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Toma lá poesia folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escola secundária d. pedro v - prof.ª conceição ludovino
1. Se cada dia cai
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda (1904-1973)
René Magritte (1898-1967), O Espelho Falso, 1928
O Universo não é uma ideia minha
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
2. A Pantera Isto
Dizem que finjo ou minto
No Jardin des Plantes, Paris Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
De tanto olhar as grades seu olhar Com a imaginação.
esmoreceu e nada mais aferra. Não uso o coração.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar. Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
A onda andante e flexível do seu vulto É como que um terraço
em círculos concêntricos decresce, Sobre outra coisa ainda.
dança de força em torno a um ponto oculto Essa coisa é que é linda.
no qual um grande impulso se arrefece.
Por isso escrevo em meio
De vez em quando o fecho da pupila Do que não está ao pé,
abre-se em silêncio. Uma imagem, então, Livre do meu enleio,
na tensa paz dos músculos se instila Sério do que não é.
para morrer no coração. Sentir? Sinta quem lê!
Rainer Maria Rilke (1885-1926) Fernando Pessoa (1888-1935)
O mundo estava no rosto da amada
O mundo estava no rosto da amada —
e logo se converteu em nada, em Cada Qual Tem O Seu Álcool
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o encontrei Cada qual tem o seu álcool.
no rosto amado, um mundo à mão, ali, Tenho álcool bastante em existir.
aroma em minha boca, eu só o seu rei? Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo.
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro.
Mas eu também estava pleno de mundo Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio,
e, bebendo, eu mesmo transbordei. Como qualquer outro. Sou igual.
E por trás de isso, céu meu,
Rainer Maria Rilke (1885-1926) Constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.
Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
3. Anelo
Só aos sábios o reveles
Pois o vulgo zomba logo:
Quero louvar o vivente
Que aspira à morte no fogo
Na noite – em que te geraram,
Em que geraste – sentiste,
Se calma a luz que alumiava,
Um desconforto bem triste.
Não sofres ficar nas trevas
Onde a sombra se condensa.
E te fascina o desejo
De comunhão mais intensa.
Não te detêm as distâncias,
Ó mariposa! E nas tardes,
Ávida de luz e chama,
Voa para a luz em que ardes.
“Morre e transmuta-te”: enquanto
Não cumpres esse destino,
És sobre a terra sombria
Qual sombrio peregrino.
Como vem da cana o sumo
Que os paladares adoça,
Flua assim da minha pena,
Flua o amor o quanto possa.
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
Tradução de Manuel Bandeira
4. Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos À Memória de Fernando Pessoa
E aqui estou eu, Se eu pudesse fazer com que viesses
ausente diante desta mesa - Todos os dias, como antigamente,
e ali fora o Tejo. Falar-me nessa lúcida visão
Entrei sem lhe dar um só olhar. — Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça, Meu pobre e grande e genial artista,
e saudá-lo deste canto da praça: O que tem sido a vida — esta boémia
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!" Coberta de farrapos e de estrelas
Não, não olhei. Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado Desde que estes meus olhos numa névoa
me lembrei que estavas aí, Tejo. De lágrimas te viram num caixão;
Passei e não te vi. Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo! Voltávamos à mesma:
Tu, lá onde
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em Os astros e as divinas madrugadas
que Fernando Pessoa se sentava, Noivam na luz eterna de um sorriso;
contigo e os outros invisíveis à sua volta, E eu, por aqui, vadio da descrença
inventando vidas que não queria ter. Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . .
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo. Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo, Nuns senhores que tu já conhecias
tudo indiferença e falta de resposta. — Autênticos patifes bem falantes. . .
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória, E a mesma intriga; as horas, os minutos,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados, As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tejo que não és da minha infância, Tudo igual! Acordando e adormecendo
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável, Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
majestade sem par nos monumentos dos homens, O mesmo ar e em tudo a mesma posição
imagem muito minha do eterno, De condenados, hirtos, a viver
porque és real e tens forma, vida, ímpeto, — Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
porque tens vida, sobretudo, Poetas, escutai-me: transformemos
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado... A nossa natural angústia de pensar
Eu que me esqueci de te olhar! — Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) Fiquemos uns momentos a cantar!
António Botto (1897-1959)
5. O homem é aquilo que ele próprio faz.
André Malraux
Enfeita de ouro as asas de uma ave e nunca mais voará no céu.
Tagore
O que sabemos é uma gota de água,
o que ignoramos é um oceano.
Isaac Newton
6. CARTA AOS REITORES Ser Poeta
(excerto)
Basta de jogo de palavras, Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
de artifícios de sintaxe, Do que os homens! Morder como quem beija!
de malabarismos formais; É ser mendigo e dar como quem seja
precisamos encontrar – agora – Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
a grande Lei do coração,
a Lei que não seja uma Lei, uma prisão, É ter de mil desejos o esplendor
senão um guia para o espírito perdido E não saber sequer que se deseja!
em seu próprio labirinto. M.C. Escher, Hand with Sphere É ter cá dentro um astro que flameja,
Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar, É ter garras e asas de condor!
Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens,
esse labirinto existe, É ter fome, é ter sede de Infinito!
núcleo para o qual convergem todas as forças do ser, Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
as últimas nervuras do espírito. é condensar o mundo num só grito!
Antonin Artaud (1896-1948) Narciso, Caravaggio
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores; Florbela Espanca (1894-1930), Charneca em Flor
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida As Amoras
Estes são os imprescindíveis O meu país sabe as amoras bravas
Bertold Brecht (1898-1956) no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
Deus, que será de ti quando eu morrer? nem goste dele, mas quando um amigo
Eu sou o teu cântaro (e se me romper?) me traz amoras bravas
A tua água (e se me corromper?) os seus muros parecem-me brancos,
Sou o teu agasalho, o teu afazer. reparo que também no meu país o céu é azul.
Vai comigo o significado teu.
Vladimir Maiakovski Eugénio de Andrade, (1923-2005) O Outro Nome da Terra
(1893-1930) Knight, Edmund Blair Leighton
7. ARMA SECRETA
Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.
A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
Suy, 1983
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.
António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida Suy, 1982
chamava-se “Agora”.
Guilherme de Almeida (1890-1969)
8. O PORTUGAL FUTURO AMOSTRA SEM VALOR
O Portugal futuro é um país
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
aonde o puro pássaro é possível
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
com ele se entretém
as profundas crianças desenharão a giz
e se julga intangível.
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
Mas desenhem elas o que desenharem
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
é essa a forma do meu país
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
e chamem elas o que lhe chamarem
não pesa num total que tende para infinito.
Portugal será e lá serei feliz.
Poderá ser pequeno como este
Suy, 1995 Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
tudo nele será novo desde os ramos à raiz.
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será Verão.
António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro.
Ruy Belo (1933-1978)
AMADOR SEM COISA AMADA
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Suy, 1984
Sou amador da existência,
não chego a profissional. Suy, 1993
António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
9. NA ILHA POR VEZES HABITADA
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago (1922- …)
Suy
1982
Suy
1992
10. POÉTICA I
LEMBRA-TE
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo. Lembra-te
que todos os momentos
A oeste a morte que nos coroaram
Contra quem vivo todas as estradas
Do sul cativo radiosas que abrimos
O este é meu norte. irão achando sem fim
seu ansioso lugar
Outros que contem seu botão de florir
Passo por passo: o horizonte
e que dessa procura
Eu morro ontem extenuante e precisa
Alphonse Mucha, Reverie não teremos sinal
Nasço amanhã
Ando onde há espaço: senão o de saber
- Meu tempo é quando. que irá por onde fomos
Vinícius de Moraes (1913-1980) um para o outro
vividos.
Mário Cesariny (1923-2006)
QUADRILHA
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
EPIGRAMA
que não amava ninguém.
(Veneza, 1790)
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes "Maus, para a esquerda!" mandará um dia o Juiz,
que não tinha entrado na história. "E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"
Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) "A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!"
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
11. POEMA EM LINHA RECTA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Man Ray
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, (1888-1935)
12. POVO QUE LAVAS NO RIO DESLUMBRANTE
(excerto)
Povo que lavas no rio, Deslumbrante,
Que vais às feiras e à tenda, Um jardim no meio de chamas!
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão, O meu coração conhece todas as formas:
Pode haver quem te defenda, Um prado para as gazelas,
Quem turve o teu ar sadio, Um mosteiro para os monges,
Quem compre o teu chão sagrado, Para dos ídolos chão sagrado,
Mas a tua vida, não! Ka'ba para o peregrino circular,
(…)
Fui ter à mesa redonda, As tábuas da Tora,
Bebendo em malga que esconda Os pergaminhos do Corão.
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste, Eu creio no amor;
Fora o vinho que me deste, Seja onde for que a sua caravana vira no caminho,
Mas a tua vida, não! Esta é a minha certeza,
(…) Fot. de Dorothea Lange, A minha fé.
Aromas de urze e de lama! Migrant Mother Ibn Arabi (1165-1240)
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
ELEGIA
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!
Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!
Pedro Homem de Mello (1904-1984)
Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;
ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto.
Os bons vi sempre passar A imensa terra, o céu sublime e grande;
No mundo graves tormentos; Observai, procurai, coleccionai os factos,
E para mais me espantar, Balbuciai o mistério da Natureza.
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos. Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,
Cuidando alcançar assim Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;
O bem tão mal ordenado, À prova me puseram, deram-me Pandora,
Fui mau, mas fui castigado: De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;
Assim que só para mim Graffiti Impeliram-me para a boca dadivosa,
Anda o mundo concertado. Separaram-me dela, e assim me aniquilam.
Luís Vaz de Camões (c. 1524/5-1580) Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
13. «Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo o que existe.»
Emily Dickinson
Octavio Ocampo, Mariposa a la Flor
«Falar é uma necessidade, escutar é uma arte.»
Johann Goethe
Octavio Ocampo, (1943-…), pintor mexicano, Cara de Pájaros, arte metamórfica
14. Esta é a Minha Carta ao Mundo Carta ao filho
Esta é a minha carta ao Mundo Não vivas sobre a terra como um estranho
Que nunca Me escreveu — um turista no meio da natureza.
As Notícias simples que a Natureza contou — Habita o mundo como a casa do teu pai.
Com branda Majestade Crê na semente, na terra, no mar.
mas acima de tudo crê nas pessoas.
A sua Mensagem está destinada Ama as nuvens,
A Mãos que não consigo ver — as máquinas,
Pelo Seu amor — Afáveis — camponeses — os livros,
Julguem-me brandamente — a Mim mas acima de tudo ama o homem.
Emily Dickinson (1830-1886) Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
sente a tristeza e a dor das pessoas.
Alegra-te com todos os bens da terra,
com a sombra e a luz,
com as quatro estações,
mas acima de tudo e a mãos cheias
alegra-te com as pessoas.
Nazim Hikmet, (1902-1963), c. 1960. John William Waterhouse,
Spring
Quadro de Nazim Hikmet,
William Dyce (1806-1864), Omnia Vanitas pintado em 1946.
Nota biográfica: Emily Dickinson (1830-1886), poetisa americana.
Escreveu cerca de 1800 poemas mas não publicou nenhum livro
em vida, à excepção de alguns poemas anónimos saídos em
periódicos. A primeira edição crítica da sua obra apenas foi publicada
pela primeira vez em 1955. A partir de 1864, começou a sentir graves
problemas de visão e abrandou o seu ritmo criativo. Chamaram-lhe a
“Grande Reclusa”, pela personalidade solitária que aparentava ter, mas Nota biográfica: Nazim Hikmet é um poeta e pintor turco nascido em Salónica,
a sua poesia evidencia uma profunda sensibilidade e amor por tudo o que Grécia, que em 1902 ainda fazia parte do império otomano. Na Turquia, foi
a rodeava: as pessoas, a Natureza, a escrita… perseguido e viveu exilado durante muitos anos. É um renovador da literatura turca ao
A quase ausência de pontuação e as maiúsculas que criam seres e metáforas romper com a tradição islâmica. Sob a influência dos futuristas russos, com quem
fazem parte do seu estilo. conviveu no exílio, tendo proposto a “despoetização” da poesia.
15. Pontes
Nas terras e terras cruzadas por correntes de água,
Nos caminhos e caminhos mutilados por correntes de água,
À beira da água o homem parou a cismar:
Assim nasceram as pontes.
O ser humano, cansado de digressões penosas,
Sente gratidão pelas pontes.
Pontes que ligam terras e terras
São o amor entre rios e caminhos;
Postos de mudas onde barcos e veículos se cumprimentam,
Lugar onde se despedem os que partem e os que ficam.
Ai Qing, poeta chinês, (1910-1996)
M. C. Escher, Bond of Union, 1956
«Eu quero encantar com a mais pequena coisa, basta uma pequena borboleta M. C. Escher, Hand with Reflecting Sphere, 1935
com pouco mais de 2 cm de diâmetro pousada num pedaço de rocha para me
fazer tentar atingir aquilo que desejo à tanto tempo, incluindo a cópia destes
pedacinhos de nada de forma tão rigorosa quanto possível apenas para
descobrir o quão grandes são.»
Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
16. Hőlderlin
Fantasia do Anoitecer A Paulo Quintela
O íntimo dos deuses e das fontes,
Frente à choupana tranquilo na sombra está sentado Divino louco, amado de astros, amplo
O lavrador; fumega a lareira ao homem frugal. Amante e mago de eras e horizontes:
Hospitaleiro soa ao caminhante na aldeia Para tudo dizer — Hőlderlin, prumo do templo.
Pacífica o sino da tarde. Tocou fímbrias de lume nas palavras,
Deu sua mão incauta às quedas:
Talvez voltem agora também os barqueiros ao porto, Cobrindo de semente etéreas lavras,
Em cidades longínquas morre alegre o rumor Teve dedos para o grão na haste das medas.
Afanoso da feira; em tranquila ramada Seu destino de sangue o aparelhou
Brilha o banquete em convívio aos amigos. Como à nau que se afunda ou desarvora
Ébria de sal e vento.
Para onde irei eu? Vivem os mortais A Terra lhe foi dura, o Mar o amou:
De soldo e trabalho; alternando en fadiga e repouso Por isso a gota de água clara chora
Tudo se alegra; porque não dorme então Nos versos que entoou
Nunca em meu peito o espinho? E neles demora
Um eterno momento.
No céu da tarde floresce toda uma Primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece Amigo que trouxeste à nossa voz
O mundo áureo; oh! Levai-me p’ra lá, O seu indecifrado chamamento,
Nuvens purpúreas! E que lá em cima Bem hajas de todos nós, Hőlderlin (1770-1843), por
Tão pobres sem o novo sentimento. Franz Karl Hiemer, c. 1792
Em luz e ar se dissolvam meu amor e dor! — Pois só no rigor a fogo
Mas, como corrido da súplica louca, foge Das palavras exactas e sofridas
O encanto; faz-se escuro, e solitário Abre o estame de amor, pólen do Logo,
Sob o céu, como sempre, me encontro. — Que é maneira de Deus com nossas vidas.
Vem tu agora, sono suave! Demasiado cobiça Vitorino Nemésio, (1901-1978), 9/9/1959
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice. «Quando jovem, o homem acredita estar tão próximo do seu objectivo!
De todas as ilusões criadas pela natureza para socorrer a fragilidade do
Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843) nosso ser, esta é a mais bela.»
Tradução de Paulo Quintela (1905-1987) Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)
17. LIMITES
Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar
Há uma rua próxima que está vedada aos meus passos
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até ao fim do mundo
Entre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que nunca mais abrirei.
Este Verão cumprirei cinquenta anos.
Suy, Right Between the
A morte desgasta-me, incessante.
Eyes, 19/6/1982
De Inscripciones, de Julio Platero Haedo, Montevideu, 1923
Poema e poeta criados por Jorge Luís Borges (1899-1986), pertencente a um
conjunto de poemas intitulado Museu, incluídos na obra O Fazedor cuja 1.º edição
data de 1960, Buenos Aires. Julio Platero Haedo é uma criação de Borges.
SUDDEN LIGHT
I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore.
You have been mine before,—
How long ago I may not know:
But just when at that swallow’s soar
Your neck turn’d so,
Some veil did fall,—I knew it all of yore.
Has this been thus before?
And shall not thus time’s eddying flight
Still with our lives our love restore Dante Gabriel Rossetti, A
Sea Spell, 1877 Juan Carlos Liberti (1930-…), Si Soy Asi
In death’s despite,
And day and night yield one delight once more?
Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), pintor e poeta inglês.
18. O MITO DO GRANDE AUSENTE
Os que ficavam acordados pelas indeterminadas noites afora
Tudo começou há muito, muito tempo, diziam que o ibex não regressava nunca à cabana
num tempo em que os homens ainda não tinham memória para de novo se transformar em homem.
mas já tinham saudade. No entanto, no antepenúltimo momento do dia seguinte,
Não caçavam animais nem pescavam peixes, o homem voltava a aparecer no alpendre
alimentavam-se do ar e da luz que envolvia as grandes montanhas azuis. e o ritual repetia-se.
Trabalhavam ao sabor dos desejos
Um dia, porém, o homem não apareceu: no milionésimo sétimo
e desejar era uma forma de arte,
antepenúltimo momento dos dias da sua aparição.
uma atitude estética para com a vida e a morte. Em vez dele, surgiram um milhão e sete ibexes,
Na montanha mais azul havia uma cabana de madeira. todos de um azul diferente.
Os povos da planície entretinham-se em especulações: Primeiro ocuparam o alpendre,
vivia ou não vivia nela alguém? depois o quintal à volta, a floresta, o topo
Jamais subiam a montanha, E toda a encosta até ao último milímetro do sopé.
pois estavam convencidos
de que tudo o que estava a mais de uma girafa do solo Lentamente, cada ibex dissolveu-se no azul gémeo
já não fazia parte do reino terreno. que havia na montanha: um milhão e sete azuis.
Por isso, todos os pássaros eram mágicos E os azuis rodopiaram e ondularam e ziguezaguearam
e os deuses, que ainda não tinham sido inventados, e fundiram-se num único azul
contentavam-se com ser pássaros, nuvens e vento… com a forma de um elefante colossal.
É esse elefante que ocupa hoje o lugar da montanha.
Os dias tinham então um número variável de momentos, É a ele que os povos da planície chamam
consoante a disposição anímica dos planetas. — O GRANDE AUSENTE.
Todavia, os investigadores vindouros descobriram Desde então, escrevem belos poemas azuis na areia
que no antepenúltimo momento que ciclicamente se apagam e regressam gravados em nácar.
de cada um desses dias volúveis e atemporais Desde então, sem saberem ao certo porquê,
se repetia um fenómeno no topo daquela montanha: pelo menos uma vez na vida,
um vulto humano sentava-se no alpendre escalam o Grande Ausente, tocam as nuvens, abrem as asas
e voltava os braços abertos na direcção que os sábios e regressam a casa mais transparentes do que o vento… Suy, 5/7/1991
diziam ter sido outrora o Poente.
O Sol, que então se mantinha habitualmente invisível,
apesar da limpidez e intensa luminosidade do céu,
surgia de uma fresta do horizonte, descia sobre a montanha, Diego Rivera
dissolvia-se lentamente no corpo do humano (1886-1957),
que, com a mesma lentidão, ia assumindo os contornos A Vendedora de Flores
de um ibex castanho com reflexos cobreados. (pintor mexicano)
O ibex descia do alpendre
e desaparecia por entre a imensidade de azuis.
19. «O homem que sabe reconhecer os limites da sua inteligência está mais
perto da perfeição.» James Sebor, I Am We
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
Suy, Irradiação, 2/10/1982
20. WALDEN, ÉS TU?
Ora aqui está o Walden, o mesmo lago no meio dos bosques que
descobri há tantos anos (…)
Não se trata de uma ilusão minha
Para ornar o verso de uma linha:
Não posso estar de Deus do céu mais perto
Do que junto ao Walden, este céu aberto.
Eu sou a sua pedregosa praia
E a brisa que por aqui se espraia.
Suas águas e areias estão
Na concha da minha mão.
E seu mais profundo recinto
Alto jaz no que penso e sinto.
Steven Kenny, The Perch, 2006
Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques
Beber
«O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele, mas ao
beber vejo-lhe o leito de areia e percebo quão raso é. A fina corrente
logo se esvai, mas a eternidade permanece. Gostaria de beber mais
fundo e de pescar no céu, em cujo leito os seixos são estrelas. Não
consigo contá-las. Ignoro a primeira letra do alfabeto. Tenho lamentado
sempre não ser tão sábio com no dia em que nasci. A inteligência é um
cutelo que penetra e corta caminho adentro o segredo das coisas. Não
desejo ocupar as minhas mãos mais do que o necessário. A minha
cabeça é mãos e pés. Sinto que as minhas melhores faculdades aí se
concentram. O instinto diz-me que a cabeça é um órgão para escavação,
como o focinho e as patas de certos bichos, com a qual gostaria de
explorar e cavar o meu caminho através desses morros. Penso que o
filão mais rico está por aí nas redondezas, e assim avalio por meio da
varinha de condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui começarei
a minerar.»
Steven Kenny, The Ruff, 2001 Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques
21. ECO
Nada se perdeu, querido ser,
Nada se perde nunca;
A palavra por dizer
Não está exausta, pode ainda ser ouvida.
Música que mancha;
O silêncio permanece…
Oh, o eco está por toda a parte, pássaro inarmadilhável.
Lawrence Durrell (1912-1990), Alexandria
***&***
Vamos esquecer que existe um tempo e não vamos contar os dias da
vida!
Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)
Maria Barry, Forever Friends
Suy, A Coroação do Belo Insignificante, 25/1/1987
22. OS PÁSSAROS NASCEM NA PONTA DAS ÁRVORES
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
Steven Kenny, Paper Birds, 2007
Ruy Belo (1933-1978)
«Os pássaros, com as suas NATUREZA VIVA
plumagens e cantos, estão
Um pintassilgo desce pelas escadas
em harmonia com as flores,
da canção, empoleira-se nos seus versos,
mas que rapaz ou rapariga
estende o bico para que o canto
se associa à beleza
não se perca pelo chão. Ainda bem que é
selvagem e luxuriante da
para o céu que ele está a olhar: assim,
Natureza? Ela floresce
não vê os teus cabelos que se espalham
sobretudo sozinha, bem
por entre ervas e ramos, nem os teus
longe das cidades onde
braços que se apoiam ao declive da
moram os homens. Falais do
encosta. No entanto, a tua respiração
céu, vós que degradais a
canta com ele; e só quando o vento
terra!»
Henry David Thoreau (1817-1862),
o enxota do ramo é que um silêncio
Walden, ou A Vida nos Bosques se faz para que, de dentro dele, nasçam o
bater de asas do seu voo e o teu riso, ao
Victor Safonkin (pintor surrealista
russo, nascido em 1967) veres um pássaro saltar de dentro do amor.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês
23. AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa (1888-1935)
Boris Izrailovich Anisfeld, Retrato de uma Guitarra
Konstantin Alexeievitch Korovin, Paris Boulevard
24. CÂNTICO NEGRO Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Eu tenho a minha Loucura !
Estendendo-me os braços, e seguros Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
De que seria bom que eu os ouvisse E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Quando me dizem: "vem por aqui!" Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Eu olho-os com olhos lassos, Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) Mas eu, que nunca principio nem acabo,
E cruzo os braços, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
E nunca vou por ali... Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
A minha glória é esta: Ninguém me peça definições!
Criar desumanidades! Ninguém me diga: "vem por aqui"!
Não acompanhar ninguém. A minha vida é um vendaval que se soltou,
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade É uma onda que se alevantou,
Com que rasguei o ventre a minha mãe É um átomo a mais que se animou...
Não, não vou por aí! Só vou por onde Não sei por onde vou,
Me levam meus próprios passos... Não sei para onde vou
Se ao que busco saber nenhum de vós responde Sei que não vou por aí!
Por que me repetis: "vem por aqui!"? José Régio (1901-1969)
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros, Michael Parkes, Fearless, 2008