1. O ambiente, base da sustentabilidade
BOUTROS BOUTROS-GALI
O ambiente, tal como a paz, a economia, a sociedade e a democracia, comanda todos os
aspectos do desenvolvimento e tem um impacto sobre todos os países,
independentemente de seu nível de desenvolvimento. Assim, nos países em
desenvolvimento, as pressões ecológicas ameaçam o desenvolvimento a longo prazo.
Por outro lado, em numerosos países em transição, onde o meio ambiente foi maltratado
durante décadas, o grau de poluição é tão elevado que existem vastas zonas onde já não
é possível empreender uma atividade econômica duradoura. Nos países ricos, os
modelos de consumo implicam uma diminuição dos recursos mundiais que compromete
o futuro do desenvolvimento, em escala mundial.
Desenvolvimento e meio ambiente não são conceitos
separados e é impossível resolver os problemas ligados a
um, sem tomar em consideração as dificuldades inerentes
ao outro. O meio ambiente é um recurso para o
desenvolvimento. O estado do meio ambiente é uma
medida importante do desenvolvimento e, neste sentido,
sua preservação deve ser, para nós, uma preocupação
constante. Isto equivale a dizer que, para assegurar o
desenvolvimento, são necessárias políticas que tenham em conta o parâmetro do
ambiente. Esta ligação foi reconhecida em 1992, por ocasião da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92). Essa conferência forneceu
um modelo para dar maior coerência à ação em prol do desenvolvimento.
Preservar os recursos naturais do planeta e racionalizar seu uso figuram entre os
problemas mais prementes que os indivíduos, as sociedades e os estados têm de
enfrentar. Na maior parte dos casos, os recursos naturais de um país representam seus
recursos mais acessíveis e os mais facilmente utilizáveis. Daí que a maneira como esses
recursos são geridos e protegidos tenha uma influência considerável no
desenvolvimento e nas possibilidades de progresso de uma sociedade.
No campo do desenvolvimento, cada sociedade deve utilizar seus recursos naturais,
procurando preservar o potencial que eles representam para o futuro. Há, pois, que
encontrar um equilíbrio entre necessidades e interesses antagônicos e satisfazer as
necessidades econômicas e sociais do momento, sem comprometer por isso a existência
desses recursos a longo prazo, nem a viabilidade dos ecossistemas de que dependem as
gerações presentes e futuras.
A degradação do meio ambiente reduz, simultaneamente, a qualidade e a quantidade de
muitos dos recursos utilizados diretamente pelas populações. As conseqüências de não
se prestar suficiente atenção à destruição de recursos naturais podem ser catastróficas.
Assim, a poluição das águas prejudica a pesca; o aumento da salinidade e da erosão das
terras aráveis reduz os rendimentos agrícolas; a degradação da agricultura e o
desmatamento agravam a seca e a erosão do solo e estão na origem da desnutrição e da
fome, cada vez mais freqüentes em certas regiões. A exploração excessiva da pesca e o
desaparecimento de certos recursos marinhos põem em perigo coletividades antigas. A
exploração excessiva das florestas e a destruição de certas florestas geradoras de
A degradação ambiental
ameaça inúmeras espécies
de vegetais no mundo
inteiro.
2. pluviosidade têm feito desaparecer alguns habitats naturais importantes e reduzem a
diversidade biológica mundial. Em conseqüência de métodos aberrantes utilizados para
a extração de recursos naturais, vastas regiões foram contaminadas e tornaram-se
improdutivas.
O fato mais alarmante é que, em certos casos, a
deterioração pode ser irreversível. É, pois, urgente
identificar as práticas que causam prejuízos permanentes à
saúde do planeta e acabar com elas.
Apesar de impor certas limitações, a conservação dos
recursos naturais abre, em numerosos casos, perspectivas
novas. A ciência e a técnica podem desempenhar um
papel importante. Assim, será essencial, no futuro, aumentar o rendimento energético e
encontrar fontes de energia novas e renováveis. Do mesmo modo, uma mudança da
maneira de viver e da atitude perante o consumo de energia por parte das populações
mais favorecidas, aliada à aplicação de processos de produção mais eficazes, contribuirá
para um modelo de desenvolvimento mundial mais sustentável.
Integrar a gestão e conservação dos recursos naturais no desenvolvimento nacional pode
ter resultados benéficos. O turismo, de que dependem numerosos países, pode trazer
importantes benefícios, tais como a criação de infra-estruturas vitais, o aumento do
emprego e das receitas em divisas, uma maior sensibilização aos problemas do meio
ambiente, mais contatos internacionais e possibilidades excepcionais de reforço da
identidade nacional. Para tirar pleno partido destas vantagens e preservar o ambiente
internacional, é importante definir estratégias realistas no que diz respeito ao turismo.
As iniciativas lançadas atualmente por diversos estados-membros demonstram também
a importância da participação das comunidades em todos os esforços de
desenvolvimento. Ao incentivar as populações locais a associarem-se ativamente aos
esforços empreendidos, em vez de serem simples beneficiárias destes, tais programas
abriram novas vias. Em muitos casos, deram importantes resultados. Conduziram a uma
melhor compreensão do interesse de que se reveste a conservação dos recursos naturais,
a uma maior cooperação das comunidades, tendo em vista a conservação dos recursos
turísticos, e a um aumento dos rendimentos rurais. São exemplos importantes com os
quais muitos outros podem aprender e lucrar.
A relação entre ambiente e desenvolvimento vai muito além da mera exploração
racional dos recursos naturais. A preservação e a proteção do equilíbrio ecológico é um
elemento essencial, não só do desenvolvimento humano, mas também da sobrevivência
da humanidade.
Os problemas de saúde e a mortalidade prematura, devido à deterioração da qualidade
do ar e da água e a outros perigos, afetam o bem-estar da sociedade. Direta ou
indiretamente, os elementos poluentes podem comprometer a saúde de todos, ao mesmo
tempo que modificam o ambiente. Estas ameaças tanto podem assumir a forma de uma
maior exposição aos raios ultra-violeta como a da deterioração da qualidade dos
alimentos e da água.
O uso de agrotóxicos para
defender as lavouras é
freqüentemente combatido
pelos ambientalistas.
3. Os produtos químicos tóxicos e os metais pesados podem contaminar os rios e outras
fontes de abastecimento de água. Muitos são, por vezes, difíceis de eliminar pela
purificação da água potável. Os poluentes podem ser absorvidos por pessoas que não
sabem que os alimentos estão contaminados. A exposição aos produtos perigosos e aos
riscos de contaminação, devido aos acidentes industriais, constituem outros tantos riscos
que tornam bem patente a ligação entre meio ambiente e desenvolvimento.
É certo que o peso das vantagens materiais que se podem tirar do ambiente geralmente
se sobrepõe à consideração de outros aspectos positivos. Mas o valor intrínseco da
própria natureza deveria ser respeitado e a profunda satisfação que usufruir da natureza
proporciona deveria ser reconhecida.
As catástrofes naturais podem ter um impacto considerável e dramático sobre o
desenvolvimento. Podem reduzir a nada resultados obtidos a custo de grandes
sacrifícios. É, pois, necessário refletir sobre os meios de atenuar esses desastres. Isso
permitirá que as estruturas sociais não sofram prejuízos irreparáveis, que as iniciativas
econômicas não sejam adiadas irremediavelmente e que as vítimas das catástrofes
naturais não sejam condenadas a uma dependência permanente.
Para melhorar a gestão do meio ambiente, é preciso que as empresas, os núcleos
familiares, os agricultores, a comunidade internacional e os governos modifiquem seu
comportamento. Convém adotar políticas específicas destinadas a assegurar que o
respeito pelo meio ambiente seja tido em conta na atividade econômica. As empresas
públicas e privadas devem ser responsabilizadas pelos efeitos de suas atividades sobre o
meio ambiente e os governos devem formular políticas e estratégias que visem a um
desenvolvimento ecologicamente racional.
Em muitos países, a inadaptação das instituições é um obstáculo importante à
concepção e aplicação de projetos de desenvolvimento ecologicamente viáveis e
racionais. É, pois, necessário reforçar as capacidades nacionais em matéria de
concepção e de aplicação das políticas ambientais.
As interligações entre ambiente, sociedade, economia e participação política tornam
patente a importância de resolver as questões ambientais do desenvolvimento num
contexto nacional. Assume especial relevo a relação entre meio ambiente e pobreza.
Ainda que as comunidades pobres administrem, com freqüência, suas terras tradicionais
com o maior cuidado, o aumento da pressão demográfica e a ausência de recursos fazem
com que seja, muitas vezes, difícil evitar a deterioração do meio. Os segmentos mais
pobres da população, que lutam penosamente para prover suas necessidades essenciais,
estão sobretudo preocupados com a sobrevivência quotidiana. São, quase sempre,
simultaneamente vítimas e agentes da deterioração do meio ambiente. As políticas que
visam a melhorá-lo - por exemplo, reduzindo a contaminação das águas - beneficiam,
freqüentemente, as camadas mais pobres da sociedade; e as políticas que contribuem
eficazmente para a redução da pobreza abrandam o crescimento demográfico e atenuam
as pressões exercidas sobre o ambiente.
As políticas que visam a promover a cooperação tecnológica e a utilização eficaz de
recursos podem também contribuir para resolver os problemas ambientais. As relações
entre os modos de produção e os efeitos globais da atividade econômica sobre o meio
ambiente estão em constante mudança. Para alcançar um desenvolvimento mais
4. duradouro, não é preciso necessariamente produzir menos. É necessário produzir de
uma maneira diferente. Um aumento dos rendimentos talvez permita financiar os
investimentos necessários para o melhoramento do ambiente. Seja como for, a adoção
de medidas destinadas a combater o desgaste dos recursos ou a degradação da natureza
revela-se, em última análise, muito menos dispendiosa do que a tentativa de reparar os
danos provocados.
Os indivíduos e as comunidades carecem, muitas vezes, de informação sobre os danos
infligidos ao ambiente ou sobre os meios pouco dispendiosos de evitá-los. Os governos
e todas as instituições responsáveis devem sensibilizar ativamente o público para as
questões ambientais. Estas atividades de sensibilização podem constituir o fator mais
importante na adoção de medidas de proteção do meio ambiente.
Para ter êxito, o desenvolvimento sustentável deve tornar-se o objetivo e a preocupação
não só dos governos, mas também de todos os setores da sociedade. Assegurar um
desenvolvimento sustentável significa empenhar-se em utilizar os recursos renováveis e
evitar o consumo excessivo dos recursos não-renováveis. Isto implica escolher os
produtos e processos de produção que têm o mínimo de conseqüências nefastas para o
meio ambiente. No setor agrícola, será, pois, necessário, por um lado, evitar recorrer
exageradamente a produtos químicos nocivos com forte intensidade de energia e, por
outro, procurar preservar a diversidade biológica. Em todos os domínios da vida pública
e privada, é preciso empenhar-se em conservar os recursos naturais e em proteger o
equilíbrio ecológico.
É particularmente difícil definir as prioridades de uma política internacional sobre o
ambiente. Os custos da inação podem ser suportados por outros países e os países que
adotam as medidas mais corajosas podem não retirar necessariamente benefícios dessas
medidas.
Os problemas devem ser considerados em todos os níveis. Alguns, como os danos
provocados na camada de ozônio, são de escala mundial. Outros são de nível regional. É
o caso da poluição industrial transfronteiriça. Quanto à contaminação da água potável,
pode ter uma expressão local. O papel das normas e dos incentivos aos diferentes níveis
pode ser, portanto, crucial. É necessário adotar normas e regulamentos diretos, mas o
recurso a impostos e a concessão de licenças pode, freqüentemente, dar bons resultados.
As conseqüências do desmatamento e da degradação ambiental provocaram conflitos
agudos. Num número crescente de regiões, a pobreza, a degradação dos recursos e os
conflitos constituem uma trilogia demasiado freqüente. No mundo inteiro, as
populações que fogem dos efeitos da devastação do meio ambiente são um fardo
adicional para zonas urbanas já sujeitas a fortes pressões.
O espectro dos conflitos causados pelos recursos ilustra de forma dramática como é
importante que todos os países encontrem soluções para os problemas relacionados com
o meio ambiente e o desenvolvimento. Nesse campo, a cooperação internacional pode
resolver um grande número de problemas. Na realidade, quando os efeitos da
degradação ambiental têm um impacto transnacional, não é possível limitar-se ao
enquadramento jurídico, às normas, aos incentivos à economia ou aos meios coercivos
nacionais.
5. A solução dos problemas internacionais no que diz respeito ao meio ambiente deve
basear-se em princípios comuns e regras de colaboração entre estados soberanos, que se
apóiem na persuasão e na negociação. Podem levantar-se problemas regionais,
suscetíveis de provocar incidentes políticos, quando países vizinhos partilham um
recurso comum, como um rio internacional ou mares regionais. Existem também
recursos ambientais mundiais, como a atmosfera e os oceanos, que devem ser objeto de
uma ação multilateral. No caso de recursos que pertençam a um só país, mas que
tenham grande valor para toda a comunidade internacional - reservas biológicas e
espécies ameaçadas de extinção, por exemplo - os estados têm direito à ajuda
internacional para assegurar a preservação do patrimônio comum.
A sustentabilidade deve ser reforçada como princípio orientador do desenvolvimento. É
necessária a cooperação em todos os níveis, quer entre os diferentes departamentos e em
todos os escalões administrativos, quer ainda entre as organizações internacionais, os
governos e os agentes não-governamentais. Em resumo, é necessária a colaboração
solidária entre o homem e a natureza.
Agenda para o desenvolvimento. Lisboa, Centro de Informação das Nações Unidas,
1994, pp. 25-32.
Boutros Boutros-Ghali é diplomata egípcio. Foi secretário geral da ONU de janeiro de
1992 a dezembro de 1996.