1. Como conheci sua mãe
Capítulo 3 1988
À guisa de almoço, os quatro comeram sanduíches no McDonald’s. A sobremesa, além
de matar a fome, alimentou reminiscências.
Na época em que conheci a sua mãe, só existia um McDonald’s em Campinas, e
ficava perto da casa dela. Foi ela que me introduziu a esse mundo maravilhoso da
gastronomia americana de fast food, cujos produtos mais elevados são esse
sundae de morango e a torta de maçã.
Bem que você gosta…
Sentiu alguma ironia? Não estou sendo irônico,não. O sundae de morango do
McDonald´s funciona para mim mais ou menos como as madalenas do Proust, isto
é, realmente tem o poder de me levar de volta a Campinas de 19871988. Graças
àquela tarde.
Que tarde foi essa?
Foi em 87! Como eu disse, lá por setembro, decidi sair do seminário, mas queria
terminar o ano letivo na PUC e, assim, fui ficando naquela vida,
semináriopucparóquia até o final do ano.
Mas vocês começaram a namorar?
Mais ou menos. Eu continuava no seminário, mas nós nos encontrávamos quando
dava. Foi numa dessas escapadas, deve ter sido num feriado, que aquela tarde do
sundae do McDonald’s aconteceu.
Então a história acaba aí?
Basicamente, sim. Se a intenção era contar como conheci sua mãe. Mas temos
duas horas de espera pela frente e, se vocês concordarem, eu posso continuar a
história até o casamento.
Se você prometer nos poupar das partes mais melosas…
Tá bom!
Preciso falar da minha segunda chance como universitário. Sim, porque eu tive de
prestar outro vestibular e entrar no curso de filosofia na Unicamp.
Por que? O seminário não te deixou continuar na PUC?
Na verdade eu é que não tinha como pagar dali por diante.
E você prestou filosofia de novo? Que burro!
Claro, era a minha outra paixão.
Mas você não disse que o único curso de filosofia em Campinas era o da PUC?
Sim, até 1987. Pois em 1988 a Unicamp decidiu abrir um curso de graduação em
filosofia e eu entrei na primeira turma.
Que sorte!
Sorte, talvez. O curso era grátis, mas me manter em Campinas não era.
2. Como você fez?
Bem, posso dizer que os anos de 88 e 89 foram os mais difíceis para mim, em
termos financeiros, embora também tenham sido muito bons pois eu estava na
Unicamp e estava com a sua mãe.
Você disse que ia pular as partes melosas…
Puxa… tá bom. Vamos em frente. Como eu não tinha emprego, nem poderia
arrumar um, a solução, a princípio, era viajar todo dia de Piracicaba para
Campinas, de ônibus. Com o desconto de estudante ficava mais barato do que
morar em Campinas.
Por que você não foi morar com a mãe?
Calma. Ainda não! Além disso, apesar de a situação dela ser um pouco melhor do
que a minha, ela também tinha os seus próprios problemas financeiros e de
moradia. Aí tinha de ser cada um por si, embora sem a ajuda dela eu não teria
conseguido, nem com o meu precário sistema.
Valia a pena esse sacrifício?
Então, daí vem a parte boa. A Unicamp era incrivelmente melhor do que a PUC.
Quero dizer, na Unicamp eu podia viver por conta das minhas próprias demandas
intelectuais, a PUC era mais parecida com uma escola tradicional.
Como assim?
Por exemplo, na PUC, o aluno não tinha acesso direto aos livros da biblioteca. Ele
procurava no catálogo, pedia ao funcionário e este trazia o livro. Acho que nunca
peguei um livro emprestado na PUC. Na Unicamp, a biblioteca era self service,
podiase fuçar à vontade no acervo e sei que muitas coisas que eu li foram
encontradas assim, não no catálogo. Depois, o currículo era mais aberto, você
poderia fazer matérias fora do seu curso, montar a sua grade com mais liberdade.
E tinha a questão das línguas também.
Que questão de línguas?
A gente era instigado desde o primeiro dia a se virar para ler textos em inglês,
francês a alemão. O professor simplesmente deixava o texto lá no xerox e você
que se virasse para ler. E quando você sabe outra língua um universo novo se
abre para você.
E você conseguia ler isso tudo?
Pois foi nesta época que eu descobri que sabia inglês. O inglês sempre foi a minha
matéria preferida na escola, mas eu tinha consciência de que, ao terminar o
segundo grau, eu não sabia nada além do verbo to be e do uso de do/does. Mas
quando eu comecei a tentar ler os textos (lembrome de um, do William Harvey,
De motu cordis, escrito em latim, mas traduzido em inglês, acho que este foi o
primeiro livro que eu consegui ler em inglês).
Sobre o que falava o livro?
William Harvey foi o sujeito que descobriu o segredo da circulação sanguínea, isto
é, que o sangue em nosso corpo faz um caminho de ida e volta a partir do
coração, que o bombeia; foi ele quem lançou a ideia de que o coração é um tipo
de bomba e que o sangue caminha pelas veias por meio de um sistema de
válvulas.
Mas isso é medicina! O que tem a ver com a filosofia?
3. É que nós estávamos estudando um livro de Descartes, chamado As Paixões da
Alma, e para a teoria das paixões de Descartes, a ideia do homemmáquina era
muito importante e essa teoria da circulação é um das principais apoios a esta
ideia.
Que o nosso corpo é um tipo de máquina? Mas isso não é meio óbvio?
Talvez seja óbvio para vocês, mas era uma ideia bem estranha para a época. E
isso influenciava a filosofia de Descartes. Bem, por esse exemplo, vocês
percebem como o curso de filosofia na Unicamp me levou a um novo patamar
nessa disciplina. Valia qualquer esforço para me manter lá.
Então você fazia essa viagem de Piracicaba a Campinas todo dia?
É. Mas isso não durou o ano todo. No segundo semestre eu consegui uma vaga
na moradia da Unicamp; na verdade, consegui uma vaga num quarto em um
casarão na frente da lagoa do Taquaral, cujo aluguel era pago pela Unicamp, até
que construíssem a moradia definitiva.
Sei, aquela que fica em Barão Geraldo. Você morou lá também?
Não, não cheguei a morar lá.
Bem, moradia você tinha. E o resto? Sua família ajudava?
A minha família… é importante ressaltar neste ponto que, na verdade, parte do
sacrifício que eu estava fazendo para estudar era deles também, a minha mãe e
meus irmãos também tiveram de se adaptar na medida em que o meu salário
deixou de fazer parte da renda familiar. Mas com o tempo eu consegui uma bolsa
na Unicamp, que garantia a comida do bandejão e o passe de ônibus.
Daí a vida melhorou…
Pois é. E foi justo nessa época que apareceu uma oportunidade para mudar de
vida.
O que foi?
Algum tempo antes desta história toda começar, acho que ainda em 1985, eu
havia prestado um concurso para trabalhar na FOP, que é a Unicamp em
Piracicaba. Não fiquei entre os primeiros, mas fui classificado. Eu já até tinha me
esquecido dele. E não é que um belo dia, eu chego em casa e lá está a carta de
convocação para tomar posse no emprego?
Mas você não foi…
Para falar a verdade, fiquei meio balançado. Por um lado eu tinha um pouco de
vergonha de não estar trabalhando e por outro, era uma perspectiva de futuro mais
fácil e segura.
E por que você decidiu não aceitar?
Conversei muito com a mãe de vocês (afinal, ela estava implicada na decisão que
eu tomasse) e ela foi taxativa: na opinião dela, eu tinha conquistado uma coisa
muito difícil, que era a vaga na Unicamp, não valia a pena abandonar o curso,
principalmente porque eu estava empolgado. Nunca me arrependi de ter dado
ouvidos a ela!
Foi aí que começou, então...
Começou o quê?
Não, nada… é que a mãe sempre ganha as discussões…
É verdade, mas é que quase sempre ela está certa. Como nesse caso!
E a igreja? Você não voltou mais desde aquela época?
4. Eu continuei a participar da igreja. O padre (que era o mesmo com quem eu
passava os fins de semana do tempo do seminário) inclusive me incentivava a
continuar, era importante mostrar que eu saí do seminário porque descobri que
não tinha vocação, mas a minha fé continuava intacta.
E continuava?
É impossível dizer. Eu tentava mostrar que sim, mas as pessoas é que não
botavam mais fé em mim. Mas, à medida em que eu me inseria mais no curso da
Unicamp e na vida cotidiana em Campinas, mais eu me distanciava da
comunidade em Piracicaba. Seria difícil continuar aquela dupla militância do
passado. Para falar a verdade, foi uma mudança e tanto.
E o PT, você também abandonou?
Nunca abandonei, voto até hoje no PT. Mas, de fato, fui deixando de participar
mais ativamente. Mas veja, na época, eu não sabia nada disso, eu vivia como se
nada tivesse mudado, eu ainda era o mesmo cara. Inclusive teve a campanha para
prefeito em 88, da qual participamos ativamente, eu e sua mãe, pintando muros,
distribuindo panfletos, fazendo boca de urna. E de fato conseguimos eleger o
prefeito José Machado, que já tínhamos eleito deputado em 86. A mesma coisa
aconteceu em relação à igreja; eu continuava participando aos finais de semana,
como se fosse continuar para sempre. Mas, lentamente, Campinas e a filosofia
foram me tomando cada vez mais o tempo e eu fui imperceptivelmente rompendo
aqueles laços que, paradoxalmente, enquanto eu estava “preso” no seminário
ainda se mantinham fortes e com perspectiva de ficar mais fortes ainda.
Foi outro rito de passagem, então?
Acho que foi o definitivo. Muitos amigos desta época, eu nunca mais vi desde
então!