1. Entrevista ELIANA ZARONI
Muito além da paleta
HENRIQUE SANTIAGO E KÁIQUE FERREIRA
A artista defende a liberação de espaços adequados para a prática da pichação no
país e apresenta sua crítica esclarecedora sobre o papel da arte na sociedade
A “
artista plástica Eliana Zaroni Lin-
denberg, 56, tem sua vida dedicada à O grafite é uma
arte. São quase quatro décadas de
carreira e um vasto currículo que manifestação legítima
mostra a versatilidade em sua obra. Ela
foi convidada para expor sua arte no da necessidade de
Museu de Arte Moderna e fez parceria
com artistas renomados, dentre eles Vik
Muniz. A sua realização mais acessível
expressão e deveria
ao povo é a escultura “Solaris”, locali- ser reconhecido como
”
zada na Estação Penha do Metrô, em
São Paulo. Além de obras de alcance
popular, Eliana é doutora em pictogra-
arte
mas e ideogramas. O seu trabalho é
deveras crítico, assim como sua opinião
referente à arte desde os primórdios até
os dias atuais. A plasticista defende a
implantação de áreas cujo espaço seja
reservado para a exposição de diversos
elementos gráficos, dentre eles a pi-
chação. “Humanizar nossos sentidos,
compartilhar poéticas, sensibilidade e
liberdade de expressão”, diz ela sobre
a pichação. Como admiradora da arte,
propõe que todos os manifestos artísti-
cos devão ser inseridos na sociedade.
A arte no metrô é viável, sabendo que a
pressa é predominante no dia a dia do
paulistano? Há tempo para ser aprecia-
da? Há obras que exigem mais e aos
poucos aprimoramos nosso olhar e a
descobrimos. O mesmo acontece se
o olhar é desprendido, já que somos
pegos de repente, como se estivésse-
HENRIQUE SANTIAGO E KAÍQUE FERREIRA
mos vendo pela primeira vez, pois na
arte há vários planos de percepção e
de representação. Não há como prever
assim em um único momento. Por
um instante percebemos e depois nos
apaixonamos.
O quão importante é a união de obras
de arte e metrô, por onde circulam mi-
lhares de paulistanos? É um patrimô-
nio cultural paulistano. Consiste em
transformar aos poucos o olhar dos
cidadãos, para que valorizem a arte e
não as vitrines de um shopping. É um
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2. Entrevista ELIANA ZARONI
modo de a arte estar na vida, de olhar,
de ampliar a experiência da arte na
“A arte de um
distingue
se
cado de determinado assunto e passa
a conferir-lhe uma nova significação,
vida cotidiana.
período histórico de modo que o “encaixe social” da
obra que se cria passa por todo o
O quão relevante é a inserção da arte
para o espaço urbano? A arte modifica ao outro por repertório dos fatos inseridos em seu
contexto, desde o meio ambiente até
o ambiente, agindo em nossa memó- a situação cultural, política e social.
ria e em nossa imaginação. Como suas convenções, Se isso acontece é porque há na arte
comunicação sensível desperta os uma sabedoria, um conhecimento
sentidos afetivos em nosso diálogo por criar que é transpassado, que solicita nossa
com o que nos cerca. A Companhia do sensibilidade, “ ao mesmo tempo que
Metropolitano - Metrô vem realizando um estilo, convida a razão a se integrar ludi-
ao longo desses anos uma das expe- camente ao sentir”, parafraseando a
riências mais ricas e fundamentais de produzir um filósofa Krauss.
apropriação estética para a população
paulistana, relacionando arte e vida determinado As escolas não estimulam a arte em
com as contingências da urbanidade, seus alunos, quando estipulam as cores
com o indivíduo ou com a própria gênero e o formato de alguns desenhos? A arte
”
comunidade. Nesse processo ainda há se distingue de um período histórico
muita dificuldade de se pensar a arte
pública como uma intervenção, que
de concepção ao pôr suas convenções, por criar um
estilo e produzir um determinado gê-
direcionada da maneira certa, pode nero de concepção. Quando se torna
trazer grandes benefícios ao patrimô- uma convenção, no mundo já estão
nio cultural e arquitetônico da cidade. preceitos, no entanto, atrofiam o lado brotando outras formas de expressão,
Observa-se o pouco interesse que há artístico da pessoa. Como você vê es- que transformam estas que já se fo-
em restaurar obras de arte através da ses parâmetros para a composição das ram, convencionadas. Ela se distingue
subvenção, patrocínios ou mesmo obras? É uma construção poética e por ser um ato criativo que acompa-
verbas de parcerias, que sabemos sensível muito particular, assim como nha o ser humano desde os tempos
que são cada vez mais abolidas. As é na literatura e na música. Há os das cavernas. Os neolíticos traçaram o
obras que permanecem preservadas artistas que criam suas obras através conhecimento adquirido nas relações
se tornam signos culturais na imagem das contingências, enquanto outros do homem com o ambiente e em sua
do ambiente urbano que está carente se aproximam do mundo através da forma de estruturar o mundo, como na
dessa ação comunicativa. história e outras vivências poéticas escrita do ideograma, como nas abs-
pelas quais ficam sensibilizados. São trações da geometria, da matemática
O interesse do brasileiro para com a fatores que evidenciam muitas fontes e da arquitetura. Na arte, os artifícios
arte é suficiente o bastante para haver de origem. Depende do caminho que manufaturados inscritos pelos primiti-
grandes exposições? O brasileiro é você escolhe e no processo de elabo- vos nos relevos da pedra, o sentido de
criativo, gosta de participar e viver. A ração, vai adquirindo forma e conte- integração cosmológica e a liberdade
arte é a melhor forma de tirar o indiví- údo, produzindo o sedimento criativo de pensamento poético conquistaram
duo da alienação. para o pensar artístico. um espaço único para o desenvolvi-
mento dos desígnios da experiência da
De onde parte a inspiração para projetar A maior preocupação do artista é expor criação humana. Este sentimento de
a arte? A inspiração é uma ocorrência seus sentimentos em sua obra ou a ultrapassagem do significado da cap-
que se dá a partir da prática, de um reação que causará no espectador? tação do mundo, (que ainda prevalece
trabalho que se aprofunda, e em um Existe uma cadeia de interações, na atitude do artista de hoje) originou
determinado instante, revela o quão que são lidas pelo espectador como as sínteses perceptivas e estruturou o
ampla é a conexão com o mundo que possibilidades de arranjos e de formar conhecimento de sistemas posteriores
nos circunda. Fruto de muita persis- novos contextos em seu discurso in- de representação.
tência e paciência, quando acontece dividual. As obras podem influenciar
é porque o artista está pronto para nossos hábitos de sentir, provocando Tarsila do Amaral, Manabu Mabe e Di
decifrá-la, surgindo assim uma cone- mudanças, já que o espectador não Cavalcanti são alguns dos mais reno-
xão muito íntima e natural. está isolado da obra, como afirma a mados artistas brasileiros mundo afora.
crítica Rosalind Krauss; ao contrário, Por que no Brasil a notoriedade de seus
Quando um artista está criando, ele ele entra em seu discurso através das artistas não é devidamente valorizada?
utiliza-se dos valores culturais adqui- experiências interiorizadas, numa O problema estaria no próprio cidadão
ridos nas experiências vividas. Os espécie de fusão que altera o signifi- ou na falta de incentivo à arte? Ocorre
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3. pela falta de veiculação e pouco espa-
ço na mídia. Mesmo com toda a tec-
“Ada cultura
divulgação
ocorre somente por um ou outro fator.
e sim, por um emaranhado de senti-
nologia os museus continuam cheios,
ou até mesmo em obras públicas na mídia mentos que necessitam ser repassados
e emitidos.
monumentais. Repare quantas pessoas
querem ser fotografas no Ibirapuera, é informativa, No século XXI há inovação e criativi-
sobre o Monumento às Bandeiras, ou dade suficientes para ser criado um
à frente, nessa escultura de Brecheret, fragmentária, novo movimento de arte? A História da
no fim de semana, ou até mesmo apre- Arte demonstra que hoje a arte se faz
ciar dentro do carro, os vários ângulos pouco por fragmentos do mundo urbano, do
da obra. Ela é um marco, referência e avanço tecnológico, diferenciado-se
signo atuante no espaço da cidade. aprofundada do que ocorria no século passado ou
em tempos mais remotos. O cubismo,
Como você vê o valor da arte brasileira como conhecimento por exemplo, foi o primeiro movi-
para os brasileiros e da arte brasilei- mento a incluir materiais do mundo
ra para os estrangeiros? No Brasil, que estimule real, com o pedaço de jornal que
a divulgação da cultura na mídia é Picasso e Braque inseriram na tela
informativa, fragmentária e pouco a reflexão e ao invés de pintá-la; o famoso papier
”
aprofundada como um conhecimento collé; com isso, o mundo real e virtual
que estimule a reflexão e a introspec-
ção. O que prevalece atualmente é o
a instrospecção passaram a interagir. Assim como
Duchamp criou o ReadMade e aboliu
modelo de programações estrangeiras. o fazer artístico tradicional. Os movi-
O que vi sobre o Brasil na divulgação mentos de vanguarda passaram a não
da mídia remanesce da arte popular para o seu registro. As duas formas ser mais em séculos, de cinquenta em
brasileira, a alegoria do carnaval, que de expressão devem ser inseridas cinquenta anos. Agora, elas caminham
hoje é considerada como a maior ma- na programação visual urbana, mas em um curto espaço de tempo. No sé-
nifestação de arte e de festa produzida redirecionadas, assim como foram culo passado ocorriam de dez em dez
no planeta. Sem dúvidas, é o que há realizadas as obras de arte adquiridas anos, depois de cinco em cinco anos,
de mais belo e simbólico na comuni- pelo metrô, em espaços próprios, até que hoje não há mais uma barreira
cação expressiva do país. com intuito de agir na comunicação para a diversidade de linguagens e
urbana. para o estabelecimento de apenas uma
O nacionalismo na arte, pode ser pre- convenção. O importante é o conteú-
judicial para o artista, ao ponto de seu A pichação é uma manifestação artística do da obra. Mesmo assim, a pintura
amor pela pátria ser alvo de críticas? ou o desabafo de vândalos que degra- não resiste mais como um movimen-
Sim, quando ele tem de a ser dogmáti- dam o patrimônio público? A pichação to. No cotidiano, cada vez mais o ócio
co e preso às convenções vigentes. se difere do grafite por ser vandalis- é luxo, a solidão é maior e a parti-
mo, no entanto seriam necessários cipação de atividades de arte é para
O espaço urbano de São Paulo contém espaços públicos para mostrar essa poucos. Vivemos na era programada,
diversos traços culturais de povos com forma de contestação no ambiente e com pouco tempo, para o devaneio
culturas diferentes. Como é produzida urbano. A pichação criou uma nova ou mesmo para se dedicar com afinco
uma obra de arte, na qual, possa atingir forma de tipografia e deveria partici- a algo que não sabemos se será aceito
todos os nichos da sociedade? A arte par de uma forma mais construtiva na ou não pelo mercado.
fala sobre o universal através do parti- imagem da cidade. Quando você pas-
cular, como Kant afirma, assim como sa a estudar a afloração das artes, você Atualmente, a mídia não dá muito
Homero escreveu a Odisséia ou como adquiri verossimilhanças e, no caso enfoque às artes? Sim, o espaço é para
surgiu o primeiro samba. da pichação, há muitas coincidências a moda, para o consumo rápido de
para com os pictogramas das caver- produtos que logo são vendidos e des-
O grafite e o piche, a priori, são produ- nas, só que naquela época não havia a cartados. Não dá para ser permanente.
zidos por culturas semelhantes, no en- “politicagem” que hoje possuímos.
tanto, uma é considerada arte e a outra Será possível a arte tornar-se tão
uma degradação. Como você entende A pichação é uma obra de arte, críticas importante como o futebol é para os
esses movimentos? O grafite é uma à sociedade ou ao governo ou é a aflo- brasileiros? Futebol é uma arte tão im-
manifestação legítima da necessidade ração dos dotes artísticos que a pessoa portante quanto à pintura. São meios
de expressão e deveria ser reconheci- adquire com a sua bagagem cultural? A de integrar a sensibilidade, união do
do como arte, para adquirir espaços tipografia nestes aspectos é bastante espírito no coletivo e na interioridade
permanentes, materiais resistentes similar, mas não há como julgar se do indivíduo.
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