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O Ano da Mortede Ricardo Reis - O título
 O romance pretende resolver uma questão entre Ricardo Reis e José Saramago:
a indiferença em relação ao mundo.
 O desafio colocado a Ricardo Reis é, pois, o de se permitir ver até que ponto se
é «sábio» perante o «espetáculo» de 1936, onde se insere uma Europa triste,
dorida, moribunda, onde a mudança dificilmente se vislumbra.
 O livro representa o regresso a Portugal de Ricardo Reis, na sequência da morte
de Fernando Pessoa, após 16 anos de exílio no Brasil, por ser monárquico.
 O título aponta, e convém desde logo referi-lo, não para a biografia de Ricardo
Reis, não para o ano em que o heterónimo de Fernando Pessoa morreu, mas a
ênfase recai na importância que é dada ao tempo cronológico, ao tempo social,
aos eventos que ocorreram no ano em que morre Ricardo Reis, nos nove meses
que ele vive em território nacional, depois de ter regressado do Brasil.
 O título pode ser dividido em duas partes – a ação central da narrativa
apresenta Ricardo Reis, no último ano de sua vida; o tempo cronológico
referido, ano de 1936.
 Pretende-se que o leitor comece, desde logo, a predispor-se para perceber os
acontecimentos de 1936, os quais dialogam com um Portugal futuro, aquele
que envolve o pós-25 de Abril de 1974 (não esqueçamos que o romance é
publicado em 1984, precisamente passados dez anos sobre a revolução de
Abril).
O CONTEXTO HISTÓRICO
 Surgimento de Salazar desde 1928
 No Brasil “rebentou uma revolução”
 Ascensão de Mussolini ao poder em Itália;
 Guerra na Etiópia;
 Expansão nazi na Alemanha;
 Frente popular francesa;
 Guerra Civil Espanhola.
A ESTRUTURA CIRCULAR DO ROMANCE
O romance é estruturado em 19 capítulos/sequências.
O livro apresenta uma sequência cronológica dos acontecimentos, embora seja
pontuado de algumas analepses e prolepses.
Ao abrir o romance e parodiando Camões «Aqui o mar acaba e a terra principia», José
Saramago inverte o verso da narrativa épica, sugerindo uma epopeia contrária à
retratada em Os Lusíadas, pois, a viagem, ao invés, é de volta e a principal descoberta
não está no mar, mas na terra.
Sublinhar-se-á o contexto atmosférico, a Lisboa chuvosa à qual não é alheia a
simbologia que encerra, a cidade suja, «pálida» e cinzenta, até o «barco escuro» que
«sobe o fluxo soturno» não é português, é inglês, facto que só por si exclui a
possibilidade de matéria épica portuguesa, acentuando assim a distinção entre uma
pátria que se glorificou, no mundo, através do mar, mas que agora estagnou. Do
mesmo modo, o «barco escuro» que «sobe o fluxo soturno» liga-se ao barco da morte,
onde Ricardo Reis terá o seu encontro fatal. Compreende-se que a viagem de regresso
seja feita no barco da morte, pois o leitor descobre-o por meio da intertextualidade
que abre o sentido do discurso. O meio para atingir o esplendor, a glória não serão as
naus, nem os marinheiros de outrora que alcançaram o Império, mas atitude ativa do
ser humano, o seu empenho nas causas sociais.
Saramago convida o leitor a percorrer Portugal, internamente, e o interior da
personagem Ricardo Reis.
Ricardo Reis, em fins de dezembro de 1935, chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil
onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade que deixara há
anos e é justamente aí que começa a nova experiência. Sem planos definidos, sozinho,
vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se
envolver diretamente. A razão da sua vinda prende-se, aparentemente, com o facto de
ter recebido uma carta de Álvaro de Campos a informar que Fernando Pessoa morrera.
Instalado no Hotel Bragança, o protagonista enceta uma viagem, mantém vários
encontros com Fernando Pessoa e no fim da narrativa acaba por acompanhar
definitivamente o seu criador ao Cemitério dos Prazeres.
É, pois, neste intervalo de nove meses que acompanharemos Ricardo Reis, Portugal e o
mundo. A primeira saída de Ricardo Reis leva-o ao Cemitério dos Prazeres para visitar a
sepultura de Fernando Pessoa, falecido em 30 de novembro de 1935.
A partir daqui está criado o enredo do romance. As expressões «Estou aqui» e «Está
aqui» são os pontos de partida para os encontros que se vão sucedendo ao longo da
narrativa. No primeiro dia de 1936, quando a euforia do novo ano se espraia pela
cidade e Ricardo Reis já se recolheu ao seu quarto, no Hotel Bragança, Fernando
Pessoa ou, diríamos, o seu fantasma, visita-o pela primeira vez.
No primeiro de vários encontros com Pessoa, realçamos a importância das emoções
dos intervenientes e os comentários do narrador. Repare-se no contraste entre a
ausência de vida e o próprio quarto de Ricardo Reis que sugere alguma vitalidade,
dado que, ao aproximar-se, «repara que por baixo da sua porta passa uma réstia
luminosa». Afinal há vida e, embora duvide de si próprio, «ter-se-ia esquecido, enfim,
são coisas que podem acontecer a qualquer um», pois é humano, não estranha a
presença do seu criador («e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à
sua espera Fernando Pessoa»). Parece que Ricardo Reis já estaria à espera, existe uma
sintonia e alegria entre ambos («Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão
contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência»). Fernando Pessoa
avisa Ricardo Reis de que só poderão ter mais oito meses para se encontrarem e
explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda
vistos, mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo
esquecidos um pouco «salvo casos excecionais nove meses é quando basta para o
total olvido». O encontro serve para traçar o carácter do protagonista e estabelecer
uma ligação entre o Ricardo Reis pessoano (aquele que se expatriara por ser
monárquico, aquele que volta porque não quer confusões) e o Ricardo Reis
saramaguiano que, debaixo do pretexto do telegrama de Álvaro de Campos, regressa
para encetar uma vida que se prevê diferente da do autor das odes. Por isso, afirma:
«pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode
acontecer que regresse ao Rio», evidenciando uma atitude menos contemplativa do
que aquela a que nos habituamos, quando lemos a poesia de Reis.
A FUNCIONALIDADE DE RICARDO REIS E FERNANDO PESSOA NA
NARRATIVA
Partindo do ambiente de Lisboa do ano de 1936, recriado principalmente pelos jornais
da época, o romance ultrapassa a vertente histórica e surge um narrador que controla
a narrativa, recorrendo a comentários e juízos de valor feitos pela sua própria voz, mas
também por outras, das quais, no momento, nos interessam as de Fernando Pessoa e
Ricardo Reis. O primeiro, existente, surge como fantasma e o segundo, ficção criada
pelo primeiro, tem existência real. De notar que o romance não teria sentido sem o
dado concreto da morte de Fernando Pessoa, a quem a fantasia permitirá revisitar o
seu tempo. Fernando Pessoa surge, assim, no romance na relação com Ricardo Reis,
que se presentifica nos encontros que estabelecem ao longo da narrativa. Saramago,
para que o leitor aceitasse o Ricardo Reis saramaguiano, teve de manter as
características do heterónimo pessoano (a sua profissão, as suas filosofias de vida, as
suas poesias).
Ricardo Reis
Ricardo Reis é, com efeito, o protagonista do romance e a sua identidade não é logo
desvendada. O narrador parece pretender que o leitor se concentre nesta figura, sem
nome, preparando-o para compreender a(s) diferença(s) entre o Ricardo Reis
pessoano e o saramaguiano.
Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles,
pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro
cujo aspeto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir
infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem
viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de
dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito
já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala
grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu-
as do pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo ou colar de ordem.
Cá fora, sob a proteção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi,
não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos vapores.
No início do excerto, o protagonista é apenas «um homem grisalho, o viajante». Esta
última palavra é repetida, desde o início do romance, dez vezes até surgir o nome
Ricardo Reis que só acontece, curiosamente, dez páginas à frente, quando preenche o
formulário no Hotel Bragança. Até esse momento Ricardo Reis é «o viajante», «o
homem», como já se disse, o «passageiro». Atente-se na expressão «passageiro um,
bagageiro outro» para evidenciar a distinção que existe entre estes dois seres.
Novamente a referência ao tempo, permitindo ultrapassar a factualidade (a chuva), e,
simbolicamente, ligar-se a um tempo social e politicamente indesejável. A par desta
situação calamitosa, começa a desenhar-se a personalidade de Ricardo Reis, um
homem observador («O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno
irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara
em uns barcos de guerra discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar
próprio desses navegantes é o mar largo» e ao mesmo tempo traça-se o contexto
sociocultural. Os verbos olhar e reparar adquirem um sentido em nada inócuo. O
primeiro caracteriza o tempo de chuva e o segundo o ambiente estranho
proporcionado pela presença de uns barcos.
Neste momento, o leitor já se habituou a Ricardo Reis e à sua presença corpórea. O
protagonista já tem nome, preencheu a ficha de identificação no Hotel Bragança, e ei-
lo a deambular pela cidade de Lisboa, revisitando-a. Muitos dos pormenores que
observa e que, à primeira vista, parecem insignificantes, adquirem uma simbologia
singular no romance, constituindo-se um sinal do futuro percurso narrativo, facto que
é sabiamente aproveitado pela voz irónica do narrador que, de modo algum, permite
que uma banalidade seja apenas isso mesmo — «Ricardo Reis meteu-se pelo
ajuntamento, afinal menos denso do que parecera de longe, abriu caminho,
entretanto a chuvada cessara, fecharam-se os guarda-chuvas como um bando de aves
pousadas que sacudissem as asas antes do repouso noturno [...]».
O trecho permite compreender a intencionalidade do narrador. As expressões «menos
denso», «A chuva cessara», «fecharam-se os guarda-chuvas» sugerem a possibilidade
de o protagonista encetar o seu caminho. Não é um percurso fácil, mas vão
coexistindo umas «abertas» (não esquecer que a chuva simboliza um Portugal passivo,
dominado pela ditadura) que viabilizam a possibilidade de mudança. Também a
comparação «como um bando de aves pousadas» remete para a imobilidade, mas ao
mesmo tempo para a ação que é necessário empreender para lutar contra o fascismo.
Está preparado o cenário que colocará Ricardo Reis num tempo e espaço definidos.
No caso de Ricardo Reis, o fim dele será acompanhar o falecido Fernando Pessoa, pois
não conseguiu relacionar-se com ninguém como comprovam as malogradas relações
que teve com Lídia e Marcenda.
A possibilidade de comunicação poderá existir num futuro, algo longínquo, cujo filho
de Lídia poderá ser o sinal.
Num diálogo constante com outras obras, com símbolos, o discurso mantém-se em
todo o livro num constante desafio ao leitor.
A figura de Ricardo Reis apresenta-se na cidade de Lisboa, não tanto por ter sabido da
morte do seu criador, mas para iniciar uma viagem pelo labirinto que é Lisboa. É
interessante notar que Fernando Pessoa é um fantasma na obra, perde com a morte o
seu corpo de homem e Ricardo Reis, ao contrário, adquire uma existência física e civil
(inclusivamente é chamado a apresentar-se à PVDE, mantém uma dupla paixão, por
Lídia e Marcenda e chega a exercer a profissão de médico). Compreende-se, assim, ser
grande a distância existente entre o Ricardo Reis de Pessoa, para quem «sábio é o que
se contenta com o espetáculo do mundo» e o Ricardo Reis de Saramago que vive os
acontecimentos, arrastado pela ação dos mesmos.
O Ricardo Reis de Pessoa é, como se sabe, um poeta clássico, contemplativo, o autor
das Odes, do verso sáfico e Saramago não se abstém de uma certa ironia ao dizer:
A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e
calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas,
redondilha maior, ele Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal, saiu-
-nos poeta popular, por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por
necessidade da métrica... (Saramago: 45)
Partindo deste questionamento, a personagem, embora individual, ganha contornos
de coletiva, vai alargar a sua inquietação ao confrontar-se com uma envolvência social
política e ideológica. A figura de Ricardo Reis ganha sentido quando colocada em
confronto com o seu criador e, com efeito, os vários encontros realçam os problemas
relacionados com o Homem, em particular a existência e a comunicação humana.
Fernando Pessoa
No dia 10 de Junho, dia de Camões e de Portugal, Fernando Pessoa surge sozinho, e no
seu deambular vai visitar «outro morto» (Camões). O texto pretende assinalar este
momento autónomo, «Tivesse Ricardo Reis saído essa noite e encontraria Fernando
Pessoa na Praça de Luís de Camões» (Saramago: 343).
Fernando Pessoa é, pois, o poeta morto que contracena com Ricardo Reis e o seu
principal interlocutor. É alguém que vem do mundo dos mortos e esse estatuto
permite discussões acerca da vida e do mundo. No entanto, esta sabedoria, fruto da
experiência adquirida enquanto ser existente, desvanece-se no post mortem,
constituindo-se apenas como teoria, pois não consegue alterar o passado, nem ter
uma atitude ativa no presente no sentido de mudar o futuro. Fernando Pessoa é,
agora, apenas um fantasma.
Fernando Pessoa é, no fundo, o responsável pelo romance. É a sua morte em
novembro de 1935 que faz regressar, aparentemente, Ricardo Reis do Brasil e permite
ao narrador criar um enredo com um Pessoa diferente do poeta, conhecido por todos,
a quem é permitido revisitar o seu tempo e que se coloca diante de um Ricardo Reis,
diferente do autor das odes. Assim a sua presença é mais do que o ponto de partida
para a colocação do protagonista na trama romanesca.
Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou
Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa
esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos
quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de
equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em
nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo
um pouco, salvo casos excecionais nove meses é quanto basta para o total olvido.
Nestes meses, acontecem vários encontros, cujos diálogos são seguidos pelo narrador
e exigemdo leitor uma atenção redobrada no sentido em que tem de reconhecer nos
poetas a dimensão dada pela história e acrescentar a reconstrução feita pelo narrador
e, ainda, aperceber-se dos discursos irónicos veiculados por este último.
Eis o movimento que a leitura do romance nos propõe: Ricardo Reis lutará para
permanecer entre os vivos, procurará formas de identificação até que reconhece que,
como uma parte de Pessoa, também está morto e, somente como obra, poderá
manter-se vivo.
REPRESENTAÇÕES DO SÉCULO XX
Representações do século XX — o espaço da cidade
No ano de 1936, José Saramago tinha 13 anos e das recordações que tem da Lisboa
dessa época, uma Lisboa cinzenta, triste, chuvosa, constrói O ano da morte de Ricardo
Reis. Lembra-se da tristeza e da solidão da cidade, daí dizer que O ano da morte de
Ricardo Reis «É um livro sobre a solidão triste, sobre uma cidade triste, sobre um
tempo triste».
Como já foi dito, é esta cidade labirinto que Ricardo Reis encontra e nela vai
permanecer nove meses. Mal desembarca, Lisboa apresenta-se-lhe sem graça, a chuva
remete para o estado de espírito da personagem que, tal como a cidade, se encontra
taciturno e, sob o olhar expedito do narrador, o leitor apercebe-se que Lisboa
simboliza um Portugal decadente, não só presente, mas também futuro, daí o estado
climatérico não sofrer alterações ao longo do romance e, ao mesmo tempo, toma
consciência da alienação do mundo, em que os homens estão afastados uns dos outros
e é preciso denunciar esta ausência de compromisso e levá-los à ação.
Repare-se que o narrador não se abstém de, irónica e metaforicamente, levar o tempo
atmosférico («maldito inverno este») para o texto histórico-político, pois se há razões
de queixa, estas não pertencem só aos portugueses. Também no estrangeiro, atente-
-e na ironia conseguida no recurso ao plural dos países mencionados e ainda grafados
com letra minúscula («nas franças e inglaterras»). Os tempos não são de ânimo, pois
os acontecimentos políticos prenunciam a II Guerra Mundial.
São muitos os espaços físicos, pormenorizadamente concretizados em ruas, estátuas,
jardins. Do ponto de vista mais global, a cidade surge como o microcosmos de
Portugal.
A cidade de Lisboa, enquanto espaço privilegiado, porque sede da política portuguesa,
está também representada no excerto ao denunciar a forma arbitrária como os líderes
da nação agem perante as multidões, incutindo-lhes o servilismo através da hipocrisia.
Trata-se do episódio que retrata a chegada de luz a Montemor-o-Velho e surge como
manifestação de apoio ao governo salazarista.
O bodo do Século, por ter lugar em frente à redação do jornal O Século, denuncia a
forma como o governo se impõe, hipocritamente, como um defensor do povo. Todo
este «ajuntamento» espelha o propósito político de propaganda ideológica que se
serve da miséria do povo para atingir os seus fins, como também já se viu nos textos
anteriores. A ânsia do povo é demonstrativa do sofrimento do mesmo. Repare-se na
descrição pormenorizada dos acontecimentos (a longa espera), no visualismo
descritivo, o vestuário, a fome, as doenças (a lembrar Fernão Lopes). A juntar a tudo
isto, refira-se a atitude parcial do narrador, à qual não é alheia a ironia ao colocar-se
ao lado dos oprimidos, «terra riquíssima em pobres, queira Deus que nunca se extinga
a caridade para que não venha a acabar-se a pobreza» Poderíamos ainda apresentar
outros passos do romance, mas parece-nos apropriado, pelo menos, acrescentar outro
que responde ao texto apresentado anteriormente.
Representações do século XX — o tempo histórico e os
acontecimentos políticos
Ricardo Reis, que procura encontrar-se histórica e politicamente na sua nação, sendo,
portanto, Lisboa o palco do percurso iniciado por Ricardo Reis, depois de ter
regressado do Brasil. Nesta procura pela sua identidade, reconhece que a cidade,
sinédoque de Portugal, é um labirinto sem saída. Enquanto leitor dos jornais, este
apenas conhece aquilo que se quer transmitir, não faz qualquer esforço para se
certificar da verdade. Esta atitude opõe-se à de Saramago para quem as notícias «são
versões dos acontecimentos, mais ou menos autoritárias, mais ou menos respaldadas
pelo consenso social ou pelo consenso ideológico ou até por um poder ditatorial»
Para o narrador, as notícias passam pelo filtro da censura, ocultando a verdadeira
situação pela qual passa o mundo e, sobretudo, Portugal.
Os acontecimentos políticos e históricos ultrapassamfronteiras. Através dos jornais, da
telefonia, dos diálogos das personagens que chegam a Portugal e da própria voz do
narrador, o leitor situa-se perante o que está a acontecer no mundo, mais
precisamente no ano de 1936 e neste país, mas também se vislumbra um Portugal
contemporâneo da década de 84, altura da escrita do romance, que dá conta de uma
nação atrasada e em nada cosmopolita. São vários os momentos que permitem traçar
o perfil de uma Europa ditatorial.
As notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro, Portugal é visto
como o país que vive um período de paz e prosperidade, o que não corresponde ao
que verdadeiramente se passa em Portugal, daí que, no fim da narrativa, a terra,
Portugal, continua à espera de algo. O romance tematiza o ano de 1936, a ditadura de
Salazar e o sufocamento do levante dos marinheiros que pretendia devolver a
democracia ao país. Portanto, a terra espera a liberdade, «Aqui, onde o mar se acaba e
a terra espera»
Apresentamos o contexto político e social que envolve a cena mundial com principal
destaque para a Alemanha, Itália e Espanha, cujas nações estão na base da II Guerra
Mundial.
A Europa — Espanha e Franco
Em Espanha, o ano de 1936 é, sobretudo, de guerra. A esquerda vencia e a república e
os seus ideais democráticos impunham-se, mas o Golpe de Estado de 18 de julho
coloca em destaque Franco. Esta agitação política é recebida no romance através dos
jornais e dos novos inquilinos do Hotel Bragança que, fugindo à vitória da esquerda, se
refugiam na capital portuguesa e esperam a mudança, que surgirá com o golpe fascista
liderado por Franco.
Ricardo Reis deve ter sido o último habitante de Lisboa a saber que se dera um golpe
militar em Espanha.
Ricardo Reis, leitor de jornal, comporta-se como um alienado, como alguém perdido
no labirinto, incapaz de enxergar uma saída. Não percebe que a sua capacidade de se
contentar com ser um mero espectador do espetáculo do mundo é justamente o que
lhe limita a visão. Só Ricardo Reis não vê (ou não quer ver) que por trás das notícias se
encontra o regime autoritário que controla as mentes dos leitores. A atitude de
Ricardo Reis contrasta com a posição assumida por Daniel, irmão de Lídia, sendo esta a
porta-voz do revolucionário marinheiro. As palavras de Lídia são sábias, a criada tem
consciência dos seus limites, mas o narrador coloca-se ao seu lado e evidencia o
contraste entre os interlocutores.
O leitor não é esquecido e desempenha um papel importante na narrativa. Exige-se-
lhe uma visão crítica que é proporcionada pelo narrador que conhece o passado, o
presente e o futuro e é assimque a sua voz atravessa as páginas do romance ao criticar
a atitude distanciada de Ricardo Reis face aos factos relatados.
A Europa — França e Léon Blum
Em 1936, França é marcada por crises políticas de vária ordem e no romance é dada
ênfase a Léon Blum e ao movimento do Front Populaire. As notícias chegam a Portugal,
como já se espera, depois de passarem pela censura, mas também, como se sabe,
existe o narrador para levar o leitor a verificar o absurdo de certos textos, cujas
informações, diz o narrador, «são palavras do periódico» (Saramago: 290), como
aquele em que e, partindo da referência à situação francesa, se elogia a aliança com
Hitler, se perde o significado das comemorações do Primeiro de Maio e ainda se
lamenta a Espanha Republicana e a França da Frente Popular.
A Europa — Itália e Mussolini
No romance, o fascismo italiano ocupa algumas páginas da obra que recupera a
vontade de Itália não querer ficar atrás da Alemanha face ao prestígio europeu e vê na
Etiópia a possibilidade de se impor imperialmente na África Oriental. É, pois o drama
etíope, a glória italiana, a atitude de não intervenção dos outros países que colocam
uma vez mais Ricardo Reis numa posição de «espectador» como atesta o seguinte
excerto «Ricardo Reis foi buscar à mesa de cabeceira The god of the labyrinth»
(Saramago: 293). Não consegue ir além da primeira página, embora esteja sempre a
recomeçar a leitura, indiciando assim a dificuldade em encontrar a saída do labirinto.
Relativamente a Itália e a Mussolini atente-se no seguinte excerto:
E terminou a guerra da Etiópia. «Disse-o Mussolini da varanda do palácio, Anuncio ao
povo italiano e ao mundo que acabou a guerra», e a esta voz poderosa as multidões de
Roma, de Milão, de Nápoles, da Itália inteira, milhões de bocas, todos gritaram o nome
de Duce. (Saramago: 292)
Por último e não menos importante o discurso irónico do narrador que, conhecendo o
futuro o pode profetizar. Tranquilizemo-nos, pois. Guerra, se a houver, guerra será por
ser esse o nome, mas não hedionda, como hedionda não foi a guerra contra os
abexins. (Saramago: 292)
É ainda nesta referência ao fascismo em Itália e às atrocidades referidas que
encontramos Ricardo Reis que, ao aperceber-se do seu envolvimento emotivo, prefere
o refúgio no jogo de xadrez, recusando qualquer compromisso.
A Europa — Alemanha e Hitler
Na Alemanha, assim como se viu em Itália com Mussolini, preparava Hitler o terreno
para a ditadura mais negra na história da humanidade. A Alemanha surge no romance
mais bem representada do que Itália, Espanha ou França, na medida em que muitos
dos modelos alemães foram seguidos por Portugal. É a imagem da perfeição que é
reproduzida, mas, também, já nos habituámos ao narrador comentador que
ironicamente afirma «Claro que na Alemanha o povo é outro» (Saramago: 252).
Esta postura crítica surge recorrentemente ao longo da narrativa e, no caso da
Alemanha e de Hitler, ela ganha força, na medida em que Portugal, como já se disse,
segue o modelo alemão. Assim os símbolos de Hitler, da Juventude Hitleriana, da cruz
gamada assumem significados precisos enquanto representativos da ordem e da
repressão que grassam em Portugal.
No excerto seguinte, mais um dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, é
possível aproximar os dois modelos. Verifica-se que o endeusamento de Hitler não
está longe do de Salazar.
Quando Hitler fala é como se a abóbada de um templo se fechasse sobre a cabeça do
povo alemão [...] se a juventude amar Hitler, que é o seu Deus, se se esforçar por
fielmente o servir, cumprirá o preceito que recebeu do Padre Eterno, Magnífica lógica,
para a juventude Hitler é um deus, servindo-o fielmente cumpre um preceito do Padre
Eterno, portanto temos aqui um deus a agir como intermediário doutro deus para os
seus próprios fins, o Filho como árbitro e juiz da autoridade do Pai, afinal o nacional- -
socialismo é uma religiosíssima empresa, Olhe que nós, por cá também não vamos
nada mal entre o divino e o humano.
A Europa — Portugal e Salazar
Através dos jornais, o leitor constrói um perfil de Portugal do ano de 1936, sendo que
o narrador, com os seus comentários irónicos, aproveita-se intencionalmente das
leituras de Ricardo Reis para denunciar, através de suas intervenções, aquilo que o
governo procura mascarar. Já Ricardo Reis é somente o recetor das informações que o
jornal lhe oferece e, muitas vezes, lê-as ingenuamente, como se fossem fontes
seguras. O discurso dos jornais funciona, pois, como reconstituição do ambiente de
Lisboa dessa época, como um instrumento da ação do regime ditatorial, permitindo
uma avaliação crítica do sistema político — o Estado Novo — e da figura que o domina.
Salazar surge caracterizado como uma figura «encoberta e misteriosa». No entanto, é
glorificada pela imprensa nacional e estrangeira, pelos patriotas portugueses apoiantes
do regime e pelos reacionários fugidos de Espanha que o definem como o «o maior
educador do nosso século»
O texto representativo da vitória salazarista afasta-se da posição do narrador,
isentando-o de se colocar ao lado desta propaganda política que ele critica, como tão
bem se evidencia no recurso ao sujeito nulo indeterminado e ao sujeito simples,
respetivamente, «Diz-se, dizem-no os jornais». Mais, nas suas palavras há a denúncia
de um jornal que é a voz do regime «escrevem os jornais, em estilo de tetralogia» e o
seu estatuto de narrador demiúrgico permite-lhe ir mais além afirmando «Virão a cair,
portanto, e a palavra derrocada lá está a mostrar como e com que apocalíptico
estrondo, essas hoje presunçosas nações que arrotam de poderosas, grande é o
engano em que vivem, pois não tardará muito o dia».
Os acontecimentos em torno do protagonista não o mobilizaram, não permitiram que
ele visse a dinâmica das lutas sociais, das guerras sob o ponto de vista das pessoas que
estavam envolvidas. O juízo crítico está ausente do Ricardo Reis de Saramago. Este é
uma personagem construída nos limites da alienação: serve-se apenas da reprodução
de um discurso falso, unilateral, que, no entanto, considera verdadeiro. Assim sendo,
Saramago procura demonstrar que a leitura, quando desprovida de experiência e de
envolvimento com o mundo não é capaz de desalienar o sujeito. Ricardo Reis, perante
o que lê, é incapaz de encontrar a saída que procura e, ao colocar-se diante dos
jornais, sente sono e tédio. Falta-lhe a coragem para se inquietar, para se tornar
alguém que tem um compromisso, uma missão no mundo. A sua alienação não
permite que encontre a saída do labirinto e, por isso, permanece um mero espectador
do mundo, pois opor-se aos acontecimentos era um caminho que requeria
posicionamento e ação.
A Igreja alia-se ao Estado para ajudar o governo a controlar ideologicamente os mais
pobres, servindo o Salazarismo.
A ditadura de Portugal recorre a instrumentos policiais, políticos e ideológicos como a
censura, a propaganda nos jornais (O Bovril), a perseguição (o cheiro a cebola) a
tortura, a prisão e a institucionalização da Mocidade Portuguesa. São, pois, os valores
pseudomoralizantes Deus, Pátria e Família que sustentam o regime que se constrói a
par de outros, como o de Hitler na Alemanha, o de Mussolini em Itália, o de Franco em
Espanha, como já vimos. Não podemos deixar de tecer algumas considerações
relativamente à Mocidade Portuguesa. Esta é, hipocritamente, anunciada como
estandarte do altruísmo da juventude, cujas atitudes eram conduzidas por um poder
forte, não se apercebendo os seus seguidores da pressão ideológica do sistema.
O narrador, continuamente interventivo e omnisciente apresenta-se como a voz do
autor para quem a preocupação com a Pátria, com o mundo são alicerces das suas
produções literárias como o próprio afirma.
DEAMBULAÇÃO GEOGRÁFICA E VIAGEM LITERÁRIA
Lisboa é o espaço que ocupa todo o romance.
O percurso geográfico pela capital é feito pela Rua do Alecrim, a Rua dos Douradores,
o Bairro alto, o Rossio, a Rua do Século, do Ouro, de Santa Justa, Largo de Camões,
Largo de São Roque, apenas para dar alguns exemplos.
Excetua-se Fátima, cidade dos milagres, que surge no romance no capítulo XIV, quando
Ricardo Reis viaja até esse lugar para encontrar Marcenda.
De um ponto de vista mais restrito, coexistem, no romance, dois espaços
fundamentais: o Hotel Bragança, na Rua do Alecrim e, mais tarde, a casa que Ricardo
Reis arrenda na Rua de Santa Catarina. Esta passagem de residência também não é
acidental, como veremos mais à frente. Do local onde se hospeda ao local onde passa
a residir, Ricardo Reis vai confrontar-se com situações inesperadas, perigos, resoluções
que tem de tomar para conseguir sair do labirinto.
As experiências que foram vividas por Ricardo Reis, enquanto hóspede do Hotel
Bragança, como o facto de ter sido questionado pela PVDE, o medo que sentiu, a
suspeição que causou e ainda causa nos hóspedes e nos empregados do Hotel
Bragança levam-no a tomar a decisão de se mudar. No entanto, esta atitude
determinada e que marca a projeção de um novo Ricardo Reis não se mantém na
narrativa, apesar de exercer a profissão de médico durante algum tempo.
O largo de Camões funciona como epicentro do romance. Daqui parte Ricardo Reis e
até Saramago se considerarmos o início e o fim da narrativa.
Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões,
era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar
[...] o tempo foi se passando nestas caminhadas e descobertas, parece este homem que
não tem mais o que fazer, dorme, come passeia, faz um verso por outro, com grande
esforço, penando sobre o pé e a medida, nada que se possa comparar ao contínuo
duelo do mosqueteiro D’Artagnan, só os Lusíadas comportampara cima de oito mil
versos, e no entanto este também é poeta, não que do título se gabe [...] mas um dia
não será como médico que pensarão nele [...] não virá daí a fama, sim de ter alguma
vez escrito.
Ricardo Reis ao percorrer a cidade marca o seu ponto de orientação na estátua de
Camões, daí a sua omnipresença ao longo do romance.
Com efeito, os locais geográficos que atuam a nível real como, a título exemplificativo,
o Largo de Camões (estátua de Camões), a Rua de Santa Catarina (para onde Ricardo
Reis vai viver), local também dos mexericos das vizinhas, e o Alto de Santa Catarina
(estátua do Adamastor), onde dois velhos, também eles de mexericos, esperam que RR
esqueça o jornal no banco para que eles o possam ler, a rua do Alecrim (Hotel
Bragança), a rua António Maria Cardoso (PVDE) são espaços que permitem a
intertextualidade e assumem na obra um nível simbólico verdadeiramente rico no
universo ficcional. Nestes encontramos o ambiente social e intelectual no qual os
protagonistas se movem, caracterizando uma época no que esta apresenta de caricato
na sua forma de pensar, sentir e agir. À viagemgeográfica liga-se a viagem literária e O
ano da morte de Ricardo Reis estrutura-se a partir de duas dimensões intertextuais: o
universo da obra pessoana, por um lado e, por outro, outras obras cuja
referencialidade históricotemporal obriga o leitor a estar atento às mudanças nos
discursos conhecidos, ou a reconhecer a transformação de sentido que constrói o novo
discurso, muito em parte pela voz irónica e subversiva do narrador. As incursões pelos
textos literários são constantes e voltando a Camões e à sua estátua que se ergue bem
no centro da cidade e, como já se disse, funciona como ponto de orientação de
Ricardo Reis. Esta assume uma simbologia própria para os portugueses como o
protagonista afirma a Marcenda «Impossível imaginar Portugal sem o nosso Camões e
sem Lusíadas» (Saramago: 179). Ainda no âmbito desta única epopeia portuguesa,
surge a estátua de Adamastor, situada no Alto de Santa Catarina,11 espaço
11 É também um espaço para se explorar pelo seu ambiente de mesquinhez e
coscuvilhice que acentua a caracterização do povo português. No andar arrendado por
Ricardo Reis, vivem as senhoras, ávidas por saber quem é o arrendatário, qual a
profissão, quem recebe, etc. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do
Adamastor, aquele novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de
interesse para matar as horas de ócio e de conversa. No entanto, há algo que conforta
o novo inquilino que se traduz no facto de aquele segundo andar ter uma vista
deslumbrante para o Tejo. 50
emblemático, não só pela figura do Adamastor, o monstro inventado por Camões que
é o símbolo dos obstáculos que os portugueses tiveram que enfrentrar, mas ao mesmo
tempo representa a vontade e a coragem de um povo que os superou. No entanto, os
caminhos e os perigos agora são outros, não se fazem por mar, nem por naus. Para os
ultrapassar, ou seja, para enfrentar os perigos, a ditadura do Estado Novo, é necessária
uma atitude de empenho social, que encontra paralelo em Ricardo Reis que, vindo do
Brasil, também tem de enfrentar adversidades, agora, em terra firme. Contudo, não
encontra solução para os problemas, porque não quer posicionar-se, porque
permanece distante do espetáculo do mundo. Ricardo Reis não soube tornar-se um
descobridor moderno e, por isso «o mar se acabou e a terra espera». (Saramago: 407)
A conduta de Ricardo Reis é emblemática da sua inércia e, por extensão, da dos
portugueses. Ao acompanharmos o protagonista pelos espaços geográficos de Lisboa,
seguimos também a voz do narrador que, em conjunto, problematizam questões
ideológicas fulcrais no romance e dignas de reflexão. O percurso que enceta pelas ruas
de Lisboa, no sentido da sua existência como homem, como médico e como poeta é
nem mais nem menos do que a procura por identificações, vestígios que o remetam à
vida e ao contacto com as pessoas. Contudo, Ricardo Reis, a cada momento, vai-se
afastando mais da vida por falta de identificação, pela impossibilidade de se situar na
cidade labiríntica e de se relacionar com pessoas comquem convive.
O duplo sentimento que nutre, por exemplo, por Marcenda e por Lídia sublinha a
atitude de Ricardo Reis que não consegue perpertuar um compromisso. A sua
dificuldade de posicionamente perante o mundo acentua-se na relação amorosa que
vive com estas figuras femininas.
REPRESENTAÇÕES DO AMOR
Neste capítulo dedicado ao universo feminino e à relação que Ricardo Reis estabelece
ora com Lídia, ora com Marcenda, seria oportuno ler e refletir sobre as palavras ditas
por Maria Alzira Seixo em O essencial sobre José Saramago.
... nada do que diz respeito às personagens centrais corresponde à realidade, e assim
se propõe, como ficção supra-real — o regresso comum de Fernando Pessoa da vida
além-túmulo; a existência efetiva do heterónimo Ricardo Reis; a existência
«deslocada» da sua musa Lídia, mais propriamente localizada na ideal Marcenda (cujo
nome contrução gerundiva, que o próprio narrador aproxima de Blimunda do
Memorial do convento tem a marca de continuidade inerente ao ritmo destes
romances — alémda relação com o radical latino que o faz significar «a que está a
enfraquecer», «a que vai murchar», em contraste explícito com as rosas «que nas
Odes, e no Ano, sempre indicam Lídia». O texto do romance surge-no, assim, como um
entrecruzado hábil do real e do imaginário, de textos literários pessoanos com o texto
de Saramago (que integra, como sempre, grande capital do tesouro popular...). (Seixo:
48)
9.1 Lídia/Marcenda
Neste sentido e após a leitura do texto transcrito, seria possível partir para a oposição
existente entre as duas personagens. Na sua estadia por Lisboa, Ricardo Reis apresenta
uma atitude de alienação face ao mundo que o rodeia em geral (basta lembrar, por
exemplo, a sua incapacidade para ler as entrelinhas do discurso oficial que domina os
jornais) e particularmente em relação às mulheres. No caso, no que diz respeito a Lídia
e a Marcenda, não assume quaisquer das relações. Relativamente a Lídia assusta-o a
realidade (o facto de ser pai) e a Marcenda, embora se esforce para ter uma atitude
compromissiva (é a mulher a quem ele pede em casamento), a verdade é que a mesma
se torna irreal, dado que não aceita o pedido, pois, com efeito, não resultaria, uma vez
que ambos têm um problema que é o não parecer pertencer ao mundo real.
No texto a seguir transcrito, um dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, o
primeiro repreende o segundo, justificando a inabilidade deste face ao universo
feminino.
O que eu não esperava era que você fosse tão persistente amante, para o volúvel
homem que poetou a três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixado carnalmente em
uma, é obra, diga-me cá, nunca lhe apareceram as outras duas, Não, nem é caso para
estranhar, são nomes que não se usamhoje, E aquela rapariga simpática, fina, a do 52
braço paralítico, você chegou a dizer-me como ela se chamava, Marcenda, É um
gerúndio bonito, tem-na visto, Encontrei-a da última vez que esteve em Lisboa, o mês
passado, Você gosta dela, Não sei, E da Lídia, gosta, é diferente, Mas gosta, ou não
gosta, Até agora o corpo não se me negou, E isso que é que prova, Nada, pelo menos
de amores, mas deixe de fazer perguntas sobre a minha intimidade, diga-me antes por
que é que não tornou a aparecer. (Saramago: 174)
Lídia (outra que não a musa das Odes de Ricardo Reis) e Marcenda são as personagens
femininas centrais na obra porquanto se relacionam diretamente com o protagonista.
Como é próprio de Saramago, o universo feminino das suas obras destaca-se por se
tratar de heroínas ativas, fortes e decididas. Lídia é a primeira mulher que Ricardo Reis
conhece (com Marcenda, apenas houve contacto visual) depois de se instalar no Hotel
Bragança, onde ela é empregada e, mesmo ciente das diferenças sociais que não
permitem ter uma vida em comum, vive intensamente a paixão relacionando-se com
ela sexualmente.
Marcenda, a filha de uma importante figura social de Coimbra, apresenta a mão
esquerda sem mobilidade. Hospeda-se no Hotel Bragança. Ricardo Reis mantém com
ela uma relação diferente da que tem com Lídia. É uma relação quase idealizada
(apenas trocaram dois beijos), pois Marcenda é aquela que deve murchar. De facto,
não é fácil para Ricardo Reis relacionar-se com as duas figuras femininas, como
comprova o texto seguinte:
O amor é difícil, meu caro Fernando, Não se pode queixar, ainda aí tem a Lídia, A Lídia
é uma criada, E a Ofélia era datilógrafa, Em vez de falarmos de mulheres, estamos a
falar das profissões delas, E ainda há aquela com quem você se encontrou no jardim,
como é que ela se chamava, Marcenda, Isso, Marcenda não é nada, Uma condenação
assimtão definitiva, soa-me a despeito, Diz-me a minha fraca experiência que despeito
é o sentimento geral dos homens para com as mulheres, Meu caro Ricardo, nós
devíamos ter convivido mais. (Saramago: 324-325)
9.1.1 Marcenda — o sonho sonhado
A construção desta personagem, como a de muitas outras, deve-se ao facto de o
escritor considerar que as personagens são representações de figuras reais e daí dizer
o seguinte «Penso que as minhas personagens saemtodas da minha cabeça, neste
sentido: não é que elas já cá estivessemantes, mas, no momento de as escrever, as
personagens de que eu necessito apresentam-se-me, sem que eu tenha um
caderninho de notas (os meus cadernos de notas não têm essas notas...) emfunção de
qualquer coisa que tivesse visto. Há uma excepção, mas que nem sequer é uma
personagem: a rapariga de O ano da morte de Ricardo Reis que tem o braço esquerdo
paralisado nasceu num restaurante, mas não nasceu como personagem: de facto, eu
não sei nada da vida dessa rapariga, só sei que estava sentado num restaurante e que
havia um grupo de jovens, rapazes e raparigas, uns quatro ou seis, e havia uma
rapariga que estava a comer e eu estranhava que ela estivesse a comer só com o garfo
na mão direita. Até que, num certo momento, vi-a agarrar no braço e pô-lo sobre a
mesa e isso impressionou-me muito. A mutilação, o defeito físico, tudo isso são coisas
que impressionam muito, como injustiças. E quando precisei de inventar a Marcenda,
que tem um nome que não existe, apresentou-se-me aquilo. Mas quando olhei para a
rapariga não disse «isto dava uma personagem». Então insisto nisto: as minhas
personagens nascemem cada momento, são impelidas pela necessidade e não são
cópias, não são versões». (Reis, 1998: 131-132)
Passaríamos para a análise do seguinte excerto:
Tem vinte e três anos Marcenda, não sabemos ao certo que estudos fez, mas, sendo
filha de notário, ainda por cima de Coimbra, semdúvida concluiu o curso liceal e só por
ter tão dramaticamente adoecido terá abandonado uma faculdade qualquer, direito
ou letras, letras de preferência, que direito não é tão próprio para mulheres, o árido
estudo dos códigos, além de já termos um advogado na família, ainda se fosse um
rapaz para continuar a dinastia e o cartório, mas a questão não é esta, a questão é a
confessada surpresa de vermos como uma rapariga deste país e tempo foi capaz de
manter tão seguida e elevada conversa, dizemos elevada por comparação com os
padrões correntes, não foi estúpida nem uma só vez, não se mostrou pretensiosa, não
esteve a presumir de sábia nem a competir com o macho, com perdão da grosseira
palavra, falou com naturalidade de pessoa, e é inteligente, talvez por compensação do
seu defeito, o que tanto pode suceder a mulher como a homem. Agora levantou-se,
segura a mão esquerda à altura do peito e sorri, Agradeço-lhe muito a paciência que
teve comigo, Não me agradeça, para mim foi um grande prazer esta conversa, Janta no
hotel, Janto, Então logo nos veremos, Até logo. (Saramago: 129)
É, pois, nesta personagem enigmática que surge no Hotel Bragança, vinda de Coimbra
com seu pai e que mensalmente aí se hospeda que intriga Ricardo Reis. As visitas
períodicas a Lisboa, a sua mão paralisada, o tratamento a que se submete para uma
cura que se prevê impossível, despertam a curiosidade de Ricardo Reis. 54 Marcenda é
uma jovem de 23 anos, de classe socialsuperior, filha de um prestigiado notário de
Coimbra, (que encontra em Lisboa a fuga para os seus devaneios amorosos), culta,
paciente e inteligente. Percebe a falsidade do pai, admite acompanhá-lo a Fátima,
embora não acredite no milagre da cura para a sua mão, como não acredita nas
sucessivas idas a Lisboa. De qualquer forma, é uma mulher moderna, não se coíbe de
se encontrar, às escondidas do pai, com Ricardo Reis e, inclusivamente, tomar a
iniciativa de o procurar, mas falha por não ter capacidade para contrariar o progenitor
e o status quo da sociedade Embora se chame Marcenda, é ela quem se aproxima das
musas de Ricardo Reis, comparando-se a Lídia, Cloe ou Neera.
Marcenda adquire uma dimensão simbólica na obra que vai muito alémdo seu nome,
da sua vertente psicológica, social ou moral. É, sobretudo, a sua mão esquerda, ou
melhor, a paralesia da sua mão que envolve o texto de sentidos ao qual não é
indiferente o autor do romance. Lembremo-nos que a inutilização da mão esquerda
parece constituir uma marca de Saramago, presente também em Memorial do
convento, Baltasar Sete-Sóis, o soldado maneta. Marcenda nunca chegará à atitude
empreendedora e destemida de Lídia, pois, tal como Ricardo Reis, não sabe posicionar-
se. Marcenda, a que tem de «murchar».12 No fundo, a inércia de Ricardo Reis é uma
vez mais posta em causa, pois não só falha como homem, mas também como médico.
Resta-lhe apenas a sua condição de poeta.
12 A este propósito seria interessante revisitar a Ode: Saudoso já deste verão que vejo,
/ Lágrimas para as flores dele emprego / Na lembrança invertida / De quando hei de
perdê-las. / Transpostos os portais irreparáveis / De cada ano, me antecipo a sombra /
Em que hei de errar, sem flores, / No abismo rumoroso. / E colho a rosa porque a sorte
manda. // Marcenda, guarda-a; murche-se comigo / Antes que com a curva / Diurna
da ampla terra. (Reis, 1991: 65)
9.1.2 Lídia — o real existente
Começaríamos pela leitura do seguinte excerto:
Lídia tem quê, os seus trinta anos, é uma mulher feita e bem feita, morena portuguesa,
mais para o baixo que para o alto, se há importância em mencionar os sinais
particulares ou as características físicas duma simples criada que até agora não fez
mais que limpar o chão, servir o pequeno-almoço e, uma vez, rir-se de ver um homem
às costas doutro, enquanto este hóspede sorria, tão simpático, mas tem o ar triste,
não deve de ser pessoa feliz, ainda que haja momentos em que o seu rosto se torna
claro, é como este quarto sombrio, quando lá fora as nuvens deixam passar o sol entra
aqui dentro uma espécie de luar diurno, luz que não é a do dia, luz sombra de luz, e
como a cabeça de Lídia estava em posição favorável Ricardo Reis notou o sinal que ela
tinha perto da asa do nariz, Fica-lhe bem, pensou, depois não soube se ainda estava a
55 referir-se ao sinal, ou ao avental branco, ou ao adorno engomado da cabeça, ou ao
debrum bordado que lhe cingia o pescoço, Sim, já pode levar a bandeja. (Saramago:
83)
Lídia parece ter saltado das Odes de Ricardo Reis, passando de um contexto irreal, para
a vida palpável e verdadeira. A empregada de hotel, de aproximadamente trinta anos,
é uma mulher do povo, que se afasta da poesia e enfrenta o quotidiano. Ao contrário
das Lídia, das Cloe ou das Neera, a Lídia do Hotel Bragança não acredita no amor
platónico, não é passiva, nem contemplativa ou silenciosa (ver excerto em que
Fernando Pessoa troça de Ricardo Reis quando falam de Lídia, página 63). É curiosa,
gosta de discutir assuntos da atualidade, conhece-os.
A Lídia, que também tão pouco é, fala Ricardo Reis dos sucessos do país vizinho, ela
conta-lhe que os espanhóis do hotel celebraram o acontecimento com uma grande
festa, nem a trágica morte do general os desanimou, agora não se passa uma noite
que não haja garrafas de champanhe francês abertas. (Saramago: 243)
Ela é o elo que transporta Ricardo Reis ao mundo real, surge como o fio que liga o
protagonista a Lisboa, procurando apaziguar o seu percurso no «labirinto».
Lídia não se encaixa nos limites do etéreo e, embora Ricardo Reis tente trazê-la da
realidade para a poesia, não o conseguirá, pois ela à terra pertence, à vida e, por isso,
esta figura feminina sente-se feliz, dentro dos seus limites, não sonha, contenta-se
com o que a vida lhe vai dando. Não exige nada da vida, nem de Ricardo Reis. Aceita o
destino, não tem medo de enfrentar o mundo, mas não deixa de ser um ser mais
equilibrado e mais humano que Ricardo Reis ou Marcenda. Claro que tem a seu favor a
voz do narrador, que se coloca do lado do povo, dos oprimidos.
O povo é isto que eu sou, uma criada de servir que tem um irmão revolucionário e se
deita com um senhor doutor contrário às revoluções, Quem é que te ensinou a dizer
essas coisas, Quando abro a boca para falar, as palavras já estão formadas, é só deixá-
las sair, Emgeral, pensamos antes de falar, ou vamos pensando enquanto falamos,
toda a gente é assim, Se calhar, eu não penso, será como gerar um filho, ele cresce
sem darmos por isso, quando chega a sua hora nasce, Tens-te sentido bem, Se não
fosse a falta das regras, nem acreditaria que estou grávida, Continuas com essa tua
ideia de deixar vir a criança, O menino, Sim, o menino, Continuo, e não vou mudar,
Pensa bem, Eu, se calhar, não penso, dizendo isto Lídia deu uma risada contente.
(Saramago: 367) 56 Atente-se, por exemplo, nos excertos cuja personagem feminina se
destaca pela sua determinação. No primeiro, Lídia informa Ricardo Reis de que está
grávida.
Não foi nada, e ela sorri, mas a expressão do olhar tem outro sentido, vê-se bem que
não está a pensar no abalo de terra, ficamassima olhar, tão distantes um do outro,
tão separados nos seus pensamentos, como logo se vai ver quando ela disser, de
repente, Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias. (Saramago: 345-346)
No segundo, diz-lhe que não precisa de assumir a paternidade do filho de ambos se
não quer.
Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem
que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se
não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu.
(Saramago: 348)
Podemos concluir com base nestes e noutros excertos que Lídia é também um ser de
muita coragem para os tempos que se viviam. Contudo, e enquanto mulher corajosa,
ativa não deixa de dar conta das diferenças sociais e admite algumsofrimento, tem
consciência de que o seu amor seria diferente se pertencesse a uma classe social mais
elevada, mas, mesmo assim, não desiste da vida, afasta-se da musa dos poemas13 e
opta pela realidade, daí que não siga Ricardo Reis para o cemitério, dado que, como já
se disse (e tão ao gosto de Saramago) à terra pertence. Segue, então, contrariamente a
Ricardo Reis, pelo caminho mais difícil, mais amargo, pois a terra, essa simespera por
pessoas que lutem para que as gerações vindouras tenham um futuro melhor. É Lídia a
personagem que melhor encarna a luta, a não desistência, ao contrário de Ricardo
Reis. Fernando Pessoa já nada pode fazer, pois está efetivamente morto e, por isso,
Saramago coloca a esperança em Lídia, pondo-se do lado dela, deixando perceber que
o futuro de Portugal exige pessoas como ela. Sozinha, enfrenta as agruras da vida e a
sua gravidez simboliza justamente a crença num mundo melhor. Nem Fernando
Pessoa, nem Ricardo Reis, nem Marcenda, nem os empregados de hotel, nem Victor
têm a força, a vitalidade que esta personagem feminina demonstra ao longo do
romance. Só ela, pela sua condição, pela sua capacidade interventiva, pelos seus traços
de carácter
13 A este propósito seria interessante revisitar a Ode: Não queiras, Lídia, edificar no
‘spaço / que figuras futuro, ou prometer-te / Amanhã. Cumpre-te hoje não ‘sperando /
Tu mesma és tua vida. / Não te destines, que não és futura. / Quem sabe se, entre a
taça que esvazias, / E ela de novo enchida, não te a sorte / Interpõe o abismo? (Reis,
1991: 64) 57 tem capacidade para agir e transformar a sociedade. É Lídia que pisa o
tédio da sua solidão, mas que enfrenta a vida, não colocando de lado a esperança.
Também é quem contraria a imobilidade de Marcenda ou a inércia de Ricardo Reis.
Reconhecêmo-la no grupo de marinheiros que se revolta no Tejo, embora acabe
vencido. Com efeito, a terra acabou, a esperança desvaneceu-se, mas ficou o sinal, o
filho de Lídia.
Vejamos mais alguns exemplos desta força interventiva e nada alienada de Lídia.
A fragilidade não faz parte do universo de Lídia, não tem medo, não fica assustada
perante abalos de terra:
Vamos morrer, disse Lídia, mas não se agarrou ao homem que estava deitado a seu
lado, como devia ser natural, as frágeis mulheres, em geral, são assim, os homens é
que, aterrorizados, dizem, Não é nada, sossega, já passou, dizem-no sobretudo a si
próprios, também o disse Ricardo Reis, trémulo do susto, e tinha razão, que o abalo
veio e passou, como por estas mesmas palavras foi dito antes. As vizinhas ainda gritam
na escada, aos poucos vão-se acalmando, mas o debate prolonga-se, uma delas desce
à rua, a outra instala-se à janela, ambas entram no coro geral. Depois, pouco a pouco,
a tranquilidade regressa, agora Lídia volta-se para Ricardo Reis e ele para ela, o braço
de um sobre o corpo do outro, ele torna a dizer, Não foi nada, e ela sorri, mas a
expressão do olhar tem outro sentido, vê-se bem que não está a pensar no abalo de
terra. (Saramago: 345)
Quando diz a Ricardo Reis que está grávida, é ela novamente a figura que aparenta
mais calma e objetividade, embora Ricardo Reis seja médico. O contraste entre estas
duas personagens é visível e uma vez mais Lídia reflete a sabedoria que resulta da
vivência, da experiência da vida e da intuição feminina.14
14 Seria igualmente curioso fazer uma aproximação do olhar de Lídia àquele que existe
em Blimunda. Duas figuras femininas cujo olhar é especial, «nenhum sinal de gravidez
à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão dizendo, fixos,
profundos, resguardados na distância uma espécie de horizonte, se o há em olhos». (ll.
6-8)
Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias. [...] Que foi que disseste, Tenho
um atraso, acho que estou grávida, dos dois o mais calmo é outra vez ela, há uma
semana que anda a pensar nisto, todos os dias, todas as horas, talvez ainda há pouco,
quando disse, Vamos morrer, agora poderemos duvidar se estaria Ricardo Reis neste
plural. Ele espera que ela faça uma pergunta, por exemplo, Que hei de fazer, mas ela
continua calada, quieta, apagando o ventre com a ligeira flexão dos joelhos, nenhum
sinal de gravidez à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão 58
dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância uma espécie de horizonte, se o há
em olhos. Ricardo Reis procura as palavras convenientes, mas o que encontra dentro
de si é um alheamento, uma indiferença, assimcomo se, embora ciente de que é sua
obrigação contribuir para a solução do problema, não se sentisse implicado na origem
dele, tanto a próxima como a remota. (Saramago: 345)
Ou, ainda, quando diz a Ricardo Reis que não voltará a vê-lo, subsiste a sua
determinação, embora com algumas hesitações, daí as diferentas emendas que vai
fazendo ao discurso. No entanto, Lídia que chora, não porque teme pela sua própria
vida, mas pela do irmão, daí a necessidade de desabafar. Mais uma vez se vislumbra o
contraste entre as duas personagens.
Ela diz, Desculpe, senhor doutor, não tenho podido vir, mas quase sem transição
emendou, Não foi por isso, pensei que já não lhe fazia falta, tornou a emendar, Sentia-
-me cansada desta vida, e tendo dito ficou à espera, pela primeira vez olhou de frente
para Ricardo Reis, achou-o com um ar envelhecido, estará doente, Tens-me feito falta,
disse ele, e calou-se, dissera tudo o que havia para dizer. Lídia deu dois passos para a
porta, irá ao quarto fazer a cama, irá à cozinha lavar a louça, irá ao tanque pôr a roupa
em sabão, mas não foi para isto que veio, ainda que tudo isto venha a fazer, mais
tarde. Ricardo Reis percebe que há outras razões, pergunta, Por que é que não te
sentas, e depois, Conta-me o que se passa, então Lídia começa a chorar baixinho, É por
causa do menino, pergunta ele, e ela acena que não, lança-lhe mesmo, em meio das
lágrimas, um olhar repreensivo, finalmente desabafa, É por causa do meu irmão.
Ricardo Reis lembra-se de que o Afonso de Albuquerque regressou de Alicante, porto
que ainda está em poder do governo espanhol, soma dois e dois e acha que são
quatro, O teu irmão desertou, ficou em Espanha, O meu irmão veio com o barco,
Então, Vai ser uma desgraça, uma desgraça, Ó criatura, não sei de que estás a falar,
explica-te por claro, É que, interrompeu-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que os
barcos vão revoltar-se, sair para o mar, Quem to disse, Foi o Daniel em grande
segredo, mas eu não consigo guardar este peso para mim, tinha de desabafar com
uma pessoa de confiança, pensei no senhor doutor, em quem mais havia de pensar,
não tenho ninguém, a minha mãe não pode nem sonhar. Ricardo Reis espanta-se por
não reconhecer em si nenhum sentimento, talvez isto é que seja o destino, sabermos o
que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e ficarmos quietos,
olhando, como puros observadores do espetáculo do mundo. (Saramago: 260) 59
10. INTERTEXTUALIDADE: O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS EM DIÁLOGO COM
OUTROS TEXTOS
São várias e diversas as referências literárias ao longo do romance, nomeadamente a
nível da prosa e da poesia. Salientam-se escritores como Camões, Fernando Pessoa,
Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Gonçalves Dias, Camilo Pessanha, Eça de Queirós
entre outros. Incidiremos sobre os intertextos previstos no programa, mas
acrescentaremos outros que nos parecem significativos. A questão da
intertextualidade é, pois, fundamental no romance moderno e segundo Ana Margarida
Ramos trata-se «de um elemento bastante importante do texto literário. É
comummente aceite a ideia que qualquer texto literário mantém com outros textos
(literários e não literários), de forma mais ou menos explícita, relações de proximidade,
de diálogo ou até de oposição e de crítica» (Ramos, 1999: 33). Este fenómeno de
intertextualidade possibilita a presença no romance em estudo de várias vozes, no
caso, de um narrador que se apresenta com diversas funções e serve-se do texto, ou
dos intertextos, se quisermos, para mostrar as múltiplas funcionalidades que o
romance encerra. Pela composição em que se entrelaçam discursos prévios e novos
enunciados, os sentidos dessa nova trama textual são dinamizados, multiplicados,
adquirem sentidos novos e apontam para direções diversas daquelas dos discursos
originais.
10.1 José Saramago, leitor de Luís de Camões
Como já se viu, o romance inicia-se e termina com a recuperação dos versos de Os
Lusíadas, designadamente na utilização do Canto III, e já abordada no capítulo cinco
consagrado à circularidade da obra (pág. 22), os quais possuem grande
representatividade no romance. São, ainda, diversos os trechos que dialogam direta ou
indiretamente com o romance O ano da morte de Ricardo Reis. Deste modo, a fala do
Velho do Restelo surge no seguimento da caracterização de Fernando Pessoa, já que
possui «um saber feito da experiência» (Saramago: 94) ou ainda, num dos encontros
entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis que, ao conversarem sobre a solidão, surge a
linha seguinte: «Como disse o outro, solitário andar entre a gente» (Saramago: 220).
No seguimento de Os Lusíadas apresenta-se a frase «morreu de bexigas uma rapariga
de dezasseis anos, pastoril florinha, campestre, lírio tão cedo cortado 60 cruelmente»
(Saramago: 29) a lembrar a morte precoce de Inês de Castro. Camões é o poeta que é
constantemente revisitado no romance, não só a nível da epopeia, mas também das
Rimas. O soneto «Amor é fogo que arde sem se ver» surge no romance, na página 220,
num dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, após este último se ter
mudado para o Alto de Santa Catarina («Como disse o outro, solitário andar por entre
a gente»).
A estátua de Camões, marco geográfico e simbólico no romance, como já foi dito,
remete ainda para a petrificação do tempo e da história e conjuga-se com outras
imobilizações, mais reais, como é o caso de Marcenda.
É agora a vez de tomarmos como igualmente importante a figura do Adamastor que
Camões criou no Canto V de Os Lusíadas e cuja estátua surge no Alto de Santa
Catarina, olhando o Tejo.
Esta representa o heroísmo dos portugueses, estes homens que se aventuraram, no
século XVI, por «mares nunca de antes navegados», pois o monstro é o principal
símbolo dos obstáculos que os portugueses corajosamente enfrentaram. Mas o tempo
é outro, o mar já se «acabou», o também o Adamastor é outro, a sua atitude é mais
silenciosa, apática como comprovam os excertos seguintes:
Voltou à parte da frente da casa, ao quarto, olhou pela janela suja a rua deserta, o céu
agora coberto, lá estava, lívido contra a cor plúmbea das nuvens, o Adamastor
bramindo em silêncio; (Saramago: 212)
sobre as costas de Adamastor cai uma já esmorecida luz, rebrilha o dorso hercúleo,
será da água que vem do céu; (Saramago: 215);
e
Vê-o [Adamastor] daí, Vejo, pobre criatura. (Saramago: 221)
É necessário dar início à mudança, é necessário que os contempladores do «espetáculo
do mundo» comecem a agir.
A estátua surge também para dar conta de outro plano, o do amor, o amor impossível,
tal e qual aquele que outrora o Adamastor sentira por Tétis. Não seria abusivo fazer
aqui uma aproximação aos amores de Ricardo Reis e Lídia. Se Ricardo Reis não
rejeitasse, ou melhor, lutasse pelo amor, se permanecesse ao lado de Lídia, este
poderia ter tido uma atitude mais ativa e teria, 61 decididamente, ultrapassado a sua
incapacidade de participação na vida e não teria voltado ao mundo das Odes
[...] serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam
na alma, e para profecias menos que óbvias, anunciar naufrágios a quem anda no mar,
para isso são precisos dons divinatórios particulares. Profetizar desgraças sempre foi
sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e outro teria sido o
discurso dele. (Saramago: 221)
10.2 José Saramago, leitor de Cesário Verde
Os percursos que Ricardo Reis, enquanto observador acidental, vai fazendo por Lisboa
permitem que o leitor se aproxime da poesia de Cesário Verde, nomeadamente do
poema «O sentimento dum ocidental», em que a deambulação pela cidade permite
caracterizá-la como feia, suja, solitária, triste, a cidade que oprime e aprisiona e que
acentua a nostalgia por um mundo que já não volta. Os ecos de Cesário Verde
prolongam-se através da perceção sensorial da realidade, da problemática da questão
social que coloca em confronto uma Lisboa desigual, onde, de um lado há os ricos e de
outro os pobres, os oprimidos e humilhados (cf. os pontos 12.1, 12.2, 12.4 e 12.5 do
capítulo «Outros episódios de referência», página 92).
10.3 José Saramago, leitor de Fernando Pessoa
Sem dúvida que Fernando Pessoa é o poeta mais destacado, pois nele vivem
«inúmeros». Assimsendo e além dos versos do ortónimo, dos quais destacamos a
referência a «O menino de sua mãe» quando, o narrador num discurso prospetivo se
refere ao filho de Lídia e Ricardo Reis que nascerá em março do ano seguinte, tempo
em que a Mocidade Portuguesa já existirá e quando o rapaz tiver 24 anos participar
igualmente na guerra colonial e diz então o narrador «em que abandonados plainos...
de balas trespassado» (Saramago: 382). Mas a Mensagem está também presente no
romance em versos reconstituídos dos quais é exemplo o poema «O Infante», ao
parodiar o verso «Falta cumprir-se Portugal» que O ano da morte de Ricardo Reis
revisita «você tem que reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a
própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem
sequer precisávamos receber o Salazar de presente, somos nós o próprio 62 Cristo,
Você não devia ter morrrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que
Portugal vai cumprir-se». (Saramago: 273)
De igual modo os versos «Tudo vale a pena / se a alma não é pequena» do poema
«Mar Português» reduzem-se substancialmente ao serem comparados aos interesses
políticos da época conforme se verifica no seguinte excerto: «Mesmo que não vamos a
tempo, sempre valeu a pena, seja a alma grande ou pequena, como mais ou menos
disse o outro» (Saramago: 342).
10.4 José Saramago, leitor de Ricardo Reis
Contudo, é em relação a Ricardo Reis que os intertextos se expandem, facto
indiscutível pela importância que assume na obra enquanto protagonista e figura dual
no sentido em que ocorre um Ricardo Reis pessoano e um Ricardo Reis saramaguiano
O narrador não deixa de manter no protagonista as características criadas por
Fernando Pessoa, para que o leitor o identifique como tal, mas, ao mesmo tempo, ao
«ressuscitá-lo» para o mundo real pretende que este adote uma existência diferente e,
em vez de permanecer passivo perante a vida, se revele um ser comprometido com as
questões do quotidiano, daí que todo o universo poético do heterónimo Ricardo Reis
seja revisitado pela voz crítica do narrador «nem sabe Ricardo Reis o que perde por ser
adepto de religiões mortas» (Saramago: 315) ou ainda «mas os deuses de Ricardo Reis
são outros, silenciosas entidades que nos olham indiferentes» (Saramago: 66). Conclui-
se, portanto, que o Ricardo Reis saramaguiano tem de enfrentar as questões do dia a
dia que dizem respeito à humanidade.
Noutro trecho, quando Ricardo Reis fica a saber que a criada do hotel se chama Lídia,
junta Saramago vários versos do poeta:
Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos
apanhados no passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia,
a quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem
sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte. (Saramago:
46)
Ricardo Reis, o poeta das Odes, vive o amor espiritual, platónico, e o nome Lídia, a sua
musa, surge a marcar a intenção do poeta, a de colocar Ricardo Reis num mundo
material, perante uma Lídia marcada pelo vigor físico, psicológico e dotada de uma
visão objetiva do mundo que a rodeia. 63 De igual modo, a paisagemtípica da poesia
horaciana onde Lídia e o poeta se sentam à beira do rio, lugar tranquilo e bucólico,
junto a uma natureza idealizada é confrontada, no texto de Saramago, com a paisagem
real da cidade de Lisboa, e de um rio que em grande parte da ação é descrito como
enlameado e turbulento. Ricardo Reis, no entanto, preso à imagem idealizada de suas
Odes, em conversa com Marcenda define-se como «Um homem sossegado, alguém
que se sentou na margem do rio a ver passar o que o rio leva, talvez à espera de se ver
passar a si próprio na corrente» (Saramago: 291).
Os versos de Ricardo Reis não são só referidos, constituem também o próprio discurso
narrativo, como se verifica em «Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do
mundo, sábio se isso for sabedoria (Saramago: 86)15. Há momentos em que o
protagonista se sente afastar do poeta Ricardo Reis «sinto que quem sou e quem fui
são sonhos diferentes» (Saramago: 256). Na sua relação amorosa, é também visível o
afastamento. O ser contemplativo, que não assume compromissos, transforma-se para
se envolver com a amada.
15 Ode: Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo (Reis, 1991: 90)
16 Ode (Reis, 1991: 144)
A referência à Ode de Ricardo Reis «Vivemem nós inúmeros»16 é privilegiada ao logo
do romance muito em parte por estar relacionada com a explosão heteronímica e por
Ricardo Reis viver vários conflitos na sua passagempor Lisboa, a cidade labirinto.
«Vivem em nós inúmeros» (Saramago: 23); «porque é inúmeros» (Saramago: 27); «um
dos inúmeros» (Saramago: 27); «Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente,
[...] porque é inúmeros» (Saramago: 21-22); RR ao contemplar-se no espelho «um dos
inúmeros que é» (Saramago: 23)
10.5 José Saramago, leitor de Alberto Caeiro
O poema «O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia» de Alberto Caeiro
surge a iniciar a narrativa aquando da descrição do navio Highland Brigade que passa
por vários cais e «agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia».
(Saramago: 11) e é revisitado quando RR, num dos seus percursos por Lisboa, se
encontra junto ao cais e à distância contempla os contratorpedeiros, «aqueles que têm
nomes de rios, Ricardo Reis não se recorda de todos eles, ouviu pronunciá-los ao
bagageiro como uma 64 ladainha, havia o Tejo, que no Tejo está, e o Vouga, e o Dão
que é este mais perto, disse o homem, aqui está pois o Tejo, aqui estão os rios que
correm pela minha aldeia» (Saramago: 111) e ainda o mesmo poema ocorre, quando
Ricardo Reis refere que «este Tejo que não corre pela minha aldeia, o Tejo que corre
pela minha aldeia chama-se Douro, por isso, por não ter o mesmo nome, é que o Tejo
não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia». (Saramago: 111).
10.6 José Saramago, leitor de Álvaro de Campos
Álvaro de Campos, presente no romance através do cansaço, fruto da angústia
existencial, tal e qual a sensação que Ricardo Reis demonstra quando chega a Lisboa.
Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes
pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande,
um sono de alma, um desepero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja
para pronunciar a palavra e entendê-la. (Saramago: 18)
O poema «Tabacaria» ecoa quando Ricardo Reis, embora indiretamente, diz «nada
sabemos, e se soubéssemos, que saberíamos» (Saramago: 92) e de «Adiamento»
quando, ao refletir sobre a própria inércia, refere «porque o mais certo é estarmos
cansados» (Saramago: 68) e ainda quando diz «nunca recebi uma carta que só de amor
fosse, e também nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou minha
metade» (Saramago: 26) a lembrar em jeito o poema «Todas as cartas de amor são
ridículas», o qual é citado pelo narrador que, ao referir-se a Ricardo Reis, comenta «há
homens com muita sorte, e este ainda queixoso só porque não recebeu de Marcenda
uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas»
(Saramago: 261).
10.7 Outros intertextos significativos
E não são somente os poemas que se cruzam, mas também a prosa. Deixamos uma
nota a outros textos que nos parecem importantes no universo da narrativa. 65
10.7.1 José Saramago, leitor de Jorge Luis Borges
É interessante debruçarmo-nos sobre o livro que Ricardo Reis trouxera por
esquecimento do Highland Brigade, uma vez que, simbolicamente, está ligado à
problemática da «máscara» tão grata a Fernando Pessoa e da indagação interior
constante acerca da identidade. No caso de Ricardo Reis a questão é a seguinte: Quem
sou eu, nesta Lisboa, agora revisitada?
Neste sentido, ganha forma significativa o livro The god of the labyrinth, livro fictício
escrito pelo também fictício Herbert Quain, ambos invenções de Jorge Luis Borges. A
esta ficção de ficção não é alheia a ironia de Saramago, pois também Ricardo Reis
adquire um estatuto de realidade dado pelo seu criador.
A metáfora do labirinto evocada pelo título do romance apresenta múltiplas
significações, primeiro, porque o próprio livro e o autor não passamde ficções,
segundo, porque Ricardo Reis procura a sua identidade e daí a semelhança encontrada
no nome «quain» que soa a «quem», terceiro, porque o livro acompanha Ricardo Reis
durante nove meses e ao fim destes leva-o consigo para o Cemitério dos Prazeres,
quando decide acompanhar o seu criador. Ricardo Reis não soube ler o livro e já não o
poderá ler mais, dado que «a leitura é a primeira virtude que se perde» (Saramago:
406). Mesmo não o podendo ler depois de morto, leva-o consigo, pois como o próprio
afirma deixa «o mundo aliviado de um enigma» (Saramago: 407).
10.7.2 José Saramago, leitor de Padre AntónioVieira
Quando se refere à sociedade, nomeadamente à ambição, é impossível não reparar no
diálogo que o romance estabelece com O sermão de Santo António aos peixes de
Padre António Vieira.17
17 Além da alusão direta a o Sermão de Santo António aos Peixes (tópico de conteúdo
do 11.º ano), ao longo do romance é possível verificar influências de Padre António
Vieira na aproximação do discurso barroco, presentificado no uso de trocadilhos, na
alternância entre frases curtas e frases longas, no jogo de palavras, entre outras
características.
e às vezes nem é preciso comprá-los, que eles oferecem-se baratos, a troco duma tira
de pano no braço, em troca do direito de usar a cruz de cristo, agora com letra
minúscula, para não ser tão grande o escândalo. (Saramago: 387). 66
10.7.3 José Saramago, leitor de Eça de Queirós
A obra A relíquia, de Eça de Queirós, é revisitada no romance como atesta o excerto:
Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito
da ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de
escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e
serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os
escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do
que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós
viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades,
antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas
cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da
fantasia, parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de
perceber e ir ao exame repetir semse enganar, mas essa mesma criança perceberia e
repetiria cm igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto
diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente
imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do
avesso passarema ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem
os homens de cada vez que abrem a boca para falar. (Saramago: 59-60)
A frase de Eça de Queirós presente n’A relíquia «Sobre a nudez forte da verdade o
manto diáfano da verdade» é aproveitada por José Saramago que a subverte para
«Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade» (Saramago: 60) a
mostrar o lado crítico do narrador.
10.7.4 José Saramago, em intertextualidade com Memorial do convento
José Saramago vai para além da intertextualidade heteroautoral18 e percebe-se a
presença de outros textos do autor (intertextualidade homoautoral) nomeadamente
com Memorial do convento.
18 Segundo Vitor Aguiar e Silva «a intextextualidade é entretecida pelo diálogo de
vários textos, de várias vozes e consciências». Este dialogismo, na sua dinâmica
originária e essencial, é heteroautoral [...]. Conjuntamente com a intertextualidade
homoautoral: textos de um autor podem manter relações intertextuais — e relações
privilegiadas — com outros textos do mesmo autor, numa espécie de autoimitação
marcada tanto pela circularidade narcisista como pela alteridade (ao autoimitar-se, ao
autocitar-se, o autor espelha-se a si mesmo e é, no entanto, já outro). (Silva: 630-631)
são tudo coisas do céu, aviões, passarolas ou aparições. Não se sabe por que lhe deu [a
RR] veio à ideia a passarola do padre Bartolomeu de Gusmão, primeiro não soube, mas
depois, tendo refletido e procurado, admitiu que por sub-racional associação de ideias
tivesse passado deste exercício de hoje para os bombardeamentos da praia 67
Vermelha e da Urca, deles, por tudo ser brasileiro, para o padre voador, finalmente
chegando à passarola que o imortalizou, cuja não voou nunca, mesmo que alguém
tenha dito ou venha a dizer o contrário. (Saramago: 331)
e também
este nome de Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro
lugar, femininos, mas de raça gerúndia, como Blimunda, por exemplo, que é nome à
espera de mulher que o use...» (Saramago: 344)
e ainda
Nós não somos nada, os pedreiros e os boeiros de Mafra. (Saramago: 366)
Além do exposto, em O ano da morte de Ricardo Reis são retomadas, além de
escritores portugueses de várias épocas, e de estrangeiros, outras fontes textuais
como, por exemplo, a Bíblia. O recurso a expressões biblícas, estas, muitas vezes,
aproveitadas de forma crítica, são colocadas na voz de Ricardo Reis pela mão do
narrador ou enquanto discurso dele próprio. Apresentamos alguns exemplos
ilustrativos desta faceta do narrador:
[...] expulsaria os vendilhões do templo, restauraria o altar da pátria, restituiria a
Espanha a imorredoura grandeza que alguns seus degenerados filhos haviam feito
decair. (Saramago: 363)
Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de
Mateus e Marco, Deus meu, Deus meu por que me desamparaste, ou as de Lucas, Pai,
nas tuas mãos entrego o meu espírito, ou as de João, Tudo está cumprido. (Saramago:
58)
Para além desta porta, fechada para sempre, lhe tinha ela dado a maçã, ofereceu-a
sem intenção de malícia nem conselho de serpente, porque nua estava, por isso se diz
que Adão só quando trincou a maçã é que reparou que ela estava nua, como Eva que
ainda não teve tempo de se vestir, por enquanto é como os lírios do campo, que não
fiam nem tecem. (Saramago: 217)
Ou ainda quando Ricardo Reis vai a Fátima e vê-se no meio de gente que espera um
milagre, nomeadamente no episódio do homem morto na estrada, diz o narrador a
lembrar a passagemda Bíblia de Cristo com Lázaro
Se este velho se chamasse Lázaro e se aparecesse Jesus Cristo na curva da estrada [...]
clama, Lázaro, levanta-te e caminha. (Saramago: 303) 68 Ou ainda ao referir-se à
Mocidade Portuguesa e ao modo forçoso como os jovens aderiam ao sistema
são jovens patriotas que não quiseram esperar pela obrigatoriedade que há de vir, eles
por sua esperançosa mão, em letra escolar, sob o benévolo olhar da paternidade,
firmaram a carta, e por seu firme pé a levam ao correio, ou trémulos de cívica
comoção a entregam ao porteiro do ministério da Educação Nacional, só por respeito
religioso não proclamam, Este é o meu corpo, este é o meu sangue, mas qualquer
pessoa pode ver que é grande a sua sede de martírio. (Saramago: 368-269)
Acrescentamos outros excertos exemplificativos do recurso a frases da Bíblia ou da sua
subversão.
Aquele de vós que se achar sem pecado, atire a primeira pedra (Saramago: 293)
amarás o teu próximo como a ti mesmo (Saramago: 153)
não lhes perdoeis, Senhor, que eles sabem o que fazem (Saramago: 297)19
19 Intertextualidade com o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, «As pessoas
sensíveis».
Deus castiga sem pau nem pedra (Saramago: 365)
começa a chorar ali mesmo como uma Madalena (Saramago: 379)
venha a nós o vosso reino (Saramago: 381)
10.8 Literatura tradicional oral
A intertextualidade não se esgota e é agora a vez de nos referirmos a outros textos da
literatura oral tradicional que, embora desprovidas de marcas autorais, constituem o
enriquecimento da narrativa do ponto de vista ideológico, mas, principalmente,
servem a intencionalidade do autor. Estas referências surgem, por vezes,
transformadas, mas todas dão conta da ironia que percorre o romance, como se
verifica nas referências ao conto universal A Bela adormecida:
O hotel está em grande silêncio, é o palácio da Bela Adormecida, donde já a Bela se
retirou ou onde nunca esteve [...] de repente soou o distante besouro da entrada,
deve ser príncipe que vem a beijar a Bela, chega tarde, coitado. (Saramago: 47-48).
Estão também presentes a cantiga infantil «Fui ao jardim da Celeste» (Saramago: 403)
e a cantiga regional, no caso, nazarena, «Não vás ao mar Tonho, podes morrer Tonho,
ai Tonho Tonho» (idem). 69
11. LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA
11.1 A estrutura da obra
Quanto à estrutura externa, o romance de Saramago organiza-se em dezanove
capítulos. A ação, cronologicamente passada durante nove meses, entre dezembro de
1935 a setembro de 1936, dá conta das digressões do narrador que recorre a
analepses e prolepses e, simultaneamente, inclui momentos de intertextualidade
notáveis. Regressaríamos ao ponto já tratado na página vinte e um (a estrutura circular
do romance) e relembraríamos os capítulos primeiro e último, nomeadamente na
referência a Os Lusíadas e à transformação do verso oito da estância vinte, Canto III
«onde a terra acaba e o mar começa» em «Aqui onde o mar acaba e a terra principia»,
capítulo I (Saramago: 11) e «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera», referente
ao capítulo final (XIX). (Saramago: 407) Seria, agora, o momento de relembrar o
conceito de paródia e recuperar a estrutura circular e, sob a forma de revisão, reter o
objetivo fulcral da obra que é o de, indiretamente, colocar o leitor não numa atitude
de espectador do mundo, mas na de abraçar um futuro empreendedor, pois a terra
continua à espera de pessoas interventivas, dinâmicas, capazes de mudar a sociedade.
A circularidade vai mais longe, se atentarmos no percurso das personagens — chave
do romance: Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Inicia-se o romance com a morte de
Fernando Pessoa, aliás, este será umdos motivos do regresso de Ricardo Reis para,
depois de nove meses, se dar a sua morte. Durante este período de tempo, da morte
(de Fernando Pessoa) para a morte (de Ricardo Reis), assistimos a umFernando
Pessoa, morto, que acaba por descobrir que nada é importante, esquecendo, portanto,
a vida real que vivenciou e um Ricardo Reis inexistente, produto da criação pessoana,
que se assume no romance como um ser de carne e osso, que amou carnalmente, que
exerceu a sua profissão de médico (contrastando com o autor das Odes). Ao libertar-se
literariamente do seu progenitor, tentou compreender a sociedade, sair do labirinto
em que se encontrava, mas as tentativas falharam e, no fim, acompanha o seu criador
ao Cemitério.
Se nos aspetos formais, o estilo de Saramago excede em riqueza literária, é, também,
na composição da narrativa que se impõe a originalidade deste romance. O facto de
Saramago enveredar por caminhos pessoanos, abordar 70 assuntos relativos à grande
personalidade que foi Fernando Pessoa, não terá sido tarefa fácil, parece-nos, a julgar
a força poderosa da criatividade do escritor de Orpheu. Fantasmagoricamente,
Saramago coloca o poeta, que não pertence ao mundo dos vivos a dialogar com uma
das suas criações, o heterónimo Ricardo Reis. O fantasma Fernando Pessoa encontra-
se com Ricardo Reis, um homem, cujo romance lhe confere uma vida real, que chega a
Lisboa, em 1936, vindo do Brasil. Os papéis são invertidos numa narrativa que se
constitui singular através dos vários encontros presenciais, da imagem que Ricardo
Reis persegue no Carnaval (presume-se que seja a de Fernando Pessoa) e, no fim, em
que ambos se dirigem para o Cemitério. Nos intermédios e pelo olhar de ambos e de
todo um conjunto de personagens físicas ou simbólicas, conseguiu José Saramago uma
magia literária, ímpar na lieratura nacional e internacional.
11.2 O tom oralizante e a pontuação
Não seria demais voltar à escrita de Saramago e desmistificar a ideia de que o autor
não sabe pontuar. Em primeiro lugar, perceber que na primeira fase de escrita,
sensivelmente antes da produção de Levantado do chão (1980), Saramago utiliza o
regular discurso direto com os dois pontos e o travessão, o que facilitará o
entendimento dos alunos e colocá-los-á perante a intencionalidade do autor no
recurso a esta estratégia. As palavras dadas a Carlos Reis na obra Diálogos com
Saramago (1998) constituem uma explicação facilmente aceite por todos que a
seguem como experiência. Com efeito, se lida em voz alta, consegue um efeito
surpreendente, em que os sinais convencionais de pontuação não fazem falta. Em
segundo, porque o que pretendeu Saramago foi aproximar o texto escrito da oralidade
como ele próprio explica na obra supracitada.
Explico-a da maneira mais fácil. Em primeiro lugar, devo lembrar que, como toda a
gente sabe, a pontuação é uma convenção. [...] Mas isso tem outra razão é que nós,
quando falamos, não usamos sinais de pontuação. É uma velha declaração minha.
Fala-se como se faz música, com sons e com pausas [...]. Os valores de expressão
resultam, evidentemente, dos órgãos fonadores e, no caso da comunicação oral e em
presença, dependem do gesto, da expressão do olhar, da suspensão da voz, do modo
como a voz vibra, de todas essas coisas [...]. E ele (o leitor) só pode entender o texto se
estiver dentro dele, se funcionar como alguém que está a colaborar na finalização de
que o livro necessita, que é a sua leitura. (Reis: 101-102) 71 A ausência da pontuação
convencional de modo algum prejudica o texto. Pode enriquecê-lo do ponto de vista
da aproximação ao oral e, portanto, torna- -se muito mais vivo e dinâmico a nível das
intervenções das personagens que apresentam registos de língua diversificados de
acordo com o seu estatuto social.
11.3 Os ditados populares/os aforismos
A força da escrita de José Saramago reside na lucidez permanente com que encara a
sociedade, permitindo-lhe criar uma extraordinária visão do homem e do mundo. O
ano da morte de Ricardo Reis é um romance em que a narrativa assume contornos
verdadeiramente excecionais pela fusão dos ecos de uma literatura erudita e da
oralidade da literatura tradicional. Servindo-se da parataxe, juntando o diálogo com o
descritivo e os comentários introspetivos, consegue o escritor envolver o leitor, cuja
intencionalidade é levá-lo à reflexão, a qual é reforçada pelo recurso à função fática.
Nesta aproximação ao oral, o narrador faz digressões, ora prospetivas, ora
retrospetivas, apela para a memória do leitor, serve-se de expressões e de ditados
populares, ou partindo deles, subverte-os. Vejamos alguns exemplos:
O teu mal é sono (Saramago: 47)
na ocasião se faz o ladrão (Saramago: 57)
sol que é de pouca dura (Saramago: 61)
as paredes têm olhos (Saramago: 89)
lá de longe em longe, quando o rei faz anos (Saramago: 118)
de muito ladrar e pouco morder (Saramago: 142)
Quando mal, nunca pior (Saramago: 149)
Este ar de Espanha que vento trará, que casamento (Saramago: 149)
Anda cá ó filho de um cabrão (Saramago: 156)
Vai bardamerda. (Saramago: 160)
No Carnaval nada parece mal. (Saramago: 157)
foi sol de pouca dura (Saramago: 170)
são mais as marés que os marinheiros. (Saramago: 170)
não vás dar com a língua nos dentes. (Saramago: 171)
todos os caminhos portugueses vão dar a Camões (Saramago: 176) 72
perdem o tento na língua (Saramago: 178)
Longe vá o agoiro. (Saramago: 188)
nem sempre galinha nem sempre sardinha (Saramago: 198)
o que tem de ser tem de ser e tem muita força (Saramago: 202)
visita de médico (Saramago: 213)
deitar cedo e cedo erguer (Saramago: 218)
os vizinhos são para as ocasiões (Saramago: 224)
mais fica para amanhã (Saramago: 229)
que lambisgoia é esta (Saramago: 232)
Como quem não quer a coisa (Saramago: 243)
pode ser que haja ali arrranjinho (Saramago: 245)
os homens são uns rabaceiros, aproveitam tudo (Saramago: 245)
se calhar é da mula ruça, e isto de homens, quem não os conhecer que os compre
(Saramago: 245)
Uma memória que puxa e um esquecimento que empurrra (Saramago: 267)
nem toda a gente vai para a cama com as galinhas (Saramago: 268)
quem tem boca vai a Roma (Saramago: 269)
Quem tem boca vai a Roma (Saramago: 269)
ó patego, olha o balão (Saramago: 278)
O primeiro milho é dos pardais (Saramago: 291)
guarda o que não presta e encontrarás o que é preciso (Saramago: 304)
quem olhar para ti parece que não partes um prato, e lá de vez em quando deitas
abaixo o guarda-louça (Saramago: 320-321)
casinhoto dos Prazeres (Saramago: 322)
ninguém faça o mal à conta de que lhe venha bem (Saramago: 339)
Depois de burro morto, cevada ao rabo (Saramago: 342)
não há bem que sempre dure (Saramago: 349)
o silêncio é de oiro e o calado é o melhor (Saramago: 364)
Deus castiga sem pau nem pedra, de fogo é que já tem uma longa prática (Saramago:
365)
quanto mais alto se sobe, mais longe se avista (Saramago: 367)
Com os pés para a cova (Saramago: 371) 73
Começa [Lídia] a chorar ali como uma madalena (Saramago: 379)
grandes remédios para grandes males (Saramago: 385)
O predomínio da tradição popular serve, entre outros propósitos ideológicos, para
reafirmar a importância da voz do povo, dos que não têm lugar na história, tal como se
verifica em Memorial do convento. São os excluídos que assumemum estatuto
privilegiado, daí produzir um discurso que congrega duas instâncias fulcrais: a
recuperação da tradição oral e a História, não a que é apresentada nos jornais ou na
telefonia, mas a que resulta da sua reinterpretação. Esta é também recebida pelo
leitor que se deixa levar pela voz do narrador, ora judicativo, ora comentador, que,
continuamente, estabelece um diálogo com o narratário. A recuperação da tradição
popular, mais do que recurso estilístico, constitui uma forma de problematizar uma
realidade histórica e, por consequência, levar à reflexão sobre o homem, a vida e a
condição humana.
11.4 Recursos expressivos
O discurso saramaguiano é fértil em recursos de estilo, marcando substancialmente as
descrições visualistas, dotadas de um realismo surpreendente e de um rigor de
pormenor extraordinário.
Na impossibilidade de referir todos os recursos estilísticos presentes ao longo do
romance apontaremos aqueles que o programa indica, tentando oferecer extratos
significativos, alguns recuperados de trechos referidos ao longo deste trabalho. No
entanto, ambos surgem para facilitar o estudo da obra e abrir possibilidades de
escolhas.
Assimdestacamos exemplos20 de:
20 Nos casos emque as frases são longas, sublinharemos a parte em que o recurso
expressivo utilizado é mais notório.
Antítese
terra riquíssima em pobres (Saramago: 67)
uma multidão negra que enche a rua em toda a largura, alastra para cá e para lá, ao
mesmo tempo paciente e agitada (Saramago: 66).
Sonhar é ausência, é estar do lado de lá, Mas a vida tem dois lados, Pessoa, pelo menos
dois, ao outro só pelo sonho conseguimos chegar, Dizer isso a um morto, que lhe pode
responder, com o saber feito da experiência, que o outro lado da vida é só a 74 morte,
Não sei o que é a morte, mas não creio que seja esse o outro lado da vida de que se
fala, a morte, penso eu, (Saramago: 90).
Comparação
todas juntas fazem uma nódoa parda, negra, de lodo mal-cheiroso, como a vasa do
Cais do Sodré. (Saramago: 67)
Ricardo Reis fez uma pausa, parecia refletir, depois, debruçando-se, estendeu as mãos
para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco para a frente e,
continuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a entre as mãos
dele, como uma ave doente, asa quebrada, chumbo cravado no peito. (Saramago: 78)
Enumeração
outros bairros, outras paróquias, outras beneficiências (Saramago: 67)
E há febres por aí, tosses, umas garrafinhas de aguardente... (Saramago: 67)
Este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia. (Saramago: 85)
Que nau, que armada, que frota pode encontrar o caminho (Saramago: 177)
Ironia
Tinha boas razões, ainda que apenas duas, a primeira, porque só lhe apetecia falar da
noite de teatro e de quanto acontecera, mas não com Fernando Pessoa, a segunda,
porque nada mais natural que entrar-lhe Lídia pelo quarto dentro, não que houvesse o
perigo de se pôr ali aos gritos, Acudam, um fantasma, mas porque Fernando Pessoa,
embora lhe não estivesse no feitio, podia querer deixar-se ficar, coberto pela sua
invisibilidade, ainda assim intermitente segundo os humores da ocasião, a assistir às
intimidades carnais e sentimentais, não seria nada impossível, Deus, que é Deus,
costuma fazê-lo, nem o pode evitar, se está em toda a parte, mas a este já nos
habituámos. (Saramago: 113)
Metáfora
cada pobre é fiscal doutro pobre (Saramago: 67)
esta gente [...] tantos descalços, todas juntas fazem uma nódoa parda (Saramago: 67)
75
11.5 Reprodução do discurso no discurso21
21 Nos casos emque as frases são longas, sublinharemos a parte em que o recurso
expressivo utilizado é mais notório.
22 Todo o texto está em discurso direto. O sublinhado pretende diferenciar o diálogo
que se estabelece entre os interlocutores, para mais fácil identificação, não tendo
como objetivo destacar um deles.
Como já dissemos José Saramago subverte as regras de pontuação, suprimindo a
maioria dos sinais de pontuação. A vírgula e o ponto final constituem exceções, sendo
a primeira importante por indiciar mudança de fala de personagem associada ao uso
de maiúscula.
Os vários discursos introduzidos são diversificados, mas ganham força os diálogos. O
discurso direto é, então, a reprodução dos discursos mais vivo e surpreendente,
porque se afasta do convencional registo escrito, oferecendo quadros naturais,
perfeitamente ligados ao ambiente quotidiano onde se movem as personagens.
Discurso direto:22
E nestes anos tem havido melhoras, Se quer que lhe fale francamente, senhor doutor,
acho que não, Que pena, uma rapariga tão nova, É verdade, o senhor doutor é que
podia dar-lhes uma opinião da próxima vez, se ainda cá estiver, É possível que esteja,
sim, mas estes casos não são da minha especialidade, eu sou médico de clínica geral,
interessei-me depois por doenças tropicais, nada que possa ser útil em situações
destas, Paciência, é bem verdade que o dinheiro não dá felicidade, o pai com tanto de
seu, e a filha assim, não e há quem a veja rir, É Marcenda o nome, É sim, senhor
doutor, Estranha palavra, nunca tinha ouvido, Nem eu, Até amanhã, senhor Salvador,
Senhor doutor, até amanhã. (Saramago: 32)
Mas a coloquialidade e o tom oralizante também se verificam na utilização tanto do
discurso indireto livre como do indireto.
Discurso indireto:
O senhor doutor não gostou, e ele disse que tinha gostado, pusera-se a ler o jornal,
distraíra-se (Saramago: 85)
Discurso indireto livre:
como é possível, meu caro senhor, uma cidade que nem é das mais pequenas, onde foi
que se meteram as pessoas. (Saramago: 66)
Pusera-se a ler o jornal, distraíra-se (Saramago: 85) 76
12. OUTROS EPISÓDIOS DE REFERÊNCIA
Antes de terminar, não queremos deixar de apresentar outras reflexões que podem
entrecruzar os textos referenciados. Serão apenas registos, o tratamento exaustivo
comprometeria os tempos previstos para a unidade consagrada ao romance
saramaguiano.
12.1 O bodo aos pobres23
23 Cf.com o episódio O Bodo do Século, página 66 e seguintes, cujo propósito é
também denunciar a hipocrisia do Estado e as marcantes diferenças sociais.
Através do episódio da distribuição de bodos aos pobres pela Páscoa, consegue
Saramago uma das críticas ferozes ao Estado é à Igreja, pois ambas as instituições
constituem uma forma do governo controlar ideologicamente os mais pobres. Aliado a
esta iniciativa, liga-se a notícia da festa a ter lugar no Campo do Jockey Club, na qual
serão favorecidos os sinistrados das inundações do Ribatejo (Saramago: 363). O
sensacionalismo da notícia, sob o olhar atento e crítico do narrador, a aperceber-se da
intenção propagandista do governo, dado que os pobres terão de aguentar a fome até
que a festa se concretize, revela, uma vez mais, a atitude crítica ao sistema político e à
figura que o domina.
12.2 O Bovril
Mas a ironia de Saramago vai mais longe, na crítica ao governo mesquinho, vaidoso,
controlador das mentalidades, ao inserir na narrativa a leitura de um anúncio
publicitário, que constava também no jornal que noticiava a festa a favor das
inundações do Ribatejo. O narrador sugere ao governo maior atenção nas ações
sociais. A solução do problema estaria no fortificante milagroso cuja ingestão acabaria
com a fome portuguesa. Ao colocar lado a lado, dois textos presentes no jornal, está a
colocar em destaque dois discursos: o do anúncio do auxílio aos famintos àquele que
promete o milagre da saúde de forma rápida.
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Ano da morte

  • 1. O Ano da Mortede Ricardo Reis - O título  O romance pretende resolver uma questão entre Ricardo Reis e José Saramago: a indiferença em relação ao mundo.  O desafio colocado a Ricardo Reis é, pois, o de se permitir ver até que ponto se é «sábio» perante o «espetáculo» de 1936, onde se insere uma Europa triste, dorida, moribunda, onde a mudança dificilmente se vislumbra.  O livro representa o regresso a Portugal de Ricardo Reis, na sequência da morte de Fernando Pessoa, após 16 anos de exílio no Brasil, por ser monárquico.  O título aponta, e convém desde logo referi-lo, não para a biografia de Ricardo Reis, não para o ano em que o heterónimo de Fernando Pessoa morreu, mas a ênfase recai na importância que é dada ao tempo cronológico, ao tempo social, aos eventos que ocorreram no ano em que morre Ricardo Reis, nos nove meses que ele vive em território nacional, depois de ter regressado do Brasil.  O título pode ser dividido em duas partes – a ação central da narrativa apresenta Ricardo Reis, no último ano de sua vida; o tempo cronológico referido, ano de 1936.  Pretende-se que o leitor comece, desde logo, a predispor-se para perceber os acontecimentos de 1936, os quais dialogam com um Portugal futuro, aquele que envolve o pós-25 de Abril de 1974 (não esqueçamos que o romance é publicado em 1984, precisamente passados dez anos sobre a revolução de Abril). O CONTEXTO HISTÓRICO  Surgimento de Salazar desde 1928  No Brasil “rebentou uma revolução”  Ascensão de Mussolini ao poder em Itália;  Guerra na Etiópia;  Expansão nazi na Alemanha;  Frente popular francesa;  Guerra Civil Espanhola. A ESTRUTURA CIRCULAR DO ROMANCE O romance é estruturado em 19 capítulos/sequências. O livro apresenta uma sequência cronológica dos acontecimentos, embora seja pontuado de algumas analepses e prolepses.
  • 2. Ao abrir o romance e parodiando Camões «Aqui o mar acaba e a terra principia», José Saramago inverte o verso da narrativa épica, sugerindo uma epopeia contrária à retratada em Os Lusíadas, pois, a viagem, ao invés, é de volta e a principal descoberta não está no mar, mas na terra. Sublinhar-se-á o contexto atmosférico, a Lisboa chuvosa à qual não é alheia a simbologia que encerra, a cidade suja, «pálida» e cinzenta, até o «barco escuro» que «sobe o fluxo soturno» não é português, é inglês, facto que só por si exclui a possibilidade de matéria épica portuguesa, acentuando assim a distinção entre uma pátria que se glorificou, no mundo, através do mar, mas que agora estagnou. Do mesmo modo, o «barco escuro» que «sobe o fluxo soturno» liga-se ao barco da morte, onde Ricardo Reis terá o seu encontro fatal. Compreende-se que a viagem de regresso seja feita no barco da morte, pois o leitor descobre-o por meio da intertextualidade que abre o sentido do discurso. O meio para atingir o esplendor, a glória não serão as naus, nem os marinheiros de outrora que alcançaram o Império, mas atitude ativa do ser humano, o seu empenho nas causas sociais. Saramago convida o leitor a percorrer Portugal, internamente, e o interior da personagem Ricardo Reis. Ricardo Reis, em fins de dezembro de 1935, chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade que deixara há anos e é justamente aí que começa a nova experiência. Sem planos definidos, sozinho, vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver diretamente. A razão da sua vinda prende-se, aparentemente, com o facto de ter recebido uma carta de Álvaro de Campos a informar que Fernando Pessoa morrera. Instalado no Hotel Bragança, o protagonista enceta uma viagem, mantém vários encontros com Fernando Pessoa e no fim da narrativa acaba por acompanhar definitivamente o seu criador ao Cemitério dos Prazeres. É, pois, neste intervalo de nove meses que acompanharemos Ricardo Reis, Portugal e o mundo. A primeira saída de Ricardo Reis leva-o ao Cemitério dos Prazeres para visitar a sepultura de Fernando Pessoa, falecido em 30 de novembro de 1935. A partir daqui está criado o enredo do romance. As expressões «Estou aqui» e «Está aqui» são os pontos de partida para os encontros que se vão sucedendo ao longo da narrativa. No primeiro dia de 1936, quando a euforia do novo ano se espraia pela cidade e Ricardo Reis já se recolheu ao seu quarto, no Hotel Bragança, Fernando Pessoa ou, diríamos, o seu fantasma, visita-o pela primeira vez. No primeiro de vários encontros com Pessoa, realçamos a importância das emoções dos intervenientes e os comentários do narrador. Repare-se no contraste entre a ausência de vida e o próprio quarto de Ricardo Reis que sugere alguma vitalidade,
  • 3. dado que, ao aproximar-se, «repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa». Afinal há vida e, embora duvide de si próprio, «ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer um», pois é humano, não estranha a presença do seu criador («e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa»). Parece que Ricardo Reis já estaria à espera, existe uma sintonia e alegria entre ambos («Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência»). Fernando Pessoa avisa Ricardo Reis de que só poderão ter mais oito meses para se encontrarem e explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda vistos, mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo esquecidos um pouco «salvo casos excecionais nove meses é quando basta para o total olvido». O encontro serve para traçar o carácter do protagonista e estabelecer uma ligação entre o Ricardo Reis pessoano (aquele que se expatriara por ser monárquico, aquele que volta porque não quer confusões) e o Ricardo Reis saramaguiano que, debaixo do pretexto do telegrama de Álvaro de Campos, regressa para encetar uma vida que se prevê diferente da do autor das odes. Por isso, afirma: «pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio», evidenciando uma atitude menos contemplativa do que aquela a que nos habituamos, quando lemos a poesia de Reis. A FUNCIONALIDADE DE RICARDO REIS E FERNANDO PESSOA NA NARRATIVA Partindo do ambiente de Lisboa do ano de 1936, recriado principalmente pelos jornais da época, o romance ultrapassa a vertente histórica e surge um narrador que controla a narrativa, recorrendo a comentários e juízos de valor feitos pela sua própria voz, mas também por outras, das quais, no momento, nos interessam as de Fernando Pessoa e Ricardo Reis. O primeiro, existente, surge como fantasma e o segundo, ficção criada pelo primeiro, tem existência real. De notar que o romance não teria sentido sem o dado concreto da morte de Fernando Pessoa, a quem a fantasia permitirá revisitar o seu tempo. Fernando Pessoa surge, assim, no romance na relação com Ricardo Reis, que se presentifica nos encontros que estabelecem ao longo da narrativa. Saramago, para que o leitor aceitasse o Ricardo Reis saramaguiano, teve de manter as características do heterónimo pessoano (a sua profissão, as suas filosofias de vida, as suas poesias).
  • 4. Ricardo Reis Ricardo Reis é, com efeito, o protagonista do romance e a sua identidade não é logo desvendada. O narrador parece pretender que o leitor se concentre nesta figura, sem nome, preparando-o para compreender a(s) diferença(s) entre o Ricardo Reis pessoano e o saramaguiano. Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspeto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu- as do pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo ou colar de ordem. Cá fora, sob a proteção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi, não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos vapores. No início do excerto, o protagonista é apenas «um homem grisalho, o viajante». Esta última palavra é repetida, desde o início do romance, dez vezes até surgir o nome Ricardo Reis que só acontece, curiosamente, dez páginas à frente, quando preenche o formulário no Hotel Bragança. Até esse momento Ricardo Reis é «o viajante», «o homem», como já se disse, o «passageiro». Atente-se na expressão «passageiro um, bagageiro outro» para evidenciar a distinção que existe entre estes dois seres. Novamente a referência ao tempo, permitindo ultrapassar a factualidade (a chuva), e, simbolicamente, ligar-se a um tempo social e politicamente indesejável. A par desta situação calamitosa, começa a desenhar-se a personalidade de Ricardo Reis, um homem observador («O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara em uns barcos de guerra discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo» e ao mesmo tempo traça-se o contexto sociocultural. Os verbos olhar e reparar adquirem um sentido em nada inócuo. O primeiro caracteriza o tempo de chuva e o segundo o ambiente estranho proporcionado pela presença de uns barcos. Neste momento, o leitor já se habituou a Ricardo Reis e à sua presença corpórea. O protagonista já tem nome, preencheu a ficha de identificação no Hotel Bragança, e ei- lo a deambular pela cidade de Lisboa, revisitando-a. Muitos dos pormenores que observa e que, à primeira vista, parecem insignificantes, adquirem uma simbologia singular no romance, constituindo-se um sinal do futuro percurso narrativo, facto que é sabiamente aproveitado pela voz irónica do narrador que, de modo algum, permite que uma banalidade seja apenas isso mesmo — «Ricardo Reis meteu-se pelo
  • 5. ajuntamento, afinal menos denso do que parecera de longe, abriu caminho, entretanto a chuvada cessara, fecharam-se os guarda-chuvas como um bando de aves pousadas que sacudissem as asas antes do repouso noturno [...]». O trecho permite compreender a intencionalidade do narrador. As expressões «menos denso», «A chuva cessara», «fecharam-se os guarda-chuvas» sugerem a possibilidade de o protagonista encetar o seu caminho. Não é um percurso fácil, mas vão coexistindo umas «abertas» (não esquecer que a chuva simboliza um Portugal passivo, dominado pela ditadura) que viabilizam a possibilidade de mudança. Também a comparação «como um bando de aves pousadas» remete para a imobilidade, mas ao mesmo tempo para a ação que é necessário empreender para lutar contra o fascismo. Está preparado o cenário que colocará Ricardo Reis num tempo e espaço definidos. No caso de Ricardo Reis, o fim dele será acompanhar o falecido Fernando Pessoa, pois não conseguiu relacionar-se com ninguém como comprovam as malogradas relações que teve com Lídia e Marcenda. A possibilidade de comunicação poderá existir num futuro, algo longínquo, cujo filho de Lídia poderá ser o sinal. Num diálogo constante com outras obras, com símbolos, o discurso mantém-se em todo o livro num constante desafio ao leitor. A figura de Ricardo Reis apresenta-se na cidade de Lisboa, não tanto por ter sabido da morte do seu criador, mas para iniciar uma viagem pelo labirinto que é Lisboa. É interessante notar que Fernando Pessoa é um fantasma na obra, perde com a morte o seu corpo de homem e Ricardo Reis, ao contrário, adquire uma existência física e civil (inclusivamente é chamado a apresentar-se à PVDE, mantém uma dupla paixão, por Lídia e Marcenda e chega a exercer a profissão de médico). Compreende-se, assim, ser grande a distância existente entre o Ricardo Reis de Pessoa, para quem «sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo» e o Ricardo Reis de Saramago que vive os acontecimentos, arrastado pela ação dos mesmos. O Ricardo Reis de Pessoa é, como se sabe, um poeta clássico, contemplativo, o autor das Odes, do verso sáfico e Saramago não se abstém de uma certa ironia ao dizer: A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal, saiu- -nos poeta popular, por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica... (Saramago: 45) Partindo deste questionamento, a personagem, embora individual, ganha contornos de coletiva, vai alargar a sua inquietação ao confrontar-se com uma envolvência social política e ideológica. A figura de Ricardo Reis ganha sentido quando colocada em
  • 6. confronto com o seu criador e, com efeito, os vários encontros realçam os problemas relacionados com o Homem, em particular a existência e a comunicação humana. Fernando Pessoa No dia 10 de Junho, dia de Camões e de Portugal, Fernando Pessoa surge sozinho, e no seu deambular vai visitar «outro morto» (Camões). O texto pretende assinalar este momento autónomo, «Tivesse Ricardo Reis saído essa noite e encontraria Fernando Pessoa na Praça de Luís de Camões» (Saramago: 343). Fernando Pessoa é, pois, o poeta morto que contracena com Ricardo Reis e o seu principal interlocutor. É alguém que vem do mundo dos mortos e esse estatuto permite discussões acerca da vida e do mundo. No entanto, esta sabedoria, fruto da experiência adquirida enquanto ser existente, desvanece-se no post mortem, constituindo-se apenas como teoria, pois não consegue alterar o passado, nem ter uma atitude ativa no presente no sentido de mudar o futuro. Fernando Pessoa é, agora, apenas um fantasma. Fernando Pessoa é, no fundo, o responsável pelo romance. É a sua morte em novembro de 1935 que faz regressar, aparentemente, Ricardo Reis do Brasil e permite ao narrador criar um enredo com um Pessoa diferente do poeta, conhecido por todos, a quem é permitido revisitar o seu tempo e que se coloca diante de um Ricardo Reis, diferente do autor das odes. Assim a sua presença é mais do que o ponto de partida para a colocação do protagonista na trama romanesca. Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excecionais nove meses é quanto basta para o total olvido. Nestes meses, acontecem vários encontros, cujos diálogos são seguidos pelo narrador e exigemdo leitor uma atenção redobrada no sentido em que tem de reconhecer nos poetas a dimensão dada pela história e acrescentar a reconstrução feita pelo narrador e, ainda, aperceber-se dos discursos irónicos veiculados por este último. Eis o movimento que a leitura do romance nos propõe: Ricardo Reis lutará para permanecer entre os vivos, procurará formas de identificação até que reconhece que, como uma parte de Pessoa, também está morto e, somente como obra, poderá manter-se vivo.
  • 7. REPRESENTAÇÕES DO SÉCULO XX Representações do século XX — o espaço da cidade No ano de 1936, José Saramago tinha 13 anos e das recordações que tem da Lisboa dessa época, uma Lisboa cinzenta, triste, chuvosa, constrói O ano da morte de Ricardo Reis. Lembra-se da tristeza e da solidão da cidade, daí dizer que O ano da morte de Ricardo Reis «É um livro sobre a solidão triste, sobre uma cidade triste, sobre um tempo triste». Como já foi dito, é esta cidade labirinto que Ricardo Reis encontra e nela vai permanecer nove meses. Mal desembarca, Lisboa apresenta-se-lhe sem graça, a chuva remete para o estado de espírito da personagem que, tal como a cidade, se encontra taciturno e, sob o olhar expedito do narrador, o leitor apercebe-se que Lisboa simboliza um Portugal decadente, não só presente, mas também futuro, daí o estado climatérico não sofrer alterações ao longo do romance e, ao mesmo tempo, toma consciência da alienação do mundo, em que os homens estão afastados uns dos outros e é preciso denunciar esta ausência de compromisso e levá-los à ação. Repare-se que o narrador não se abstém de, irónica e metaforicamente, levar o tempo atmosférico («maldito inverno este») para o texto histórico-político, pois se há razões de queixa, estas não pertencem só aos portugueses. Também no estrangeiro, atente- -e na ironia conseguida no recurso ao plural dos países mencionados e ainda grafados com letra minúscula («nas franças e inglaterras»). Os tempos não são de ânimo, pois os acontecimentos políticos prenunciam a II Guerra Mundial. São muitos os espaços físicos, pormenorizadamente concretizados em ruas, estátuas, jardins. Do ponto de vista mais global, a cidade surge como o microcosmos de Portugal. A cidade de Lisboa, enquanto espaço privilegiado, porque sede da política portuguesa, está também representada no excerto ao denunciar a forma arbitrária como os líderes da nação agem perante as multidões, incutindo-lhes o servilismo através da hipocrisia. Trata-se do episódio que retrata a chegada de luz a Montemor-o-Velho e surge como manifestação de apoio ao governo salazarista. O bodo do Século, por ter lugar em frente à redação do jornal O Século, denuncia a forma como o governo se impõe, hipocritamente, como um defensor do povo. Todo este «ajuntamento» espelha o propósito político de propaganda ideológica que se serve da miséria do povo para atingir os seus fins, como também já se viu nos textos anteriores. A ânsia do povo é demonstrativa do sofrimento do mesmo. Repare-se na descrição pormenorizada dos acontecimentos (a longa espera), no visualismo descritivo, o vestuário, a fome, as doenças (a lembrar Fernão Lopes). A juntar a tudo
  • 8. isto, refira-se a atitude parcial do narrador, à qual não é alheia a ironia ao colocar-se ao lado dos oprimidos, «terra riquíssima em pobres, queira Deus que nunca se extinga a caridade para que não venha a acabar-se a pobreza» Poderíamos ainda apresentar outros passos do romance, mas parece-nos apropriado, pelo menos, acrescentar outro que responde ao texto apresentado anteriormente. Representações do século XX — o tempo histórico e os acontecimentos políticos Ricardo Reis, que procura encontrar-se histórica e politicamente na sua nação, sendo, portanto, Lisboa o palco do percurso iniciado por Ricardo Reis, depois de ter regressado do Brasil. Nesta procura pela sua identidade, reconhece que a cidade, sinédoque de Portugal, é um labirinto sem saída. Enquanto leitor dos jornais, este apenas conhece aquilo que se quer transmitir, não faz qualquer esforço para se certificar da verdade. Esta atitude opõe-se à de Saramago para quem as notícias «são versões dos acontecimentos, mais ou menos autoritárias, mais ou menos respaldadas pelo consenso social ou pelo consenso ideológico ou até por um poder ditatorial» Para o narrador, as notícias passam pelo filtro da censura, ocultando a verdadeira situação pela qual passa o mundo e, sobretudo, Portugal. Os acontecimentos políticos e históricos ultrapassamfronteiras. Através dos jornais, da telefonia, dos diálogos das personagens que chegam a Portugal e da própria voz do narrador, o leitor situa-se perante o que está a acontecer no mundo, mais precisamente no ano de 1936 e neste país, mas também se vislumbra um Portugal contemporâneo da década de 84, altura da escrita do romance, que dá conta de uma nação atrasada e em nada cosmopolita. São vários os momentos que permitem traçar o perfil de uma Europa ditatorial. As notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro, Portugal é visto como o país que vive um período de paz e prosperidade, o que não corresponde ao que verdadeiramente se passa em Portugal, daí que, no fim da narrativa, a terra, Portugal, continua à espera de algo. O romance tematiza o ano de 1936, a ditadura de Salazar e o sufocamento do levante dos marinheiros que pretendia devolver a democracia ao país. Portanto, a terra espera a liberdade, «Aqui, onde o mar se acaba e a terra espera» Apresentamos o contexto político e social que envolve a cena mundial com principal destaque para a Alemanha, Itália e Espanha, cujas nações estão na base da II Guerra Mundial. A Europa — Espanha e Franco Em Espanha, o ano de 1936 é, sobretudo, de guerra. A esquerda vencia e a república e os seus ideais democráticos impunham-se, mas o Golpe de Estado de 18 de julho
  • 9. coloca em destaque Franco. Esta agitação política é recebida no romance através dos jornais e dos novos inquilinos do Hotel Bragança que, fugindo à vitória da esquerda, se refugiam na capital portuguesa e esperam a mudança, que surgirá com o golpe fascista liderado por Franco. Ricardo Reis deve ter sido o último habitante de Lisboa a saber que se dera um golpe militar em Espanha. Ricardo Reis, leitor de jornal, comporta-se como um alienado, como alguém perdido no labirinto, incapaz de enxergar uma saída. Não percebe que a sua capacidade de se contentar com ser um mero espectador do espetáculo do mundo é justamente o que lhe limita a visão. Só Ricardo Reis não vê (ou não quer ver) que por trás das notícias se encontra o regime autoritário que controla as mentes dos leitores. A atitude de Ricardo Reis contrasta com a posição assumida por Daniel, irmão de Lídia, sendo esta a porta-voz do revolucionário marinheiro. As palavras de Lídia são sábias, a criada tem consciência dos seus limites, mas o narrador coloca-se ao seu lado e evidencia o contraste entre os interlocutores. O leitor não é esquecido e desempenha um papel importante na narrativa. Exige-se- lhe uma visão crítica que é proporcionada pelo narrador que conhece o passado, o presente e o futuro e é assimque a sua voz atravessa as páginas do romance ao criticar a atitude distanciada de Ricardo Reis face aos factos relatados. A Europa — França e Léon Blum Em 1936, França é marcada por crises políticas de vária ordem e no romance é dada ênfase a Léon Blum e ao movimento do Front Populaire. As notícias chegam a Portugal, como já se espera, depois de passarem pela censura, mas também, como se sabe, existe o narrador para levar o leitor a verificar o absurdo de certos textos, cujas informações, diz o narrador, «são palavras do periódico» (Saramago: 290), como aquele em que e, partindo da referência à situação francesa, se elogia a aliança com Hitler, se perde o significado das comemorações do Primeiro de Maio e ainda se lamenta a Espanha Republicana e a França da Frente Popular. A Europa — Itália e Mussolini No romance, o fascismo italiano ocupa algumas páginas da obra que recupera a vontade de Itália não querer ficar atrás da Alemanha face ao prestígio europeu e vê na Etiópia a possibilidade de se impor imperialmente na África Oriental. É, pois o drama etíope, a glória italiana, a atitude de não intervenção dos outros países que colocam uma vez mais Ricardo Reis numa posição de «espectador» como atesta o seguinte excerto «Ricardo Reis foi buscar à mesa de cabeceira The god of the labyrinth» (Saramago: 293). Não consegue ir além da primeira página, embora esteja sempre a
  • 10. recomeçar a leitura, indiciando assim a dificuldade em encontrar a saída do labirinto. Relativamente a Itália e a Mussolini atente-se no seguinte excerto: E terminou a guerra da Etiópia. «Disse-o Mussolini da varanda do palácio, Anuncio ao povo italiano e ao mundo que acabou a guerra», e a esta voz poderosa as multidões de Roma, de Milão, de Nápoles, da Itália inteira, milhões de bocas, todos gritaram o nome de Duce. (Saramago: 292) Por último e não menos importante o discurso irónico do narrador que, conhecendo o futuro o pode profetizar. Tranquilizemo-nos, pois. Guerra, se a houver, guerra será por ser esse o nome, mas não hedionda, como hedionda não foi a guerra contra os abexins. (Saramago: 292) É ainda nesta referência ao fascismo em Itália e às atrocidades referidas que encontramos Ricardo Reis que, ao aperceber-se do seu envolvimento emotivo, prefere o refúgio no jogo de xadrez, recusando qualquer compromisso. A Europa — Alemanha e Hitler Na Alemanha, assim como se viu em Itália com Mussolini, preparava Hitler o terreno para a ditadura mais negra na história da humanidade. A Alemanha surge no romance mais bem representada do que Itália, Espanha ou França, na medida em que muitos dos modelos alemães foram seguidos por Portugal. É a imagem da perfeição que é reproduzida, mas, também, já nos habituámos ao narrador comentador que ironicamente afirma «Claro que na Alemanha o povo é outro» (Saramago: 252). Esta postura crítica surge recorrentemente ao longo da narrativa e, no caso da Alemanha e de Hitler, ela ganha força, na medida em que Portugal, como já se disse, segue o modelo alemão. Assim os símbolos de Hitler, da Juventude Hitleriana, da cruz gamada assumem significados precisos enquanto representativos da ordem e da repressão que grassam em Portugal. No excerto seguinte, mais um dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, é possível aproximar os dois modelos. Verifica-se que o endeusamento de Hitler não está longe do de Salazar. Quando Hitler fala é como se a abóbada de um templo se fechasse sobre a cabeça do povo alemão [...] se a juventude amar Hitler, que é o seu Deus, se se esforçar por fielmente o servir, cumprirá o preceito que recebeu do Padre Eterno, Magnífica lógica, para a juventude Hitler é um deus, servindo-o fielmente cumpre um preceito do Padre Eterno, portanto temos aqui um deus a agir como intermediário doutro deus para os seus próprios fins, o Filho como árbitro e juiz da autoridade do Pai, afinal o nacional- - socialismo é uma religiosíssima empresa, Olhe que nós, por cá também não vamos nada mal entre o divino e o humano.
  • 11. A Europa — Portugal e Salazar Através dos jornais, o leitor constrói um perfil de Portugal do ano de 1936, sendo que o narrador, com os seus comentários irónicos, aproveita-se intencionalmente das leituras de Ricardo Reis para denunciar, através de suas intervenções, aquilo que o governo procura mascarar. Já Ricardo Reis é somente o recetor das informações que o jornal lhe oferece e, muitas vezes, lê-as ingenuamente, como se fossem fontes seguras. O discurso dos jornais funciona, pois, como reconstituição do ambiente de Lisboa dessa época, como um instrumento da ação do regime ditatorial, permitindo uma avaliação crítica do sistema político — o Estado Novo — e da figura que o domina. Salazar surge caracterizado como uma figura «encoberta e misteriosa». No entanto, é glorificada pela imprensa nacional e estrangeira, pelos patriotas portugueses apoiantes do regime e pelos reacionários fugidos de Espanha que o definem como o «o maior educador do nosso século» O texto representativo da vitória salazarista afasta-se da posição do narrador, isentando-o de se colocar ao lado desta propaganda política que ele critica, como tão bem se evidencia no recurso ao sujeito nulo indeterminado e ao sujeito simples, respetivamente, «Diz-se, dizem-no os jornais». Mais, nas suas palavras há a denúncia de um jornal que é a voz do regime «escrevem os jornais, em estilo de tetralogia» e o seu estatuto de narrador demiúrgico permite-lhe ir mais além afirmando «Virão a cair, portanto, e a palavra derrocada lá está a mostrar como e com que apocalíptico estrondo, essas hoje presunçosas nações que arrotam de poderosas, grande é o engano em que vivem, pois não tardará muito o dia». Os acontecimentos em torno do protagonista não o mobilizaram, não permitiram que ele visse a dinâmica das lutas sociais, das guerras sob o ponto de vista das pessoas que estavam envolvidas. O juízo crítico está ausente do Ricardo Reis de Saramago. Este é uma personagem construída nos limites da alienação: serve-se apenas da reprodução de um discurso falso, unilateral, que, no entanto, considera verdadeiro. Assim sendo, Saramago procura demonstrar que a leitura, quando desprovida de experiência e de envolvimento com o mundo não é capaz de desalienar o sujeito. Ricardo Reis, perante o que lê, é incapaz de encontrar a saída que procura e, ao colocar-se diante dos jornais, sente sono e tédio. Falta-lhe a coragem para se inquietar, para se tornar alguém que tem um compromisso, uma missão no mundo. A sua alienação não permite que encontre a saída do labirinto e, por isso, permanece um mero espectador do mundo, pois opor-se aos acontecimentos era um caminho que requeria posicionamento e ação. A Igreja alia-se ao Estado para ajudar o governo a controlar ideologicamente os mais pobres, servindo o Salazarismo. A ditadura de Portugal recorre a instrumentos policiais, políticos e ideológicos como a censura, a propaganda nos jornais (O Bovril), a perseguição (o cheiro a cebola) a
  • 12. tortura, a prisão e a institucionalização da Mocidade Portuguesa. São, pois, os valores pseudomoralizantes Deus, Pátria e Família que sustentam o regime que se constrói a par de outros, como o de Hitler na Alemanha, o de Mussolini em Itália, o de Franco em Espanha, como já vimos. Não podemos deixar de tecer algumas considerações relativamente à Mocidade Portuguesa. Esta é, hipocritamente, anunciada como estandarte do altruísmo da juventude, cujas atitudes eram conduzidas por um poder forte, não se apercebendo os seus seguidores da pressão ideológica do sistema. O narrador, continuamente interventivo e omnisciente apresenta-se como a voz do autor para quem a preocupação com a Pátria, com o mundo são alicerces das suas produções literárias como o próprio afirma. DEAMBULAÇÃO GEOGRÁFICA E VIAGEM LITERÁRIA Lisboa é o espaço que ocupa todo o romance. O percurso geográfico pela capital é feito pela Rua do Alecrim, a Rua dos Douradores, o Bairro alto, o Rossio, a Rua do Século, do Ouro, de Santa Justa, Largo de Camões, Largo de São Roque, apenas para dar alguns exemplos. Excetua-se Fátima, cidade dos milagres, que surge no romance no capítulo XIV, quando Ricardo Reis viaja até esse lugar para encontrar Marcenda. De um ponto de vista mais restrito, coexistem, no romance, dois espaços fundamentais: o Hotel Bragança, na Rua do Alecrim e, mais tarde, a casa que Ricardo Reis arrenda na Rua de Santa Catarina. Esta passagem de residência também não é acidental, como veremos mais à frente. Do local onde se hospeda ao local onde passa a residir, Ricardo Reis vai confrontar-se com situações inesperadas, perigos, resoluções que tem de tomar para conseguir sair do labirinto. As experiências que foram vividas por Ricardo Reis, enquanto hóspede do Hotel Bragança, como o facto de ter sido questionado pela PVDE, o medo que sentiu, a suspeição que causou e ainda causa nos hóspedes e nos empregados do Hotel Bragança levam-no a tomar a decisão de se mudar. No entanto, esta atitude determinada e que marca a projeção de um novo Ricardo Reis não se mantém na narrativa, apesar de exercer a profissão de médico durante algum tempo. O largo de Camões funciona como epicentro do romance. Daqui parte Ricardo Reis e até Saramago se considerarmos o início e o fim da narrativa. Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar [...] o tempo foi se passando nestas caminhadas e descobertas, parece este homem que não tem mais o que fazer, dorme, come passeia, faz um verso por outro, com grande esforço, penando sobre o pé e a medida, nada que se possa comparar ao contínuo
  • 13. duelo do mosqueteiro D’Artagnan, só os Lusíadas comportampara cima de oito mil versos, e no entanto este também é poeta, não que do título se gabe [...] mas um dia não será como médico que pensarão nele [...] não virá daí a fama, sim de ter alguma vez escrito. Ricardo Reis ao percorrer a cidade marca o seu ponto de orientação na estátua de Camões, daí a sua omnipresença ao longo do romance. Com efeito, os locais geográficos que atuam a nível real como, a título exemplificativo, o Largo de Camões (estátua de Camões), a Rua de Santa Catarina (para onde Ricardo Reis vai viver), local também dos mexericos das vizinhas, e o Alto de Santa Catarina (estátua do Adamastor), onde dois velhos, também eles de mexericos, esperam que RR esqueça o jornal no banco para que eles o possam ler, a rua do Alecrim (Hotel Bragança), a rua António Maria Cardoso (PVDE) são espaços que permitem a intertextualidade e assumem na obra um nível simbólico verdadeiramente rico no universo ficcional. Nestes encontramos o ambiente social e intelectual no qual os protagonistas se movem, caracterizando uma época no que esta apresenta de caricato na sua forma de pensar, sentir e agir. À viagemgeográfica liga-se a viagem literária e O ano da morte de Ricardo Reis estrutura-se a partir de duas dimensões intertextuais: o universo da obra pessoana, por um lado e, por outro, outras obras cuja referencialidade históricotemporal obriga o leitor a estar atento às mudanças nos discursos conhecidos, ou a reconhecer a transformação de sentido que constrói o novo discurso, muito em parte pela voz irónica e subversiva do narrador. As incursões pelos textos literários são constantes e voltando a Camões e à sua estátua que se ergue bem no centro da cidade e, como já se disse, funciona como ponto de orientação de Ricardo Reis. Esta assume uma simbologia própria para os portugueses como o protagonista afirma a Marcenda «Impossível imaginar Portugal sem o nosso Camões e sem Lusíadas» (Saramago: 179). Ainda no âmbito desta única epopeia portuguesa, surge a estátua de Adamastor, situada no Alto de Santa Catarina,11 espaço 11 É também um espaço para se explorar pelo seu ambiente de mesquinhez e coscuvilhice que acentua a caracterização do povo português. No andar arrendado por Ricardo Reis, vivem as senhoras, ávidas por saber quem é o arrendatário, qual a profissão, quem recebe, etc. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do Adamastor, aquele novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de interesse para matar as horas de ócio e de conversa. No entanto, há algo que conforta o novo inquilino que se traduz no facto de aquele segundo andar ter uma vista deslumbrante para o Tejo. 50
  • 14. emblemático, não só pela figura do Adamastor, o monstro inventado por Camões que é o símbolo dos obstáculos que os portugueses tiveram que enfrentrar, mas ao mesmo tempo representa a vontade e a coragem de um povo que os superou. No entanto, os caminhos e os perigos agora são outros, não se fazem por mar, nem por naus. Para os ultrapassar, ou seja, para enfrentar os perigos, a ditadura do Estado Novo, é necessária uma atitude de empenho social, que encontra paralelo em Ricardo Reis que, vindo do Brasil, também tem de enfrentar adversidades, agora, em terra firme. Contudo, não encontra solução para os problemas, porque não quer posicionar-se, porque permanece distante do espetáculo do mundo. Ricardo Reis não soube tornar-se um descobridor moderno e, por isso «o mar se acabou e a terra espera». (Saramago: 407) A conduta de Ricardo Reis é emblemática da sua inércia e, por extensão, da dos portugueses. Ao acompanharmos o protagonista pelos espaços geográficos de Lisboa, seguimos também a voz do narrador que, em conjunto, problematizam questões ideológicas fulcrais no romance e dignas de reflexão. O percurso que enceta pelas ruas de Lisboa, no sentido da sua existência como homem, como médico e como poeta é nem mais nem menos do que a procura por identificações, vestígios que o remetam à vida e ao contacto com as pessoas. Contudo, Ricardo Reis, a cada momento, vai-se afastando mais da vida por falta de identificação, pela impossibilidade de se situar na cidade labiríntica e de se relacionar com pessoas comquem convive. O duplo sentimento que nutre, por exemplo, por Marcenda e por Lídia sublinha a atitude de Ricardo Reis que não consegue perpertuar um compromisso. A sua dificuldade de posicionamente perante o mundo acentua-se na relação amorosa que vive com estas figuras femininas. REPRESENTAÇÕES DO AMOR Neste capítulo dedicado ao universo feminino e à relação que Ricardo Reis estabelece ora com Lídia, ora com Marcenda, seria oportuno ler e refletir sobre as palavras ditas por Maria Alzira Seixo em O essencial sobre José Saramago. ... nada do que diz respeito às personagens centrais corresponde à realidade, e assim se propõe, como ficção supra-real — o regresso comum de Fernando Pessoa da vida além-túmulo; a existência efetiva do heterónimo Ricardo Reis; a existência «deslocada» da sua musa Lídia, mais propriamente localizada na ideal Marcenda (cujo nome contrução gerundiva, que o próprio narrador aproxima de Blimunda do Memorial do convento tem a marca de continuidade inerente ao ritmo destes romances — alémda relação com o radical latino que o faz significar «a que está a enfraquecer», «a que vai murchar», em contraste explícito com as rosas «que nas Odes, e no Ano, sempre indicam Lídia». O texto do romance surge-no, assim, como um entrecruzado hábil do real e do imaginário, de textos literários pessoanos com o texto de Saramago (que integra, como sempre, grande capital do tesouro popular...). (Seixo: 48) 9.1 Lídia/Marcenda
  • 15. Neste sentido e após a leitura do texto transcrito, seria possível partir para a oposição existente entre as duas personagens. Na sua estadia por Lisboa, Ricardo Reis apresenta uma atitude de alienação face ao mundo que o rodeia em geral (basta lembrar, por exemplo, a sua incapacidade para ler as entrelinhas do discurso oficial que domina os jornais) e particularmente em relação às mulheres. No caso, no que diz respeito a Lídia e a Marcenda, não assume quaisquer das relações. Relativamente a Lídia assusta-o a realidade (o facto de ser pai) e a Marcenda, embora se esforce para ter uma atitude compromissiva (é a mulher a quem ele pede em casamento), a verdade é que a mesma se torna irreal, dado que não aceita o pedido, pois, com efeito, não resultaria, uma vez que ambos têm um problema que é o não parecer pertencer ao mundo real. No texto a seguir transcrito, um dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, o primeiro repreende o segundo, justificando a inabilidade deste face ao universo feminino. O que eu não esperava era que você fosse tão persistente amante, para o volúvel homem que poetou a três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixado carnalmente em uma, é obra, diga-me cá, nunca lhe apareceram as outras duas, Não, nem é caso para estranhar, são nomes que não se usamhoje, E aquela rapariga simpática, fina, a do 52 braço paralítico, você chegou a dizer-me como ela se chamava, Marcenda, É um gerúndio bonito, tem-na visto, Encontrei-a da última vez que esteve em Lisboa, o mês passado, Você gosta dela, Não sei, E da Lídia, gosta, é diferente, Mas gosta, ou não gosta, Até agora o corpo não se me negou, E isso que é que prova, Nada, pelo menos de amores, mas deixe de fazer perguntas sobre a minha intimidade, diga-me antes por que é que não tornou a aparecer. (Saramago: 174) Lídia (outra que não a musa das Odes de Ricardo Reis) e Marcenda são as personagens femininas centrais na obra porquanto se relacionam diretamente com o protagonista. Como é próprio de Saramago, o universo feminino das suas obras destaca-se por se tratar de heroínas ativas, fortes e decididas. Lídia é a primeira mulher que Ricardo Reis conhece (com Marcenda, apenas houve contacto visual) depois de se instalar no Hotel Bragança, onde ela é empregada e, mesmo ciente das diferenças sociais que não permitem ter uma vida em comum, vive intensamente a paixão relacionando-se com ela sexualmente. Marcenda, a filha de uma importante figura social de Coimbra, apresenta a mão esquerda sem mobilidade. Hospeda-se no Hotel Bragança. Ricardo Reis mantém com ela uma relação diferente da que tem com Lídia. É uma relação quase idealizada (apenas trocaram dois beijos), pois Marcenda é aquela que deve murchar. De facto, não é fácil para Ricardo Reis relacionar-se com as duas figuras femininas, como comprova o texto seguinte: O amor é difícil, meu caro Fernando, Não se pode queixar, ainda aí tem a Lídia, A Lídia é uma criada, E a Ofélia era datilógrafa, Em vez de falarmos de mulheres, estamos a falar das profissões delas, E ainda há aquela com quem você se encontrou no jardim, como é que ela se chamava, Marcenda, Isso, Marcenda não é nada, Uma condenação
  • 16. assimtão definitiva, soa-me a despeito, Diz-me a minha fraca experiência que despeito é o sentimento geral dos homens para com as mulheres, Meu caro Ricardo, nós devíamos ter convivido mais. (Saramago: 324-325) 9.1.1 Marcenda — o sonho sonhado A construção desta personagem, como a de muitas outras, deve-se ao facto de o escritor considerar que as personagens são representações de figuras reais e daí dizer o seguinte «Penso que as minhas personagens saemtodas da minha cabeça, neste sentido: não é que elas já cá estivessemantes, mas, no momento de as escrever, as personagens de que eu necessito apresentam-se-me, sem que eu tenha um caderninho de notas (os meus cadernos de notas não têm essas notas...) emfunção de qualquer coisa que tivesse visto. Há uma excepção, mas que nem sequer é uma personagem: a rapariga de O ano da morte de Ricardo Reis que tem o braço esquerdo paralisado nasceu num restaurante, mas não nasceu como personagem: de facto, eu não sei nada da vida dessa rapariga, só sei que estava sentado num restaurante e que havia um grupo de jovens, rapazes e raparigas, uns quatro ou seis, e havia uma rapariga que estava a comer e eu estranhava que ela estivesse a comer só com o garfo na mão direita. Até que, num certo momento, vi-a agarrar no braço e pô-lo sobre a mesa e isso impressionou-me muito. A mutilação, o defeito físico, tudo isso são coisas que impressionam muito, como injustiças. E quando precisei de inventar a Marcenda, que tem um nome que não existe, apresentou-se-me aquilo. Mas quando olhei para a rapariga não disse «isto dava uma personagem». Então insisto nisto: as minhas personagens nascemem cada momento, são impelidas pela necessidade e não são cópias, não são versões». (Reis, 1998: 131-132) Passaríamos para a análise do seguinte excerto: Tem vinte e três anos Marcenda, não sabemos ao certo que estudos fez, mas, sendo filha de notário, ainda por cima de Coimbra, semdúvida concluiu o curso liceal e só por ter tão dramaticamente adoecido terá abandonado uma faculdade qualquer, direito ou letras, letras de preferência, que direito não é tão próprio para mulheres, o árido estudo dos códigos, além de já termos um advogado na família, ainda se fosse um rapaz para continuar a dinastia e o cartório, mas a questão não é esta, a questão é a confessada surpresa de vermos como uma rapariga deste país e tempo foi capaz de manter tão seguida e elevada conversa, dizemos elevada por comparação com os padrões correntes, não foi estúpida nem uma só vez, não se mostrou pretensiosa, não esteve a presumir de sábia nem a competir com o macho, com perdão da grosseira palavra, falou com naturalidade de pessoa, e é inteligente, talvez por compensação do seu defeito, o que tanto pode suceder a mulher como a homem. Agora levantou-se, segura a mão esquerda à altura do peito e sorri, Agradeço-lhe muito a paciência que teve comigo, Não me agradeça, para mim foi um grande prazer esta conversa, Janta no hotel, Janto, Então logo nos veremos, Até logo. (Saramago: 129) É, pois, nesta personagem enigmática que surge no Hotel Bragança, vinda de Coimbra com seu pai e que mensalmente aí se hospeda que intriga Ricardo Reis. As visitas
  • 17. períodicas a Lisboa, a sua mão paralisada, o tratamento a que se submete para uma cura que se prevê impossível, despertam a curiosidade de Ricardo Reis. 54 Marcenda é uma jovem de 23 anos, de classe socialsuperior, filha de um prestigiado notário de Coimbra, (que encontra em Lisboa a fuga para os seus devaneios amorosos), culta, paciente e inteligente. Percebe a falsidade do pai, admite acompanhá-lo a Fátima, embora não acredite no milagre da cura para a sua mão, como não acredita nas sucessivas idas a Lisboa. De qualquer forma, é uma mulher moderna, não se coíbe de se encontrar, às escondidas do pai, com Ricardo Reis e, inclusivamente, tomar a iniciativa de o procurar, mas falha por não ter capacidade para contrariar o progenitor e o status quo da sociedade Embora se chame Marcenda, é ela quem se aproxima das musas de Ricardo Reis, comparando-se a Lídia, Cloe ou Neera. Marcenda adquire uma dimensão simbólica na obra que vai muito alémdo seu nome, da sua vertente psicológica, social ou moral. É, sobretudo, a sua mão esquerda, ou melhor, a paralesia da sua mão que envolve o texto de sentidos ao qual não é indiferente o autor do romance. Lembremo-nos que a inutilização da mão esquerda parece constituir uma marca de Saramago, presente também em Memorial do convento, Baltasar Sete-Sóis, o soldado maneta. Marcenda nunca chegará à atitude empreendedora e destemida de Lídia, pois, tal como Ricardo Reis, não sabe posicionar- se. Marcenda, a que tem de «murchar».12 No fundo, a inércia de Ricardo Reis é uma vez mais posta em causa, pois não só falha como homem, mas também como médico. Resta-lhe apenas a sua condição de poeta. 12 A este propósito seria interessante revisitar a Ode: Saudoso já deste verão que vejo, / Lágrimas para as flores dele emprego / Na lembrança invertida / De quando hei de perdê-las. / Transpostos os portais irreparáveis / De cada ano, me antecipo a sombra / Em que hei de errar, sem flores, / No abismo rumoroso. / E colho a rosa porque a sorte manda. // Marcenda, guarda-a; murche-se comigo / Antes que com a curva / Diurna da ampla terra. (Reis, 1991: 65) 9.1.2 Lídia — o real existente Começaríamos pela leitura do seguinte excerto: Lídia tem quê, os seus trinta anos, é uma mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto, se há importância em mencionar os sinais particulares ou as características físicas duma simples criada que até agora não fez mais que limpar o chão, servir o pequeno-almoço e, uma vez, rir-se de ver um homem às costas doutro, enquanto este hóspede sorria, tão simpático, mas tem o ar triste, não deve de ser pessoa feliz, ainda que haja momentos em que o seu rosto se torna claro, é como este quarto sombrio, quando lá fora as nuvens deixam passar o sol entra aqui dentro uma espécie de luar diurno, luz que não é a do dia, luz sombra de luz, e como a cabeça de Lídia estava em posição favorável Ricardo Reis notou o sinal que ela tinha perto da asa do nariz, Fica-lhe bem, pensou, depois não soube se ainda estava a 55 referir-se ao sinal, ou ao avental branco, ou ao adorno engomado da cabeça, ou ao
  • 18. debrum bordado que lhe cingia o pescoço, Sim, já pode levar a bandeja. (Saramago: 83) Lídia parece ter saltado das Odes de Ricardo Reis, passando de um contexto irreal, para a vida palpável e verdadeira. A empregada de hotel, de aproximadamente trinta anos, é uma mulher do povo, que se afasta da poesia e enfrenta o quotidiano. Ao contrário das Lídia, das Cloe ou das Neera, a Lídia do Hotel Bragança não acredita no amor platónico, não é passiva, nem contemplativa ou silenciosa (ver excerto em que Fernando Pessoa troça de Ricardo Reis quando falam de Lídia, página 63). É curiosa, gosta de discutir assuntos da atualidade, conhece-os. A Lídia, que também tão pouco é, fala Ricardo Reis dos sucessos do país vizinho, ela conta-lhe que os espanhóis do hotel celebraram o acontecimento com uma grande festa, nem a trágica morte do general os desanimou, agora não se passa uma noite que não haja garrafas de champanhe francês abertas. (Saramago: 243) Ela é o elo que transporta Ricardo Reis ao mundo real, surge como o fio que liga o protagonista a Lisboa, procurando apaziguar o seu percurso no «labirinto». Lídia não se encaixa nos limites do etéreo e, embora Ricardo Reis tente trazê-la da realidade para a poesia, não o conseguirá, pois ela à terra pertence, à vida e, por isso, esta figura feminina sente-se feliz, dentro dos seus limites, não sonha, contenta-se com o que a vida lhe vai dando. Não exige nada da vida, nem de Ricardo Reis. Aceita o destino, não tem medo de enfrentar o mundo, mas não deixa de ser um ser mais equilibrado e mais humano que Ricardo Reis ou Marcenda. Claro que tem a seu favor a voz do narrador, que se coloca do lado do povo, dos oprimidos. O povo é isto que eu sou, uma criada de servir que tem um irmão revolucionário e se deita com um senhor doutor contrário às revoluções, Quem é que te ensinou a dizer essas coisas, Quando abro a boca para falar, as palavras já estão formadas, é só deixá- las sair, Emgeral, pensamos antes de falar, ou vamos pensando enquanto falamos, toda a gente é assim, Se calhar, eu não penso, será como gerar um filho, ele cresce sem darmos por isso, quando chega a sua hora nasce, Tens-te sentido bem, Se não fosse a falta das regras, nem acreditaria que estou grávida, Continuas com essa tua ideia de deixar vir a criança, O menino, Sim, o menino, Continuo, e não vou mudar, Pensa bem, Eu, se calhar, não penso, dizendo isto Lídia deu uma risada contente. (Saramago: 367) 56 Atente-se, por exemplo, nos excertos cuja personagem feminina se destaca pela sua determinação. No primeiro, Lídia informa Ricardo Reis de que está grávida. Não foi nada, e ela sorri, mas a expressão do olhar tem outro sentido, vê-se bem que não está a pensar no abalo de terra, ficamassima olhar, tão distantes um do outro, tão separados nos seus pensamentos, como logo se vai ver quando ela disser, de repente, Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias. (Saramago: 345-346) No segundo, diz-lhe que não precisa de assumir a paternidade do filho de ambos se não quer.
  • 19. Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. (Saramago: 348) Podemos concluir com base nestes e noutros excertos que Lídia é também um ser de muita coragem para os tempos que se viviam. Contudo, e enquanto mulher corajosa, ativa não deixa de dar conta das diferenças sociais e admite algumsofrimento, tem consciência de que o seu amor seria diferente se pertencesse a uma classe social mais elevada, mas, mesmo assim, não desiste da vida, afasta-se da musa dos poemas13 e opta pela realidade, daí que não siga Ricardo Reis para o cemitério, dado que, como já se disse (e tão ao gosto de Saramago) à terra pertence. Segue, então, contrariamente a Ricardo Reis, pelo caminho mais difícil, mais amargo, pois a terra, essa simespera por pessoas que lutem para que as gerações vindouras tenham um futuro melhor. É Lídia a personagem que melhor encarna a luta, a não desistência, ao contrário de Ricardo Reis. Fernando Pessoa já nada pode fazer, pois está efetivamente morto e, por isso, Saramago coloca a esperança em Lídia, pondo-se do lado dela, deixando perceber que o futuro de Portugal exige pessoas como ela. Sozinha, enfrenta as agruras da vida e a sua gravidez simboliza justamente a crença num mundo melhor. Nem Fernando Pessoa, nem Ricardo Reis, nem Marcenda, nem os empregados de hotel, nem Victor têm a força, a vitalidade que esta personagem feminina demonstra ao longo do romance. Só ela, pela sua condição, pela sua capacidade interventiva, pelos seus traços de carácter 13 A este propósito seria interessante revisitar a Ode: Não queiras, Lídia, edificar no ‘spaço / que figuras futuro, ou prometer-te / Amanhã. Cumpre-te hoje não ‘sperando / Tu mesma és tua vida. / Não te destines, que não és futura. / Quem sabe se, entre a taça que esvazias, / E ela de novo enchida, não te a sorte / Interpõe o abismo? (Reis, 1991: 64) 57 tem capacidade para agir e transformar a sociedade. É Lídia que pisa o tédio da sua solidão, mas que enfrenta a vida, não colocando de lado a esperança. Também é quem contraria a imobilidade de Marcenda ou a inércia de Ricardo Reis. Reconhecêmo-la no grupo de marinheiros que se revolta no Tejo, embora acabe vencido. Com efeito, a terra acabou, a esperança desvaneceu-se, mas ficou o sinal, o filho de Lídia. Vejamos mais alguns exemplos desta força interventiva e nada alienada de Lídia. A fragilidade não faz parte do universo de Lídia, não tem medo, não fica assustada perante abalos de terra: Vamos morrer, disse Lídia, mas não se agarrou ao homem que estava deitado a seu lado, como devia ser natural, as frágeis mulheres, em geral, são assim, os homens é que, aterrorizados, dizem, Não é nada, sossega, já passou, dizem-no sobretudo a si próprios, também o disse Ricardo Reis, trémulo do susto, e tinha razão, que o abalo veio e passou, como por estas mesmas palavras foi dito antes. As vizinhas ainda gritam na escada, aos poucos vão-se acalmando, mas o debate prolonga-se, uma delas desce
  • 20. à rua, a outra instala-se à janela, ambas entram no coro geral. Depois, pouco a pouco, a tranquilidade regressa, agora Lídia volta-se para Ricardo Reis e ele para ela, o braço de um sobre o corpo do outro, ele torna a dizer, Não foi nada, e ela sorri, mas a expressão do olhar tem outro sentido, vê-se bem que não está a pensar no abalo de terra. (Saramago: 345) Quando diz a Ricardo Reis que está grávida, é ela novamente a figura que aparenta mais calma e objetividade, embora Ricardo Reis seja médico. O contraste entre estas duas personagens é visível e uma vez mais Lídia reflete a sabedoria que resulta da vivência, da experiência da vida e da intuição feminina.14 14 Seria igualmente curioso fazer uma aproximação do olhar de Lídia àquele que existe em Blimunda. Duas figuras femininas cujo olhar é especial, «nenhum sinal de gravidez à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância uma espécie de horizonte, se o há em olhos». (ll. 6-8) Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias. [...] Que foi que disseste, Tenho um atraso, acho que estou grávida, dos dois o mais calmo é outra vez ela, há uma semana que anda a pensar nisto, todos os dias, todas as horas, talvez ainda há pouco, quando disse, Vamos morrer, agora poderemos duvidar se estaria Ricardo Reis neste plural. Ele espera que ela faça uma pergunta, por exemplo, Que hei de fazer, mas ela continua calada, quieta, apagando o ventre com a ligeira flexão dos joelhos, nenhum sinal de gravidez à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão 58 dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância uma espécie de horizonte, se o há em olhos. Ricardo Reis procura as palavras convenientes, mas o que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença, assimcomo se, embora ciente de que é sua obrigação contribuir para a solução do problema, não se sentisse implicado na origem dele, tanto a próxima como a remota. (Saramago: 345) Ou, ainda, quando diz a Ricardo Reis que não voltará a vê-lo, subsiste a sua determinação, embora com algumas hesitações, daí as diferentas emendas que vai fazendo ao discurso. No entanto, Lídia que chora, não porque teme pela sua própria vida, mas pela do irmão, daí a necessidade de desabafar. Mais uma vez se vislumbra o contraste entre as duas personagens. Ela diz, Desculpe, senhor doutor, não tenho podido vir, mas quase sem transição emendou, Não foi por isso, pensei que já não lhe fazia falta, tornou a emendar, Sentia- -me cansada desta vida, e tendo dito ficou à espera, pela primeira vez olhou de frente para Ricardo Reis, achou-o com um ar envelhecido, estará doente, Tens-me feito falta, disse ele, e calou-se, dissera tudo o que havia para dizer. Lídia deu dois passos para a porta, irá ao quarto fazer a cama, irá à cozinha lavar a louça, irá ao tanque pôr a roupa em sabão, mas não foi para isto que veio, ainda que tudo isto venha a fazer, mais tarde. Ricardo Reis percebe que há outras razões, pergunta, Por que é que não te sentas, e depois, Conta-me o que se passa, então Lídia começa a chorar baixinho, É por causa do menino, pergunta ele, e ela acena que não, lança-lhe mesmo, em meio das
  • 21. lágrimas, um olhar repreensivo, finalmente desabafa, É por causa do meu irmão. Ricardo Reis lembra-se de que o Afonso de Albuquerque regressou de Alicante, porto que ainda está em poder do governo espanhol, soma dois e dois e acha que são quatro, O teu irmão desertou, ficou em Espanha, O meu irmão veio com o barco, Então, Vai ser uma desgraça, uma desgraça, Ó criatura, não sei de que estás a falar, explica-te por claro, É que, interrompeu-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que os barcos vão revoltar-se, sair para o mar, Quem to disse, Foi o Daniel em grande segredo, mas eu não consigo guardar este peso para mim, tinha de desabafar com uma pessoa de confiança, pensei no senhor doutor, em quem mais havia de pensar, não tenho ninguém, a minha mãe não pode nem sonhar. Ricardo Reis espanta-se por não reconhecer em si nenhum sentimento, talvez isto é que seja o destino, sabermos o que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e ficarmos quietos, olhando, como puros observadores do espetáculo do mundo. (Saramago: 260) 59 10. INTERTEXTUALIDADE: O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS EM DIÁLOGO COM OUTROS TEXTOS São várias e diversas as referências literárias ao longo do romance, nomeadamente a nível da prosa e da poesia. Salientam-se escritores como Camões, Fernando Pessoa, Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Gonçalves Dias, Camilo Pessanha, Eça de Queirós entre outros. Incidiremos sobre os intertextos previstos no programa, mas acrescentaremos outros que nos parecem significativos. A questão da intertextualidade é, pois, fundamental no romance moderno e segundo Ana Margarida Ramos trata-se «de um elemento bastante importante do texto literário. É comummente aceite a ideia que qualquer texto literário mantém com outros textos (literários e não literários), de forma mais ou menos explícita, relações de proximidade, de diálogo ou até de oposição e de crítica» (Ramos, 1999: 33). Este fenómeno de intertextualidade possibilita a presença no romance em estudo de várias vozes, no caso, de um narrador que se apresenta com diversas funções e serve-se do texto, ou dos intertextos, se quisermos, para mostrar as múltiplas funcionalidades que o romance encerra. Pela composição em que se entrelaçam discursos prévios e novos enunciados, os sentidos dessa nova trama textual são dinamizados, multiplicados, adquirem sentidos novos e apontam para direções diversas daquelas dos discursos originais. 10.1 José Saramago, leitor de Luís de Camões Como já se viu, o romance inicia-se e termina com a recuperação dos versos de Os Lusíadas, designadamente na utilização do Canto III, e já abordada no capítulo cinco consagrado à circularidade da obra (pág. 22), os quais possuem grande representatividade no romance. São, ainda, diversos os trechos que dialogam direta ou indiretamente com o romance O ano da morte de Ricardo Reis. Deste modo, a fala do Velho do Restelo surge no seguimento da caracterização de Fernando Pessoa, já que possui «um saber feito da experiência» (Saramago: 94) ou ainda, num dos encontros
  • 22. entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis que, ao conversarem sobre a solidão, surge a linha seguinte: «Como disse o outro, solitário andar entre a gente» (Saramago: 220). No seguimento de Os Lusíadas apresenta-se a frase «morreu de bexigas uma rapariga de dezasseis anos, pastoril florinha, campestre, lírio tão cedo cortado 60 cruelmente» (Saramago: 29) a lembrar a morte precoce de Inês de Castro. Camões é o poeta que é constantemente revisitado no romance, não só a nível da epopeia, mas também das Rimas. O soneto «Amor é fogo que arde sem se ver» surge no romance, na página 220, num dos encontros entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, após este último se ter mudado para o Alto de Santa Catarina («Como disse o outro, solitário andar por entre a gente»). A estátua de Camões, marco geográfico e simbólico no romance, como já foi dito, remete ainda para a petrificação do tempo e da história e conjuga-se com outras imobilizações, mais reais, como é o caso de Marcenda. É agora a vez de tomarmos como igualmente importante a figura do Adamastor que Camões criou no Canto V de Os Lusíadas e cuja estátua surge no Alto de Santa Catarina, olhando o Tejo. Esta representa o heroísmo dos portugueses, estes homens que se aventuraram, no século XVI, por «mares nunca de antes navegados», pois o monstro é o principal símbolo dos obstáculos que os portugueses corajosamente enfrentaram. Mas o tempo é outro, o mar já se «acabou», o também o Adamastor é outro, a sua atitude é mais silenciosa, apática como comprovam os excertos seguintes: Voltou à parte da frente da casa, ao quarto, olhou pela janela suja a rua deserta, o céu agora coberto, lá estava, lívido contra a cor plúmbea das nuvens, o Adamastor bramindo em silêncio; (Saramago: 212) sobre as costas de Adamastor cai uma já esmorecida luz, rebrilha o dorso hercúleo, será da água que vem do céu; (Saramago: 215); e Vê-o [Adamastor] daí, Vejo, pobre criatura. (Saramago: 221) É necessário dar início à mudança, é necessário que os contempladores do «espetáculo do mundo» comecem a agir. A estátua surge também para dar conta de outro plano, o do amor, o amor impossível, tal e qual aquele que outrora o Adamastor sentira por Tétis. Não seria abusivo fazer aqui uma aproximação aos amores de Ricardo Reis e Lídia. Se Ricardo Reis não rejeitasse, ou melhor, lutasse pelo amor, se permanecesse ao lado de Lídia, este poderia ter tido uma atitude mais ativa e teria, 61 decididamente, ultrapassado a sua incapacidade de participação na vida e não teria voltado ao mundo das Odes [...] serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para profecias menos que óbvias, anunciar naufrágios a quem anda no mar, para isso são precisos dons divinatórios particulares. Profetizar desgraças sempre foi sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e outro teria sido o discurso dele. (Saramago: 221)
  • 23. 10.2 José Saramago, leitor de Cesário Verde Os percursos que Ricardo Reis, enquanto observador acidental, vai fazendo por Lisboa permitem que o leitor se aproxime da poesia de Cesário Verde, nomeadamente do poema «O sentimento dum ocidental», em que a deambulação pela cidade permite caracterizá-la como feia, suja, solitária, triste, a cidade que oprime e aprisiona e que acentua a nostalgia por um mundo que já não volta. Os ecos de Cesário Verde prolongam-se através da perceção sensorial da realidade, da problemática da questão social que coloca em confronto uma Lisboa desigual, onde, de um lado há os ricos e de outro os pobres, os oprimidos e humilhados (cf. os pontos 12.1, 12.2, 12.4 e 12.5 do capítulo «Outros episódios de referência», página 92). 10.3 José Saramago, leitor de Fernando Pessoa Sem dúvida que Fernando Pessoa é o poeta mais destacado, pois nele vivem «inúmeros». Assimsendo e além dos versos do ortónimo, dos quais destacamos a referência a «O menino de sua mãe» quando, o narrador num discurso prospetivo se refere ao filho de Lídia e Ricardo Reis que nascerá em março do ano seguinte, tempo em que a Mocidade Portuguesa já existirá e quando o rapaz tiver 24 anos participar igualmente na guerra colonial e diz então o narrador «em que abandonados plainos... de balas trespassado» (Saramago: 382). Mas a Mensagem está também presente no romance em versos reconstituídos dos quais é exemplo o poema «O Infante», ao parodiar o verso «Falta cumprir-se Portugal» que O ano da morte de Ricardo Reis revisita «você tem que reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem sequer precisávamos receber o Salazar de presente, somos nós o próprio 62 Cristo, Você não devia ter morrrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal vai cumprir-se». (Saramago: 273) De igual modo os versos «Tudo vale a pena / se a alma não é pequena» do poema «Mar Português» reduzem-se substancialmente ao serem comparados aos interesses políticos da época conforme se verifica no seguinte excerto: «Mesmo que não vamos a tempo, sempre valeu a pena, seja a alma grande ou pequena, como mais ou menos disse o outro» (Saramago: 342). 10.4 José Saramago, leitor de Ricardo Reis Contudo, é em relação a Ricardo Reis que os intertextos se expandem, facto indiscutível pela importância que assume na obra enquanto protagonista e figura dual no sentido em que ocorre um Ricardo Reis pessoano e um Ricardo Reis saramaguiano O narrador não deixa de manter no protagonista as características criadas por Fernando Pessoa, para que o leitor o identifique como tal, mas, ao mesmo tempo, ao «ressuscitá-lo» para o mundo real pretende que este adote uma existência diferente e, em vez de permanecer passivo perante a vida, se revele um ser comprometido com as questões do quotidiano, daí que todo o universo poético do heterónimo Ricardo Reis seja revisitado pela voz crítica do narrador «nem sabe Ricardo Reis o que perde por ser adepto de religiões mortas» (Saramago: 315) ou ainda «mas os deuses de Ricardo Reis
  • 24. são outros, silenciosas entidades que nos olham indiferentes» (Saramago: 66). Conclui- se, portanto, que o Ricardo Reis saramaguiano tem de enfrentar as questões do dia a dia que dizem respeito à humanidade. Noutro trecho, quando Ricardo Reis fica a saber que a criada do hotel se chama Lídia, junta Saramago vários versos do poeta: Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia, a quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte. (Saramago: 46) Ricardo Reis, o poeta das Odes, vive o amor espiritual, platónico, e o nome Lídia, a sua musa, surge a marcar a intenção do poeta, a de colocar Ricardo Reis num mundo material, perante uma Lídia marcada pelo vigor físico, psicológico e dotada de uma visão objetiva do mundo que a rodeia. 63 De igual modo, a paisagemtípica da poesia horaciana onde Lídia e o poeta se sentam à beira do rio, lugar tranquilo e bucólico, junto a uma natureza idealizada é confrontada, no texto de Saramago, com a paisagem real da cidade de Lisboa, e de um rio que em grande parte da ação é descrito como enlameado e turbulento. Ricardo Reis, no entanto, preso à imagem idealizada de suas Odes, em conversa com Marcenda define-se como «Um homem sossegado, alguém que se sentou na margem do rio a ver passar o que o rio leva, talvez à espera de se ver passar a si próprio na corrente» (Saramago: 291). Os versos de Ricardo Reis não são só referidos, constituem também o próprio discurso narrativo, como se verifica em «Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria (Saramago: 86)15. Há momentos em que o protagonista se sente afastar do poeta Ricardo Reis «sinto que quem sou e quem fui são sonhos diferentes» (Saramago: 256). Na sua relação amorosa, é também visível o afastamento. O ser contemplativo, que não assume compromissos, transforma-se para se envolver com a amada. 15 Ode: Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo (Reis, 1991: 90) 16 Ode (Reis, 1991: 144) A referência à Ode de Ricardo Reis «Vivemem nós inúmeros»16 é privilegiada ao logo do romance muito em parte por estar relacionada com a explosão heteronímica e por Ricardo Reis viver vários conflitos na sua passagempor Lisboa, a cidade labirinto. «Vivem em nós inúmeros» (Saramago: 23); «porque é inúmeros» (Saramago: 27); «um dos inúmeros» (Saramago: 27); «Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, [...] porque é inúmeros» (Saramago: 21-22); RR ao contemplar-se no espelho «um dos inúmeros que é» (Saramago: 23) 10.5 José Saramago, leitor de Alberto Caeiro O poema «O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia» de Alberto Caeiro surge a iniciar a narrativa aquando da descrição do navio Highland Brigade que passa por vários cais e «agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia».
  • 25. (Saramago: 11) e é revisitado quando RR, num dos seus percursos por Lisboa, se encontra junto ao cais e à distância contempla os contratorpedeiros, «aqueles que têm nomes de rios, Ricardo Reis não se recorda de todos eles, ouviu pronunciá-los ao bagageiro como uma 64 ladainha, havia o Tejo, que no Tejo está, e o Vouga, e o Dão que é este mais perto, disse o homem, aqui está pois o Tejo, aqui estão os rios que correm pela minha aldeia» (Saramago: 111) e ainda o mesmo poema ocorre, quando Ricardo Reis refere que «este Tejo que não corre pela minha aldeia, o Tejo que corre pela minha aldeia chama-se Douro, por isso, por não ter o mesmo nome, é que o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia». (Saramago: 111). 10.6 José Saramago, leitor de Álvaro de Campos Álvaro de Campos, presente no romance através do cansaço, fruto da angústia existencial, tal e qual a sensação que Ricardo Reis demonstra quando chega a Lisboa. Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono de alma, um desepero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para pronunciar a palavra e entendê-la. (Saramago: 18) O poema «Tabacaria» ecoa quando Ricardo Reis, embora indiretamente, diz «nada sabemos, e se soubéssemos, que saberíamos» (Saramago: 92) e de «Adiamento» quando, ao refletir sobre a própria inércia, refere «porque o mais certo é estarmos cansados» (Saramago: 68) e ainda quando diz «nunca recebi uma carta que só de amor fosse, e também nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou minha metade» (Saramago: 26) a lembrar em jeito o poema «Todas as cartas de amor são ridículas», o qual é citado pelo narrador que, ao referir-se a Ricardo Reis, comenta «há homens com muita sorte, e este ainda queixoso só porque não recebeu de Marcenda uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas» (Saramago: 261). 10.7 Outros intertextos significativos E não são somente os poemas que se cruzam, mas também a prosa. Deixamos uma nota a outros textos que nos parecem importantes no universo da narrativa. 65 10.7.1 José Saramago, leitor de Jorge Luis Borges É interessante debruçarmo-nos sobre o livro que Ricardo Reis trouxera por esquecimento do Highland Brigade, uma vez que, simbolicamente, está ligado à problemática da «máscara» tão grata a Fernando Pessoa e da indagação interior constante acerca da identidade. No caso de Ricardo Reis a questão é a seguinte: Quem sou eu, nesta Lisboa, agora revisitada? Neste sentido, ganha forma significativa o livro The god of the labyrinth, livro fictício escrito pelo também fictício Herbert Quain, ambos invenções de Jorge Luis Borges. A esta ficção de ficção não é alheia a ironia de Saramago, pois também Ricardo Reis adquire um estatuto de realidade dado pelo seu criador. A metáfora do labirinto evocada pelo título do romance apresenta múltiplas significações, primeiro, porque o próprio livro e o autor não passamde ficções,
  • 26. segundo, porque Ricardo Reis procura a sua identidade e daí a semelhança encontrada no nome «quain» que soa a «quem», terceiro, porque o livro acompanha Ricardo Reis durante nove meses e ao fim destes leva-o consigo para o Cemitério dos Prazeres, quando decide acompanhar o seu criador. Ricardo Reis não soube ler o livro e já não o poderá ler mais, dado que «a leitura é a primeira virtude que se perde» (Saramago: 406). Mesmo não o podendo ler depois de morto, leva-o consigo, pois como o próprio afirma deixa «o mundo aliviado de um enigma» (Saramago: 407). 10.7.2 José Saramago, leitor de Padre AntónioVieira Quando se refere à sociedade, nomeadamente à ambição, é impossível não reparar no diálogo que o romance estabelece com O sermão de Santo António aos peixes de Padre António Vieira.17 17 Além da alusão direta a o Sermão de Santo António aos Peixes (tópico de conteúdo do 11.º ano), ao longo do romance é possível verificar influências de Padre António Vieira na aproximação do discurso barroco, presentificado no uso de trocadilhos, na alternância entre frases curtas e frases longas, no jogo de palavras, entre outras características. e às vezes nem é preciso comprá-los, que eles oferecem-se baratos, a troco duma tira de pano no braço, em troca do direito de usar a cruz de cristo, agora com letra minúscula, para não ser tão grande o escândalo. (Saramago: 387). 66 10.7.3 José Saramago, leitor de Eça de Queirós A obra A relíquia, de Eça de Queirós, é revisitada no romance como atesta o excerto: Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia, parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir semse enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria cm igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarema ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar. (Saramago: 59-60) A frase de Eça de Queirós presente n’A relíquia «Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da verdade» é aproveitada por José Saramago que a subverte para «Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade» (Saramago: 60) a mostrar o lado crítico do narrador.
  • 27. 10.7.4 José Saramago, em intertextualidade com Memorial do convento José Saramago vai para além da intertextualidade heteroautoral18 e percebe-se a presença de outros textos do autor (intertextualidade homoautoral) nomeadamente com Memorial do convento. 18 Segundo Vitor Aguiar e Silva «a intextextualidade é entretecida pelo diálogo de vários textos, de várias vozes e consciências». Este dialogismo, na sua dinâmica originária e essencial, é heteroautoral [...]. Conjuntamente com a intertextualidade homoautoral: textos de um autor podem manter relações intertextuais — e relações privilegiadas — com outros textos do mesmo autor, numa espécie de autoimitação marcada tanto pela circularidade narcisista como pela alteridade (ao autoimitar-se, ao autocitar-se, o autor espelha-se a si mesmo e é, no entanto, já outro). (Silva: 630-631) são tudo coisas do céu, aviões, passarolas ou aparições. Não se sabe por que lhe deu [a RR] veio à ideia a passarola do padre Bartolomeu de Gusmão, primeiro não soube, mas depois, tendo refletido e procurado, admitiu que por sub-racional associação de ideias tivesse passado deste exercício de hoje para os bombardeamentos da praia 67 Vermelha e da Urca, deles, por tudo ser brasileiro, para o padre voador, finalmente chegando à passarola que o imortalizou, cuja não voou nunca, mesmo que alguém tenha dito ou venha a dizer o contrário. (Saramago: 331) e também este nome de Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro lugar, femininos, mas de raça gerúndia, como Blimunda, por exemplo, que é nome à espera de mulher que o use...» (Saramago: 344) e ainda Nós não somos nada, os pedreiros e os boeiros de Mafra. (Saramago: 366) Além do exposto, em O ano da morte de Ricardo Reis são retomadas, além de escritores portugueses de várias épocas, e de estrangeiros, outras fontes textuais como, por exemplo, a Bíblia. O recurso a expressões biblícas, estas, muitas vezes, aproveitadas de forma crítica, são colocadas na voz de Ricardo Reis pela mão do narrador ou enquanto discurso dele próprio. Apresentamos alguns exemplos ilustrativos desta faceta do narrador: [...] expulsaria os vendilhões do templo, restauraria o altar da pátria, restituiria a Espanha a imorredoura grandeza que alguns seus degenerados filhos haviam feito decair. (Saramago: 363) Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de Mateus e Marco, Deus meu, Deus meu por que me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, ou as de João, Tudo está cumprido. (Saramago: 58) Para além desta porta, fechada para sempre, lhe tinha ela dado a maçã, ofereceu-a sem intenção de malícia nem conselho de serpente, porque nua estava, por isso se diz que Adão só quando trincou a maçã é que reparou que ela estava nua, como Eva que
  • 28. ainda não teve tempo de se vestir, por enquanto é como os lírios do campo, que não fiam nem tecem. (Saramago: 217) Ou ainda quando Ricardo Reis vai a Fátima e vê-se no meio de gente que espera um milagre, nomeadamente no episódio do homem morto na estrada, diz o narrador a lembrar a passagemda Bíblia de Cristo com Lázaro Se este velho se chamasse Lázaro e se aparecesse Jesus Cristo na curva da estrada [...] clama, Lázaro, levanta-te e caminha. (Saramago: 303) 68 Ou ainda ao referir-se à Mocidade Portuguesa e ao modo forçoso como os jovens aderiam ao sistema são jovens patriotas que não quiseram esperar pela obrigatoriedade que há de vir, eles por sua esperançosa mão, em letra escolar, sob o benévolo olhar da paternidade, firmaram a carta, e por seu firme pé a levam ao correio, ou trémulos de cívica comoção a entregam ao porteiro do ministério da Educação Nacional, só por respeito religioso não proclamam, Este é o meu corpo, este é o meu sangue, mas qualquer pessoa pode ver que é grande a sua sede de martírio. (Saramago: 368-269) Acrescentamos outros excertos exemplificativos do recurso a frases da Bíblia ou da sua subversão. Aquele de vós que se achar sem pecado, atire a primeira pedra (Saramago: 293) amarás o teu próximo como a ti mesmo (Saramago: 153) não lhes perdoeis, Senhor, que eles sabem o que fazem (Saramago: 297)19 19 Intertextualidade com o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, «As pessoas sensíveis». Deus castiga sem pau nem pedra (Saramago: 365) começa a chorar ali mesmo como uma Madalena (Saramago: 379) venha a nós o vosso reino (Saramago: 381) 10.8 Literatura tradicional oral A intertextualidade não se esgota e é agora a vez de nos referirmos a outros textos da literatura oral tradicional que, embora desprovidas de marcas autorais, constituem o enriquecimento da narrativa do ponto de vista ideológico, mas, principalmente, servem a intencionalidade do autor. Estas referências surgem, por vezes, transformadas, mas todas dão conta da ironia que percorre o romance, como se verifica nas referências ao conto universal A Bela adormecida: O hotel está em grande silêncio, é o palácio da Bela Adormecida, donde já a Bela se retirou ou onde nunca esteve [...] de repente soou o distante besouro da entrada, deve ser príncipe que vem a beijar a Bela, chega tarde, coitado. (Saramago: 47-48). Estão também presentes a cantiga infantil «Fui ao jardim da Celeste» (Saramago: 403) e a cantiga regional, no caso, nazarena, «Não vás ao mar Tonho, podes morrer Tonho, ai Tonho Tonho» (idem). 69
  • 29. 11. LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA 11.1 A estrutura da obra Quanto à estrutura externa, o romance de Saramago organiza-se em dezanove capítulos. A ação, cronologicamente passada durante nove meses, entre dezembro de 1935 a setembro de 1936, dá conta das digressões do narrador que recorre a analepses e prolepses e, simultaneamente, inclui momentos de intertextualidade notáveis. Regressaríamos ao ponto já tratado na página vinte e um (a estrutura circular do romance) e relembraríamos os capítulos primeiro e último, nomeadamente na referência a Os Lusíadas e à transformação do verso oito da estância vinte, Canto III «onde a terra acaba e o mar começa» em «Aqui onde o mar acaba e a terra principia», capítulo I (Saramago: 11) e «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera», referente ao capítulo final (XIX). (Saramago: 407) Seria, agora, o momento de relembrar o conceito de paródia e recuperar a estrutura circular e, sob a forma de revisão, reter o objetivo fulcral da obra que é o de, indiretamente, colocar o leitor não numa atitude de espectador do mundo, mas na de abraçar um futuro empreendedor, pois a terra continua à espera de pessoas interventivas, dinâmicas, capazes de mudar a sociedade. A circularidade vai mais longe, se atentarmos no percurso das personagens — chave do romance: Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Inicia-se o romance com a morte de Fernando Pessoa, aliás, este será umdos motivos do regresso de Ricardo Reis para, depois de nove meses, se dar a sua morte. Durante este período de tempo, da morte (de Fernando Pessoa) para a morte (de Ricardo Reis), assistimos a umFernando Pessoa, morto, que acaba por descobrir que nada é importante, esquecendo, portanto, a vida real que vivenciou e um Ricardo Reis inexistente, produto da criação pessoana, que se assume no romance como um ser de carne e osso, que amou carnalmente, que exerceu a sua profissão de médico (contrastando com o autor das Odes). Ao libertar-se literariamente do seu progenitor, tentou compreender a sociedade, sair do labirinto em que se encontrava, mas as tentativas falharam e, no fim, acompanha o seu criador ao Cemitério. Se nos aspetos formais, o estilo de Saramago excede em riqueza literária, é, também, na composição da narrativa que se impõe a originalidade deste romance. O facto de Saramago enveredar por caminhos pessoanos, abordar 70 assuntos relativos à grande personalidade que foi Fernando Pessoa, não terá sido tarefa fácil, parece-nos, a julgar a força poderosa da criatividade do escritor de Orpheu. Fantasmagoricamente, Saramago coloca o poeta, que não pertence ao mundo dos vivos a dialogar com uma das suas criações, o heterónimo Ricardo Reis. O fantasma Fernando Pessoa encontra- se com Ricardo Reis, um homem, cujo romance lhe confere uma vida real, que chega a Lisboa, em 1936, vindo do Brasil. Os papéis são invertidos numa narrativa que se constitui singular através dos vários encontros presenciais, da imagem que Ricardo Reis persegue no Carnaval (presume-se que seja a de Fernando Pessoa) e, no fim, em que ambos se dirigem para o Cemitério. Nos intermédios e pelo olhar de ambos e de
  • 30. todo um conjunto de personagens físicas ou simbólicas, conseguiu José Saramago uma magia literária, ímpar na lieratura nacional e internacional. 11.2 O tom oralizante e a pontuação Não seria demais voltar à escrita de Saramago e desmistificar a ideia de que o autor não sabe pontuar. Em primeiro lugar, perceber que na primeira fase de escrita, sensivelmente antes da produção de Levantado do chão (1980), Saramago utiliza o regular discurso direto com os dois pontos e o travessão, o que facilitará o entendimento dos alunos e colocá-los-á perante a intencionalidade do autor no recurso a esta estratégia. As palavras dadas a Carlos Reis na obra Diálogos com Saramago (1998) constituem uma explicação facilmente aceite por todos que a seguem como experiência. Com efeito, se lida em voz alta, consegue um efeito surpreendente, em que os sinais convencionais de pontuação não fazem falta. Em segundo, porque o que pretendeu Saramago foi aproximar o texto escrito da oralidade como ele próprio explica na obra supracitada. Explico-a da maneira mais fácil. Em primeiro lugar, devo lembrar que, como toda a gente sabe, a pontuação é uma convenção. [...] Mas isso tem outra razão é que nós, quando falamos, não usamos sinais de pontuação. É uma velha declaração minha. Fala-se como se faz música, com sons e com pausas [...]. Os valores de expressão resultam, evidentemente, dos órgãos fonadores e, no caso da comunicação oral e em presença, dependem do gesto, da expressão do olhar, da suspensão da voz, do modo como a voz vibra, de todas essas coisas [...]. E ele (o leitor) só pode entender o texto se estiver dentro dele, se funcionar como alguém que está a colaborar na finalização de que o livro necessita, que é a sua leitura. (Reis: 101-102) 71 A ausência da pontuação convencional de modo algum prejudica o texto. Pode enriquecê-lo do ponto de vista da aproximação ao oral e, portanto, torna- -se muito mais vivo e dinâmico a nível das intervenções das personagens que apresentam registos de língua diversificados de acordo com o seu estatuto social. 11.3 Os ditados populares/os aforismos A força da escrita de José Saramago reside na lucidez permanente com que encara a sociedade, permitindo-lhe criar uma extraordinária visão do homem e do mundo. O ano da morte de Ricardo Reis é um romance em que a narrativa assume contornos verdadeiramente excecionais pela fusão dos ecos de uma literatura erudita e da oralidade da literatura tradicional. Servindo-se da parataxe, juntando o diálogo com o descritivo e os comentários introspetivos, consegue o escritor envolver o leitor, cuja intencionalidade é levá-lo à reflexão, a qual é reforçada pelo recurso à função fática. Nesta aproximação ao oral, o narrador faz digressões, ora prospetivas, ora retrospetivas, apela para a memória do leitor, serve-se de expressões e de ditados populares, ou partindo deles, subverte-os. Vejamos alguns exemplos: O teu mal é sono (Saramago: 47) na ocasião se faz o ladrão (Saramago: 57) sol que é de pouca dura (Saramago: 61)
  • 31. as paredes têm olhos (Saramago: 89) lá de longe em longe, quando o rei faz anos (Saramago: 118) de muito ladrar e pouco morder (Saramago: 142) Quando mal, nunca pior (Saramago: 149) Este ar de Espanha que vento trará, que casamento (Saramago: 149) Anda cá ó filho de um cabrão (Saramago: 156) Vai bardamerda. (Saramago: 160) No Carnaval nada parece mal. (Saramago: 157) foi sol de pouca dura (Saramago: 170) são mais as marés que os marinheiros. (Saramago: 170) não vás dar com a língua nos dentes. (Saramago: 171) todos os caminhos portugueses vão dar a Camões (Saramago: 176) 72 perdem o tento na língua (Saramago: 178) Longe vá o agoiro. (Saramago: 188) nem sempre galinha nem sempre sardinha (Saramago: 198) o que tem de ser tem de ser e tem muita força (Saramago: 202) visita de médico (Saramago: 213) deitar cedo e cedo erguer (Saramago: 218) os vizinhos são para as ocasiões (Saramago: 224) mais fica para amanhã (Saramago: 229) que lambisgoia é esta (Saramago: 232) Como quem não quer a coisa (Saramago: 243) pode ser que haja ali arrranjinho (Saramago: 245) os homens são uns rabaceiros, aproveitam tudo (Saramago: 245) se calhar é da mula ruça, e isto de homens, quem não os conhecer que os compre (Saramago: 245) Uma memória que puxa e um esquecimento que empurrra (Saramago: 267) nem toda a gente vai para a cama com as galinhas (Saramago: 268) quem tem boca vai a Roma (Saramago: 269) Quem tem boca vai a Roma (Saramago: 269) ó patego, olha o balão (Saramago: 278) O primeiro milho é dos pardais (Saramago: 291) guarda o que não presta e encontrarás o que é preciso (Saramago: 304) quem olhar para ti parece que não partes um prato, e lá de vez em quando deitas abaixo o guarda-louça (Saramago: 320-321) casinhoto dos Prazeres (Saramago: 322) ninguém faça o mal à conta de que lhe venha bem (Saramago: 339) Depois de burro morto, cevada ao rabo (Saramago: 342) não há bem que sempre dure (Saramago: 349) o silêncio é de oiro e o calado é o melhor (Saramago: 364)
  • 32. Deus castiga sem pau nem pedra, de fogo é que já tem uma longa prática (Saramago: 365) quanto mais alto se sobe, mais longe se avista (Saramago: 367) Com os pés para a cova (Saramago: 371) 73 Começa [Lídia] a chorar ali como uma madalena (Saramago: 379) grandes remédios para grandes males (Saramago: 385) O predomínio da tradição popular serve, entre outros propósitos ideológicos, para reafirmar a importância da voz do povo, dos que não têm lugar na história, tal como se verifica em Memorial do convento. São os excluídos que assumemum estatuto privilegiado, daí produzir um discurso que congrega duas instâncias fulcrais: a recuperação da tradição oral e a História, não a que é apresentada nos jornais ou na telefonia, mas a que resulta da sua reinterpretação. Esta é também recebida pelo leitor que se deixa levar pela voz do narrador, ora judicativo, ora comentador, que, continuamente, estabelece um diálogo com o narratário. A recuperação da tradição popular, mais do que recurso estilístico, constitui uma forma de problematizar uma realidade histórica e, por consequência, levar à reflexão sobre o homem, a vida e a condição humana. 11.4 Recursos expressivos O discurso saramaguiano é fértil em recursos de estilo, marcando substancialmente as descrições visualistas, dotadas de um realismo surpreendente e de um rigor de pormenor extraordinário. Na impossibilidade de referir todos os recursos estilísticos presentes ao longo do romance apontaremos aqueles que o programa indica, tentando oferecer extratos significativos, alguns recuperados de trechos referidos ao longo deste trabalho. No entanto, ambos surgem para facilitar o estudo da obra e abrir possibilidades de escolhas. Assimdestacamos exemplos20 de: 20 Nos casos emque as frases são longas, sublinharemos a parte em que o recurso expressivo utilizado é mais notório. Antítese terra riquíssima em pobres (Saramago: 67) uma multidão negra que enche a rua em toda a largura, alastra para cá e para lá, ao mesmo tempo paciente e agitada (Saramago: 66). Sonhar é ausência, é estar do lado de lá, Mas a vida tem dois lados, Pessoa, pelo menos dois, ao outro só pelo sonho conseguimos chegar, Dizer isso a um morto, que lhe pode responder, com o saber feito da experiência, que o outro lado da vida é só a 74 morte, Não sei o que é a morte, mas não creio que seja esse o outro lado da vida de que se fala, a morte, penso eu, (Saramago: 90). Comparação todas juntas fazem uma nódoa parda, negra, de lodo mal-cheiroso, como a vasa do Cais do Sodré. (Saramago: 67)
  • 33. Ricardo Reis fez uma pausa, parecia refletir, depois, debruçando-se, estendeu as mãos para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco para a frente e, continuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a entre as mãos dele, como uma ave doente, asa quebrada, chumbo cravado no peito. (Saramago: 78) Enumeração outros bairros, outras paróquias, outras beneficiências (Saramago: 67) E há febres por aí, tosses, umas garrafinhas de aguardente... (Saramago: 67) Este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia. (Saramago: 85) Que nau, que armada, que frota pode encontrar o caminho (Saramago: 177) Ironia Tinha boas razões, ainda que apenas duas, a primeira, porque só lhe apetecia falar da noite de teatro e de quanto acontecera, mas não com Fernando Pessoa, a segunda, porque nada mais natural que entrar-lhe Lídia pelo quarto dentro, não que houvesse o perigo de se pôr ali aos gritos, Acudam, um fantasma, mas porque Fernando Pessoa, embora lhe não estivesse no feitio, podia querer deixar-se ficar, coberto pela sua invisibilidade, ainda assim intermitente segundo os humores da ocasião, a assistir às intimidades carnais e sentimentais, não seria nada impossível, Deus, que é Deus, costuma fazê-lo, nem o pode evitar, se está em toda a parte, mas a este já nos habituámos. (Saramago: 113) Metáfora cada pobre é fiscal doutro pobre (Saramago: 67) esta gente [...] tantos descalços, todas juntas fazem uma nódoa parda (Saramago: 67) 75 11.5 Reprodução do discurso no discurso21 21 Nos casos emque as frases são longas, sublinharemos a parte em que o recurso expressivo utilizado é mais notório. 22 Todo o texto está em discurso direto. O sublinhado pretende diferenciar o diálogo que se estabelece entre os interlocutores, para mais fácil identificação, não tendo como objetivo destacar um deles. Como já dissemos José Saramago subverte as regras de pontuação, suprimindo a maioria dos sinais de pontuação. A vírgula e o ponto final constituem exceções, sendo a primeira importante por indiciar mudança de fala de personagem associada ao uso de maiúscula. Os vários discursos introduzidos são diversificados, mas ganham força os diálogos. O discurso direto é, então, a reprodução dos discursos mais vivo e surpreendente, porque se afasta do convencional registo escrito, oferecendo quadros naturais, perfeitamente ligados ao ambiente quotidiano onde se movem as personagens. Discurso direto:22 E nestes anos tem havido melhoras, Se quer que lhe fale francamente, senhor doutor, acho que não, Que pena, uma rapariga tão nova, É verdade, o senhor doutor é que podia dar-lhes uma opinião da próxima vez, se ainda cá estiver, É possível que esteja,
  • 34. sim, mas estes casos não são da minha especialidade, eu sou médico de clínica geral, interessei-me depois por doenças tropicais, nada que possa ser útil em situações destas, Paciência, é bem verdade que o dinheiro não dá felicidade, o pai com tanto de seu, e a filha assim, não e há quem a veja rir, É Marcenda o nome, É sim, senhor doutor, Estranha palavra, nunca tinha ouvido, Nem eu, Até amanhã, senhor Salvador, Senhor doutor, até amanhã. (Saramago: 32) Mas a coloquialidade e o tom oralizante também se verificam na utilização tanto do discurso indireto livre como do indireto. Discurso indireto: O senhor doutor não gostou, e ele disse que tinha gostado, pusera-se a ler o jornal, distraíra-se (Saramago: 85) Discurso indireto livre: como é possível, meu caro senhor, uma cidade que nem é das mais pequenas, onde foi que se meteram as pessoas. (Saramago: 66) Pusera-se a ler o jornal, distraíra-se (Saramago: 85) 76 12. OUTROS EPISÓDIOS DE REFERÊNCIA Antes de terminar, não queremos deixar de apresentar outras reflexões que podem entrecruzar os textos referenciados. Serão apenas registos, o tratamento exaustivo comprometeria os tempos previstos para a unidade consagrada ao romance saramaguiano. 12.1 O bodo aos pobres23 23 Cf.com o episódio O Bodo do Século, página 66 e seguintes, cujo propósito é também denunciar a hipocrisia do Estado e as marcantes diferenças sociais. Através do episódio da distribuição de bodos aos pobres pela Páscoa, consegue Saramago uma das críticas ferozes ao Estado é à Igreja, pois ambas as instituições constituem uma forma do governo controlar ideologicamente os mais pobres. Aliado a esta iniciativa, liga-se a notícia da festa a ter lugar no Campo do Jockey Club, na qual serão favorecidos os sinistrados das inundações do Ribatejo (Saramago: 363). O sensacionalismo da notícia, sob o olhar atento e crítico do narrador, a aperceber-se da intenção propagandista do governo, dado que os pobres terão de aguentar a fome até que a festa se concretize, revela, uma vez mais, a atitude crítica ao sistema político e à figura que o domina. 12.2 O Bovril Mas a ironia de Saramago vai mais longe, na crítica ao governo mesquinho, vaidoso, controlador das mentalidades, ao inserir na narrativa a leitura de um anúncio publicitário, que constava também no jornal que noticiava a festa a favor das inundações do Ribatejo. O narrador sugere ao governo maior atenção nas ações sociais. A solução do problema estaria no fortificante milagroso cuja ingestão acabaria com a fome portuguesa. Ao colocar lado a lado, dois textos presentes no jornal, está a colocar em destaque dois discursos: o do anúncio do auxílio aos famintos àquele que promete o milagre da saúde de forma rápida.