro. Fiabani destaca ainda, em contraposição aos culturalistas, Emília Viotti da Costa e Clóvis Moura, para os quais a formação de quilombos no Brasil representava a resistência pertinaz à escravidão e o desejo imperioso da busca por liberdade, individual e coletiva. 
34 Refere-se o autor aos quilombos como a negação absoluta ao regime da escravidão.
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concentram-se na “identificação e descrição política, social e econômica” do fenômeno quilombola, porém considerados em sua forma “isolada, no que se refere ao espaço e ao tempo”. Essas limitações inibem segundo postula este notável pensador, uma visão mais ampla acerca da ocupação territorial por parte das comunidades quilombolas, no contexto da própria história rural brasileira, desconsiderando, por exemplo, o surgimento de quilombos, além da busca por liberdade, como formas de “povoação do interior”, da expansão, em alguns casos, “da fronteira agrícola”, além, obviamente, da “formação de comunidades caboclas de origem africana...”. (FIABANI, 2005, p.12). 
LEMBRE-SE... 
A relação entre escravo e senhor foi permeada pela presunção do paternalismo, por um eficiente sistema de controle, via de regra pela violência, mas também pela resistência e oposição, estas nem sempre tão evidentes. (Silvânio Barcelos) 
Formação de quilombos no Brasil tornou-se, no tempo e no espaço da escravidão, sua mais completa e decisiva negação. (Silvânio Barcelos) 
As fugas de escravos constituíram-se em uma hemorragia incessante na produção escravista. (Adelmir Fiabani) 
DENOMINAÇÕES DE QUILOMBOS NA HISTORIOGRAFIA: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti e ilhas do Caribe Francês; cimarrones na América Espanhola e maroons na Jamaica, Suriname e Sul dos Estados Unidos da América. (Adelmir Fiabani) 
Formação de quilombos no Brasil foi um importante elemento de povoação do interior e da expansão das fronteiras agrícolas brasileiras. (Mario Maestri)
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QUILOMBOS CONTEMPORÂNEOS E A RESSEMANTIZAÇÃO DO 
CONCEITO DE QUILOMBOS TRADICIONAIS 
1. A ressemantização do quilombo tradicional 
Numa citação à um extinto documento produzido pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), José Maurício Arruti, formado em História pela UFF, mestre e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, um dos mais renomados intelectuais que trabalham com a temática quilombo contemporâneo no Brasil, nos lembra das profundas transformações por que passaram o conceito quilombo tradicional. De acordo com o autor tal documento reconhece que: 
[...] ainda que tenha um conteúdo histórico, o termo quilombo vem sendo ressemantizado pela literatura especializada e pelas entidades da sociedade civil que trabalhavam junto aos segmentos negros em diferentes contextos e regiões do Brasil. Partindo de uma definição negativa – eles não se referem à resíduos, não são isolados, não tem sempre origem em movimentos de rebeldia, não se definem pelo número de membros, não fazem uma apropriação individual da terra – o documento propõe que os quilombos sejam tomados como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se define por “uma referência histórica comum, construídas à partir de vivências e valores partilhados”.35 
Ainda segundo Arruti, apesar de a informação não constar no documento produzido pela ABA, a ressemantização do conceito de quilombo foi elaborada em resposta à intensa demanda por uma definição jurídica, com base em pressupostos científicos, que possibilitassem a sustentação das ações que eram engendradas nos meios jurídicos, tendo como aporte os dispositivos legais do Artigo 68 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) de nossa Carta Magna de 1988. O referido artigo preconiza nos moldes da lei que “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir- lhes os títulos respectivos”. O autor assevera a complexidade dos processos de ressemantização do conceito de quilombo, inclusive na própria historiografia brasileira, em distintas etapas que incluem a visão culturalista, onde a formação de quilombo seria um suposto retorno às origens africanas, e por último como uma luta de classes entre escravos e senhores onde prevaleciam as lutas políticas 
35 Arruti, José Maurício. “Quilombos”. IN: Raça: perspectivas antropológicas. [org. Osmundo Pinho]. Campinas: ABA/ Ed. UNICAMP/EDUFBA, 2008. P. 2.
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pela liberdade. Não obstante, com relação à ressemantização do referido conceito na atualidade convém ponderar que se trata de uma questão objetiva política e social, qual seja inferir um caráter científico aos processos de reconhecimento de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombos, visando desta forma, entre todas as inovações desta nova visão a legitimação dos laudos históricos antropológicos, mesmo que determinada comunidade não possua nenhum vínculo com os quilombos formados antes da Abolição. Autentica, assim, neste movimento como verdadeiro objeto de direito, uma busca pela legalidade de suas lutas em prol das terras onde vivem. 
Outra forma de ressemantização do conceito de quilombo é encontrada na experiência de pesquisa desenvolvida por Eliane Cantarino O’Dwyer, doutora em Antropologia Social pela UFRJ, professora de antropologia do Programa de Pós-Graduação da UFF, vice-presidente representante da ALA – Associação Latino-americana de Antropologia. No bojo das pesquisas realizadas pela autora no projeto “Remanescentes de quilombo na fronteira amazônica: etnicidade e conflito”, junto a comunidades ribeirinhas na região formada pela confluência dos rios Trombetas e seu afluente Erepecuru, constatou-se que esta população estabelece no seu presente etnográfico “uma relação associativa para ação política comum, com base nas lembranças da procedência histórica dos quilombos, que constituíram igualmente comunidades políticas no passado”.36 
Este caso específico estudado por O’Dwyer refere-se ao primeiro exemplo de ressemantização de quilombo, por nós citado no resumo deste minicurso, por tratar-se de comunidade que possui vínculos diretos com antigos quilombos formados antes da Abolição. De acordo com a autora a identidade de remanescentes de quilombos, requerida pelas comunidades ribeirinhas com as quais desenvolveu sua pesquisa na região amazônica, emerge: 
[...] como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos sociais, econômicos e agências governamentais que passam a implementar novas formas de controle político e administrativo sobre o território que ocupam e com os quais estão em franca oposição.37 
Foi no contexto de imposição de forças externas, e a consequente disputa de poder delas advindas, que a autora percebe que a referência à um passado oriundo da formação de antigos quilombos passa a ter um novo significado para a referida população, resgatando, pelas vias da 
36 O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos na fronteira amazônica: a etnicidade como instrumento de luta pela terra. Boletim Rede Amazônia, ano 1, n. 1. Manaus, 2002. P. 77. 
37 Id. Ibidem.
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memória histórica sua herança quilombola. Convém reforçar que a existência de diversos quilombos naquela região está presente na bibliografia especializada. Conforme a autora: 
Os quilombos ou mocambos do Trombetas, como também são conhecidos nos relatos de viajantes e em referências historiográficas, foram citados por Tavares Bastos em 1866, que calculava sua população de foragidos em mais de dois mil. Segundo informações registradas no livro: “os mocambos do Trombetas têm sido perseguidos periodicamente, mas nunca destruídos”. Ainda na avaliação do autor: “eu acredito que eles hão de prosperar e aumentar”.38 
Em outro relato de viajantes, a autora informa que no Relatório de Viagem de 1875, “Exploração e Estudo do Vale do Amazonas – Rio Trombetas”, realizado por Barbosa Rodrigues, nas margens da cachoeira Porteira, avistou-se uma “canoa tripulada por mocambistas”. De acordo com os relatos de Barbosa Rodrigues, estudado pela autora: “agiam os mocambistas como senhores do rio a verificar quem ousava transpor os seus domínios”. Desvela ainda a autora que na apreciação feita por Barbosa Rodrigues o mocambo do Trombetas constituía um foco de “criminosos e desertores trazendo em contínuo sobressalto os senhores de escravos pelas possibilidades abertas às fugas da escravatura no Vale do Amazonas.”39 Ainda de acordo com os relatos deste viajante, outro mocambo foi formado naquela região, dividido em dois grupos: “Conceição e Nazaré, posicionados acima da cachoeira Cajual e do rio Penecura, no alto Erepecuru, e filiados ao quilombo de Trombetas”.40 Da mesma forma que Barbosa Rodrigues, outros viajantes entraram em contato com os mocambeiros do Vale do Amazonas. Conforme a pesquisa de O’Dwyer: 
No relato “Viagem ao Trombetas”, os Coudreau chamaram atenção que os “mocambeiros” haviam começado a descer as cachoeiras no século passado, nos anos sessenta, sob promessa de liberdade trazidas pelo frei Carmelo, da paróquia de Óbidos, época a partir da qual começaram, assim pareceu aos viajantes, a batizar seus filhos. A proposta de liberdade era feita em nome do Governo Imperial, de acordo com citação de Vicente Salles (1988), com base em documentos de época. Em troca da alforria os mocambeiros deveriam ingressar no Exército Imperial como soldados na Guerra do Paraguai. Recusaram com a contraproposta de comprar suas cartas de alforria e ficarem isentos de qualquer recrutamento forçado.41 
38 Id. Ibidem. 
39 Id. Ibidem. 
40 O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos [...] Op. Cit. P. 78. 
41 Id. Ibidem.
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Eliane Cantarino O’Dwyer, em sua densa e muito bem elaborada pesquisa antropológica e histórica, defende a ideia de que a experiência traumática vivenciada pelos antepassados (os “mocambeiros” citados por diversos viajantes no século XIX) das comunidades ribeirinhas do Trombetas, que haviam constituído quilombos numa clara manifestação de resistência à escravidão, ainda estava muito presente nos dias atuais. Em outras palavras, os quilombos ainda continuavam ativos. Numa contingência histórica, portanto, os quilombos à que se refere a autora não foram extintos com a Abolição, o que ocorreu no presente foi a ressemantização do conceito de quilombo para “remanescentes de quilombos”, prática que se tornou recorrente no Brasil. Para ela, a experiência histórica dos quilombos estava “inscrita no comportamento frente aos brancos, que poderia ser bons ou maus, como lhes eram contados sobre os senhores escravocratas, e por isso quando desconhecidos deveriam ser evitados pela pior dessas suposições”. Para a autora, tendo como base a experiência etnográfica vivida no presente por essas comunidades, tais disposições: 
[...] foram adquiridas pela incorporação de uma mesma história, transmitida há gerações através de múltiplas versões, que se referem à experiência extraordinária dos quilombos, como reação à escravidão que os reduzia à condição aviltantes de sujeitos de outrem como sua propriedade.42 
O exemplo estudado por O’Dwyer, as comunidades ribeirinhas do Rio Trombetas, no Vale do Amazonas, que no bojo de suas lutas sociais recorreram ao reconhecimento de sua identidade como remanescentes de quilombos, refere-se, segundo nossas análises, ao caso número 2 citado na introdução deste minicurso, ou seja comunidades que possuem vínculo com quilombos formados antes da Abolição. Neste caso específico, entendemos os processos de reconhecimento destas comunidades como remanescentes de quilombos como resultantes diretos das experiências históricas do grupo calcadas nos pressupostos da memória. Qual seja, uma memória vívida de seus antepassados requeridas no presente tendo em vista a contingência de suas lutas políticas, econômicas e sociais em um ambiente social marcado pela hegemonia dos poderes econômicos constituídos. 
42 Id. Ibidem.
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MEMÓRIA E HISTÓRIA 
Para Jacques Le Goff, historiador francês que se dedicou à História Medieval, ex-integrante da Escola dos Annales, considerado por muitos um dos mais influentes pensadores do século XX, a memória, enquanto substrato à conservação de informações, está relacionada inicialmente à “um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.”43 Para ele, o fenômeno da memória, considerada em seus aspectos biológicos e psicológicos, remetem diretamente à organização mental do indivíduo, que a retém ou descarta em processos dinâmicos. Esta constatação levou à aproximação do conceito de memória aos campos das ciências humanas e sociais. Na análise dos aspectos fundamentais da 
43 Le Goff, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. P. 423. 
LEMBRE-SE... 
A insurgência dos quilombos contemporâneos atende à interesses sociais e políticos de comunidades negras rurais em suas lutas pela legalização de suas terras. 
Importa frisar que o fenômeno da formação de quilombos tradicionais no Brasil (antes da Abolição) “constituiu verdadeira revolução abolicionista” de acordo com Jacob Gorender. 
A ressemantização do conceito de quilombos tradicionais constituiu resposta às demandas sociais e políticas de grupos negros rurais no Brasil, engendrados nos meios jurídicos através dos pressupostos do Artigo 68 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), de nossa Constituição Federal. (Maurício Arruti). 
A ressemantização do conceito de quilombo presente nos estudos de Eliane Catarino O’Dwyer (comunidades ribeirinhas do Rio Trombetas no Vale do Amazonas) foi embasada na própria história da comunidade como remanescentes diretos de antigos quilombos (ou mocambos de acordo com os relatos de viajantes) que surgiram na referida região e que está fartamente documentado pelos relatos de viajantes e pela historiografia.
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memória coletiva para a história e para as sociedades contemporâneas como um todo, Le Goff nos lembra que: 
Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção.44 
Elemento que compõe um dos traços mais objetivos da identidade tanto individual como coletiva, conforme assevera o autor, sua constante busca constitui uma “das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje”.45 Não obstante, pondera Le Goff, a memória coletiva é apropriada como instrumento e objeto de poder pelos interesses sociais e políticos em luta pelo domínio da recordação, bem como da tradição. Desta forma, a memória coletiva nas sociedades desenvolvidas é estreitamente vigiada pelos governantes, também pelos poderes constituídos governamentais ou não ponderamos, como o caso dos veículos midiáticos em suas mais variadas vertentes. Le Goff se preocupa com o poder intrínseco ao controle da memória. Para ele: “Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica.”46Desta forma, pondera o autor, a memória, “onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.”47 
Conforme entende Maurice Halbwachs, sociólogo francês adepto da vertente durkheimiana, o indivíduo, hipoteticamente participaria de duas espécies distintas de memória, ou seja individual e coletiva. No entanto, a memória individual nunca pode ser considerada em si mesma tendo em vista a necessidade da evocação à lembranças de outros indivíduos, ou mesmo da coletividade. Numa consideração mais sutil destas interações, Halbwachs nos lembra que “[...] o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o 
44 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 475. 
45 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 476. 
46 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 477. 
47 Id. Ibidem.
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indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio.”48 Considerando-se estes aspectos o autor reporta-se ao que denominou de memória autobiográfica e memória histórica, sendo que a aquela estaria contida nesta tendo em vista que o conjunto de nossas histórias estão por contingência contidas na história geral como um todo. Contrapondo-se à suposição da existência de tipos distintos de memória, a individual e a coletiva, Halbwachs entende que ambas estão profundamente interpenetradas. Para o autor nossas lembranças, mesmo que aparentemente individuais, permanecem coletivas e “elas nos são lembranças pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos.”49 Isto se dá, conforme Halbwachs, porque na verdade não somos seres isolados, mas sim sociais. Como seres sociais, somos profundamente influenciados por uma profusão de informações em processo dinâmico que nunca cessa. Desta forma, nossa memória quando evocada trás em si um conjunto expandido de experiências vividas por outros atores sociais. Este conjunto de memórias passa a incorporar nossa própria memória na medida em que travamos nossas relações com as pessoas, com o meio social, com a cultura letrada, os impressos, as obras artísticas, literárias, com a produção histórica, com a tradição, a oralidade, entre outras. Não obstante, nos lembra o autor, a memória coletiva de um determinado grupo permanece no indivíduo no tempo em que é preservada a união do grupo à que pertence, desaparecendo quando o indivíduo dele deixa de fazer parte. Assim: 
Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída.50 
Se para Maurice Halbwachs a memória, individual e coletiva, como fenômeno coletivo e social está submetida a flutuações, constantes mudanças, transformações, para Michael Pollak, sociólogo austríaco radicado na França, na maioria das memórias existem pontos inflexíveis de relativa possibilidade de mudanças. Em suas análises sobre os pressupostos da História Oral, o autor nos lembra que em uma história de vida individual, bem como coletiva, percebe-se elementos irredutíveis onde “o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a 
48 Halbwachs, Maurice. A memória coletiva [...] Op. Cit. P. 58. 
49 Halbwachs, Maurice. Memória coletiva [...] Op. Cit. P. 30. 
50 Halbwachs, Maurice. Memória coletiva [...] Op. Cit. P. 39.
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ocorrência de mudanças”.51 Desta forma, os elementos constitutivos da memória tanto individual quanto coletiva são em primeiro plano os acontecimentos “vividos pessoalmente”, em segundo os acontecimentos denominados de “vividos por tabela”, estes relacionados às experiências vividas em grupos ou pela coletividade à que determinado indivíduo está vinculado. De acordo com o autor, as memórias vividas por tabela podem ser representadas por acontecimentos dos “quais a pessoa nem sempre participou, mas que no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.”52 Pollak vai mais longe ao afirmar que a memória assimilada por “tabela” pode transcender os limites individuais, ou dos grupos de pertencimento. Para ele: 
É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. De fato – e eu gostaria de remeter aí ao livro de Philippe Joutard sobre os camisards -, podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.53 
Além dos acontecimentos que podem ser vividos pessoalmente ou por tabela, Pollak identifica os “lugares de memória”, sendo estes ligados à lembranças individuais presentes ou não na escala do tempo. Assim, lugares distantes, fora do espaço tempo de uma experiência individual, podem constituir um local significante para um grupo, e por “conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento à este grupo.”54 
Para o autor, os acontecimentos nos quadros da memória podem ou não referirem-se à experiência real, ocorrendo em alguns casos projeções de experiências vividas por outros atores sociais que são assimilados por um grupo, ou pelo indivíduo, como suas próprias. À partir de todas estas considerações, Pollak entende que a memória é seletiva, pois nem tudo é registrado, ou fica gravado. Entende também, que em alguns casos a memória é herdada, constituindo assim experiências que não foram vividas pelo próprio indivíduo. Por outro lado, a memória é organizada tanto por indivíduos como por grupos, ou até à nível nacional, tendo em vista as preocupações políticas e/ou pessoais de um determinado momento, fato este que levou à constatação por parte do autor de que a memória é um fenômeno construído, consciente ou inconscientemente. Desta forma, 
51 Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10. Rio de Janeiro, 1992. P. 201. 
52 Id. Ibidem. 
53 Id. Ibidem. 
54 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 202.
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“o que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.”55 
Em resposta à crítica dirigida à prática da História Oral, que utiliza como método a memória que supostamente produziria representações e reconstituições do real, Pollak assevera que se a memória é construída socialmente, nada mais recorrente entender que toda documentação possui em sua origem uma intencionalidade de quem a produz, sendo por isso também uma construção. Para ele, inclusive, “não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral.”56 A História Oral, e seus pressupostos teórico/metodológicos representa um avanço na visão de Pollak, principalmente se consideradas as antigas práticas historiográficas positivistas em sua apologia aos documentos. Por outro lado, nos lembra o autor: 
[...] a multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzida pela história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada. Por isso mesmo acredito que a história oral nos obriga a levar mais sério ainda a crítica das fontes. E na medida em que, através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas e sociais.57 
Uma das grandes inovações da História Oral foi a possibilidade do deslocamento dos objetos de interesses historiográficos da narrativa oficial positivista, os grandes feitos das elites dominantes, para o estudo de grupos subalternos, questão também encontrada nos escritos de Michael Pollak. Assim, ao privilegiar a análise “dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à Memória Oficial, no caso a memória nacional”.58 Para o autor, na maioria dos casos as memórias subterrâneas afloram em momentos de crise e de instabilidade, dando origem à “memória em disputa”. Esta questão tratada por Pollak interessa à presente análise na medida em que fornece elementos explicativos para o complicado quadro social em que se encontra a Comunidade do Mutuca onde desenvolvemos nossas pesquisas. Veremos mais adiante, à guisa de conclusão, o que originou tal quadro social naquela comunidade. Outro importante elemento constitutivo do campo da memória, intrínsecos por contingência à História Oral, é refletido 
55 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 204. 
56 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 207. 
57 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 208. 
58 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, n. 3. Rio de Janeiro, 1989. P. 5.
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muitas vezes pela necessidade de imposição de silêncios aglutinados em diversas formas. Pollak utiliza-se do caso dos campos de concentração nazista e o holocausto judeu para exemplificar uma das vertentes da imposição de silêncios à memória. Para ele o silêncio sobre o passado dos sobreviventes dos campos de concentração nazista retornados à Alemanha e à Áustria, após a libertação, está ligado em primeiro lugar à: 
[...] necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria judia. Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas.59 
Este silenciamento, no caso dos judeus em relação ao holocausto, constituiu uma das mais perversas faces do regime nazista, que impunha aos próprios cidadãos judeus o pesado fardo de parte importante da administração da política antissemita, de seu próprio holocausto, situação limite entre a loucura e a necessidade de sobrevivência. Entre os encargos administrativos impostos à comunidade judia, Pollak destaca a elaboração de listas de deportados, organização de locais de transito, abastecimento de comboios. Se os representantes da comunidade judia entraram em entendimento com os nazistas, esperava-se com isto primeiro: “poder alterar a política oficial, mais tarde limitar as perdas, para finalmente chegar à uma situação na qual se havia esboroado até mesmo a esperança de poder negociar um melhor tratamento para os últimos empregados da comunidade.”60 Assim, impôs-se o silêncio como forma de evitar culpar as vítimas, sejam elas ativas ou passivas tendo em vista os horrores que representou o holocausto judeu, da mesma forma que silenciamentos estão também presentes na história de muitos nazistas, estes obviamente por motivos dessemelhantes aos das maiores vítimas do nazismo. Pollak refere-se a três formas distintas de memórias silenciadas: lembranças proibidas, indizíveis e vergonhosas. Por conseguinte, assevera o autor, “existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombras, silêncios, não-ditos. As fronteiras desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.”61 Estas fronteiras, segundo o autor, separa as memórias subterrâneas de grupo subalternos das memórias organizadas de grupos majoritários, na maioria dos casos. 
59 Id. Ibidem. 
60 Id. Ibidem. 
61 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio [...] Op. Cit. P. 9.
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Tendo em vista os processos dinâmicos intrínsecos ao conceito de memória, conforme as análises acima empreendidas por Pollak, com relação às memórias em disputa, importa refletir sobre o conceito de “enquadramento da memória” presente no texto ora em reflexão. A referência à um determinado passado serve, portanto, para a manutenção da coesão de grupos sociais, definição de lugares e, também, as disputas de poder. Enquadramento de memória, significa portanto ao autor: “manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum...”62 Nos lembra o autor de que o “enquadramento da memória se alimenta da história”63. Nos atemos à esta premissa básica ensaiada por Pollak, tendo em vista seu potencial explicativo para o caso das comunidades ribeirinhas estudadas por Eliane Catarino O’Dwyer e os processos de reapropriação, ou ressemantização do conceito de quilombo. 
62 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio [...] Op. Cit. P. 10. 
63 Id. Ibidem. 
LEMBRE-SE... 
A memória coletiva é apropriada como instrumento e objeto de poder pelos interesses sociais e políticos em luta pelo domínio da recordação, bem como da tradição. (Jacques Le Goff). 
A memória coletiva de um determinado grupo permanece no indivíduo no tempo em que é preservada a união do grupo à que pertence, desaparecendo quando o indivíduo dele deixa de fazer parte. (Halbwachs) 
Memória individual/coletiva divide-se em: vividas pessoalmente e vividas por tabela. (Michael Pollak). 
Memória é seletiva, nem tudo é registrado, nem tudo fica gravado (Pollak) 
História Oral: não existe diferença entre documento escrito e oral (Pollak) 
Memórias silenciadas, os “não-ditos”: lembranças proibidas, indizíveis e vergonhosas. (Pollak). 
Enquadramento da memória se alimenta da história. (Pollak).
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OS LIMITES ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA NOS PROCESSOS 
DA ASSUNÇÃO QUILOMBOLA 
1. Estudo de caso 
Em trabalho de campo realizado em 2013, visando a elaboração de Laudo Histórico Antropológico, acompanhamos uma equipe formada por economista, sociólogo e antropólogo, em visita a uma comunidade localizada no Município de Poconé, MT, um grupo negro rural que ocupa determinada área de terra desde meados do século XX. O objetivo da visita era prospectivo. Nos três dias de estadia naquela comunidade, acompanhamos os preparativos e a realização de uma festa religiosa tradicional, onde aproveitamos a oportunidade para gravar diversas entrevistas, que se encontram disponíveis em nosso acervo particular. Uma primeira impressão que tivemos da comunidade era que definitivamente não se tratava de comunidade remanescente de quilombo, fato este que comprovamos com as entrevistas, onde inexistia uma memória relacionada ao fenômeno quilombola e, em vários casos, nem ao menos à escravidão. Importa frisar que com relação à comunidade do Mutuca, com a qual desenvolvemos pesquisas para elaboração de tese de doutoramento em História, existe de forma consistente uma memória diretamente ligada aos 33 escravos que receberam em forma de doação as terras ocupadas por seus remanescentes, uma memória da escravidão, portanto. 
Em 1883 um grupo composto por 33 escravos forros e cativos receberam por parte de D. Anna da Silva Tavares, as terras pertencentes à Sesmaria Boa Vida, localizada no Município de Livramento, em Mato Grosso, conforme atesta certidão lavrada pelo Cartório da cidade de Livramento e que se encontra nos arquivos da INTERMAT (Instituto de Terras de Mato Grosso). Após o advento da Marcha para o Oeste em 1930, uma política de expansão do Governo de Getúlio Vargas, e a consequente valorização das terras na região Oeste de Mato Grosso, vários fazendeiros do município de Livramento entraram em conflito com as famílias do Complexo da Comunidade de Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, comprando terras a baixo custo, expulsando quase a totalidade daquelas famílias, queimando pastagens, destruindo cercas e impondo um regime de coerção pela força. O estado de conflito instalado naquela região fez com que a maioria dos habitantes do Mata Cavalo abandonasse suas terras migrando para várias regiões do Estado, bem como do País. Dentre todas as famílias do Mata Cavalo, um pequeno grupo que compõe a Associação dos Pequenos Produtores Rurais Quilombo Ribeirão da Mutuca permaneceu em suas
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terras defendendo-a à todo custo e, no percurso da história estabelecendo ali uma ferrenha resistência à invasão de sua propriedade, mantendo desta forma a própria existência das terras herdadas dos escravos, seus ancestrais. À partir da década de 1960 as famílias que haviam sido expulsas começaram à voltar para suas antigas terras. Apoiadas no pressuposto da questão quilombola, os grupos retornados passaram à requerer também seu direito à propriedade. Neste caso específico, tais famílias também são remanescentes dos antigos escravos que haviam recebido em herança as terras da Sesmaria Boa Vida. 
Não obstante, segundo alguns depoimentos, existem determinados grupos de outras associações do Complexo do Mata Cavalo que, apoiados no pressuposto quilombola e sem possuir os vínculos históricos com os antigos herdeiros daquela área, ocupam irregularmente as terras, fato este que os colocam em posição antagônica aos interesses da Associação da Mutuca, grupo que havia permanecido nas terras em confronto com os fazendeiros. Alguns representantes destes grupos começaram a vender os direitos de posse de parte das terras ocupadas, o que revela outra característica totalmente assimétrica às formas de ligação que as famílias da referida comunidade possuem com suas terras. Para boa parte destes grupos a terra não passa de mercadoria, sendo que ao venderem tais direitos de posse colocam em risco a própria integridade daquele território, posto que de acordo com a tradição dos antigos as terras utilizadas no percurso da história sempre foram comunais. O clima de tensão foi definitivamente instalado entre os grupos divergentes, tendo em vista o conflito de interesses, e por extensão de memórias, o que levou algumas lideranças desta comunidade a reconsiderarem a própria questão quilombola e seus critérios de autoidentificação étnica. 
Em entrevista concedida por Laura Ferreira da Silva, da Associação do Mutuca, percebe-se claramente o conflito de memórias aqui tratado. Se por um lado ela vê a questão quilombola como ferramenta essencial no deslinde da questão fundiária, da qual é protagonista, por outro lado busca para si a questão da ancestralidade, do pertencimento, do local onde seus ascendentes viveram e desenvolveram suas culturas singulares. Em sua fala quando afirma que “o direito é nosso, pois está garantido pela Constituição Federal” ela se apoia nas estruturas políticas que derivam da questão quilombola e que poderão, essa uma alternativa, realmente permitir a legalização da propriedade de suas terras, ao menos em teoria. Curioso perceber essa dualidade que consiste ao mesmo tempo em afirmação e negação da condição de atores de suas histórias. Para Laura Ferreira da Silva, a condição quilombola, embora todos os seus atrativos inerentes à valorização do ser-negro no mundo, do identificar-se com uma condição social mais ampla e cheia de significados, constitui, aqui o
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paradoxo, na negação de sua própria história e ela sabe muito bem disso. Quando formulamos uma pergunta diretamente relacionada a essa ambivalência que confronta a história da cadeia dominial do imóvel objeto da disputa com a nova perspectiva apresentada pela Constituição Federal e a premissa quilombola, Laura responde que essa questão veio: 
Reforçar, embora as pessoas não respeitem muito o que está no papel, não é? Porque se respeitassem, as terras tinham realmente sido regularizadas, já estava cada qual no seu cantinho e a gente não precisava estar labutando essa luta árdua, como a gente vem enfrentando no nosso dia a dia. Porque muitas coisas só ficam no papel e não vai na prática em si. 
Sem dúvida, a entrevistada está consciente do seu papel enquanto protagonista de uma história de conflitos e de lutas seculares, vistas pela perspectiva de sua família e de seus ancestrais. Quando afirma que “se respeitassem, as terras tinham realmente sido regularizadas” refere-se aos processos judiciais que tramitam na instância federal, antes da autoidentificação étnica como remanescentes de quilombo. Por outro lado, é sensível a confiança depositada para o deslinde do conflito fundiário aqui referido pelas vias da questão quilombola e, não só a Laura Ferreira da Silva, mas a maioria dos entrevistados participa desta euforia coletiva. Talvez mesmo constitua-se uma contrapartida ao doloroso processo que o conflito agrário e as implicações jurídicas a eles inerentes infligem a essa gente por um período demasiadamente longo. Como os numerosos processos jurídicos tramitam há muito tempo nas varas estaduais e federais, a questão quilombola possui a qualidade, por sua novidade, de adensar novas esperanças mudando o ânimo dessa gente sofrida. 
O caso do processo de reconhecimento das comunidades ribeirinhas do Trombetas como remanescentes de quilombo, estudada por Eliane Cantarino O’Dwyer, citado acima, constitui, segundo nossa perspectiva, a reconstrução de uma memória histórica, tendo em vista que seus integrantes são descendentes de antigos quilombolas daquela região. Desta forma, não se trata de invenção de tradições para legitimar o reconhecimento, mas sim de recuperação de tais tradições pelas vias da memória. Como vimos nos escritos de O’Dwyer, o presente etnográfico de tais comunidades ainda carrega muito do drama vivido pelos seus antepassados quando ainda na condição degradante de mercadorias à serviço dos interesses senhoriais, o que os colocaram na posição de franca oposição ao regime da escravidão, formando quilombos em clara manifestação de resgate de suas próprias humanidades. Em tal presente etnográfico, conforme atesta a autora, tendo em vista os interesses econômicos hegemônicos na região por ela estudada, os representantes destas
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comunidades lutam por sua sobrevivência diante do “outro” que concentra maior poder. Tal condição colabora com a manutenção dos mesmos anseios, medos, incertezas, que certamente constituíam o cotidiano vivido pelos quilombolas, ou mocambeiros na linguagem dos viajantes, no passado. Não obstante, todas estas questões carecem de uma análise mais aprofundada à luz da disciplina História. 
Senão, vejamos, constitui um truísmo bastante simplificado entender que a permanência da memória do quilombo, nas ações e no imaginário das comunidades ribeirinhas estudada pela autora, se processa nos interstícios de uma abordagem sociológica e antropológica, uma reação natural daquela gente que sofre no presente etnográfico, conforme desvela a autora, uma forte pressão social, econômica e, também política, tendo em vista os interesses econômicos em jogo naquela região. Levando-se em consideração a semelhança, em parte, do drama vivido por essas comunidades no presente com relação ao passado de lutas de seus antecessores que formaram quilombos naquela região, impõe-se a reflexão de que se trata de contextos totalmente diferenciados. Aludimos à esta constatação tendo em vista que no passado, seus antecedentes se encontravam na condição de escravos à inteira disposição de seus senhores, fato este, inclusive que os levaram à constituição de quilombos. Ora, por mais que as condições encontradas no presente etnográfico destas comunidades sejam marcadas por relações antagônicas, pela violência dos poderes econômicos, pelos pressupostos do racismo e do preconceito, não existe possibilidade de enquadrá-los como escravos nos dias atuais. Desta forma, a analogia à condição escrava de seus antepassados só possui base de sustentação teórica no campo da memória, e não da história, constituindo assim um fenômeno sociológico e antropológico, tendo em vista que historicamente os quilombos foram extintos com a Abolição, em 1888. Outrossim, constitui uma impossibilidade minimizar os esforços dos componentes das comunidades estudadas pela autora, que como qualquer outro grupamento humano, de tudo faz para sobreviver às adversidades presentes em seu cotidiano. Não se trata, portanto, de uma posição contrária aos interesses dos grupos estudados pela autora, mas sim de analisar o contexto histórico em que tais relações foram, e continuam sendo travadas. 
Na verdade, como tivemos oportunidade de constatar, a ressemantização do conceito de quilombos tradicionais constitui um truísmo hipoteticamente pacificado entre a maioria dos antropólogos e outros representantes de diversas áreas acadêmicas. Não precisa muito esforço para entender, igualmente, que a insurgência do que passou a convencionar-se “quilombos contemporâneos” atende aos anseios e interesses de grande maioria dos segmentos negros no Brasil, e de parte de nossa sociedade, entendido em certos casos como reparação histórica à violência que representou a escravidão racial da era moderna. Este compreensível enunciado, claro, representa uma
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militância louvável em prol de reparações de injustiças sociais nos campos e nas cidades. Fato incontestável. Entretanto, não podemos, nem devemos, esquecer de nossa posição enquanto historiadores, e de tudo que a disciplina História representa para o conhecimento acadêmico na convergência entre passado e presente. 
A assunção quilombola, entendida de forma mais ampla e em contextos universais representa uma tripla negação, segundo nossa percepção, tendo como base nossa experiência empírica, referendada devidamente no campo teórico. Em primeiro lugar, admitindo-se a existência de remanescentes de quilombo no tempo presente, obviamente em termos históricos e não políticos, nega-se conceitualmente o mais significativo fenômeno de resistência ao regime da escravidão, representado pela formação de quilombos, um território constituído como espaço de liberação da força de trabalho e, também da liberdade. Em segundo, o esforço no sentido de autoidentificação quilombola, tendo em vista a necessidade da invenção de determinadas tradições que possibilitem a assunção à uma nova configuração social, produz em sua dinâmica o esquecimento da própria história da comunidade, anterior ao processo de construção de tal identidade. No caso da Comunidade do Mutuca, por nós estudada, se trata nada menos que mais de um século de lutas ingentes pela permanência na terra, pela dignidade humana e pela afirmação do ser-no-mundo, e isto não pode e nem deve ser desprezado. Finalmente, entendemos que a assunção quilombola constitui uma negação da própria disciplina história, e esta é sem dúvida a parte mais delicada de todo este processo, tendo em vista nosso papel enquanto intelectuais dedicados aos processos de produção e reprodução históricas. Ora, se de forma generalizada aceitarmos, voluntária e deliberadamente, a condição anacrônica de qualquer fato ou conceito históricos significantes devemos, então, admitir que nossa disciplina não possui a seriedade e o rigor necessários à qualquer área do conhecimento humano. Utilizamos estes argumentos para identificar uma tendência pós-moderna de relativismo social, cultural, político e histórico, que entendemos como um problema sério para uma disciplina que pensa a si própria como ciência humana. Interessante observar que desde a insurgência da Escola dos Annales, que supostamente descolonizaria as práticas tradicionais da história positivista, - uma apologia aos grandes heróis, os grandes feitos, a narrativa do Estado-nação -, terminou por colonizar, repetindo-se à si mesma, a narrativa em torno de outras forças sociais marginalizadas. Não fazemos apologia aos discursos hegemônicos, mas nos arrogamos o direito de indagar se nos dedicarmos somente à uma vertente histórica, em detrimento de outras, não estaríamos repetindo os mesmos erros? Como afirma Jaime Pinsky, correremos o risco, se assim procedermos, de jogar fora, junto com a água da banheira, o próprio bebê. Afinal de contas, se vivemos em um país que não valoriza sua própria história, em uma nação que possui uma relação singular com a temporalidade de acordo
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com o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista gravada no Programa Roda Viva exibido pela TV Cultura no dia 22/09/2014, um povo que sofre de Alzheimer coletivo, onde o passado condena, o futuro pertence à Deus e o presente constitui um eterno “Carpe Diem”, importa frisar que os conceitos desenvolvidos para explicação de fatos históricos no tempo, simbolizam as ferramentas com as quais interagimos no interior das ciências humanas. 
As hipóteses que defendemos não pretendem minimizar, nem ao menos relativizar as lutas pela propriedade de terras que entendemos como justas e merecidas, mas sim reafirmar o valor que o fenômeno quilombola tradicional representa à nossa história, tendo em vista que este episódio representou um dos mais importantes momentos da luta dos afro-brasileiros pela liberdade. Mario Maestri, de nacionalidade brasileira e italiana, nascido em Porto Alegre – RS, refugiado na Bélgica, por questões políticas, onde concluiu a graduação, mestrado e doutorado em ciências históricas no Centro de História da África da Universidade Católica de Louvain, na apresentação da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004), nos lembra que: “A importância quantitativa e a extensão geográfica das fugas e aquilombamentos influenciou profundamente a história política, social, econômica, demográfica etc., do Brasil.”64 Da mesma forma, Jacob Gorender entende o fenômeno quilombola como principal elo fundante do que convencionou denominar de “revolução abolicionista”, seguramente uma das poucas, senão a única revolução vitoriosa em nossa história. 
64 Fiabani, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). – São Paulo: Expressão Popular, 2005. P. 11.
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A assunção quilombola e os limites entre memória e história SILVÂNIO BARCELOS

  • 1. 1 Universidade federal de mato grosso Programa de pós-graduação em história Minicurso: A ASSUNÇÃO QUILOMBOLA E OS LIMITES ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA BARCELOS, Silvânio1 1Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Mato Grosso, sob orientação do Prof. Dr. Marcus Cruz. Bolsista CAPES/FAPEMAT. Email: silvaniobarcelos@hotmail.com
  • 2. 2 RESUMO O presente minicurso tem como eixo central a reflexão sobre os limites entre memória e história presentes nos processos da assunção quilombola, desenvolvidos a partir de levantamentos histórico/ antropológicos para identificação de comunidades remanescentes de quilombos, tendo como base nossa própria experiência em pesquisas de campo. Existem na atualidade três casos distintos de comunidades que requerem o reconhecimento da identidade quilombola: 1) remanescentes diretos de quilombos tradicionais; 2) remanescentes diretos de escravos sem ligação com quilombos e 3) comunidades que não possuem nenhum vínculo com quilombos e, também com escravos. Excetuando-se o primeiro caso, por tratar-se de comunidades que efetivamente possuem descendência de quilombos formados antes da Abolição, o segundo e o terceiro constituem temas históricos que requerem uma análise crítica relacionada diretamente ao fazer historiográfico, tendo como objetivo levantar os limites impostos entre a memória e a história. Posicionamos-nos além da realidade refletida pelas lutas políticas e sociais de grupos que lutam pela propriedade de suas terras, uma militância sem dúvida alguma louvável e justa, para questionar a posição da disciplina história, no que se refere ao tratamento teórico/epistemológico dos conceitos e categorias desenvolvidos ao longo do tempo, que lhe confere o estatuto de uma ciência humana. Desta forma, entendemos a assunção quilombola, que possui como premissa básica a invenção de tradições, como um campo de experimentações, e de lutas políticas, que se identificam mais à memória que à própria história. PALAVRAS-CHAVE: Assunção quilombola; memória e história. PROPOSTA DO MINICURSO Refletir sobre os conceitos e categorias escravidão da era moderna, quilombo tradicional, quilombo contemporâneo e a ressemantização do conceito de quilombo tradicional, memória e história oral, a partir de nossa experiência em pesquisas de campo. Não é nenhuma novidade, entre os historiadores, entender que os conceitos e categorias constituem ferramentas necessárias à identificação da disciplina história enquanto ciência humana. Utilizando como estudo de caso os processos de levantamentos histórico/antropológicos, necessários à identificação jurídica de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombos, visando à titulação de suas terras, experimentaremos no campo da teoria os limites e as fronteiras entre memória e história.
  • 3. 3 Este problema foi por nós levantado na analise dos processos de construção de identidade junto à Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca, localizada no município de Livramento, MT. A partir da década de 1990, em função dos trabalhos desenvolvidos pela antropóloga Drª Maria de Lourdes Bandeira e equipe, visando a elaboração de laudo histórico antropológico, a referida comunidade passou a identificar a si mesma como remanescente de quilombo, uma forma de luta política que visa a titularidade definitiva de suas terras. De acordo com os resultados de nossas pesquisas, esta comunidade é, segundo sua própria história, remanescente de escravos, tendo em vista que seus integrantes são descendentes diretos de 33 escravos forros e cativos que herdaram em forma de doação as terras da Sesmaria Boa Vida, no ano de 1883, por parte de sua senhoria D. Anna da Silva Tavares. Grupo de Siriri, Comunidade da Mutuca, 6ª Festa da Banana Quilombola/2014 Acervo: Prof. Silvânio Barcelos A festa da Banana Quilombola é realizada anualmente pela Comunidade do Mutuca, em Nossa Senhora do Livramento. Além das festividades onde são apresentadas a Dança do Siriri, Cururu, Eleição da Garota Quilombola, a festa conta com a realização de feira destinada à comercialização e divulgação dos produtos produzidos pela comunidade. É também espaço político e de socialização entre lideranças quilombolas do Estado de Mato Grosso.
  • 4. 4 Esta constatação nos levou a questionar os limites entre a memória e a história, tendo em vista que o complexo compreendido pela Comunidade de Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, do qual faz parte a comunidade do Mutuca, entrou para a história e o imaginário da sociedade mato- grossense, de modo geral, como remanescentes de quilombos, tornando-se, nesta dinâmica, um truísmo aceito sem maiores problemas inclusive pela comunidade acadêmica. Não se trata, obviamente, de uma crítica à militância político/acadêmica, entendida por nós como justa na medida em que atende às necessidades de grupos subalternos em nossa sociedade, mas sim à relativização do conceito à luz da própria disciplina história. Antonio Mulato: patriarca do complexo Quilombo Mata Cavalo Acervo: Prof. Silvânio Barcelos Não obstante, neste caso, a assunção quilombola, tendo como consequência a formação dos “quilombos contemporâneos”, deve ser entendida como processo político e social enraizado no campo da memória e não como fato histórico, tendo em vista que a formação de quilombos no Brasil foi extinta com o evento da Abolição, em 1888. Assim, a grande questão que permeia nossa proposta de reflexão é a identificação dos limites entre a memória e a história, propondo-se um debate sobre até que ponto aquela pode determinar, ou legitimar, o fazer historiográfico.
  • 5. 5 ESCRAVIDÃO DA ERA MODERNA: o legado do racismo Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (Navio Negreiro – Castro Alves) De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, no dia 25 de setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”. Ainda tratando da mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo artigo, o tráfico de escravos significa todo e qualquer ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo. Significa, também, qualquer ato de aquisição de um escravo com a finalidade de vendê-lo ou trocá- lo, ou seja todo ato deliberado de “comércio, bem como de transporte de escravos.”2 O canadense Paul E. Lovejoy, historiador e africanista, professor da York University, em Toronto, onde ocupa a cátedra de História da África e da Diáspora Africana, defende a ideia de que os escravos eram, em termos absolutos, uma propriedade, e que também: “eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor”3. Estas observações permitem entender, de alguma forma, a transformação do africano escravizado em coisa, em mero feixe de músculos a serviço do regime que o oprime. De nosso ponto de vista, esta visão estereotipada do escravo como coisa, no limite, como um ser desprovido de história, contribui para a difícil posição social ocupada pelos negros no interior das sociedades contemporâneas. 2 Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , acesso em 22 de Junho de 2014. 3 Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29.
  • 6. 6 1. Diáspora negra: as interações africanas no Novo Mundo Paul Gilroy, sociólogo londrino, com doutorado em filosofia pela Universidade de Birmingham, um dos expoentes do movimento negro mundial, analisa o mundo contemporâneo a partir das interações dos afro-americanos, percebendo o absurdo e a contradição nas vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade sem, ao menos, considerar a hipótese da contribuição dos africanos escravizados com a formação do mundo capitalista, condição relevante à sua própria existência. Para ele, torna-se necessário um esforço no sentido de fazer com que a cultura e a história negras “sejam levadas a sério nos círculos acadêmicos, em lugar de serem atribuídas, via a ideia de relações raciais, à sociologia, e, daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as questões políticas intratáveis vão aguardar seu falecimento”4. Stuart Hall5, sociólogo e professor da Open University, utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro- caribenho, vivendo em Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”6. Este autor aponta que, curiosamente, o pensamento pós-colonial prepara o indivíduo para viver uma relação diaspórica com a identidade. Para ele, a experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a recuperação de uma terra ocupada por outros povos. No esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a diáspora negra ele aponta a experiência de sofrimento, exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de alguma forma, porque os adeptos do Movimento Rastafári7 utilizam com frequência a bíblia, pois ela “conta a história de um povo no exílio dominado por um poder estrangeiro, distante de casa e do poder 4 Gilroy, Paul. O Atlântico Negro : Modernidade e dupla consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40. 5 Esse jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais no contexto colonizado da Jamaica, uma sociedade marcada por políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de “coolie” uma espécie de pária entre os seus, por ser de todos os membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se para a Inglaterra onde mais tarde filiou-se à “Nova Esquerda Inglesa”. 6 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415. 7 Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos Rastas procuraram formas de subsistência através da arte, entre elas o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. Entretanto, onde a cultura Rasta desenvolveu- se, tanto na Jamaica quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae, um estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao som de instrumentos metálicos que foram inspirados na Black music norte- americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, originou o Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo Rocksteady passa a denominar-se Reggae
  • 7. 7 simbólico do mito redentor”. Em suas conclusões, o que marcou definitivamente o rastafarianismo foi o fato de ter tornado definitivamente negra a Jamaica, descolonizando as mentes. “Como todos os movimentos, o rastafarianismo se representou como um retorno. Mas, aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê-lo produziu a África, novamente, na diáspora”8. Paul Gilroy, na já citada obra, nos lembra que as comunidades negras que se formaram no entorno do Atlântico, são conectadas de alguma forma através das expressões da arte e da música, uma síntese da influência cultural africana no Novo Mundo. Foi exatamente na confluência expressiva das conexões lúdicas que surgiu, no bojo da diáspora africana, o que podemos denominar de consciência negra, formas culturais e sociais de valorização étnica, elos de solidariedade inconfundíveis utilizados, freqüentemente, como forma de atendimento às demandas políticas dos afro-americanos. 2 A contradição da modernidade Argumentando sobre o impacto violento da escravidão racial na sociedade marcada pela modernidade, Gilroy afirma que uma parte muito expressiva da novidade que representa o pós- moderno se oblitera, de forma inexorável, quando analisada sob a perspectiva histórica que representou os encontros entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e escravizaram, de uma forma brutal e inconsequente. Assim, o estudo da diáspora negra “é essencial para nossa compreensão da categoria de ‘raça’ em si mesma e da gênese do desenvolvimento das formas sucessivas da ideologia racista. É pertinente acima de tudo, na elaboração de uma interpretação das origens e da evolução da política negra”.9 Se a inclusão dos processos de racialização que deram origem ao estado social, político e econômico das sociedades ocidentais contemporâneas é importante segundo as hipóteses levantadas pelo autor, acreditamos que tais esforços historiográficos devem seguir os próprios caminhos de sua superação. Daí a importância da inclusão do estudo da diáspora nos períodos moderno e do pós-moderno para historicizar a presença do negro no ocidente e sua narrativa, incluindo, de forma racional e despida de preconceitos, a participação efetiva dos afro- americanos na história ocidental para além das relações de dominação e subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. 8 Hall, Stuart. Da diáspora [...] Op. Cit. P. 417. 9 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 106.
  • 8. 8 Gilroy se preocupa com a evolução do racismo científico para formas culturais novas, um tipo mais complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar da hierarquia biológica simples tratada pelo cientificismo no século da razão. Para ele o racismo científico, propugnado em meados do século XIX, foi o produto intelectual mais durável da modernidade. Como sabemos, a questão da dominação racial e suas consequências não faz parte da agenda de debates da modernidade. Em seu lugar, afirma ele, aparece uma modernidade inocente que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim ou Londres. Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos povos sem história, cujas vidas degredadas poderiam levantar questões incômodas sobre os limites do humanismo burguês. A famosa pergunta de Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ permanece obstinada e deliberadamente sem resposta (Gilroy, 2001, p. 107). Jürgen Habermas, citado por Gilroy, filósofo, eminente representante da Escola de Frankfurt e assistente do também filósofo e sociólogo Theodor Adorno, em suas obras, foi hábil defensor do potencial democrático da modernidade. No entanto Habermas não atenta para o fato de que os ideais iluministas não consideravam a questão da raça, central no pensamento de Gilroy em cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se uma profunda contradição: “Há uma tênue percepção, por exemplo, de que a universalidade e a racionalidade da Europa e da América iluministas foram usadas mais para sustentar e transplantar do que para erradicar uma ordem de diferença racial herdada da era pré-moderna”.10 Como vimos no exemplo citado, e de acordo com Gilroy, os pensadores da modernidade em sua grande maioria não observaram, em suas numerosas formulações, a importante questão da escravidão racial como um dos elementos que a constitui e lhe confere sua condição privilegiada nas vias das grandes inovações do mundo pós-guerras. Desta forma, contribuem com os continuísmos históricos, presentes nas políticas socioculturais, capazes de fazer sombra à importante movimentação das comunidades negras ao mesmo tempo em que legitima as relações de poder no seu interior. Paul Gilroy utiliza-se da obra e do pensamento de Frederick Douglass, intelectual e ativista político em meados do século XIX, um forte candidato a ser o pai do “nacionalismo negro”, pois entre grandes expressões do universo de pensadores do Atlântico negro [tais como: Martin Delany, 10 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 114.
  • 9. 9 Edward Wilmot Blyden e Alexander Crummell]11 foi o único marcado por sua condição de ex- escravo, fator que lhe confere uma posição privilegiada no estudo da escravidão. Em sua complexa relação com a modernidade, evocava o iluminismo maior que supostamente traria um pouco de luz para a escuridão ética da escravidão. Para ele a Plantation escravista era marcada pelo arcaísmo anti- modernista. Gilroy cita uma passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage and my freedom (Minha escravidão e minha liberdade), “[...] a Plantation é uma pequena nação em si mesma, tendo seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes. As leis e instituições do Estado aparentemente não a afetam em parte alguma. As dificuldades que surgem aqui não são resolvidas pelo poder civil do Estado”.12 Reiteradamente, Douglass entendia a Plantation escravista como uma própria antinomia da modernidade, um sistema atrasado, pré-capitalista e comparável às relações de trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele ia mais além ao afirmar que, junto ao cristianismo que não fez outra coisa senão servir à causa burguesa, com seus aparatos ideológicos da sujeição escrava, a Plantation significava estagnação, quando não recuo, que encerrava a civilização na parte externa do mundo iluminista. Concordamos com Douglass em sua evocação da essência do iluminismo, não obstante, convém lembrar de que este movimento produzido pela elite europeia setecentista, como acontece também no mundo contemporâneo, possui uma relação ambígua com relação aos outros povos, e, também com as outras classes sociais. Por outro lado, foi exatamente com as riquezas produzidas com o trabalho escravo, a acumulação de capital daí advinda, que tornou-se possível o progresso desta elite desde o século das luzes. Só para corroborar com a ideia dos continuísmos históricos, asseverada por Gilroy, vale lembrar de que o trabalho análogo ao escravo presente nos campos brasileiros, conforme nos lembra José de Souza Martins, é utilizado sem grandes problemas por uma elite industrial/agrária privilegiada. Ou seja, o que interessa ao capital é a maximização dos lucros, não importando os meios, mas sim os objetivos. Neste contexto específico, verifica-se uma profunda contradição. De um lado, proprietário de grandes áreas de terras do agronegócio, abastados, 11 Martin Delany foi um importante ativista político de sua época, século XIX, um dos primeiros ideólogos do afrocentrismo, explorador, conferencista, editor de jornal, correspondente, major das forças armadas dos EUA, autor de romance e diversos folhetos; Edward Wilmot Blyden considerado o pai do Pan-Africanismo, foi educador, escritor, diplomata e político, além de idealizar o que chamou de “etiopianismo”, baseado no sionismo judeu, um lugar na África para onde poderiam retornar os afro-americanos; Alexander Crummell foi um sacerdote episcopal nos EUA, também defensor do Pan-Africanismo, militou à favor da abolição da escravidão. Acrescentamos à lista dos notáveis pensadores negros do Atlântico Negro, citada por Gilroy, Abdias do Nascimento, certamente um dos maiores defensores dos negros no Brasil. Participou da Frente Negra Brasileira, do movimento integralista, foi ator e diretor teatral tendo criado o Teatro dos Sentenciados, palco que revelou grandes nomes da dramaturgia brasileira como Ruth de Souza e Léa Garcia, foi também professor emérito da Universidade do Estado de Nova Iorque, doutor honoris causa por diversas universidades, indicado ao Prêmio Nobel em 2009, e ex-senador da República. 12 Gilroy, Paul. O Atlântico negro [...] Op. Cit. P. 49.
  • 10. 10 civilizados, que se ufanam de pertencerem a uma elite pós-moderna utilizando-se, em alguns casos, de mão-de-obra semiescrava em suas fazendas, enquanto desfrutam felizes suas riquezas. 3 Escravidão no Brasil: o triunfo do racismo Na palestra de abertura do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Escravidão Africana no Brasil, realizada em Junho de 2010 na cidade de Natal – RN, Luis Felipe de Alencastro, cientista político e historiador, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne, alerta para a defasagem dos estudos da história atlântica que atribui pouco valor à história do Atlântico Sul. De acordo com suas formulações, esse silêncio na produção historiográfica escamoteia, parcialmente, a própria história do Brasil no que se refere aos movimentos de migração forçada de africanos às terras brasileiras. Os dados estatísticos divulgados pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2010 confirmam o caráter do que podemos inferir como uma espécie de “contra-colonização” africana no Brasil, ao revelar que mais da metade da população brasileira é afro descendente. LEMBRE-SE... A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade. O tráfico de escravo significa todo ato deliberado de comércio, bem como de transporte de escravos. Foi com a mão-de-obra do africano no Novo Mundo que tornou possível a acumulação primitiva de capital e a expansão capitalista no Ocidente. As interações culturais e sociais do africano na diáspora negra contribuíram para a constituição da própria modernidade ocidental. Esta realidade é marcada por uma profunda contradição: como agentes sociais, culturais e econômicos da própria modernidade, os africanos no Novo Mundo foram, e continuam sendo marginalizados pela própria história ocidental. Torna-se imperativo considerar as premissas do racismo para o estudo da condição social, política e econômica do afro-americano no interior da História do Ocidente. A plantation escravista pode ser considerada como uma antinomia da própria modernidade, se levarmos em conta que a produção de riquezas capitalistas foram geradas à partir do trabalho escravo.
  • 11. 11 Perdigão Malheiros, como era mais conhecido, advogado e historiador, notável abolicionista, publicou em 1866 o livro “A escravidão no Brasil”, um importante ensaio histórico, jurídico e social que aborda esta temática através de uma discussão sobre seus aspectos jurídicos, em um período da história onde juridicamente era legal o comércio, a posse e o uso de escravos. À partir da categoria “mercadoria humana” (grifo nosso) o autor desenvolve uma série de estudos sobre os aspectos legais do próprio instituto da escravidão, para levantar questões morais e éticas importantes àquela sociedade, como sabemos, composta em sua maioria por africanos escravizados, mas também por uma elite escravocrata privilegiada que fazia tudo ao alcance para a manutenção do regime. Para o autor, o uso de mão de obra escrava constituía um sintoma de atraso social que deveria ser superado, pelo bem da própria nação. Também nos lembra Malheiros que os africanos escravizados só se tornaram sujeitos de direito jurídico através da aplicação de penas à transgressões, ou seja não portadores de direitos civis, políticos e sociais, ainda assim estavam sujeitos ao Código Legal em seus aspectos disciplinares. Segundo Manolo Florentino, doutor em História pela UFF, professor associado da UFRJ e presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, “[...] 40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas Américas desembarcaram em portos brasileiros”.13 Não constitui grande problema identificar no fluxo contínuo externo da oferta de mão de obra escrava barata a própria permanência do sistema escravista. Não podemos desconsiderar os cálculos econômicos da empresa colonial, que certamente faziam parte das preocupações de todos que se envolveram de alguma forma no rentável negócio da escravidão. Certamente, os comerciantes da empresa escravista colonial perceberam que à reprodução física dos homens correspondia, na escala dos cálculos econômicos, a reprodução da própria oferta de mão de obra e da força disponível para o trabalho. Sociólogo, considerado pioneiro na sociologia brasileira, antropólogo, escritor, político, pintor, jornalista, idealizador do projeto de criou a Fundação Joaquim Nabuco, detentor de diversos títulos Doutor Honoris Causa e de Cavaleiro do Império Britânico, Gilberto de Mello Freyre é imortalizado no cenário internacional através das páginas de sua mais importante obra: Casa Grande & Senzala, publicada em 1933. Para o autor, Casa Grande & Senzala é um ensaio de sociologia genética e, também de história social capaz de interpretar alguns dos aspectos mais marcantes da formação da família brasileira, e por extensão da própria sociedade, agrícola, latifundiária, escravocrata e patriarcal. Ao substituir a ideia de raça pela de cultura, propõe uma visão democrática 13 Florentino, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P. 23.
  • 12. 12 onde o caldeirão composto pelas influências europeias, africanas e ameríndias, teoricamente, contribuiu para a formação da própria identidade brasileira. Consoante Freyre, a casa grande, completada pela senzala, representa todo: [...] um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”14, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos.15 Para o autor, foi graças aos senhores de engenho que se criou na América hispânica, o tipo de civilização mais estável, representada pela imponência da arquitetura da casa grande, ampla, de linhas horizontais, cozinhas espaçosas, salas de jantar suntuosas, acomodação para filhos casados, um sem número de quartos, camarinhas para moças solteiras, conforme suas palavras, representava a alma do brasileiro. A casa grande, nos lembra Freyre, foi sincera expressão das “necessidades, dos interesses, do largo ritmo de vida patriarcal que os proventos do açúcar e o trabalho eficiente dos negros tornaram possível.”16 A casa grande, entendida em seu contexto histórico e social é a história do próprio brasileiro. À partir desta constatação, o gênio literário e sociológico de Freyre entende a formação da sociedade brasileira, numa perspectiva evolucionista, civilizatória e elitista, como resultante da força e do poder do senhoriato, de sua plasticidade, da capacidade de se acomodar à situação cotidiana, de suas interações com as outras raças, mas, sobretudo pela imposição de suas vontades mal disfarçadas pela mentalidade patriarcal. Um nível de dominação peculiar que cria dependências eternas e o sentimento de gratidão, uma dívida perene que as camadas subalternadas se arrogam como obrigações inefáveis devidas aos pater famílias à elas impostas por contingência da miséria e da pobreza. Percebe-se nas páginas de Casa Grande & Senzala, o deslocamento da análise do conceito de raça para o de cultura. Desta forma, conclui o autor, todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra, 14 O “tigre” era um barril, ou outro vasilhame qualquer, utilizado como recipiente de urina e fezes que eram transportados na cabeça dos africanos escravizados para serem atirados em rios, nos mares ou nas matas, um sistema sanitário movido à energia humana. Nota do autor. 15 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala. – 12ª Ed. Brasileira, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963. P. 10. 16 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 18.
  • 13. 13 ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro. Segundo Freyre, a influência cultural do africano se verifica: Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no conto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias (sic) de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.17 Este autor entende, também, que a influência do africano escravizado no Brasil não se verificou só na formação agrária e na constituição da sociedade, como visto acima. Para ele, a mineração de ferro, o trabalho e o domínio da manufatura do ferro e a técnica de criação de gado compuseram parte da cultura e da civilização agregadas ao meio social brasileiro. Freyre enfatiza a ação civilizadora dos africanos escravizados em suas interações com os índios, elevando a cultura indígena e, raramente, sendo por elas influenciados. Para ele, diante dos caboclos, “os negros foram elemento europeizante.”18 Mais ainda, elemento fundamental de ligação entre europeus e ameríndios, e entre estes e a fé católica, que transcendia o papel de mediadores plásticos entre culturas, sendo que em alguns casos, exerciam “função original e criadora, transmitindo à sociedade em formação elementos valiosos de cultura ou técnica africana.”19 Em sua sensibilidade sociológica, Freyre desvela nas ricas páginas desta obra uma questão fundamental para o entendimento da influência dos afro-brasileiros na conformação de nossa sociedade. Para ele, superando estereótipos que o senso comum historiográfico postula em relação aos negros, devemos levar em consideração a atuação destes não enquanto sujeitos ativos na história, senão na condição degradante de escravos. Ou seja, entendendo-os em toda sua complexidade na única condição que o regime da escravidão à eles impuseram. De acordo com nossa orientação epistemológica, compreender os negros em suas interações no interior de tal regime consiste, antes de tudo, entender as limitações que a falta de liberdade impõe aos sujeitos históricos. Destarte, ao contrapor-se à uma ideia generalizada da depravação do negro, como do índio, Freyre pondera a impossibilidade de responsabilizá-los pelo comportamento que não caracteriza suas 17 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 331. 18 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 353. 19 Id. Ibidem.
  • 14. 14 obras, o modo de ser, a moral, pois se tal condição social persiste esta é resultante do sistema social e econômico onde foram obrigados a sobreviverem, de forma passiva, e muitas vezes mecanicamente. O autor vai mais longe, ao postular que é mesmo da essência do regime, a deterioração dos costumes. Freyre reforça este pensamento, ao citar uma frase recolhida por Joaquim Nabuco de um manifesto escravocrata de fazendeiros, presente em sua obra O Abolicionismo: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador”.20 Não obstante a promiscuidade que subjaz à ironia da assertiva, tal ideia, cristalizada no imaginário colonial, concordamos, deriva de questões objetivas e práticas largamente difundidas entre as camadas mais abastadas daquela sociedade. Ora, como uma mercadoria altamente valorizada no regime da escravidão, nada poderia ser mais sensato que o desejo senhorial pela reprodução escrava. Assim, disserta o autor, como ponto de partida para o entendimento da condição do escravo, e não do negro enquanto pessoa humana, lembramos, “o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias.”21 Não se trata de costumes exclusivos da sociedade colonial, nos lembra Freyre, “fora assim em Portugal, de onde a instituição se comunicou ao Brasil, já opulenta de vícios”.22 Assim, entre os escravos mouros e negros da metrópole lusitana era costume de seus senhores favorecer a desagregação social da escravaria para a reprodução física de seu plantel, da mesma forma que administraria um produtor agropecuário qualquer seu rebanho. Para Décio Freitas, advogado, jornalista, historiador, ativista político e autor de diversas obras que se tornaram referência nos meios especializados que tratam da escravidão no Brasil, enquanto persistiu o regime da escravidão os escravos se revoltaram, marcando sua revolta via protestos armados com tamanha intensidade que não existiu paralelo em nenhum outro país do Novo Mundo. Não obstante, para o autor este importante momento na vida brasileira ainda requer o seu direito à história. Uma história mal conhecida, e quando reconhecida, apenas apêndice marginal de um contexto social homogeneizante. Constitui preocupação de Décio Freitas o papel desempenhado pelos africanos escravizados no Brasil como atores e autores de suas próprias histórias. Desterrados violentamente de suas origens, nos lembra Freitas, estrangeiros na própria terra que tornaram fecunda, nem súditos, nem cidadãos, mas mesmo assim homens, mulheres e crianças negras se incorporaram à sociedade brasileira, ignorados pela história, dela fizeram parte. Da mesma forma que Paul Gilroy, em sua obra “O Atlântico negro”, nos exorta a considerar a massiva presença dos afro-americanos na parte mais nobre desta história, preenchendo o buraco negro com sua real 20 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 360. 21 Id. Ibidem. 22 Freyre, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala [...] Op. Cit. P. 361.
  • 15. 15 presença, Freitas encontra nos caminhos da resistência escrava a superação de insistentes estereótipos, praticamente inoxidáveis ao tempo, sujeitos à vontade dominante e aos poderes hegemônicos. Fato bastante conhecido pelo senso comum, bem como intensamente trabalhado na historiografia especializada que se dedica ao estudo da escravidão no Brasil, o africano escravizado trabalhava muito, contudo “produzia pouco e mal”.23 Esta condição, assevera Freitas, denotava o desejo, consciente ou inconsciente, demonstrado pelo negro, de prejudicar de alguma forma seu algoz, sendo que para este aquele não passava de animal capaz de articular palavras, de dominar a linguagem. Não obstante, truísmo importante, o negro não era somente instrumento material de trabalho, tinha ele consciência de si próprio, um ser humano que quando se revoltava revelava o “esforço para recuperar a sua identidade humana sequestrada pelo escravismo”.24 Ainda pouco estudado no Brasil o conceito “brecha camponesa”25 revela, em larga escala, os mecanismos de controle em sua forma mais sutil, uma negociação em níveis mais profundos, considerando-se seus aspectos psicológicos. O silêncio em torno dessa delicada questão, na historiografia tradicional, se prende, segundo Silva, à própria lógica cristalizada pela memória da escravidão que, via de regra, não admitia que os escravos fossem senhores de sua história, “enquanto res, instrumentos de produção, propriedade de outrem, não teria, simplesmente, uma economia própria”.26 Na verdade, a possibilidade fornecida aos escravos de uma margem de economia própria, através da cessão de pedaços de terra para o plantio e a folga de um dia por semana para o manejo da plantação, consistia numa poderosa “moeda de troca” à disposição dos senhores e proprietários de escravos. Desta forma, a “brecha camponesa”, de acordo com Silva, “aumentava a quantidade de gêneros disponíveis para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão”.27 Essa última questão, a segurança, de acordo com esses autores, é central nas relações entre senhores e escravos, buscando da melhor forma possível um ambiente de relativa paz. A farta documentação visitada por esses pesquisadores, nos arquivos relativos ao Rio de Janeiro do século XIX, conecta as práticas de cessões de terras com 23 Freitas, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Editora Movimento, 1976. P. 15. 24 Id. Ibidem. 25Segundo Eduardo Silva e João José Reis, o conceito brecha camponesa, “embora razoavelmente estudado nos Estados Unidos e, sobretudo, no Caribe”, tem sido negligenciado pela historiografia brasileira. Página 22 de sua obra já citada. Apesar de não referido por estes autores convém lembrar que o conceito “brecha camponesa” foi desenvolvido inicialmente por Lepkowski, conforme desvela Cyro Flamarion Cardoso em obra publicada em 1987, sob o título: Escravo ou camponês: o protocampesinato negro nas Américas. 26 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 22. 27 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 28.
  • 16. 16 a questão do interesse na manutenção da segurança. Entre os documentos pesquisados por esses autores, o conjunto de seis medidas adotadas pelos cafeicultores do município de Vassouras, que se reuniram em agosto de 1854, constitui um típico exemplo do que temos dito. De acordo com esse documento, três das seis medidas a serem tomadas pelas fazendas daquele município se prendem a fatores de ordem ideológica, tais como o incentivo à diversão, desenvolvimento de idéias religiosas e, “finalmente, permitir que os escravos tenham roças e se liguem ao solo pelo amor da propriedade28 [sic]; o escravo que possui nem foge, nem faz desordens”.29 A família escrava é tema que produz intensos debates na historiografia atual30. Velhos paradigmas são obliterados em consequência das pesquisas atuais que buscam, auxiliadas pelas novas tecnologias, uma visão mais crítica acerca desta temática instigante. Entre as inovações técnicas, a demografia histórica constitui-se num instrumento racional para uma nova abordagem da história da vida privada nas senzalas. Manolo Florentino e José Roberto Góes souberam explorar bem esse filão historiográfico, cujos trabalhos culminaram num novo entendimento acerca dos processos de constituição de núcleos familiares no regime da escravidão racial no Brasil. Pensar a família e a própria dinâmica da empresa escravista em cálculos econômicos31 afasta a compreensão do que racionalmente consistia a lógica senhorial. Num contexto permeado de subjetividades, o empresário escravista se via obrigado a conformar suas necessidades às necessidades de seus escravos se quisesse, e isto é relevante, obter a maior produtividade possível. A racionalidade, portanto, apontava para as práticas que respeitassem, mantidas as devidas proporções, determinados níveis de direito que o escravo minimamente, e às vezes mesmo sem o perceber, exigia em troca de sua super exploração. “As estratégias senhoriais, antes de mais nada, deveriam ser políticas” assevera Florentino e Góes.32 28 Obviamente, o termo “propriedade” utilizado na citação não corresponde ao seu significado literal pois os escravos somente utilizavam aquelas terras, não sendo em hipótese alguma proprietários. Explica-se, dessa forma, a utilização do [sic] pelo autor da presente. 29 Silva, Eduardo. Negociação e conflito [...] Op. Cit. P. 29. 30 Segundo Manolo Florentino, à página 27 do seu “A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790/1850”, existe na atualidade uma sólida bibliografia acerca do tema família escrava tanto no Brasil, como no Caribe e, também nos Estados Unidos. 31 Como o fez Jacob Gorender, citado por Florentino e Góes, que buscou na economia empresarial escravista a lógica de sua própria (ir)reprodução demográfica (1997, p. 28), ou na superexploração do escravo, exaurindo suas energias vitais ao limite, e provocando um altíssimo desperdício de mão de obra, farta e facilmente substituível, conforme conclusões de Celso Furtado, também citado por Florentino e Góes (1997, p. 28) 32 Florentino, Manolo/Góes, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 C. 1850. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. P. 30.
  • 17. 17 QUILOMBOS TRADICIONAIS Adelmir Fiabani, doutor em História pela Universidade do Vale do Rio Sinos e professor adjunto da Universidade Federal do Pampa, entende que a escravidão colonial alcançou seu apogeu no Brasil, sendo, portanto, impossível a compreensão de nossa história sem levar em consideração a herança escravista que conformou, em vários aspectos, a nossa própria sociedade. Para ele, a economia escravista produziu uma grande variedade de mercadorias, destacando-se o “açúcar, arroz, café, charque, fumo, pau-brasil, ouro etc.” (Fiabani, 2005, p. 21). Outra questão relevante percebida pelo autor se refere à relação escravizador/escravizado, permeada pela presunção do paternalismo, LEMBRE-SE... À partir da análise dos dados estatísticos do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que estima nada menos que mais da metade de nossa população é composta por afro-brasileiros, entende-se historicamente que houve uma espécie de contra-colonização africana no Brasil, em função da escravidão. Nos cálculos da escravidão o africano, que para cá veio na condição de escravo, constituía a mercadoria mais valiosa, sendo considerado o motor da economia do Brasil Colônia e Império. De acordo com Gilberto Freyre, a identidade brasileira foi resultado das interações entre os povos ameríndios, africanos e europeus. Para o autor o instituto da escravidão transformou o africano em coisa, sendo que os estereótipos negativos do negro, presentes no imaginário de nossa sociedade, deve referir-se ao escravo em si e não à sua própria pessoa. É questão central entender que enquanto existiu escravidão no Novo Mundo, persistiram as mais variadas formas de resistência, de negação da condição escrava, resgatando assim a própria humanidade do africano. A resistência pertinaz à própria condição escrava do africano pode ser exemplificada em formas mais sutis, tais como a conquista da “brecha camponesa” (pequenas áreas de terras cedidas aos escravos para cultivo), e a constituição de núcleos familiares no interior das senzalas, indicando alto nível de socialização mesmo em condições totalmente adversas.
  • 18. 18 por um eficiente sistema de controle, via de regra pela violência, mas também pela resistência e oposição, estas, nem sempre tão evidentes. No percurso conhecido da história onde houve escravidão houve, também, resistência das mais variadas formas, desde as mais simples e cotidianas às mais complexas e elaboradas. Mesmo sob a real ameaça de severas punições, os trabalhadores feitorizados barganhavam com seus senhores pequenos espaços de autonomia no interior do regime nefasto de cooptação de almas e corpos. Numa atitude clara de humanidade, em seu sentido psicológico, faziam “corpo mole no trabalho”, quando podiam quebravam “ferramentas”, incendiavam “plantações”, agrediam os responsáveis por suas penúrias, e esta, também, constitui uma lista “longa e conhecida”. (Reis e Gomes, 1996. p.9). Não obstante, reflexo de resistência total à opressão, outra forma, além das já conhecidas rebeliões, motins, revoltas e insurreições a formação de quilombos tornou-se, no tempo e no espaço da escravidão, sua mais completa e decisiva negação. Reis e Gomes nos lembram, contudo, que nem todo trabalhador escravizado fujão, isolado ou coletivamente, aquilombava-se, sendo comum a procura do anonimato da “massa escrava e de negros livres” nos ambientes urbanos e rurais. (Reis e Gomes, 1996, p.9). Mario Maestri, de nacionalidade brasileira e italiana, nascido em Porto Alegre – RS,refugiado na Bélgica, por questões políticas, onde concluiu a graduação, mestrado e doutorado em ciências históricas no Centro de História da África da Universidade Católica de Louvain, na apresentação da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004)”, cogita sobre as fugas dos trabalhadores escravizados no Brasil. Para ele, as fugas constituíram-se em uma “hemorragia incessante na produção escravista”. Utilizavam-se do recurso da fuga, crianças, jovens, adultos e até os mais idosos, de “ambos os sexos”. Escapavam, sempre que possível, “cativos das cidades, das residências, das embarcações, das chácaras, das fazendas, das olarias, das charqueadas. Fugia o cativo crioulo, que não conhecia outra vida, e o africano apenas ou há muito chegado ao Brasil, que vivera em liberdade.” (Fiabani, 2005, p.8). Segundo Maestri, na citada apresentação, via de regra os fujões escapavam sozinhos, nada obstante havia casos de fuga em grupos ou aos pares. Múltiplos eram os motivos destas fugas, sendo as mais usuais: “visitar amigos e parentes; viver como negros livres libertos nas cidades e nos campos; procurar a proteção de acoitador cúmplice; encontrar o abrigo em um ermo no interior”. (Fiabani, 2005, pp. 8-9).
  • 19. 19 Fenômeno amplo e abrangente, a formação de quilombos no Novo Mundo recebeu diversas denominações e foram entendidas de variadas formas por um número expressivo de intelectuais contemporâneos que dedicaram parte de suas obras ao entendimento destes fatos históricos, como veremos nos exemplos a seguir. 1. Visões do quilombo na historiografia Existe na historiografia recente uma profusão de significados acerca do conceito de quilombos no Brasil. Segundo Kabengele Munanga, graduado em antropologia cultural pela Université Oficielle du Congo à Lubumbashi, doutorado e livre-docente em antropologia social pela Universidade de São Paulo, em 1977 e 1997 respectivamente, onde exerce o cargo de Professor Titular, kilombo (quilombo em português) é uma palavra de origem Bantu. Sua presença no Brasil certamente tem a ver com alguns segmentos desses povos que foram trazidos a bordo dos navios negreiros na condição degradante de escravos. “A história do quilombo como a dos povos Bantu é uma história que envolveu povos de regiões diferentes entre o Zaire e Angola” (MUNANGA, 1995- 96, p.58). A tradição oral, ainda nos dias de hoje, constitui uma das principais fontes de informação em boa parte do Continente Africano. Munanga se utiliza destas fontes para reconstituir a origem histórica do quilombo nas tribos Bantu. Através de uma vertente mitológica, a tradição oral situou a gênese dessa instituição no império Luba, localizado entre o centro e o sudeste do atual Zaire, em finais do século XVI, governado por Kalala Llunga Mbidi. Numa análise do mito do quilombo no império Luba, Munanga conclui que: “A palavra quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem” (MUNANGA, 1995-96, p. 60). Localizados em contextos históricos diferentes, os quilombos tradicionais no Brasil diferem-se de seu equivalente africano quanto à questão da segurança. Aqui os quilombolas, em sua maioria, adotavam táticas de resistência e defesa do território, ao passo que para os povos nômades dos atuais Zaire e Angola, essas instituições representavam forças de expansão e conquistas territoriais, bem como de poderio bélico. Fiabani, ao referir-se a José Jorge de Carvalho, afirma que na América o fenômeno relacionado às comunidades que se formaram com trabalhadores escravizados, que fugiram de seus senhores e resistiram à recaptura, receberam variadas denominações nas diversas regiões do Novo
  • 20. 20 Mundo: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti e nas demais ilhas do Caribe Francês; [...] cimarrones em diversas partes da América Espanhola; maroons na Jamaica, no Suriname e no Sul dos Estados Unidos”. (FIABANI, 2005, p.282). Desvela o autor que os nomes marrons e maroons derivam do nome dado pelos colonizadores ao gado doméstico fugido, na região da ilha de Hispaniola, atual Haiti e Santo Domingo. Trata-se de um discurso civilizatório, de acordo com o senso comum, que equipara o africano escravizado ao gado, quando em condições de liberdade encontra-se em “estado de selvageria”. No Brasil, nos lembra Fiabani, os habitantes dos quilombos recebiam diversos nomes, destacando-se entre eles: “quilombola, calhambola, mocambeiro, mucambeiro, mocambista, palmarinos, papa-mel. (FIABANI, 2005, p.282). Dentre todos os objetivos que moviam os trabalhadores escravizados que no percurso da história organizaram extensa e variada gama de quilombos no Brasil, Fiabani destaca como de maior relevância a liberação de sua força de trabalho cativa. Para ele, numa crítica bem fundamentada aos representantes de uma historiografia neo-patriarcal, que entende a formação do quilombo pelo viés culturalista33, ao contrário da ideia dos trabalhadores escravizados que fugiam para construir comunidades “africanizadas” por não se adaptarem à cultura dos senhores, seus objetivos eram a busca pela liberdade, individual ou coletiva. Liberdade plena, neste contexto relativo, significava para o trabalhador escravizado a liberação de sua mão-de-obra, o que permitia em seu cotidiano recuperar sua própria humanidade. Esta nova visão historiográfica, presente na obra e no pensamento de vários intelectuais contemporâneos entende a formação de quilombos como a mais completa negação da ordem escravista, como já foi dito anteriormente, constituindo-se, deste modo, em parte integrante da própria história do Novo Mundo e principalmente do Brasil. Irrefutavelmente, ainda existem silêncios incômodos a serem superados neste esforço, como aqueles relacionados à ocupação de parte expressiva do território brasileiro pelos quilombolas ao longo da história. Mario Maestri, na já citada apresentação à obra de Adelmir Fiabani, desvela a importância que esse novo conceito34 acerca da formação de quilombos representa para os segmentos negros no Brasil, bem como para sua própria história. No entanto, nos lembra Maestri, estes valiosos estudos 33De todos representantes da historiografia que entende a formação de quilombos pelo viés culturalista, o autor destaca: Gaspar van Barleu, Raimundo Nina Rodrigues, Ernesto Ennes, Arthur Ramos e Édison Carneiro. Fiabani destaca ainda, em contraposição aos culturalistas, Emília Viotti da Costa e Clóvis Moura, para os quais a formação de quilombos no Brasil representava a resistência pertinaz à escravidão e o desejo imperioso da busca por liberdade, individual e coletiva. 34 Refere-se o autor aos quilombos como a negação absoluta ao regime da escravidão.
  • 21. 21 concentram-se na “identificação e descrição política, social e econômica” do fenômeno quilombola, porém considerados em sua forma “isolada, no que se refere ao espaço e ao tempo”. Essas limitações inibem segundo postula este notável pensador, uma visão mais ampla acerca da ocupação territorial por parte das comunidades quilombolas, no contexto da própria história rural brasileira, desconsiderando, por exemplo, o surgimento de quilombos, além da busca por liberdade, como formas de “povoação do interior”, da expansão, em alguns casos, “da fronteira agrícola”, além, obviamente, da “formação de comunidades caboclas de origem africana...”. (FIABANI, 2005, p.12). LEMBRE-SE... A relação entre escravo e senhor foi permeada pela presunção do paternalismo, por um eficiente sistema de controle, via de regra pela violência, mas também pela resistência e oposição, estas nem sempre tão evidentes. (Silvânio Barcelos) Formação de quilombos no Brasil tornou-se, no tempo e no espaço da escravidão, sua mais completa e decisiva negação. (Silvânio Barcelos) As fugas de escravos constituíram-se em uma hemorragia incessante na produção escravista. (Adelmir Fiabani) DENOMINAÇÕES DE QUILOMBOS NA HISTORIOGRAFIA: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti e ilhas do Caribe Francês; cimarrones na América Espanhola e maroons na Jamaica, Suriname e Sul dos Estados Unidos da América. (Adelmir Fiabani) Formação de quilombos no Brasil foi um importante elemento de povoação do interior e da expansão das fronteiras agrícolas brasileiras. (Mario Maestri)
  • 22. 22 QUILOMBOS CONTEMPORÂNEOS E A RESSEMANTIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBOS TRADICIONAIS 1. A ressemantização do quilombo tradicional Numa citação à um extinto documento produzido pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), José Maurício Arruti, formado em História pela UFF, mestre e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, um dos mais renomados intelectuais que trabalham com a temática quilombo contemporâneo no Brasil, nos lembra das profundas transformações por que passaram o conceito quilombo tradicional. De acordo com o autor tal documento reconhece que: [...] ainda que tenha um conteúdo histórico, o termo quilombo vem sendo ressemantizado pela literatura especializada e pelas entidades da sociedade civil que trabalhavam junto aos segmentos negros em diferentes contextos e regiões do Brasil. Partindo de uma definição negativa – eles não se referem à resíduos, não são isolados, não tem sempre origem em movimentos de rebeldia, não se definem pelo número de membros, não fazem uma apropriação individual da terra – o documento propõe que os quilombos sejam tomados como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se define por “uma referência histórica comum, construídas à partir de vivências e valores partilhados”.35 Ainda segundo Arruti, apesar de a informação não constar no documento produzido pela ABA, a ressemantização do conceito de quilombo foi elaborada em resposta à intensa demanda por uma definição jurídica, com base em pressupostos científicos, que possibilitassem a sustentação das ações que eram engendradas nos meios jurídicos, tendo como aporte os dispositivos legais do Artigo 68 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) de nossa Carta Magna de 1988. O referido artigo preconiza nos moldes da lei que “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir- lhes os títulos respectivos”. O autor assevera a complexidade dos processos de ressemantização do conceito de quilombo, inclusive na própria historiografia brasileira, em distintas etapas que incluem a visão culturalista, onde a formação de quilombo seria um suposto retorno às origens africanas, e por último como uma luta de classes entre escravos e senhores onde prevaleciam as lutas políticas 35 Arruti, José Maurício. “Quilombos”. IN: Raça: perspectivas antropológicas. [org. Osmundo Pinho]. Campinas: ABA/ Ed. UNICAMP/EDUFBA, 2008. P. 2.
  • 23. 23 pela liberdade. Não obstante, com relação à ressemantização do referido conceito na atualidade convém ponderar que se trata de uma questão objetiva política e social, qual seja inferir um caráter científico aos processos de reconhecimento de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombos, visando desta forma, entre todas as inovações desta nova visão a legitimação dos laudos históricos antropológicos, mesmo que determinada comunidade não possua nenhum vínculo com os quilombos formados antes da Abolição. Autentica, assim, neste movimento como verdadeiro objeto de direito, uma busca pela legalidade de suas lutas em prol das terras onde vivem. Outra forma de ressemantização do conceito de quilombo é encontrada na experiência de pesquisa desenvolvida por Eliane Cantarino O’Dwyer, doutora em Antropologia Social pela UFRJ, professora de antropologia do Programa de Pós-Graduação da UFF, vice-presidente representante da ALA – Associação Latino-americana de Antropologia. No bojo das pesquisas realizadas pela autora no projeto “Remanescentes de quilombo na fronteira amazônica: etnicidade e conflito”, junto a comunidades ribeirinhas na região formada pela confluência dos rios Trombetas e seu afluente Erepecuru, constatou-se que esta população estabelece no seu presente etnográfico “uma relação associativa para ação política comum, com base nas lembranças da procedência histórica dos quilombos, que constituíram igualmente comunidades políticas no passado”.36 Este caso específico estudado por O’Dwyer refere-se ao primeiro exemplo de ressemantização de quilombo, por nós citado no resumo deste minicurso, por tratar-se de comunidade que possui vínculos diretos com antigos quilombos formados antes da Abolição. De acordo com a autora a identidade de remanescentes de quilombos, requerida pelas comunidades ribeirinhas com as quais desenvolveu sua pesquisa na região amazônica, emerge: [...] como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos sociais, econômicos e agências governamentais que passam a implementar novas formas de controle político e administrativo sobre o território que ocupam e com os quais estão em franca oposição.37 Foi no contexto de imposição de forças externas, e a consequente disputa de poder delas advindas, que a autora percebe que a referência à um passado oriundo da formação de antigos quilombos passa a ter um novo significado para a referida população, resgatando, pelas vias da 36 O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos na fronteira amazônica: a etnicidade como instrumento de luta pela terra. Boletim Rede Amazônia, ano 1, n. 1. Manaus, 2002. P. 77. 37 Id. Ibidem.
  • 24. 24 memória histórica sua herança quilombola. Convém reforçar que a existência de diversos quilombos naquela região está presente na bibliografia especializada. Conforme a autora: Os quilombos ou mocambos do Trombetas, como também são conhecidos nos relatos de viajantes e em referências historiográficas, foram citados por Tavares Bastos em 1866, que calculava sua população de foragidos em mais de dois mil. Segundo informações registradas no livro: “os mocambos do Trombetas têm sido perseguidos periodicamente, mas nunca destruídos”. Ainda na avaliação do autor: “eu acredito que eles hão de prosperar e aumentar”.38 Em outro relato de viajantes, a autora informa que no Relatório de Viagem de 1875, “Exploração e Estudo do Vale do Amazonas – Rio Trombetas”, realizado por Barbosa Rodrigues, nas margens da cachoeira Porteira, avistou-se uma “canoa tripulada por mocambistas”. De acordo com os relatos de Barbosa Rodrigues, estudado pela autora: “agiam os mocambistas como senhores do rio a verificar quem ousava transpor os seus domínios”. Desvela ainda a autora que na apreciação feita por Barbosa Rodrigues o mocambo do Trombetas constituía um foco de “criminosos e desertores trazendo em contínuo sobressalto os senhores de escravos pelas possibilidades abertas às fugas da escravatura no Vale do Amazonas.”39 Ainda de acordo com os relatos deste viajante, outro mocambo foi formado naquela região, dividido em dois grupos: “Conceição e Nazaré, posicionados acima da cachoeira Cajual e do rio Penecura, no alto Erepecuru, e filiados ao quilombo de Trombetas”.40 Da mesma forma que Barbosa Rodrigues, outros viajantes entraram em contato com os mocambeiros do Vale do Amazonas. Conforme a pesquisa de O’Dwyer: No relato “Viagem ao Trombetas”, os Coudreau chamaram atenção que os “mocambeiros” haviam começado a descer as cachoeiras no século passado, nos anos sessenta, sob promessa de liberdade trazidas pelo frei Carmelo, da paróquia de Óbidos, época a partir da qual começaram, assim pareceu aos viajantes, a batizar seus filhos. A proposta de liberdade era feita em nome do Governo Imperial, de acordo com citação de Vicente Salles (1988), com base em documentos de época. Em troca da alforria os mocambeiros deveriam ingressar no Exército Imperial como soldados na Guerra do Paraguai. Recusaram com a contraproposta de comprar suas cartas de alforria e ficarem isentos de qualquer recrutamento forçado.41 38 Id. Ibidem. 39 Id. Ibidem. 40 O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos [...] Op. Cit. P. 78. 41 Id. Ibidem.
  • 25. 25 Eliane Cantarino O’Dwyer, em sua densa e muito bem elaborada pesquisa antropológica e histórica, defende a ideia de que a experiência traumática vivenciada pelos antepassados (os “mocambeiros” citados por diversos viajantes no século XIX) das comunidades ribeirinhas do Trombetas, que haviam constituído quilombos numa clara manifestação de resistência à escravidão, ainda estava muito presente nos dias atuais. Em outras palavras, os quilombos ainda continuavam ativos. Numa contingência histórica, portanto, os quilombos à que se refere a autora não foram extintos com a Abolição, o que ocorreu no presente foi a ressemantização do conceito de quilombo para “remanescentes de quilombos”, prática que se tornou recorrente no Brasil. Para ela, a experiência histórica dos quilombos estava “inscrita no comportamento frente aos brancos, que poderia ser bons ou maus, como lhes eram contados sobre os senhores escravocratas, e por isso quando desconhecidos deveriam ser evitados pela pior dessas suposições”. Para a autora, tendo como base a experiência etnográfica vivida no presente por essas comunidades, tais disposições: [...] foram adquiridas pela incorporação de uma mesma história, transmitida há gerações através de múltiplas versões, que se referem à experiência extraordinária dos quilombos, como reação à escravidão que os reduzia à condição aviltantes de sujeitos de outrem como sua propriedade.42 O exemplo estudado por O’Dwyer, as comunidades ribeirinhas do Rio Trombetas, no Vale do Amazonas, que no bojo de suas lutas sociais recorreram ao reconhecimento de sua identidade como remanescentes de quilombos, refere-se, segundo nossas análises, ao caso número 2 citado na introdução deste minicurso, ou seja comunidades que possuem vínculo com quilombos formados antes da Abolição. Neste caso específico, entendemos os processos de reconhecimento destas comunidades como remanescentes de quilombos como resultantes diretos das experiências históricas do grupo calcadas nos pressupostos da memória. Qual seja, uma memória vívida de seus antepassados requeridas no presente tendo em vista a contingência de suas lutas políticas, econômicas e sociais em um ambiente social marcado pela hegemonia dos poderes econômicos constituídos. 42 Id. Ibidem.
  • 26. 26 MEMÓRIA E HISTÓRIA Para Jacques Le Goff, historiador francês que se dedicou à História Medieval, ex-integrante da Escola dos Annales, considerado por muitos um dos mais influentes pensadores do século XX, a memória, enquanto substrato à conservação de informações, está relacionada inicialmente à “um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.”43 Para ele, o fenômeno da memória, considerada em seus aspectos biológicos e psicológicos, remetem diretamente à organização mental do indivíduo, que a retém ou descarta em processos dinâmicos. Esta constatação levou à aproximação do conceito de memória aos campos das ciências humanas e sociais. Na análise dos aspectos fundamentais da 43 Le Goff, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. P. 423. LEMBRE-SE... A insurgência dos quilombos contemporâneos atende à interesses sociais e políticos de comunidades negras rurais em suas lutas pela legalização de suas terras. Importa frisar que o fenômeno da formação de quilombos tradicionais no Brasil (antes da Abolição) “constituiu verdadeira revolução abolicionista” de acordo com Jacob Gorender. A ressemantização do conceito de quilombos tradicionais constituiu resposta às demandas sociais e políticas de grupos negros rurais no Brasil, engendrados nos meios jurídicos através dos pressupostos do Artigo 68 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), de nossa Constituição Federal. (Maurício Arruti). A ressemantização do conceito de quilombo presente nos estudos de Eliane Catarino O’Dwyer (comunidades ribeirinhas do Rio Trombetas no Vale do Amazonas) foi embasada na própria história da comunidade como remanescentes diretos de antigos quilombos (ou mocambos de acordo com os relatos de viajantes) que surgiram na referida região e que está fartamente documentado pelos relatos de viajantes e pela historiografia.
  • 27. 27 memória coletiva para a história e para as sociedades contemporâneas como um todo, Le Goff nos lembra que: Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção.44 Elemento que compõe um dos traços mais objetivos da identidade tanto individual como coletiva, conforme assevera o autor, sua constante busca constitui uma “das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje”.45 Não obstante, pondera Le Goff, a memória coletiva é apropriada como instrumento e objeto de poder pelos interesses sociais e políticos em luta pelo domínio da recordação, bem como da tradição. Desta forma, a memória coletiva nas sociedades desenvolvidas é estreitamente vigiada pelos governantes, também pelos poderes constituídos governamentais ou não ponderamos, como o caso dos veículos midiáticos em suas mais variadas vertentes. Le Goff se preocupa com o poder intrínseco ao controle da memória. Para ele: “Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica.”46Desta forma, pondera o autor, a memória, “onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.”47 Conforme entende Maurice Halbwachs, sociólogo francês adepto da vertente durkheimiana, o indivíduo, hipoteticamente participaria de duas espécies distintas de memória, ou seja individual e coletiva. No entanto, a memória individual nunca pode ser considerada em si mesma tendo em vista a necessidade da evocação à lembranças de outros indivíduos, ou mesmo da coletividade. Numa consideração mais sutil destas interações, Halbwachs nos lembra que “[...] o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o 44 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 475. 45 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 476. 46 Le Goff, Jacques. História e memória [...] Op. Cit. P. 477. 47 Id. Ibidem.
  • 28. 28 indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio.”48 Considerando-se estes aspectos o autor reporta-se ao que denominou de memória autobiográfica e memória histórica, sendo que a aquela estaria contida nesta tendo em vista que o conjunto de nossas histórias estão por contingência contidas na história geral como um todo. Contrapondo-se à suposição da existência de tipos distintos de memória, a individual e a coletiva, Halbwachs entende que ambas estão profundamente interpenetradas. Para o autor nossas lembranças, mesmo que aparentemente individuais, permanecem coletivas e “elas nos são lembranças pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos.”49 Isto se dá, conforme Halbwachs, porque na verdade não somos seres isolados, mas sim sociais. Como seres sociais, somos profundamente influenciados por uma profusão de informações em processo dinâmico que nunca cessa. Desta forma, nossa memória quando evocada trás em si um conjunto expandido de experiências vividas por outros atores sociais. Este conjunto de memórias passa a incorporar nossa própria memória na medida em que travamos nossas relações com as pessoas, com o meio social, com a cultura letrada, os impressos, as obras artísticas, literárias, com a produção histórica, com a tradição, a oralidade, entre outras. Não obstante, nos lembra o autor, a memória coletiva de um determinado grupo permanece no indivíduo no tempo em que é preservada a união do grupo à que pertence, desaparecendo quando o indivíduo dele deixa de fazer parte. Assim: Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída.50 Se para Maurice Halbwachs a memória, individual e coletiva, como fenômeno coletivo e social está submetida a flutuações, constantes mudanças, transformações, para Michael Pollak, sociólogo austríaco radicado na França, na maioria das memórias existem pontos inflexíveis de relativa possibilidade de mudanças. Em suas análises sobre os pressupostos da História Oral, o autor nos lembra que em uma história de vida individual, bem como coletiva, percebe-se elementos irredutíveis onde “o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a 48 Halbwachs, Maurice. A memória coletiva [...] Op. Cit. P. 58. 49 Halbwachs, Maurice. Memória coletiva [...] Op. Cit. P. 30. 50 Halbwachs, Maurice. Memória coletiva [...] Op. Cit. P. 39.
  • 29. 29 ocorrência de mudanças”.51 Desta forma, os elementos constitutivos da memória tanto individual quanto coletiva são em primeiro plano os acontecimentos “vividos pessoalmente”, em segundo os acontecimentos denominados de “vividos por tabela”, estes relacionados às experiências vividas em grupos ou pela coletividade à que determinado indivíduo está vinculado. De acordo com o autor, as memórias vividas por tabela podem ser representadas por acontecimentos dos “quais a pessoa nem sempre participou, mas que no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.”52 Pollak vai mais longe ao afirmar que a memória assimilada por “tabela” pode transcender os limites individuais, ou dos grupos de pertencimento. Para ele: É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. De fato – e eu gostaria de remeter aí ao livro de Philippe Joutard sobre os camisards -, podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.53 Além dos acontecimentos que podem ser vividos pessoalmente ou por tabela, Pollak identifica os “lugares de memória”, sendo estes ligados à lembranças individuais presentes ou não na escala do tempo. Assim, lugares distantes, fora do espaço tempo de uma experiência individual, podem constituir um local significante para um grupo, e por “conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento à este grupo.”54 Para o autor, os acontecimentos nos quadros da memória podem ou não referirem-se à experiência real, ocorrendo em alguns casos projeções de experiências vividas por outros atores sociais que são assimilados por um grupo, ou pelo indivíduo, como suas próprias. À partir de todas estas considerações, Pollak entende que a memória é seletiva, pois nem tudo é registrado, ou fica gravado. Entende também, que em alguns casos a memória é herdada, constituindo assim experiências que não foram vividas pelo próprio indivíduo. Por outro lado, a memória é organizada tanto por indivíduos como por grupos, ou até à nível nacional, tendo em vista as preocupações políticas e/ou pessoais de um determinado momento, fato este que levou à constatação por parte do autor de que a memória é um fenômeno construído, consciente ou inconscientemente. Desta forma, 51 Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10. Rio de Janeiro, 1992. P. 201. 52 Id. Ibidem. 53 Id. Ibidem. 54 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 202.
  • 30. 30 “o que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.”55 Em resposta à crítica dirigida à prática da História Oral, que utiliza como método a memória que supostamente produziria representações e reconstituições do real, Pollak assevera que se a memória é construída socialmente, nada mais recorrente entender que toda documentação possui em sua origem uma intencionalidade de quem a produz, sendo por isso também uma construção. Para ele, inclusive, “não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral.”56 A História Oral, e seus pressupostos teórico/metodológicos representa um avanço na visão de Pollak, principalmente se consideradas as antigas práticas historiográficas positivistas em sua apologia aos documentos. Por outro lado, nos lembra o autor: [...] a multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzida pela história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada. Por isso mesmo acredito que a história oral nos obriga a levar mais sério ainda a crítica das fontes. E na medida em que, através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas e sociais.57 Uma das grandes inovações da História Oral foi a possibilidade do deslocamento dos objetos de interesses historiográficos da narrativa oficial positivista, os grandes feitos das elites dominantes, para o estudo de grupos subalternos, questão também encontrada nos escritos de Michael Pollak. Assim, ao privilegiar a análise “dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à Memória Oficial, no caso a memória nacional”.58 Para o autor, na maioria dos casos as memórias subterrâneas afloram em momentos de crise e de instabilidade, dando origem à “memória em disputa”. Esta questão tratada por Pollak interessa à presente análise na medida em que fornece elementos explicativos para o complicado quadro social em que se encontra a Comunidade do Mutuca onde desenvolvemos nossas pesquisas. Veremos mais adiante, à guisa de conclusão, o que originou tal quadro social naquela comunidade. Outro importante elemento constitutivo do campo da memória, intrínsecos por contingência à História Oral, é refletido 55 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 204. 56 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 207. 57 Pollak, Michael. Memória e identidade social [...] Op. Cit. P. 208. 58 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, n. 3. Rio de Janeiro, 1989. P. 5.
  • 31. 31 muitas vezes pela necessidade de imposição de silêncios aglutinados em diversas formas. Pollak utiliza-se do caso dos campos de concentração nazista e o holocausto judeu para exemplificar uma das vertentes da imposição de silêncios à memória. Para ele o silêncio sobre o passado dos sobreviventes dos campos de concentração nazista retornados à Alemanha e à Áustria, após a libertação, está ligado em primeiro lugar à: [...] necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria judia. Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas.59 Este silenciamento, no caso dos judeus em relação ao holocausto, constituiu uma das mais perversas faces do regime nazista, que impunha aos próprios cidadãos judeus o pesado fardo de parte importante da administração da política antissemita, de seu próprio holocausto, situação limite entre a loucura e a necessidade de sobrevivência. Entre os encargos administrativos impostos à comunidade judia, Pollak destaca a elaboração de listas de deportados, organização de locais de transito, abastecimento de comboios. Se os representantes da comunidade judia entraram em entendimento com os nazistas, esperava-se com isto primeiro: “poder alterar a política oficial, mais tarde limitar as perdas, para finalmente chegar à uma situação na qual se havia esboroado até mesmo a esperança de poder negociar um melhor tratamento para os últimos empregados da comunidade.”60 Assim, impôs-se o silêncio como forma de evitar culpar as vítimas, sejam elas ativas ou passivas tendo em vista os horrores que representou o holocausto judeu, da mesma forma que silenciamentos estão também presentes na história de muitos nazistas, estes obviamente por motivos dessemelhantes aos das maiores vítimas do nazismo. Pollak refere-se a três formas distintas de memórias silenciadas: lembranças proibidas, indizíveis e vergonhosas. Por conseguinte, assevera o autor, “existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombras, silêncios, não-ditos. As fronteiras desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.”61 Estas fronteiras, segundo o autor, separa as memórias subterrâneas de grupo subalternos das memórias organizadas de grupos majoritários, na maioria dos casos. 59 Id. Ibidem. 60 Id. Ibidem. 61 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio [...] Op. Cit. P. 9.
  • 32. 32 Tendo em vista os processos dinâmicos intrínsecos ao conceito de memória, conforme as análises acima empreendidas por Pollak, com relação às memórias em disputa, importa refletir sobre o conceito de “enquadramento da memória” presente no texto ora em reflexão. A referência à um determinado passado serve, portanto, para a manutenção da coesão de grupos sociais, definição de lugares e, também, as disputas de poder. Enquadramento de memória, significa portanto ao autor: “manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum...”62 Nos lembra o autor de que o “enquadramento da memória se alimenta da história”63. Nos atemos à esta premissa básica ensaiada por Pollak, tendo em vista seu potencial explicativo para o caso das comunidades ribeirinhas estudadas por Eliane Catarino O’Dwyer e os processos de reapropriação, ou ressemantização do conceito de quilombo. 62 Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio [...] Op. Cit. P. 10. 63 Id. Ibidem. LEMBRE-SE... A memória coletiva é apropriada como instrumento e objeto de poder pelos interesses sociais e políticos em luta pelo domínio da recordação, bem como da tradição. (Jacques Le Goff). A memória coletiva de um determinado grupo permanece no indivíduo no tempo em que é preservada a união do grupo à que pertence, desaparecendo quando o indivíduo dele deixa de fazer parte. (Halbwachs) Memória individual/coletiva divide-se em: vividas pessoalmente e vividas por tabela. (Michael Pollak). Memória é seletiva, nem tudo é registrado, nem tudo fica gravado (Pollak) História Oral: não existe diferença entre documento escrito e oral (Pollak) Memórias silenciadas, os “não-ditos”: lembranças proibidas, indizíveis e vergonhosas. (Pollak). Enquadramento da memória se alimenta da história. (Pollak).
  • 33. 33 OS LIMITES ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA NOS PROCESSOS DA ASSUNÇÃO QUILOMBOLA 1. Estudo de caso Em trabalho de campo realizado em 2013, visando a elaboração de Laudo Histórico Antropológico, acompanhamos uma equipe formada por economista, sociólogo e antropólogo, em visita a uma comunidade localizada no Município de Poconé, MT, um grupo negro rural que ocupa determinada área de terra desde meados do século XX. O objetivo da visita era prospectivo. Nos três dias de estadia naquela comunidade, acompanhamos os preparativos e a realização de uma festa religiosa tradicional, onde aproveitamos a oportunidade para gravar diversas entrevistas, que se encontram disponíveis em nosso acervo particular. Uma primeira impressão que tivemos da comunidade era que definitivamente não se tratava de comunidade remanescente de quilombo, fato este que comprovamos com as entrevistas, onde inexistia uma memória relacionada ao fenômeno quilombola e, em vários casos, nem ao menos à escravidão. Importa frisar que com relação à comunidade do Mutuca, com a qual desenvolvemos pesquisas para elaboração de tese de doutoramento em História, existe de forma consistente uma memória diretamente ligada aos 33 escravos que receberam em forma de doação as terras ocupadas por seus remanescentes, uma memória da escravidão, portanto. Em 1883 um grupo composto por 33 escravos forros e cativos receberam por parte de D. Anna da Silva Tavares, as terras pertencentes à Sesmaria Boa Vida, localizada no Município de Livramento, em Mato Grosso, conforme atesta certidão lavrada pelo Cartório da cidade de Livramento e que se encontra nos arquivos da INTERMAT (Instituto de Terras de Mato Grosso). Após o advento da Marcha para o Oeste em 1930, uma política de expansão do Governo de Getúlio Vargas, e a consequente valorização das terras na região Oeste de Mato Grosso, vários fazendeiros do município de Livramento entraram em conflito com as famílias do Complexo da Comunidade de Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, comprando terras a baixo custo, expulsando quase a totalidade daquelas famílias, queimando pastagens, destruindo cercas e impondo um regime de coerção pela força. O estado de conflito instalado naquela região fez com que a maioria dos habitantes do Mata Cavalo abandonasse suas terras migrando para várias regiões do Estado, bem como do País. Dentre todas as famílias do Mata Cavalo, um pequeno grupo que compõe a Associação dos Pequenos Produtores Rurais Quilombo Ribeirão da Mutuca permaneceu em suas
  • 34. 34 terras defendendo-a à todo custo e, no percurso da história estabelecendo ali uma ferrenha resistência à invasão de sua propriedade, mantendo desta forma a própria existência das terras herdadas dos escravos, seus ancestrais. À partir da década de 1960 as famílias que haviam sido expulsas começaram à voltar para suas antigas terras. Apoiadas no pressuposto da questão quilombola, os grupos retornados passaram à requerer também seu direito à propriedade. Neste caso específico, tais famílias também são remanescentes dos antigos escravos que haviam recebido em herança as terras da Sesmaria Boa Vida. Não obstante, segundo alguns depoimentos, existem determinados grupos de outras associações do Complexo do Mata Cavalo que, apoiados no pressuposto quilombola e sem possuir os vínculos históricos com os antigos herdeiros daquela área, ocupam irregularmente as terras, fato este que os colocam em posição antagônica aos interesses da Associação da Mutuca, grupo que havia permanecido nas terras em confronto com os fazendeiros. Alguns representantes destes grupos começaram a vender os direitos de posse de parte das terras ocupadas, o que revela outra característica totalmente assimétrica às formas de ligação que as famílias da referida comunidade possuem com suas terras. Para boa parte destes grupos a terra não passa de mercadoria, sendo que ao venderem tais direitos de posse colocam em risco a própria integridade daquele território, posto que de acordo com a tradição dos antigos as terras utilizadas no percurso da história sempre foram comunais. O clima de tensão foi definitivamente instalado entre os grupos divergentes, tendo em vista o conflito de interesses, e por extensão de memórias, o que levou algumas lideranças desta comunidade a reconsiderarem a própria questão quilombola e seus critérios de autoidentificação étnica. Em entrevista concedida por Laura Ferreira da Silva, da Associação do Mutuca, percebe-se claramente o conflito de memórias aqui tratado. Se por um lado ela vê a questão quilombola como ferramenta essencial no deslinde da questão fundiária, da qual é protagonista, por outro lado busca para si a questão da ancestralidade, do pertencimento, do local onde seus ascendentes viveram e desenvolveram suas culturas singulares. Em sua fala quando afirma que “o direito é nosso, pois está garantido pela Constituição Federal” ela se apoia nas estruturas políticas que derivam da questão quilombola e que poderão, essa uma alternativa, realmente permitir a legalização da propriedade de suas terras, ao menos em teoria. Curioso perceber essa dualidade que consiste ao mesmo tempo em afirmação e negação da condição de atores de suas histórias. Para Laura Ferreira da Silva, a condição quilombola, embora todos os seus atrativos inerentes à valorização do ser-negro no mundo, do identificar-se com uma condição social mais ampla e cheia de significados, constitui, aqui o
  • 35. 35 paradoxo, na negação de sua própria história e ela sabe muito bem disso. Quando formulamos uma pergunta diretamente relacionada a essa ambivalência que confronta a história da cadeia dominial do imóvel objeto da disputa com a nova perspectiva apresentada pela Constituição Federal e a premissa quilombola, Laura responde que essa questão veio: Reforçar, embora as pessoas não respeitem muito o que está no papel, não é? Porque se respeitassem, as terras tinham realmente sido regularizadas, já estava cada qual no seu cantinho e a gente não precisava estar labutando essa luta árdua, como a gente vem enfrentando no nosso dia a dia. Porque muitas coisas só ficam no papel e não vai na prática em si. Sem dúvida, a entrevistada está consciente do seu papel enquanto protagonista de uma história de conflitos e de lutas seculares, vistas pela perspectiva de sua família e de seus ancestrais. Quando afirma que “se respeitassem, as terras tinham realmente sido regularizadas” refere-se aos processos judiciais que tramitam na instância federal, antes da autoidentificação étnica como remanescentes de quilombo. Por outro lado, é sensível a confiança depositada para o deslinde do conflito fundiário aqui referido pelas vias da questão quilombola e, não só a Laura Ferreira da Silva, mas a maioria dos entrevistados participa desta euforia coletiva. Talvez mesmo constitua-se uma contrapartida ao doloroso processo que o conflito agrário e as implicações jurídicas a eles inerentes infligem a essa gente por um período demasiadamente longo. Como os numerosos processos jurídicos tramitam há muito tempo nas varas estaduais e federais, a questão quilombola possui a qualidade, por sua novidade, de adensar novas esperanças mudando o ânimo dessa gente sofrida. O caso do processo de reconhecimento das comunidades ribeirinhas do Trombetas como remanescentes de quilombo, estudada por Eliane Cantarino O’Dwyer, citado acima, constitui, segundo nossa perspectiva, a reconstrução de uma memória histórica, tendo em vista que seus integrantes são descendentes de antigos quilombolas daquela região. Desta forma, não se trata de invenção de tradições para legitimar o reconhecimento, mas sim de recuperação de tais tradições pelas vias da memória. Como vimos nos escritos de O’Dwyer, o presente etnográfico de tais comunidades ainda carrega muito do drama vivido pelos seus antepassados quando ainda na condição degradante de mercadorias à serviço dos interesses senhoriais, o que os colocaram na posição de franca oposição ao regime da escravidão, formando quilombos em clara manifestação de resgate de suas próprias humanidades. Em tal presente etnográfico, conforme atesta a autora, tendo em vista os interesses econômicos hegemônicos na região por ela estudada, os representantes destas
  • 36. 36 comunidades lutam por sua sobrevivência diante do “outro” que concentra maior poder. Tal condição colabora com a manutenção dos mesmos anseios, medos, incertezas, que certamente constituíam o cotidiano vivido pelos quilombolas, ou mocambeiros na linguagem dos viajantes, no passado. Não obstante, todas estas questões carecem de uma análise mais aprofundada à luz da disciplina História. Senão, vejamos, constitui um truísmo bastante simplificado entender que a permanência da memória do quilombo, nas ações e no imaginário das comunidades ribeirinhas estudada pela autora, se processa nos interstícios de uma abordagem sociológica e antropológica, uma reação natural daquela gente que sofre no presente etnográfico, conforme desvela a autora, uma forte pressão social, econômica e, também política, tendo em vista os interesses econômicos em jogo naquela região. Levando-se em consideração a semelhança, em parte, do drama vivido por essas comunidades no presente com relação ao passado de lutas de seus antecessores que formaram quilombos naquela região, impõe-se a reflexão de que se trata de contextos totalmente diferenciados. Aludimos à esta constatação tendo em vista que no passado, seus antecedentes se encontravam na condição de escravos à inteira disposição de seus senhores, fato este, inclusive que os levaram à constituição de quilombos. Ora, por mais que as condições encontradas no presente etnográfico destas comunidades sejam marcadas por relações antagônicas, pela violência dos poderes econômicos, pelos pressupostos do racismo e do preconceito, não existe possibilidade de enquadrá-los como escravos nos dias atuais. Desta forma, a analogia à condição escrava de seus antepassados só possui base de sustentação teórica no campo da memória, e não da história, constituindo assim um fenômeno sociológico e antropológico, tendo em vista que historicamente os quilombos foram extintos com a Abolição, em 1888. Outrossim, constitui uma impossibilidade minimizar os esforços dos componentes das comunidades estudadas pela autora, que como qualquer outro grupamento humano, de tudo faz para sobreviver às adversidades presentes em seu cotidiano. Não se trata, portanto, de uma posição contrária aos interesses dos grupos estudados pela autora, mas sim de analisar o contexto histórico em que tais relações foram, e continuam sendo travadas. Na verdade, como tivemos oportunidade de constatar, a ressemantização do conceito de quilombos tradicionais constitui um truísmo hipoteticamente pacificado entre a maioria dos antropólogos e outros representantes de diversas áreas acadêmicas. Não precisa muito esforço para entender, igualmente, que a insurgência do que passou a convencionar-se “quilombos contemporâneos” atende aos anseios e interesses de grande maioria dos segmentos negros no Brasil, e de parte de nossa sociedade, entendido em certos casos como reparação histórica à violência que representou a escravidão racial da era moderna. Este compreensível enunciado, claro, representa uma
  • 37. 37 militância louvável em prol de reparações de injustiças sociais nos campos e nas cidades. Fato incontestável. Entretanto, não podemos, nem devemos, esquecer de nossa posição enquanto historiadores, e de tudo que a disciplina História representa para o conhecimento acadêmico na convergência entre passado e presente. A assunção quilombola, entendida de forma mais ampla e em contextos universais representa uma tripla negação, segundo nossa percepção, tendo como base nossa experiência empírica, referendada devidamente no campo teórico. Em primeiro lugar, admitindo-se a existência de remanescentes de quilombo no tempo presente, obviamente em termos históricos e não políticos, nega-se conceitualmente o mais significativo fenômeno de resistência ao regime da escravidão, representado pela formação de quilombos, um território constituído como espaço de liberação da força de trabalho e, também da liberdade. Em segundo, o esforço no sentido de autoidentificação quilombola, tendo em vista a necessidade da invenção de determinadas tradições que possibilitem a assunção à uma nova configuração social, produz em sua dinâmica o esquecimento da própria história da comunidade, anterior ao processo de construção de tal identidade. No caso da Comunidade do Mutuca, por nós estudada, se trata nada menos que mais de um século de lutas ingentes pela permanência na terra, pela dignidade humana e pela afirmação do ser-no-mundo, e isto não pode e nem deve ser desprezado. Finalmente, entendemos que a assunção quilombola constitui uma negação da própria disciplina história, e esta é sem dúvida a parte mais delicada de todo este processo, tendo em vista nosso papel enquanto intelectuais dedicados aos processos de produção e reprodução históricas. Ora, se de forma generalizada aceitarmos, voluntária e deliberadamente, a condição anacrônica de qualquer fato ou conceito históricos significantes devemos, então, admitir que nossa disciplina não possui a seriedade e o rigor necessários à qualquer área do conhecimento humano. Utilizamos estes argumentos para identificar uma tendência pós-moderna de relativismo social, cultural, político e histórico, que entendemos como um problema sério para uma disciplina que pensa a si própria como ciência humana. Interessante observar que desde a insurgência da Escola dos Annales, que supostamente descolonizaria as práticas tradicionais da história positivista, - uma apologia aos grandes heróis, os grandes feitos, a narrativa do Estado-nação -, terminou por colonizar, repetindo-se à si mesma, a narrativa em torno de outras forças sociais marginalizadas. Não fazemos apologia aos discursos hegemônicos, mas nos arrogamos o direito de indagar se nos dedicarmos somente à uma vertente histórica, em detrimento de outras, não estaríamos repetindo os mesmos erros? Como afirma Jaime Pinsky, correremos o risco, se assim procedermos, de jogar fora, junto com a água da banheira, o próprio bebê. Afinal de contas, se vivemos em um país que não valoriza sua própria história, em uma nação que possui uma relação singular com a temporalidade de acordo
  • 38. 38 com o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista gravada no Programa Roda Viva exibido pela TV Cultura no dia 22/09/2014, um povo que sofre de Alzheimer coletivo, onde o passado condena, o futuro pertence à Deus e o presente constitui um eterno “Carpe Diem”, importa frisar que os conceitos desenvolvidos para explicação de fatos históricos no tempo, simbolizam as ferramentas com as quais interagimos no interior das ciências humanas. As hipóteses que defendemos não pretendem minimizar, nem ao menos relativizar as lutas pela propriedade de terras que entendemos como justas e merecidas, mas sim reafirmar o valor que o fenômeno quilombola tradicional representa à nossa história, tendo em vista que este episódio representou um dos mais importantes momentos da luta dos afro-brasileiros pela liberdade. Mario Maestri, de nacionalidade brasileira e italiana, nascido em Porto Alegre – RS, refugiado na Bélgica, por questões políticas, onde concluiu a graduação, mestrado e doutorado em ciências históricas no Centro de História da África da Universidade Católica de Louvain, na apresentação da seminal obra de Adelmir Fiabani, “Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004), nos lembra que: “A importância quantitativa e a extensão geográfica das fugas e aquilombamentos influenciou profundamente a história política, social, econômica, demográfica etc., do Brasil.”64 Da mesma forma, Jacob Gorender entende o fenômeno quilombola como principal elo fundante do que convencionou denominar de “revolução abolicionista”, seguramente uma das poucas, senão a única revolução vitoriosa em nossa história. 64 Fiabani, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). – São Paulo: Expressão Popular, 2005. P. 11.