HOSPITAL SÃO JOÃO DE DEUS (parte 1): A ESCUTA PSICANALÍTICA NO HOSPITAL GERAL
Curso Lacan e a Psicanálise- Aula 10: Seminário 8 (Introdução ao sujeito suposto saber)
1. Lacan e a Psicanálise:interlocuções com a contemporaneidade Tema: Seminário 8 (A Transferência): introdução ao sujeito suposto saber Coordenação Alexandre Simões ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.
2. Desenvolvimento do seminário: de 1960 a 1961 Publicação na França: 1991 Publicação no Brasil: 1992 ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.
3. A abordagem lacaniana da transferência passa, ao longo do Seminário 8, por uma guinada em relação à tradição freudiana: a tendência dos pós-freudianos, na abordagem da transferência, era propô-la sempre a partir da repetição. já nos anos 60, Lacan apreende a transferência desde a perspectiva do amor de transferência; ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.
4. Ou seja: Uma coisa é propor a relação do analisando com o analista como uma reedição – daí, a repetição – de relações anteriores. Por exemplo, a reedição da relação do paciente com o pai, com a mãe, etc. Ao longo desse caminho, o psicanalista passa a escutar os fenômenos transferenciais como remetimentos dele próprio para outras figuras; Outra situação, diferente desta (sem, no entanto, negar a importância da mesma), é propor a transferência como comportando uma estrutura homogênea à problemática do amor e, daí, escutar a relação do analisando com o analista por meio dessa conexão; ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.
5. Em todos os momentos em que Lacan aborda o tema da transferência, dois aspectos são sempre apresentados (e problematizados): O vínculo ou as articulações que se constroem na cena analítica (e não podemos deixar de perceber que uma articulação que se sobressai aqui é a que se estabelece entre PACIENTE e ANALISTA); A PRODUÇÃO (mais especificamente, o que é produzido, o efeito do processo) por meio da articulação estabelecida na transferência; ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.
6. É nesse contexto, portanto, que surgem circunstâncias conceituais novas que, com graus de aprofundamento distintos, serão edificadas por Lacan a partir do Seminário 8: agalma, sujeito suposto saber e desejo do analista.
7. A insistência em se apreender a transferência como repetição (ainda que Lacan não negue a presença deste elemento em meio ao campo da transferência) dificulta algo que vem a ser importante para a condução das análises e o próprio manejo da transferência: a possibilidade de se compreender a situação analítica como uma relação intersubjetiva dentre outras (ainda que haja uma disparidade interna, como ainda veremos), a ser tratada diretamente, ‘aqui e agora’;
8. É precisamente esta diferença estabelecida por Lacan entre seu percurso e a apreensão dos pós-freudianos na abordagem da transferência que o conduz a querer saber mais sobre o amor. O local ao qual Lacan recorre, para tal, é O banquete (380 a.C.).
9. Ao estabelecer uma relação de vizinhança com um texto clássico da Filosofia, no caso, O banquete (de Platão), Lacan não busca localizar Sócrates - um personagem de grande envergadura no banquete - como ilustração do psicanalista, mas sim como o modelo de uma posição que bem concerne a este. Em que concerne esta posição é o que veremos nos próximos slides.
10. Recortes de O banquete: O banquete (também chamado de Simpósio), equivaleria, entre nós, a uma festa mundana, em que mais se bebe e fala do que se come. No caso da obra de Platão, trata-se de um encontro festivo na casa de Agaton, poeta trágico ateniense. Sócrates é o mais importante dentre os convidados que ali estavam presentes. Entre outros, também se encontram na casa de AgatonAristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, um jovem retórico; Pausânias, amante de Agaton; o médico Eriximaco; Aristófanes, comediante que sempre buscava ridicularizar a Sócrates, e, já com o banquete transcorrendo, o general e político Alcebíades. Este texto se refere, pois, a um encontro festivo entre homens que, além de beber, se põem a discursar sobre o amor, sua natureza e qualidades.
11. Sócrates intervém na proposta de cada um dos convidados tecer um discurso sobre o amor, argumentando que, antes de falar sobre o bem que o amor causa e seus frutos, eles deveriam tratar de definir o que é o amor. Sócrates ainda diz que, na sua juventude, ele foi iniciado nos caminhos do amor por Diotima de Mantinea, que era uma sacerdotisa. Diotima teria lhe ensinado a genealogia do amor.
12. Cada um dos convidados, na ordem em que se encontra reclinado em uma espécie de divã, desenvolve seu discurso sobre o amor. Quando, em dada altura do Simpósio, chega a hora de Sócrates discursar, ele propõe que, sendo o amor, amor de algo, esse algo é por ele (o que ama) certamente desejado. Mas este objeto do amor só pode ser desejado quando lhe falta e não quando o possui, pois segundo Sócrates (instruído por uma mulher: Diotima) ninguém deseja aquilo de que não precisa mais: O que deseja, deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente.
13. Um outro aspecto fundamental n’O banquete, ao ver de Lacan, está localizado entre Alcebíades e Sócrates: Alcebíades ocupa a posição do analisando que, graças a Sócrates, vai se descobrir como desejante. Plutarco escreveu que Alcebíades "temia e reverenciava unicamente a Sócrates, e desprezava o resto de seus amantes".
14. Alcebíades chega à casa de Agaton com o festejo já em andamento e muda as regras do jogo: ele propõe que se faça, a partir de então, o elogio não mais ao amor e sim ao vizinho da direita. Dessa forma, ele estabelece o amor em ato. Esta alteração na cena introduz algo até então novo no Banquete: o Agalma
15. O que é o agalma ? O amor (bem como os fenômenos amorosos da transferência), como já dissemos, não é apreendido por Lacan exclusivamente como repetição de um protótipo infantil, mas sim como a crença de que encontramos, na pessoa amada, algo que nos é precioso. Esse objeto que o sujeito localiza na pessoa amada é o agalma.
16. Agalma: palavra grega usada para designar um objeto precioso ou caixa de joias; local onde se guarda objetos preciosos. Lacan apresenta o agalmacomo algo que tem um valor de enigma e avança ao situar o que isso quer dizer: enfeitar, ornamentar. Agalmasignifica, a princípio, ornamento, enfeite.
17. O agalma, ressaltado por Lacan no estudo da transferência, diz respeito ao objeto que nos captura, a esse algo do outro que nos apreende e nos fascina, nos deixando enamorados. Aquilo que se articula na cena da transferência e também aquilo que aí se produz serão referenciados, doravante, ao agalma.
18. A entrada do agalma nas considerações de Lacan sobre a transferência chamam para a cena uma dualidade existente no Banquete: A dualidade interna ao par amoroso (ou seja, as distintas posições ocupadas por cada um): Erómenos: amado, aquele que tem alguma coisa; Erastes: amante, aquele que vai em busca daquilo que lhe falta.
19. Alcebíades advém como sujeito desejante (Erastes), pois ele crê que Sócrates (Erómenos) possua o agalma (o objeto brilhante, o fetiche, o objeto parcial do desejo, o falo como objeto desejável)
20. Sócrates, por sua vez, recusa o lugar do objeto amado para se afirmar faltoso, ou seja, desejante (como sujeito de desejo)
21. Daí, a clássica fórmula de Lacan: o ‘amor é dar o que não se tem’ (Sem. 8, p. 41). Ou seja: não há nenhuma relação entre o que se possui e o que falta ao outro -> esta é a marca da disparidade subjetiva presente na articulação do analisando com o analista, bem como do analisando com seu Outro
22. Ressonâncias: “(…) só os mentirosos podem responder dignamente ao amor (…)” (Seminário 8, p. 36). “O que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor” (Seminário 8, p. 46).
23. À guisa de conclusão: O seminário 8 é basicamente um seminário sobre a posição do psicanalista: “ É por isso mesmo que me asseguro de que o que lhes digo, de fato, jamais é embaraçoso para o papel que devo manter diante de alguns de vocês, que é o de analista. Isso está ligado, precisamente, ao que visa meu discurso deste ano, a saber, a posição do psicanalista. Trata-se daquilo que está no coração da resposta que o analista deve dar para dar conta do poder da transferência. Essa posição, eu a distingo dizendo que no próprio lugar que é o seu, o analista deve se ausentar de todo ideal do analista.
24. Creio que o respeito a esta condição é próprio para permitir a conciliação necessária de minhas duas posições diante de alguns, de ser ao mesmo tempo seu analista e aquele que lhes fala da análise. A títulos diversos, e sob diversas rubricas, pode-se, com certeza, formular a propósito do analista algo que seja da ordem do ideal. Existem qualificações do analista, e isso já é bastante para constituir um núcleo dessa ordem. O analista não deve ser totalmente ignorante de um certo número de coisas, isso é certo. Mas não é isso, de modo algum, que entra em jogo em sua posição essencial.” (Seminário 8, p. 371).
25. Pensar a posição do psicanalista não a partir do ideal, mas do objeto: “Mas ainda há uma outra coisa que, chegando aqui ao termo de meu discurso, não posso deixar de indicar e que concerne à função do pequeno a. O que Sócrates sabe, e que o analista deve ao menos entrever, é que, no nível do pequeno a, a questão é inteiramente diferente daquela do acesso a algum ideal. O amor somente pode circundar o campo do ser. E o analista, este só pode pensar que qualquer objeto pode preenchê-lo. Aí coloca a questão do que vale qualquer objeto que entre no campo do desejo. Não há objeto que tenha maior preço que um outro - aqui está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista.” (Seminário 8, p. 381).
26. Prosseguiremos no próximo encontro com o tema Seminário 9 (A identificação): as imagens, os significantes e a identidade Até lá! Acesso a este conteúdo: www.alexandresimoes.com.br ALEXANDRE SIMÕES ® Todos os direitos de autor reservados.