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Se cada dia cai
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda (1904-1973)




         René Magritte (1898-1967), O Espelho Falso, 1928


O Universo não é uma ideia minha
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
A Pantera                                                 Isto
                                                              Dizem que finjo ou minto
      No Jardin des Plantes, Paris                            Tudo o que escrevo. Não.
                                                               Eu simplesmente sinto
   De tanto olhar as grades seu olhar                            Com a imaginação.
    esmoreceu e nada mais aferra.                                Não uso o coração.
  Como se houvesse só grades na terra:
   grades, apenas grades para olhar.                         Tudo o que sonho ou passo,
                                                              O que me falha ou finda,
  A onda andante e flexível do seu vulto                       É como que um terraço
   em círculos concêntricos decresce,                         Sobre outra coisa ainda.
dança de força em torno a um ponto oculto                     Essa coisa é que é linda.
 no qual um grande impulso se arrefece.
                                                              Por isso escrevo em meio
   De vez em quando o fecho da pupila                          Do que não está ao pé,
 abre-se em silêncio. Uma imagem, então,                        Livre do meu enleio,
    na tensa paz dos músculos se instila                         Sério do que não é.
          para morrer no coração.                              Sentir? Sinta quem lê!

    Rainer Maria Rilke (1885-1926)                          Fernando Pessoa (1888-1935)




O mundo estava no rosto da amada

  O mundo estava no rosto da amada —
    e logo se converteu em nada, em                     Cada Qual Tem O Seu Álcool
  mundo fora do alcance, mundo-além.
 Por que não o bebi quando o encontrei                        Cada qual tem o seu álcool.
 no rosto amado, um mundo à mão, ali,                     Tenho álcool bastante em existir.
 aroma em minha boca, eu só o seu rei?               Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo.
   Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.          Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro.
 Mas eu também estava pleno de mundo                  Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio,
   e, bebendo, eu mesmo transbordei.                      Como qualquer outro. Sou igual.
                                                              E por trás de isso, céu meu,
    Rainer Maria Rilke (1885-1926)                Constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.

                                            Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
Anelo

Só aos sábios o reveles
Pois o vulgo zomba logo:
Quero louvar o vivente
Que aspira à morte no fogo
              Na noite – em que te geraram,
              Em que geraste – sentiste,
              Se calma a luz que alumiava,
              Um desconforto bem triste.
Não sofres ficar nas trevas
Onde a sombra se condensa.
E te fascina o desejo
De comunhão mais intensa.
              Não te detêm as distâncias,
              Ó mariposa! E nas tardes,
              Ávida de luz e chama,
              Voa para a luz em que ardes.

“Morre e transmuta-te”: enquanto
Não cumpres esse destino,
És sobre a terra sombria
Qual sombrio peregrino.
              Como vem da cana o sumo
              Que os paladares adoça,
              Flua assim da minha pena,
              Flua o amor o quanto possa.
                              Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
                                               Tradução de Manuel Bandeira
Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos                                 À Memória de Fernando Pessoa

E aqui estou eu,                                                   Se eu pudesse fazer com que viesses
ausente diante desta mesa -                                        Todos os dias, como antigamente,
e ali fora o Tejo.                                                 Falar-me nessa lúcida visão
Entrei sem lhe dar um só olhar.                                    — Estranha, sensualíssima, mordente;
                                                                   Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
 Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,                      Meu pobre e grande e genial artista,
 e saudá-lo deste canto da praça:                                  O que tem sido a vida — esta boémia
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"                              Coberta de farrapos e de estrelas
 Não, não olhei.                                                   Tristíssima, pedante, e contrafeita,
 Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado   Desde que estes meus olhos numa névoa
me lembrei que estavas aí, Tejo.                                   De lágrimas te viram num caixão;
Passei e não te vi.                                                Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!            Voltávamos à mesma:
                                                                   Tu, lá onde
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em              Os astros e as divinas madrugadas
que Fernando Pessoa se sentava,                                    Noivam na luz eterna de um sorriso;
contigo e os outros invisíveis à sua volta,                        E eu, por aqui, vadio da descrença
inventando vidas que não queria ter.                               Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . .
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.                    Isto por cá vai indo como dantes;
                                                                   O mesmo arremelgado idiotismo
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,                  Nuns senhores que tu já conhecias
 tudo indiferença e falta de resposta.                             — Autênticos patifes bem falantes. . .
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,             E a mesma intriga; as horas, os minutos,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,       As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tejo que não és da minha infância,                                 Tudo igual! Acordando e adormecendo
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,       Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
majestade sem par nos monumentos dos homens,                       O mesmo ar e em tudo a mesma posição
imagem muito minha do eterno,                                      De condenados, hirtos, a viver
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,                         — Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
porque tens vida, sobretudo,                                       Poetas, escutai-me: transformemos
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...                   A nossa natural angústia de pensar
Eu que me esqueci de te olhar!                                     — Num cântico de sonho!, e junto dele,
                                                                   Do camarada raro que lembramos,
           Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)                      Fiquemos uns momentos a cantar!
                                                                                  António Botto (1897-1959)
O homem é aquilo que ele próprio faz.
                          André Malraux




Enfeita de ouro as asas de uma ave e nunca mais voará no céu.
                                         Tagore

     O que sabemos é uma gota de água,
     o que ignoramos é um oceano.
                        Isaac Newton
CARTA AOS REITORES                                                                         Ser Poeta
                               (excerto)
Basta de jogo de palavras,                                                         Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
de artifícios de sintaxe,                                                          Do que os homens! Morder como quem beija!
de malabarismos formais;                                                           É ser mendigo e dar como quem seja
precisamos encontrar – agora –                                                     Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
a grande Lei do coração,
a Lei que não seja uma Lei, uma prisão,                                            É ter de mil desejos o esplendor
senão um guia para o espírito perdido                                              E não saber sequer que se deseja!
em seu próprio labirinto.                          M.C. Escher, Hand with Sphere   É ter cá dentro um astro que flameja,
Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar,                                 É ter garras e asas de condor!
Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens,
esse labirinto existe,                                                             É ter fome, é ter sede de Infinito!
núcleo para o qual convergem todas as forças do ser,                               Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
as últimas nervuras do espírito.                                                   é condensar o mundo num só grito!
                       Antonin Artaud (1896-1948)                                                                                 Narciso, Caravaggio
                                                                                   E é amar-te, assim, perdidamente...
                                                                                   É seres alma, e sangue, e vida em mim
                                                                                   E dizê-lo cantando a toda a gente!
Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;                                                  Florbela Espanca (1894-1930), Charneca em Flor
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida                                                                                As Amoras
Estes são os imprescindíveis                                                                           O meu país sabe as amoras bravas
                     Bertold Brecht (1898-1956)                                                                  no verão.
                                                                                                       Ninguém ignora que não é grande,
                                                                                                   nem inteligente, nem elegante o meu país,
                                                                                                             mas tem esta voz doce
                                                                                                  de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
                                                                                                      Raramente falei do meu país, talvez
Deus, que será de ti quando eu morrer?                                                              nem goste dele, mas quando um amigo
Eu sou o teu cântaro (e se me romper?)                                                                       me traz amoras bravas
A tua água (e se me corromper?)                                                                       os seus muros parecem-me brancos,
Sou o teu agasalho, o teu afazer.                                                                reparo que também no meu país o céu é azul.
Vai comigo o significado teu.
                  Vladimir Maiakovski                                                      Eugénio de Andrade, (1923-2005) O Outro Nome da Terra
                       (1893-1930)            Knight, Edmund Blair Leighton
ARMA SECRETA

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
                                                      Suy, 1983
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.
  António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)




                                INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida                                            Suy, 1982
chamava-se “Agora”.
      Guilherme de Almeida (1890-1969)
O PORTUGAL FUTURO                                            AMOSTRA SEM VALOR
O Portugal futuro é um país
                                                                 Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
aonde o puro pássaro é possível
                                                                 Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
                                                                 com ele se entretém
as profundas crianças desenharão a giz
                                                                 e se julga intangível.
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável.
                                                                 Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
Mas desenhem elas o que desenharem
                                                                 sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
é essa a forma do meu país
                                                                 que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
e chamem elas o que lhe chamarem
                                                                 não pesa num total que tende para infinito.
Portugal será e lá serei feliz.
Poderá ser pequeno como este
                                                    Suy, 1995    Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
                                                                 ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
tudo nele será novo desde os ramos à raiz.
                                                                 nesta insignificância, gratuita e desvalida,
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
                                                                 Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será Verão.
                                                                  António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro.
         Ruy Belo (1933-1978)
                      AMADOR SEM COISA AMADA
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
                                                    Suy, 1984
Sou amador da existência,
não chego a profissional.                                                                                               Suy, 1993
  António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
NA ILHA POR VEZES HABITADA

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
                         José Saramago (1922- …)




                                                               Suy
                                                               1982


                                                        Suy
                                                        1992
POÉTICA I
                                                              LEMBRA-TE
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.                                                Lembra-te
                                                              que todos os momentos
A oeste a morte                                               que nos coroaram
Contra quem vivo                                              todas as estradas
Do sul cativo                                                 radiosas que abrimos
O este é meu norte.                                           irão achando sem fim
                                                              seu ansioso lugar
Outros que contem                                             seu botão de florir
Passo por passo:                                              o horizonte
                                                              e que dessa procura
Eu morro ontem                                                extenuante e precisa
                                    Alphonse Mucha, Reverie   não teremos sinal
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:                                          senão o de saber
- Meu tempo é quando.                                         que irá por onde fomos
           Vinícius de Moraes (1913-1980)                     um para o outro
                                                              vividos.

                                                                  Mário Cesariny (1923-2006)


                           QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
                                                                                EPIGRAMA
que não amava ninguém.
                                                                               (Veneza, 1790)
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes       "Maus, para a esquerda!" mandará um dia o Juiz,
que não tinha entrado na história.                            "E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"
                                                              Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:
            Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)            "A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!"
                                                                            Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
POEMA EM LINHA RECTA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
                                                                          Man Ray
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

  Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, (1888-1935)
POVO QUE LAVAS NO RIO                          DESLUMBRANTE
                            (excerto)
Povo que lavas no rio,                                              Deslumbrante,
Que vais às feiras e à tenda,                                       Um jardim no meio de chamas!
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,                                            O meu coração conhece todas as formas:
Pode haver quem te defenda,                                         Um prado para as gazelas,
Quem turve o teu ar sadio,                                          Um mosteiro para os monges,
Quem compre o teu chão sagrado,                                     Para dos ídolos chão sagrado,
Mas a tua vida, não!                                                Ka'ba para o peregrino circular,
(…)
Fui ter à mesa redonda,                                             As tábuas da Tora,
Bebendo em malga que esconda                                        Os pergaminhos do Corão.
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,                                           Eu creio no amor;
Fora o vinho que me deste,                                          Seja onde for que a sua caravana vira no caminho,
Mas a tua vida, não!                                                Esta é a minha certeza,
(…)                                 Fot. de Dorothea Lange,         A minha fé.
Aromas de urze e de lama!           Migrant Mother                                        Ibn Arabi (1165-1240)
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
                                                                    ELEGIA
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!
                                                                    Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!
          Pedro Homem de Mello (1904-1984)
                                                                    Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;
              ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO                       Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto.
Os bons vi sempre passar                                            A imensa terra, o céu sublime e grande;
No mundo graves tormentos;                                          Observai, procurai, coleccionai os factos,
E para mais me espantar,                                            Balbuciai o mistério da Natureza.
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.                                           Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,
Cuidando alcançar assim                                             Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;
O bem tão mal ordenado,                                             À prova me puseram, deram-me Pandora,
Fui mau, mas fui castigado:                                         De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;
Assim que só para mim                                    Graffiti   Impeliram-me para a boca dadivosa,
Anda o mundo concertado.                                            Separaram-me dela, e assim me aniquilam.
                     Luís Vaz de Camões (c. 1524/5-1580)                           Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
«Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo o que existe.»
                                           Emily Dickinson




                                                                               Octavio Ocampo, Mariposa a la Flor

                      «Falar é uma necessidade, escutar é uma arte.»
                                      Johann Goethe
Octavio Ocampo, (1943-…), pintor mexicano, Cara de Pájaros, arte metamórfica
Esta é a Minha Carta ao Mundo                                               Carta ao filho
Esta é a minha carta ao Mundo                                               Não vivas sobre a terra como um estranho
Que nunca Me escreveu —                                                     um turista no meio da natureza.
As Notícias simples que a Natureza contou —                                 Habita o mundo como a casa do teu pai.
Com branda Majestade                                                        Crê na semente, na terra, no mar.
                                                                            mas acima de tudo crê nas pessoas.
A sua Mensagem está destinada                                               Ama as nuvens,
A Mãos que não consigo ver —                                                as máquinas,
Pelo Seu amor — Afáveis — camponeses —                                      os livros,
Julguem-me brandamente — a Mim                                              mas acima de tudo ama o homem.
                 Emily Dickinson (1830-1886)                                Sente a tristeza do ramo que murcha,
                                                                            do astro que se extingue,
                                                                            do animal ferido que agoniza,
                                                                            mas acima de tudo
                                                                            sente a tristeza e a dor das pessoas.
                                                                            Alegra-te com todos os bens da terra,
                                                                            com a sombra e a luz,
                                                                            com as quatro estações,
                                                                            mas acima de tudo e a mãos cheias
                                                                            alegra-te com as pessoas.
                                                                            Nazim Hikmet, (1902-1963), c. 1960.             John William Waterhouse,
                                                                            Spring

                                                                                                                                  Quadro de Nazim Hikmet,
             William Dyce (1806-1864), Omnia Vanitas                                                                                  pintado em 1946.
  Nota biográfica: Emily Dickinson (1830-1886), poetisa americana.
      Escreveu cerca de 1800 poemas mas não publicou nenhum livro
        em vida, à excepção de alguns poemas anónimos saídos em
   periódicos. A primeira edição crítica da sua obra apenas foi publicada
   pela primeira vez em 1955. A partir de 1864, começou a sentir graves
   problemas de visão e abrandou o seu ritmo criativo. Chamaram-lhe a
 “Grande Reclusa”, pela personalidade solitária que aparentava ter, mas     Nota biográfica: Nazim Hikmet é um poeta e pintor turco nascido em Salónica,
 a sua poesia evidencia uma profunda sensibilidade e amor por tudo o que    Grécia, que em 1902 ainda fazia parte do império otomano. Na Turquia, foi
               a rodeava: as pessoas, a Natureza, a escrita…                perseguido e viveu exilado durante muitos anos. É um renovador da literatura turca ao
A quase ausência de pontuação e as maiúsculas que criam seres e metáforas   romper com a tradição islâmica. Sob a influência dos futuristas russos, com quem
                         fazem parte do seu estilo.                         conviveu no exílio, tendo proposto a “despoetização” da poesia.
Pontes
Nas terras e terras cruzadas por correntes de água,
Nos caminhos e caminhos mutilados por correntes de água,
À beira da água o homem parou a cismar:
Assim nasceram as pontes.
O ser humano, cansado de digressões penosas,
Sente gratidão pelas pontes.
Pontes que ligam terras e terras
São o amor entre rios e caminhos;
Postos de mudas onde barcos e veículos se cumprimentam,
Lugar onde se despedem os que partem e os que ficam.
                           Ai Qing, poeta chinês, (1910-1996)




                      M. C. Escher, Bond of Union, 1956
«Eu quero encantar com a mais pequena coisa, basta uma pequena borboleta         M. C. Escher, Hand with Reflecting Sphere, 1935
com pouco mais de 2 cm de diâmetro pousada num pedaço de rocha para me
fazer tentar atingir aquilo que desejo à tanto tempo, incluindo a cópia destes
pedacinhos de nada de forma tão rigorosa quanto possível apenas para
descobrir o quão grandes são.»
                   Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
Hőlderlin
              Fantasia do Anoitecer                                                                          A Paulo Quintela
                                                               O íntimo dos deuses e das fontes,
  Frente à choupana tranquilo na sombra está sentado           Divino louco, amado de astros, amplo
    O lavrador; fumega a lareira ao homem frugal.              Amante e mago de eras e horizontes:
       Hospitaleiro soa ao caminhante na aldeia                Para tudo dizer — Hőlderlin, prumo do templo.
               Pacífica o sino da tarde.                       Tocou fímbrias de lume nas palavras,
                                                               Deu sua mão incauta às quedas:
 Talvez voltem agora também os barqueiros ao porto,            Cobrindo de semente etéreas lavras,
     Em cidades longínquas morre alegre o rumor                Teve dedos para o grão na haste das medas.
        Afanoso da feira; em tranquila ramada                  Seu destino de sangue o aparelhou
      Brilha o banquete em convívio aos amigos.                Como à nau que se afunda ou desarvora
                                                               Ébria de sal e vento.
         Para onde irei eu? Vivem os mortais                   A Terra lhe foi dura, o Mar o amou:
  De soldo e trabalho; alternando en fadiga e repouso          Por isso a gota de água clara chora
       Tudo se alegra; porque não dorme então                  Nos versos que entoou
           Nunca em meu peito o espinho?                       E neles demora
                                                               Um eterno momento.
    No céu da tarde floresce toda uma Primavera;
  Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece          Amigo que trouxeste à nossa voz
        O mundo áureo; oh! Levai-me p’ra lá,                   O seu indecifrado chamamento,
        Nuvens purpúreas! E que lá em cima                     Bem hajas de todos nós,                     Hőlderlin (1770-1843), por
                                                               Tão pobres sem o novo sentimento.           Franz Karl Hiemer, c. 1792
     Em luz e ar se dissolvam meu amor e dor! —                Pois só no rigor a fogo
      Mas, como corrido da súplica louca, foge                 Das palavras exactas e sofridas
         O encanto; faz-se escuro, e solitário                 Abre o estame de amor, pólen do Logo,
      Sob o céu, como sempre, me encontro. —                   Que é maneira de Deus com nossas vidas.

     Vem tu agora, sono suave! Demasiado cobiça                                       Vitorino Nemésio, (1901-1978), 9/9/1959
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
                 Sonhadora, inquieta!
          Serena e pacífica é então a velhice.                 «Quando jovem, o homem acredita estar tão próximo do seu objectivo!
                                                               De todas as ilusões criadas pela natureza para socorrer a fragilidade do
    Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)           nosso ser, esta é a mais bela.»
                      Tradução de Paulo Quintela (1905-1987)                Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)
LIMITES


Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar
Há uma rua próxima que está vedada aos meus passos
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até ao fim do mundo
Entre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que nunca mais abrirei.
Este Verão cumprirei cinquenta anos.
                                                     Suy, Right Between the
A morte desgasta-me, incessante.
                                                                 Eyes, 19/6/1982
De Inscripciones, de Julio Platero Haedo, Montevideu, 1923
Poema e poeta criados por Jorge Luís Borges (1899-1986), pertencente a um
conjunto de poemas intitulado Museu, incluídos na obra O Fazedor cuja 1.º edição
data de 1960, Buenos Aires. Julio Platero Haedo é uma criação de Borges.

SUDDEN LIGHT

I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore.

You have been mine before,—
How long ago I may not know:
But just when at that swallow’s soar
Your neck turn’d so,
Some veil did fall,—I knew it all of yore.

Has this been thus before?
And shall not thus time’s eddying flight
Still with our lives our love restore          Dante Gabriel Rossetti, A
                                                    Sea Spell, 1877                Juan Carlos Liberti (1930-…), Si Soy Asi
In death’s despite,
And day and night yield one delight once more?

Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), pintor e poeta inglês.
O MITO DO GRANDE AUSENTE
                                                                         Os que ficavam acordados pelas indeterminadas noites afora
Tudo começou há muito, muito tempo,                                      diziam que o ibex não regressava nunca à cabana
num tempo em que os homens ainda não tinham memória                      para de novo se transformar em homem.
mas já tinham saudade.                                                   No entanto, no antepenúltimo momento do dia seguinte,
Não caçavam animais nem pescavam peixes,                                 o homem voltava a aparecer no alpendre
alimentavam-se do ar e da luz que envolvia as grandes montanhas azuis.   e o ritual repetia-se.
Trabalhavam ao sabor dos desejos
                                                                         Um dia, porém, o homem não apareceu: no milionésimo sétimo
e desejar era uma forma de arte,
                                                                         antepenúltimo momento dos dias da sua aparição.
uma atitude estética para com a vida e a morte.                          Em vez dele, surgiram um milhão e sete ibexes,
Na montanha mais azul havia uma cabana de madeira.                       todos de um azul diferente.
Os povos da planície entretinham-se em especulações:                     Primeiro ocuparam o alpendre,
vivia ou não vivia nela alguém?                                          depois o quintal à volta, a floresta, o topo
Jamais subiam a montanha,                                                E toda a encosta até ao último milímetro do sopé.
pois estavam convencidos
de que tudo o que estava a mais de uma girafa do solo                    Lentamente, cada ibex dissolveu-se no azul gémeo
já não fazia parte do reino terreno.                                     que havia na montanha: um milhão e sete azuis.
Por isso, todos os pássaros eram mágicos                                 E os azuis rodopiaram e ondularam e ziguezaguearam
e os deuses, que ainda não tinham sido inventados,                       e fundiram-se num único azul
contentavam-se com ser pássaros, nuvens e vento…                         com a forma de um elefante colossal.
                                                                         É esse elefante que ocupa hoje o lugar da montanha.
Os dias tinham então um número variável de momentos,                     É a ele que os povos da planície chamam
consoante a disposição anímica dos planetas.                             — O GRANDE AUSENTE.
Todavia, os investigadores vindouros descobriram                         Desde então, escrevem belos poemas azuis na areia
que no antepenúltimo momento                                             que ciclicamente se apagam e regressam gravados em nácar.
de cada um desses dias volúveis e atemporais                             Desde então, sem saberem ao certo porquê,
se repetia um fenómeno no topo daquela montanha:                         pelo menos uma vez na vida,
um vulto humano sentava-se no alpendre                                   escalam o Grande Ausente, tocam as nuvens, abrem as asas
e voltava os braços abertos na direcção que os sábios                    e regressam a casa mais transparentes do que o vento… Suy, 5/7/1991
diziam ter sido outrora o Poente.

O Sol, que então se mantinha habitualmente invisível,
apesar da limpidez e intensa luminosidade do céu,
surgia de uma fresta do horizonte, descia sobre a montanha,                                                                     Diego Rivera
dissolvia-se lentamente no corpo do humano                                                                                       (1886-1957),
que, com a mesma lentidão, ia assumindo os contornos                                                                        A Vendedora de Flores
de um ibex castanho com reflexos cobreados.                                                                                   (pintor mexicano)
O ibex descia do alpendre
e desaparecia por entre a imensidade de azuis.
«O homem que sabe reconhecer os limites da sua inteligência está mais
                      perto da perfeição.»                              James Sebor, I Am We
          Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)


Suy, Irradiação, 2/10/1982
WALDEN, ÉS TU?

                                       Ora aqui está o Walden, o mesmo lago no meio dos bosques que
                                       descobri há tantos anos (…)


                                       Não se trata de uma ilusão minha
                                       Para ornar o verso de uma linha:
                                       Não posso estar de Deus do céu mais perto
                                       Do que junto ao Walden, este céu aberto.
                                       Eu sou a sua pedregosa praia
                                       E a brisa que por aqui se espraia.
                                       Suas águas e areias estão
                                       Na concha da minha mão.
                                       E seu mais profundo recinto
                                       Alto jaz no que penso e sinto.
                                                                                Steven Kenny, The Perch, 2006

                                       Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques

Beber
                                        «O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele, mas ao
                                       beber vejo-lhe o leito de areia e percebo quão raso é. A fina corrente
                                       logo se esvai, mas a eternidade permanece. Gostaria de beber mais
                                       fundo e de pescar no céu, em cujo leito os seixos são estrelas. Não
                                       consigo contá-las. Ignoro a primeira letra do alfabeto. Tenho lamentado
                                       sempre não ser tão sábio com no dia em que nasci. A inteligência é um
                                       cutelo que penetra e corta caminho adentro o segredo das coisas. Não
                                       desejo ocupar as minhas mãos mais do que o necessário. A minha
                                       cabeça é mãos e pés. Sinto que as minhas melhores faculdades aí se
                                       concentram. O instinto diz-me que a cabeça é um órgão para escavação,
                                       como o focinho e as patas de certos bichos, com a qual gostaria de
                                       explorar e cavar o meu caminho através desses morros. Penso que o
                                       filão mais rico está por aí nas redondezas, e assim avalio por meio da
                                       varinha de condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui começarei
                                       a minerar.»
        Steven Kenny, The Ruff, 2001   Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques
ECO

Nada se perdeu, querido ser,
Nada se perde nunca;
A palavra por dizer
Não está exausta, pode ainda ser ouvida.
Música que mancha;
O silêncio permanece…
Oh, o eco está por toda a parte, pássaro inarmadilhável.

                 Lawrence Durrell (1912-1990), Alexandria
                                   ***&***

   Vamos esquecer que existe um tempo e não vamos contar os dias da
vida!
               Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)




                                                                      Maria Barry, Forever Friends




          Suy, A Coroação do Belo Insignificante, 25/1/1987
OS PÁSSAROS NASCEM NA PONTA DAS ÁRVORES

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
                                                                                                   Steven Kenny, Paper Birds, 2007
                         Ruy Belo (1933-1978)
                                          «Os pássaros, com as suas                                      NATUREZA VIVA
                                          plumagens e cantos, estão
                                                                                Um pintassilgo desce pelas escadas
                                          em harmonia com as flores,
                                                                                da canção, empoleira-se nos seus versos,
                                          mas que rapaz ou rapariga
                                                                                estende o bico para que o canto
                                          se     associa à   beleza
                                                                                não se perca pelo chão. Ainda bem que é
                                          selvagem e luxuriante da
                                                                                para o céu que ele está a olhar: assim,
                                          Natureza? Ela floresce
                                                                                não vê os teus cabelos que se espalham
                                          sobretudo sozinha, bem
                                                                                por entre ervas e ramos, nem os teus
                                          longe das cidades onde
                                                                                braços que se apoiam ao declive da
                                          moram os homens. Falais do
                                                                                encosta. No entanto, a tua respiração
                                          céu, vós que degradais a
                                                                                canta com ele; e só quando o vento
                                          terra!»
                                          Henry David Thoreau (1817-1862),
                                                                                o enxota do ramo é que um silêncio
                                          Walden, ou A Vida nos Bosques         se faz para que, de dentro dele, nasçam o
                                                                                bater de asas do seu voo e o teu riso, ao
                                          Victor Safonkin (pintor surrealista
                                          russo, nascido em 1967)               veres um pássaro saltar de dentro do amor.
                                                                                                 Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
                    Fernando Pessoa (1888-1935)




                                                        Boris Izrailovich Anisfeld, Retrato de uma Guitarra



     Konstantin Alexeievitch Korovin, Paris Boulevard
CÂNTICO NEGRO                  Tendes pátria, tendes tectos,
                                                      E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces   Eu tenho a minha Loucura !
Estendendo-me os braços, e seguros                    Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
De que seria bom que eu os ouvisse                    E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Quando me dizem: "vem por aqui!"                      Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Eu olho-os com olhos lassos,                          Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)              Mas eu, que nunca principio nem acabo,
E cruzo os braços,                                    Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
E nunca vou por ali...                                Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
A minha glória é esta:                                Ninguém me peça definições!
Criar desumanidades!                                  Ninguém me diga: "vem por aqui"!
Não acompanhar ninguém.                               A minha vida é um vendaval que se soltou,
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade                 É uma onda que se alevantou,
Com que rasguei o ventre a minha mãe                  É um átomo a mais que se animou...
Não, não vou por aí! Só vou por onde                  Não sei por onde vou,
Me levam meus próprios passos...                      Não sei para onde vou
Se ao que busco saber nenhum de vós responde          Sei que não vou por aí!
Por que me repetis: "vem por aqui!"?                                          José Régio (1901-1969)
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
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Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
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Toma lá poesia folhetos de promoção do concurso literário 2008-2009 - escola secundária d. pedro v - prof.ª conceição ludovino

  • 1. Se cada dia cai Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência. Pablo Neruda (1904-1973) René Magritte (1898-1967), O Espelho Falso, 1928 O Universo não é uma ideia minha O Universo não é uma ideia minha. A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
  • 2. A Pantera Isto Dizem que finjo ou minto No Jardin des Plantes, Paris Tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto De tanto olhar as grades seu olhar Com a imaginação. esmoreceu e nada mais aferra. Não uso o coração. Como se houvesse só grades na terra: grades, apenas grades para olhar. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, A onda andante e flexível do seu vulto É como que um terraço em círculos concêntricos decresce, Sobre outra coisa ainda. dança de força em torno a um ponto oculto Essa coisa é que é linda. no qual um grande impulso se arrefece. Por isso escrevo em meio De vez em quando o fecho da pupila Do que não está ao pé, abre-se em silêncio. Uma imagem, então, Livre do meu enleio, na tensa paz dos músculos se instila Sério do que não é. para morrer no coração. Sentir? Sinta quem lê! Rainer Maria Rilke (1885-1926) Fernando Pessoa (1888-1935) O mundo estava no rosto da amada O mundo estava no rosto da amada — e logo se converteu em nada, em Cada Qual Tem O Seu Álcool mundo fora do alcance, mundo-além. Por que não o bebi quando o encontrei Cada qual tem o seu álcool. no rosto amado, um mundo à mão, ali, Tenho álcool bastante em existir. aroma em minha boca, eu só o seu rei? Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Mas eu também estava pleno de mundo Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, e, bebendo, eu mesmo transbordei. Como qualquer outro. Sou igual. E por trás de isso, céu meu, Rainer Maria Rilke (1885-1926) Constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito. Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
  • 3. Anelo Só aos sábios o reveles Pois o vulgo zomba logo: Quero louvar o vivente Que aspira à morte no fogo Na noite – em que te geraram, Em que geraste – sentiste, Se calma a luz que alumiava, Um desconforto bem triste. Não sofres ficar nas trevas Onde a sombra se condensa. E te fascina o desejo De comunhão mais intensa. Não te detêm as distâncias, Ó mariposa! E nas tardes, Ávida de luz e chama, Voa para a luz em que ardes. “Morre e transmuta-te”: enquanto Não cumpres esse destino, És sobre a terra sombria Qual sombrio peregrino. Como vem da cana o sumo Que os paladares adoça, Flua assim da minha pena, Flua o amor o quanto possa. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Tradução de Manuel Bandeira
  • 4. Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos À Memória de Fernando Pessoa E aqui estou eu, Se eu pudesse fazer com que viesses ausente diante desta mesa - Todos os dias, como antigamente, e ali fora o Tejo. Falar-me nessa lúcida visão Entrei sem lhe dar um só olhar. — Estranha, sensualíssima, mordente; Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses, Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça, Meu pobre e grande e genial artista, e saudá-lo deste canto da praça: O que tem sido a vida — esta boémia "Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!" Coberta de farrapos e de estrelas Não, não olhei. Tristíssima, pedante, e contrafeita, Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado Desde que estes meus olhos numa névoa me lembrei que estavas aí, Tejo. De lágrimas te viram num caixão; Passei e não te vi. Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses, Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo! Voltávamos à mesma: Tu, lá onde Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em Os astros e as divinas madrugadas que Fernando Pessoa se sentava, Noivam na luz eterna de um sorriso; contigo e os outros invisíveis à sua volta, E eu, por aqui, vadio da descrença inventando vidas que não queria ter. Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . . Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo. Isto por cá vai indo como dantes; O mesmo arremelgado idiotismo Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo, Nuns senhores que tu já conhecias tudo indiferença e falta de resposta. — Autênticos patifes bem falantes. . . Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória, E a mesma intriga; as horas, os minutos, e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados, As noites sempre iguais, os mesmos dias, Tejo que não és da minha infância, Tudo igual! Acordando e adormecendo mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável, Na mesma cor, do mesmo lado, sempre majestade sem par nos monumentos dos homens, O mesmo ar e em tudo a mesma posição imagem muito minha do eterno, De condenados, hirtos, a viver porque és real e tens forma, vida, ímpeto, — Sem estímulo, sem fé, sem convicção... porque tens vida, sobretudo, Poetas, escutai-me: transformemos meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado... A nossa natural angústia de pensar Eu que me esqueci de te olhar! — Num cântico de sonho!, e junto dele, Do camarada raro que lembramos, Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) Fiquemos uns momentos a cantar! António Botto (1897-1959)
  • 5. O homem é aquilo que ele próprio faz. André Malraux Enfeita de ouro as asas de uma ave e nunca mais voará no céu. Tagore O que sabemos é uma gota de água, o que ignoramos é um oceano. Isaac Newton
  • 6. CARTA AOS REITORES Ser Poeta (excerto) Basta de jogo de palavras, Ser poeta é ser mais alto, é ser maior de artifícios de sintaxe, Do que os homens! Morder como quem beija! de malabarismos formais; É ser mendigo e dar como quem seja precisamos encontrar – agora – Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma Lei, uma prisão, É ter de mil desejos o esplendor senão um guia para o espírito perdido E não saber sequer que se deseja! em seu próprio labirinto. M.C. Escher, Hand with Sphere É ter cá dentro um astro que flameja, Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar, É ter garras e asas de condor! Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens, esse labirinto existe, É ter fome, é ter sede de Infinito! núcleo para o qual convergem todas as forças do ser, Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... as últimas nervuras do espírito. é condensar o mundo num só grito! Antonin Artaud (1896-1948) Narciso, Caravaggio E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente! Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Florbela Espanca (1894-1930), Charneca em Flor Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida As Amoras Estes são os imprescindíveis O meu país sabe as amoras bravas Bertold Brecht (1898-1956) no verão. Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país, mas tem esta voz doce de quem acorda cedo para cantar nas silvas. Raramente falei do meu país, talvez Deus, que será de ti quando eu morrer? nem goste dele, mas quando um amigo Eu sou o teu cântaro (e se me romper?) me traz amoras bravas A tua água (e se me corromper?) os seus muros parecem-me brancos, Sou o teu agasalho, o teu afazer. reparo que também no meu país o céu é azul. Vai comigo o significado teu. Vladimir Maiakovski Eugénio de Andrade, (1923-2005) O Outro Nome da Terra (1893-1930) Knight, Edmund Blair Leighton
  • 7. ARMA SECRETA Tenho uma arma secreta ao serviço das nações. Não tem carga nem espoleta mas dispara em linha recta mais longe que os foguetões. Não é Júpiter, nem Thor, nem Snark ou outros que tais. É coisa muito melhor que todo o vasto teor dos Cabos Canaverais. A potência destinada às rotações da turbina não vem da nafta queimada, nem é de água oxigenada nem de ergóis de furalina. Erecta, na noite erguida, em alerta permanente, Suy, 1983 espera o sinal da partida. Podia chamar-se VIDA. Chama-se AMOR, simplesmente. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997) INFÂNCIA Um gosto de amora comida com sol. A vida Suy, 1982 chamava-se “Agora”. Guilherme de Almeida (1890-1969)
  • 8. O PORTUGAL FUTURO AMOSTRA SEM VALOR O Portugal futuro é um país Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém. aonde o puro pássaro é possível Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: e sobre o leito negro do asfalto da estrada com ele se entretém as profundas crianças desenharão a giz e se julga intangível. esse peixe da infância que vem na enxurrada e me parece que se chama sável. Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu, Mas desenhem elas o que desenharem sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito, é essa a forma do meu país que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, e chamem elas o que lhe chamarem não pesa num total que tende para infinito. Portugal será e lá serei feliz. Poderá ser pequeno como este Suy, 1995 Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida ter a oeste o mar e a Espanha a leste ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, tudo nele será novo desde os ramos à raiz. nesta insignificância, gratuita e desvalida, À sombra dos plátanos as crianças dançarão Universo sou eu, com nebulosas e tudo. e na avenida que houver à beira-mar pode o tempo mudar será Verão. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997) Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz mas isso era o passado e podia ser duro edificar sobre ele o Portugal futuro. Ruy Belo (1933-1978) AMADOR SEM COISA AMADA Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão. Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados. Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Suy, 1984 Sou amador da existência, não chego a profissional. Suy, 1993 António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)
  • 9. NA ILHA POR VEZES HABITADA Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste. José Saramago (1922- …) Suy 1982 Suy 1992
  • 10. POÉTICA I LEMBRA-TE De manhã escureço De dia tardo De tarde anoiteço De noite ardo. Lembra-te que todos os momentos A oeste a morte que nos coroaram Contra quem vivo todas as estradas Do sul cativo radiosas que abrimos O este é meu norte. irão achando sem fim seu ansioso lugar Outros que contem seu botão de florir Passo por passo: o horizonte e que dessa procura Eu morro ontem extenuante e precisa Alphonse Mucha, Reverie não teremos sinal Nasço amanhã Ando onde há espaço: senão o de saber - Meu tempo é quando. que irá por onde fomos Vinícius de Moraes (1913-1980) um para o outro vividos. Mário Cesariny (1923-2006) QUADRILHA João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili EPIGRAMA que não amava ninguém. (Veneza, 1790) João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes "Maus, para a esquerda!" mandará um dia o Juiz, que não tinha entrado na história. "E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!" Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) "A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!" Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
  • 11. POEMA EM LINHA RECTA Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida… Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Man Ray Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, (1888-1935)
  • 12. POVO QUE LAVAS NO RIO DESLUMBRANTE (excerto) Povo que lavas no rio, Deslumbrante, Que vais às feiras e à tenda, Um jardim no meio de chamas! Que talhas com teu machado As tábuas do meu caixão, O meu coração conhece todas as formas: Pode haver quem te defenda, Um prado para as gazelas, Quem turve o teu ar sadio, Um mosteiro para os monges, Quem compre o teu chão sagrado, Para dos ídolos chão sagrado, Mas a tua vida, não! Ka'ba para o peregrino circular, (…) Fui ter à mesa redonda, As tábuas da Tora, Bebendo em malga que esconda Os pergaminhos do Corão. O beijo, de mão em mão... Água pura, fruto agreste, Eu creio no amor; Fora o vinho que me deste, Seja onde for que a sua caravana vira no caminho, Mas a tua vida, não! Esta é a minha certeza, (…) Fot. de Dorothea Lange, A minha fé. Aromas de urze e de lama! Migrant Mother Ibn Arabi (1165-1240) Dormi com eles na cama... Tive a mesma condição. Bruxas e lobas, estrelas! ELEGIA Tive o dom de conhecê-las... Mas a tua vida, não! Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros! Pedro Homem de Mello (1904-1984) Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo; ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto. Os bons vi sempre passar A imensa terra, o céu sublime e grande; No mundo graves tormentos; Observai, procurai, coleccionai os factos, E para mais me espantar, Balbuciai o mistério da Natureza. Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi, Cuidando alcançar assim Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses; O bem tão mal ordenado, À prova me puseram, deram-me Pandora, Fui mau, mas fui castigado: De bens tão rica, mais rica ainda de perigos; Assim que só para mim Graffiti Impeliram-me para a boca dadivosa, Anda o mundo concertado. Separaram-me dela, e assim me aniquilam. Luís Vaz de Camões (c. 1524/5-1580) Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
  • 13. «Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo o que existe.» Emily Dickinson Octavio Ocampo, Mariposa a la Flor «Falar é uma necessidade, escutar é uma arte.» Johann Goethe Octavio Ocampo, (1943-…), pintor mexicano, Cara de Pájaros, arte metamórfica
  • 14. Esta é a Minha Carta ao Mundo Carta ao filho Esta é a minha carta ao Mundo Não vivas sobre a terra como um estranho Que nunca Me escreveu — um turista no meio da natureza. As Notícias simples que a Natureza contou — Habita o mundo como a casa do teu pai. Com branda Majestade Crê na semente, na terra, no mar. mas acima de tudo crê nas pessoas. A sua Mensagem está destinada Ama as nuvens, A Mãos que não consigo ver — as máquinas, Pelo Seu amor — Afáveis — camponeses — os livros, Julguem-me brandamente — a Mim mas acima de tudo ama o homem. Emily Dickinson (1830-1886) Sente a tristeza do ramo que murcha, do astro que se extingue, do animal ferido que agoniza, mas acima de tudo sente a tristeza e a dor das pessoas. Alegra-te com todos os bens da terra, com a sombra e a luz, com as quatro estações, mas acima de tudo e a mãos cheias alegra-te com as pessoas. Nazim Hikmet, (1902-1963), c. 1960. John William Waterhouse, Spring Quadro de Nazim Hikmet, William Dyce (1806-1864), Omnia Vanitas pintado em 1946. Nota biográfica: Emily Dickinson (1830-1886), poetisa americana. Escreveu cerca de 1800 poemas mas não publicou nenhum livro em vida, à excepção de alguns poemas anónimos saídos em periódicos. A primeira edição crítica da sua obra apenas foi publicada pela primeira vez em 1955. A partir de 1864, começou a sentir graves problemas de visão e abrandou o seu ritmo criativo. Chamaram-lhe a “Grande Reclusa”, pela personalidade solitária que aparentava ter, mas Nota biográfica: Nazim Hikmet é um poeta e pintor turco nascido em Salónica, a sua poesia evidencia uma profunda sensibilidade e amor por tudo o que Grécia, que em 1902 ainda fazia parte do império otomano. Na Turquia, foi a rodeava: as pessoas, a Natureza, a escrita… perseguido e viveu exilado durante muitos anos. É um renovador da literatura turca ao A quase ausência de pontuação e as maiúsculas que criam seres e metáforas romper com a tradição islâmica. Sob a influência dos futuristas russos, com quem fazem parte do seu estilo. conviveu no exílio, tendo proposto a “despoetização” da poesia.
  • 15. Pontes Nas terras e terras cruzadas por correntes de água, Nos caminhos e caminhos mutilados por correntes de água, À beira da água o homem parou a cismar: Assim nasceram as pontes. O ser humano, cansado de digressões penosas, Sente gratidão pelas pontes. Pontes que ligam terras e terras São o amor entre rios e caminhos; Postos de mudas onde barcos e veículos se cumprimentam, Lugar onde se despedem os que partem e os que ficam. Ai Qing, poeta chinês, (1910-1996) M. C. Escher, Bond of Union, 1956 «Eu quero encantar com a mais pequena coisa, basta uma pequena borboleta M. C. Escher, Hand with Reflecting Sphere, 1935 com pouco mais de 2 cm de diâmetro pousada num pedaço de rocha para me fazer tentar atingir aquilo que desejo à tanto tempo, incluindo a cópia destes pedacinhos de nada de forma tão rigorosa quanto possível apenas para descobrir o quão grandes são.» Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
  • 16. Hőlderlin Fantasia do Anoitecer A Paulo Quintela O íntimo dos deuses e das fontes, Frente à choupana tranquilo na sombra está sentado Divino louco, amado de astros, amplo O lavrador; fumega a lareira ao homem frugal. Amante e mago de eras e horizontes: Hospitaleiro soa ao caminhante na aldeia Para tudo dizer — Hőlderlin, prumo do templo. Pacífica o sino da tarde. Tocou fímbrias de lume nas palavras, Deu sua mão incauta às quedas: Talvez voltem agora também os barqueiros ao porto, Cobrindo de semente etéreas lavras, Em cidades longínquas morre alegre o rumor Teve dedos para o grão na haste das medas. Afanoso da feira; em tranquila ramada Seu destino de sangue o aparelhou Brilha o banquete em convívio aos amigos. Como à nau que se afunda ou desarvora Ébria de sal e vento. Para onde irei eu? Vivem os mortais A Terra lhe foi dura, o Mar o amou: De soldo e trabalho; alternando en fadiga e repouso Por isso a gota de água clara chora Tudo se alegra; porque não dorme então Nos versos que entoou Nunca em meu peito o espinho? E neles demora Um eterno momento. No céu da tarde floresce toda uma Primavera; Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece Amigo que trouxeste à nossa voz O mundo áureo; oh! Levai-me p’ra lá, O seu indecifrado chamamento, Nuvens purpúreas! E que lá em cima Bem hajas de todos nós, Hőlderlin (1770-1843), por Tão pobres sem o novo sentimento. Franz Karl Hiemer, c. 1792 Em luz e ar se dissolvam meu amor e dor! — Pois só no rigor a fogo Mas, como corrido da súplica louca, foge Das palavras exactas e sofridas O encanto; faz-se escuro, e solitário Abre o estame de amor, pólen do Logo, Sob o céu, como sempre, me encontro. — Que é maneira de Deus com nossas vidas. Vem tu agora, sono suave! Demasiado cobiça Vitorino Nemésio, (1901-1978), 9/9/1959 O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces, Sonhadora, inquieta! Serena e pacífica é então a velhice. «Quando jovem, o homem acredita estar tão próximo do seu objectivo! De todas as ilusões criadas pela natureza para socorrer a fragilidade do Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843) nosso ser, esta é a mais bela.» Tradução de Paulo Quintela (1905-1987) Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)
  • 17. LIMITES Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar Há uma rua próxima que está vedada aos meus passos Há um espelho que me viu pela última vez, Há uma porta que fechei até ao fim do mundo Entre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os) Há algum que nunca mais abrirei. Este Verão cumprirei cinquenta anos. Suy, Right Between the A morte desgasta-me, incessante. Eyes, 19/6/1982 De Inscripciones, de Julio Platero Haedo, Montevideu, 1923 Poema e poeta criados por Jorge Luís Borges (1899-1986), pertencente a um conjunto de poemas intitulado Museu, incluídos na obra O Fazedor cuja 1.º edição data de 1960, Buenos Aires. Julio Platero Haedo é uma criação de Borges. SUDDEN LIGHT I have been here before, But when or how I cannot tell: I know the grass beyond the door, The sweet keen smell, The sighing sound, the lights around the shore. You have been mine before,— How long ago I may not know: But just when at that swallow’s soar Your neck turn’d so, Some veil did fall,—I knew it all of yore. Has this been thus before? And shall not thus time’s eddying flight Still with our lives our love restore Dante Gabriel Rossetti, A Sea Spell, 1877 Juan Carlos Liberti (1930-…), Si Soy Asi In death’s despite, And day and night yield one delight once more? Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), pintor e poeta inglês.
  • 18. O MITO DO GRANDE AUSENTE Os que ficavam acordados pelas indeterminadas noites afora Tudo começou há muito, muito tempo, diziam que o ibex não regressava nunca à cabana num tempo em que os homens ainda não tinham memória para de novo se transformar em homem. mas já tinham saudade. No entanto, no antepenúltimo momento do dia seguinte, Não caçavam animais nem pescavam peixes, o homem voltava a aparecer no alpendre alimentavam-se do ar e da luz que envolvia as grandes montanhas azuis. e o ritual repetia-se. Trabalhavam ao sabor dos desejos Um dia, porém, o homem não apareceu: no milionésimo sétimo e desejar era uma forma de arte, antepenúltimo momento dos dias da sua aparição. uma atitude estética para com a vida e a morte. Em vez dele, surgiram um milhão e sete ibexes, Na montanha mais azul havia uma cabana de madeira. todos de um azul diferente. Os povos da planície entretinham-se em especulações: Primeiro ocuparam o alpendre, vivia ou não vivia nela alguém? depois o quintal à volta, a floresta, o topo Jamais subiam a montanha, E toda a encosta até ao último milímetro do sopé. pois estavam convencidos de que tudo o que estava a mais de uma girafa do solo Lentamente, cada ibex dissolveu-se no azul gémeo já não fazia parte do reino terreno. que havia na montanha: um milhão e sete azuis. Por isso, todos os pássaros eram mágicos E os azuis rodopiaram e ondularam e ziguezaguearam e os deuses, que ainda não tinham sido inventados, e fundiram-se num único azul contentavam-se com ser pássaros, nuvens e vento… com a forma de um elefante colossal. É esse elefante que ocupa hoje o lugar da montanha. Os dias tinham então um número variável de momentos, É a ele que os povos da planície chamam consoante a disposição anímica dos planetas. — O GRANDE AUSENTE. Todavia, os investigadores vindouros descobriram Desde então, escrevem belos poemas azuis na areia que no antepenúltimo momento que ciclicamente se apagam e regressam gravados em nácar. de cada um desses dias volúveis e atemporais Desde então, sem saberem ao certo porquê, se repetia um fenómeno no topo daquela montanha: pelo menos uma vez na vida, um vulto humano sentava-se no alpendre escalam o Grande Ausente, tocam as nuvens, abrem as asas e voltava os braços abertos na direcção que os sábios e regressam a casa mais transparentes do que o vento… Suy, 5/7/1991 diziam ter sido outrora o Poente. O Sol, que então se mantinha habitualmente invisível, apesar da limpidez e intensa luminosidade do céu, surgia de uma fresta do horizonte, descia sobre a montanha, Diego Rivera dissolvia-se lentamente no corpo do humano (1886-1957), que, com a mesma lentidão, ia assumindo os contornos A Vendedora de Flores de um ibex castanho com reflexos cobreados. (pintor mexicano) O ibex descia do alpendre e desaparecia por entre a imensidade de azuis.
  • 19. «O homem que sabe reconhecer os limites da sua inteligência está mais perto da perfeição.» James Sebor, I Am We Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Suy, Irradiação, 2/10/1982
  • 20. WALDEN, ÉS TU? Ora aqui está o Walden, o mesmo lago no meio dos bosques que descobri há tantos anos (…) Não se trata de uma ilusão minha Para ornar o verso de uma linha: Não posso estar de Deus do céu mais perto Do que junto ao Walden, este céu aberto. Eu sou a sua pedregosa praia E a brisa que por aqui se espraia. Suas águas e areias estão Na concha da minha mão. E seu mais profundo recinto Alto jaz no que penso e sinto. Steven Kenny, The Perch, 2006 Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques Beber «O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele, mas ao beber vejo-lhe o leito de areia e percebo quão raso é. A fina corrente logo se esvai, mas a eternidade permanece. Gostaria de beber mais fundo e de pescar no céu, em cujo leito os seixos são estrelas. Não consigo contá-las. Ignoro a primeira letra do alfabeto. Tenho lamentado sempre não ser tão sábio com no dia em que nasci. A inteligência é um cutelo que penetra e corta caminho adentro o segredo das coisas. Não desejo ocupar as minhas mãos mais do que o necessário. A minha cabeça é mãos e pés. Sinto que as minhas melhores faculdades aí se concentram. O instinto diz-me que a cabeça é um órgão para escavação, como o focinho e as patas de certos bichos, com a qual gostaria de explorar e cavar o meu caminho através desses morros. Penso que o filão mais rico está por aí nas redondezas, e assim avalio por meio da varinha de condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui começarei a minerar.» Steven Kenny, The Ruff, 2001 Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques
  • 21. ECO Nada se perdeu, querido ser, Nada se perde nunca; A palavra por dizer Não está exausta, pode ainda ser ouvida. Música que mancha; O silêncio permanece… Oh, o eco está por toda a parte, pássaro inarmadilhável. Lawrence Durrell (1912-1990), Alexandria ***&*** Vamos esquecer que existe um tempo e não vamos contar os dias da vida! Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843) Maria Barry, Forever Friends Suy, A Coroação do Belo Insignificante, 25/1/1987
  • 22. OS PÁSSAROS NASCEM NA PONTA DAS ÁRVORES Os pássaros nascem na ponta das árvores As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores Os pássaros começam onde as árvores acabam Os pássaros fazem cantar as árvores Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal Como pássaros poisam as folhas na terra quando o Outono desce veladamente sobre os campos Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores mas deixo essa forma de dizer ao romancista é complicada e não se dá bem na poesia não foi ainda isolada da filosofia Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros Quem é que lá os pendura nos ramos? De quem é a mão a inúmera mão? Eu passo e muda-se-me o coração Steven Kenny, Paper Birds, 2007 Ruy Belo (1933-1978) «Os pássaros, com as suas NATUREZA VIVA plumagens e cantos, estão Um pintassilgo desce pelas escadas em harmonia com as flores, da canção, empoleira-se nos seus versos, mas que rapaz ou rapariga estende o bico para que o canto se associa à beleza não se perca pelo chão. Ainda bem que é selvagem e luxuriante da para o céu que ele está a olhar: assim, Natureza? Ela floresce não vê os teus cabelos que se espalham sobretudo sozinha, bem por entre ervas e ramos, nem os teus longe das cidades onde braços que se apoiam ao declive da moram os homens. Falais do encosta. No entanto, a tua respiração céu, vós que degradais a canta com ele; e só quando o vento terra!» Henry David Thoreau (1817-1862), o enxota do ramo é que um silêncio Walden, ou A Vida nos Bosques se faz para que, de dentro dele, nasçam o bater de asas do seu voo e o teu riso, ao Victor Safonkin (pintor surrealista russo, nascido em 1967) veres um pássaro saltar de dentro do amor. Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês
  • 23. AUTOPSICOGRAFIA O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. Fernando Pessoa (1888-1935) Boris Izrailovich Anisfeld, Retrato de uma Guitarra Konstantin Alexeievitch Korovin, Paris Boulevard
  • 24. CÂNTICO NEGRO Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Eu tenho a minha Loucura ! Estendendo-me os braços, e seguros Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, De que seria bom que eu os ouvisse E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Quando me dizem: "vem por aqui!" Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém! Eu olho-os com olhos lassos, Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) Mas eu, que nunca principio nem acabo, E cruzo os braços, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. E nunca vou por ali... Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, A minha glória é esta: Ninguém me peça definições! Criar desumanidades! Ninguém me diga: "vem por aqui"! Não acompanhar ninguém. A minha vida é um vendaval que se soltou, - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade É uma onda que se alevantou, Com que rasguei o ventre a minha mãe É um átomo a mais que se animou... Não, não vou por aí! Só vou por onde Não sei por onde vou, Me levam meus próprios passos... Não sei para onde vou Se ao que busco saber nenhum de vós responde Sei que não vou por aí! Por que me repetis: "vem por aqui!"? José Régio (1901-1969) Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Michael Parkes, Fearless, 2008