Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
Arte, arqueologia e museus correspondências e mediações contemporâneas (navarro, s. in vox musei, 2013)
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4. Revista VOX MUSEI: arte e património
Relações públicas: Isabel Nunes
Volume 1, Número 2, julho-dezembro
Logística: Lurdes Santos
2013 — Tema: Património, Educação e Museus
Gestão financeira: Cristina Fernandes e Isabel Pereira
ISSN 2182-9489, e-ISSN 2182-0002
Propriedade e serviços administrativos
Revista Internacional — Comissão Científica
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,
e Revisão por Pares (sistema double blind review)
Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, PT
Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes
Grupo de Pesquisa — CNPq Memória, Ensino
da Universidade de Lisboa, Portugal
e Património Cultural, Universidade Federal do Piauí, BR
Grupo de Pesquisa, CNPq Memória, Ensino e Património
Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058
Cultural, Universidade Federal do Piauí, Brasil
Lisboa, Portugal
T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689
Periodicidade: semestral
Impressão e acabamento: Serisexpresso
Revisão de submissões: arbitragem duplamente cega
Tiragem: 500 exemplares
pelo Conselho Editorial
Depósito legal: 360924/13
Direção: Áurea da Paz Pinheiro
PVP: 10€
Projecto gráfico: Jorge dos Reis
ISSN 2182-9489
Imagem da capa: Cássia Moura
e-ISSN 2182-0002
Paginação: Inês Chambel
Aquisição de exemplares, assinaturas e permutas:
Revista VOX MUSEI arte e património
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,
Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes,
Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058
Lisboa, Portugal
T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689
Mail: voxmusei@fba.ul.pt
voxmuseiartepatrimonio@gmail.com
www.voxmusei.fba.ul.pt
www.voxmusei.ufpi.br
5. índice
Editorial
O Museu de Arte do Rio — MAR:
Áurea da Paz Pinheiro
quando “navegar é preciso”
pág. 16-17
Rio de Janeiro Museum of Art:
for when “you need to browse”
Artigos
Ângela Âncora da Luz
Centro de Interpretação do Pampa:
pág. 69-77
a construção de um museu universitário-comunitário
Pampas Understanding Center: the construction
Universidade, educação, museus
of a community – college museum.
e ação patrimonial
Alexandre dos Santos Villas Bôas
University, education, museums and creating
Heloísa Helena Fernandes Gonçalves da Costa
patrimonial sites.
pág. 20-32
Áurea da Paz Pinheiro
Eloisa Capovila da Luz Ramos
A CONSERVAÇÃO E RESTAURO
Marta Rosa Borin
NA FACULDADE DE BELAS-ARTES
pág. 78-91
THE CONSERVATION AND RESTORATION
AT THE FACULTY OF FINE ARTS
Um museu de arte universitário brasileiro:
Alice Nogueira Alves
histórias de um projeto de arte em devir?
Fernando António Baptista Pereira
A Brazilian University Art Museum: stories
Fernando Rosa Dias
of an art project in becoming?
pág. 33-42
Carolina Ruoso
pág. 92-103
Museos de la memoria y educación
para los derechos humanos. Un estudio
O Fotográfico como Património Imaterial
de caso: MUME — Uruguay
Photography as Immaterial Heritage
Memory Museums and education about the
Maria Cecília Silveira de Faria Gomes
human rights. A case study: MUME — Uruguay
pág. 104-112
Ana María Sosa González
pág. 43-54
Projeto Cultural sarau noturno:
desenvolvendo a Educação Patrimonial
Museus do Distrito de Viseu: a construção
através da arte cemiterial
de uma rede de proximidade territorial
Cultural Project sarau noturno: developing
Museums of District of Viseu: framing
the Heritage Education through cemeterial art
of a territorial proximity network.
Clarisse Ismério
Ana Rita Santos Almeida Martins Antunes
pág. 113-127
pág. 55-68
6. Arte e comunidades: Um Arquivo Poético
Desenvolvimento do Público Interno.
sobre o Envelhecimento
Reflexões acerca da importância de se investir nos
Community Art: A Poetic Archive on Aging
funcionários de museus
Constança Saraiva
Development of Internal Audience. Reflections
pág. 128-138
about the importance of investing in museum employees
Gabriela Figurelli
Museologia e Integração: reflexões sobre
pág. 187-199
as condições de possibilidade na América Latina
Museology and Integration: reflections about
Museus e Criatividade
the conditions of possibility in Latin America
Museums and Creativity
Daniel Maurício Viana de Souza
Inês Ferreira
pág. 139-147
pág. 200-214
O patrimônio cinematográfico e o governo
A parede da rua: modernidade do museu
dos homens: as políticas de subjetivação postas em
ao contrário
funcionamento nas relações interculturais
The Wall Street: modernity of the unlike museum
da contemporaneidade
Isabel Nogueira
The cinematic heritage and the government
pág. 215-221
of men: the politics of subjectivization put into
operation in intercultural relations of contemporary
Sustentabilidade Ambiental
Fábio Zanoni
e Apropriação Social no Conjunto
pág. 148-167
Histórico Praça da Graça
Environmental Sustainability and Social
Narrativas museais na UNIVASF:
Appropriation in Praça da Graça
caminhos a/r/tográficos em construção
Historical Set
Museological narratives in UNIVASF:
Ísis Meireles Rodrigues
a/r/tographic ways under construction
pág. 222-234
Flávia Maria de Brito Pedrosa Vasconcelos
pág. 168-175
Museus Locais: conservação
e produção da memória coletiva
Interações discursivas no trabalho
Local Museums: preservation and production of
de mediação em artes visuais
collective memory
Discursive interactions in the process
Joana Ganilho Marques
of mediation in visual arts
pág. 235-246
Gabriela Bon
pág. 176-186
Educação patrimonial e produção audiovisual
Heritage Education and Audiovisual Production
João Paulo Rodrigues Pires
pág. 247-254
7. A museologia brasileira: novo marco regulatório
La enseñanza del patrimonio en la
Brazilian Museology: a new regulatory mark
formación incial del profesorado. Desde
José Ricardo Oriá Fernandes
una perspectiva histórico-artística a una didáctica
pág. 255-262
del patrimonio cultural integrado.
HERITAGE TEACHING IN TEACHER TRAINING.
Os Museus como Espaços de Sociabilidade:
From an art-historical perspective to a didactic
as experiências educativas do museu de mértola
of cultural integrated heritage.
Museums as Spaces of Sociability: the
Olga Duarte Piña
educational experiences of mértola’s museum
pág. 323-335
Lígia Rafael
Maria de Fátima Palma
A Reconstrução Histórica de Objetos
pág. 263-275
de Ciência e Tecnologia
RECONSTRUCTION OF HISTORICAL OBJECTS
A EDUCAÇÃO DO RISCO:
OF SCIENCE AND TECHNOLOGY
uma proposta de inserção sócioeconómica
Paulo de Melo Noronha Filho
THE RISK EDUCATION:
pág. 336-347
a proposal for socioeconomic inclusion
Luís Gustavo de Nascimento
Museu Nacional de Arte Antiga
pág. 276-281
e Largo do Dr. José de Figueiredo:
linha que une — uma experiência de intervenção concreta
Visando à inclusão social:
Museu Nacional de Arte Antiga and Largo
criações a partir do patrimônio
do Dr. José de Figueiredo: Connecting line
In search of social inclusion:
— specific intervention experience
creations from patrimony
Pedro Soares Neves
Márcia Isabel Teixeira de Vargas
pág. 348-357
Marilda Mena Barreto Silva Saucedo
pág. 282-294
A Musealização do Patrimônio
Cultural do Bar Ocidente
Igreja de Nossa Senhora do Monte:
The Musealization of Bar Ocidente
história, identidade e preservação
Cultural Heritage
Church of Our Lady of Mount:
Priscila Chagas Oliveira
history, identity and preservation
pág. 358-367
Maria da Graça Andrade Dias
pág. 295-308
Arte, Arqueologia e Museus.
Correspondências e Mediações Contemporâneas
Um Projeto de Novas Tecnologias aplicado
Art, Archaeology and Museums. Contemporary
na Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves
Correspondences and Mediations
New Technologies Project applied at
Sara Navarro
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves
pág. 368-375
Mariana Mendes de Mesquita
pág. 309-322
8. O Material e o Imaterial na Coleção
Notas de Dissertações e Teses
Etnográfica de Cozinha do Museu
Museus do Distrito de Viseu: a construção
Carlos Machado
de uma rede de proximidade territorial
The genesis of the industrial and
Museums of District of Viseu: framing of a territorial
decorative arts museums
proximity network.
Sofia Carolina Pacheco Botelho
Ana Rita Santos Almeida Martins Antunes
pág. 376-388
Arte e Comunidades, um Arquivo Poético
sobre o Envelhecimento
A génese dos museus de artes
Community Art, a Poetic Archive on Aging
industriais e decorativas
Constança Saraiva
The Tangible and the Intangible at the
pág. 446-447
of the Carlos Machado Museum
Sofia Leal Rodrigues
pág. 389-402
Isto não é um bandeirante! O trabalho de
mediação na exposição “imagens recriam a história”
This is not a “bandeirante”! The educational work in
the exhibition “images recreate the history”
Valéria Peixoto de Alencar
pág. 403-415
Resenha
Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
Áurea da Paz Pinheiro
pág. 418-420
Crítica de Arte e Design
Senhores de seu ofício
Cássia Moura
pág. 422-425
Entrevista
A museologia contemporânea
Fernando António Baptista Pereira
pág. 428-443
9.
10. 368
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Arte, Arqueologia e Museus.
Correspondências
e Mediações Contemporâneas
Art, Archaeology and Museums.
Contemporary Correspondences and Mediations
Sara Navarro
CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes. Secção de Investigação e de
Estudos em Ciências da Arte e do Património - Francisco de Holanda
Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (2): pp. 368-375.
Navarro, Sara (2013) “Arte, Arqueologia e Museus. Correspondências e Mediações Contemporâneas.”
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa
Resumo: A partir da constatação de que artistas e arqueólogos prestam, atualmente, cada vez mais atenção ao respectivo trabalho de uns e de outros, proponho explorar a forma como a arte contemporânea – em particular a escultura
– se pode encaixar no projeto arqueológico de estudo, compreensão e comunicação do passado humano.
Palavras-chave: Arte, Arqueologia e Transdisciplinaridade
Abstract: Stemming from the observation that artists and archaeologists are,
these days, paying more attention to each other’s work, I propose to explore
the way in which contemporary art – sculpture in particular – can fit in the
archaeological project of study, comprehension and communication of the human past.
Keywords: Art, Archaeology and Transdisciplinarity
Introdução
O diálogo, histórico e permanente, entre arte e arqueologia e a, cada vez mais
comum, colaboração de artistas nos projetos de investigação arqueológica leva-me, como ponto de partida para a presente comunicação, a questionar a natureza desta relação, o status do artista para a arqueologia e o interesse dos arqueólogos na prática artística.
Centrada no caráter reflexivo e subjetivo da cultura material, proponho o
desenvolvimento de novos métodos, menos científicos e mais estéticos, em que
o olhar dos artistas pode ser integrado na metodologia arqueológica, com vista
a desenvolver novos modos de ver e registar, de pensar e representar, de comunicar e expor.
Tal como acontece com a prática artística contemporânea, a meu ver, é crucial que o trabalho da arqueologia não se limite à análise hermética do passado, mas se envolva também na pluralidade e multivocalidade do pensamento
contemporâneo. Ainda que ciente das diferenças entre as disciplinas, acredito
11. que as propostas culturais da arte contemporânea podem ser um instrumento
valioso para a análise arqueológica.
A interdisciplinaridade leva, geralmente, à criação de pensamento original.
Rumo a um novo território intelectual, a prática interdisciplinar implica assumir riscos, criar rupturas, dar saltos, abdicar, quebrar convenções, renunciar à
facilidade de continuar dentro do que é expectado e, claro, do que é aceite.
Há muito que os artistas compreenderam que a transgressão das fronteiras
disciplinares e a resistência a categorizações leva a um desenvolvimento disciplinar, visando o crescimento e possibilitando uma ontologia transversal.
Penso que, tal como a arte, a arqueologia e os estudos patrimoniais podem
beneficiar ao localizar-se num campo expandido, num contexto mais alargado,
que é simultaneamente arqueológico, histórico e artístico.
Potes e Transfigurações: a arqueologia como pretexto
para a escultura
Após a minha licenciatura em Escultura, o trabalho que desenvolvi, entre 2006
e 2008 no Museu de Portimão, colocou-me em grande proximidade com o trabalho de uma equipa de arqueologia. Esta colaboração fez emergir questões relacionadas com a relevância do cruzamento entre o mundo da arte e o mundo da
arqueologia, na formação, visão e concepção da cultura contemporânea.
Com esta experiência, fui-me apercebendo de todo um campo de investigação
em que poderia dar um contributo inovador às perspectivas que se foram construindo no âmbito do diálogo entre arte e arqueologia, associando-lhes um trabalho de produção artística. Foi assim que, em 2008, iniciei a investigação de doutoramento em Escultura, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,
sob o título Potes e Transfigurações: a arqueologia como pretexto para a escultura.
De carácter teórico-prático, o meu trabalho procura, através de uma ligação
entre a investigação arqueológica e a produção artística, a criação de objetos escultóricos que se aproximem das formas de cerâmica pré-histórica, distinguindo-se destas pela alteração da escala, por uma manipulação original dos esquemas decorativos e pela ruptura com a funcionalidade. Com este trabalho, espero
não só contribuir para uma visão alargada sobre a cerâmica pré-histórica, como
também encontrar o seu espaço na teoria da arte e mostrar a relevância do seu
estudo para a criação artística contemporânea.
O estudo da cerâmica arqueológica interessa-me na medida em que, a partir
dela, é possível recolher um conjunto de aspectos tecnológicos, morfológicos,
decorativos e simbólicos que podem, a meu ver, ser aplicados, com interesse, ao
campo da escultura contemporânea.
A minha curiosidade pela tecnologia de fabrico de cerâmica pré-histórica
levou-me, em 2007, ainda antes de iniciar a investigação de doutoramento, a
participar na II Oficina de Cerâmica Etnográfica, organizada pelas Oficinas do
Convento, em Montemor-o-Novo. Nesta oficina, pude observar o ‘saber-fazer’ de
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Navarro, Sara (2013) “Arte, Arqueologia e Museus. Correspondências e Mediações Contemporâneas.”
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oleiras da ilha de Santiago (Cabo Verde) e tentei estabelecer, pela primeira vez,
pontes entre a criação artística, as técnicas ancestrais de produção de cerâmica e
a morfologia das cerâmicas pré-históricas.
Considero importantes os paralelos etnográficos e os estudos etnoarqueológicos, pois podem contribuir para uma melhor compreensão dos processos de fabrico da cerâmica pré-histórica, assim como das representações simbólico-rituais
envolvidas tanto na tecnologia de produção como na utilização das cerâmicas.
O contacto com a olaria tradicional cabo-verdiana teve não só influência em
toda a minha criação artística subsequente, como também na componente pedagógica da minha investigação de doutoramento.
Neste âmbito pedagógico, saliento a residência artística no Museu de Portimão, onde, desde 2011, desenvolvo trabalho prático na área da criação artística
e onde organizei, em 2012, a Oficina de Cerâmica Pré-histórica, que teve lugar no
Centro de Interpretação de Alcalar e na qual participaram, além do público geral, artistas plásticos e arqueólogos.
Saliento, ainda, uma anterior oficina, intitulada O Sentido dos Potes nas Origens: Hoje, que coordenei, em 2010, no Telheiro da Encosta do Castelo de Montemor-o-Novo e que contou com a participação dos alunos do Laboratório de
Cerâmica da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Nestas oficinas, procuro – não só a partir da minha experimentação e do
contacto com as matérias primas, mas também a partir da observação da experiência dos outros participantes – compreender as escolhas dos indivíduos ao
desenvolver, replicar e adotar uma determinada tecnologia.
Com um potencial simbólico reconhecido, a cerâmica é tida como símbolo social de expressão cultural, revestindo-se, tanto a sua produção como a sua utilização, de significados simbólicos e rituais. A arqueologia tem vindo a reconhecer o
seu valor enquanto fonte de informação, como veículo de mensagens e como um
poderoso meio metafórico através do qual as pessoas se exprimiam e refletiam o
seu mundo. A forma como os humanos usaram os artefactos para definir, estruturar e alterar as relações sociais é um tópico de interesse para a minha investigação.
Neste sentido, os artefactos não são, a meu ver, produtos neutros, meramente utilitários, mas produtos ideológicos resultantes de produções conscientes, codificadoras e transmissoras de significados sociais específicos. Ao procurar entender a
relação entre pessoas e artefactos – cultura, ambiente e mente – reflito sobre o
fazer, o usar, o reutilizar e o depositar dos artefactos cerâmicos.
Relacionada com estruturas sociais e ideológicas, a cerâmica arqueológica
é um produto histórico que corporiza as ideias, valores e condições sociais do
tempo dos seus produtores (SHANKS; TILLEY, 1992:137). As formas cerâmicas
representam as escolhas culturais de um contexto histórico-social específico e
a sua decoração responde a regras ou normas culturais que determinam a localização, orientação e combinação dos elementos em configurações que devem
constituir um estilo ou design apropriado (SINOPOLI, 1991:9).
Noutra perspectiva, também me interessa o pensamento mítico sobre a
13. significação associada à produção e à utilização de objetos cerâmicos. As fontes da antropologia relativas ao fabrico de cerâmica manual indicam que esta
arte, menos simples do que possa parecer, é uma prática rodeada de costumes
e tabus. A argila associa-se a representações mágicas e religiosas e existe toda
uma ‘filosofia’ primitiva que subjaz à sua confecção, ela é objecto de numerosas
práticas rituais, precauções e cuidados (LÉVI-STRAUSS, 1985:25). As oleiras –
que usam o poder do fogo para impor uma determinada forma a uma matéria
amorfa, transformando-a, disciplinando-a – são frequentemente vistas como
figuras associadas a poderes rituais, a saberes ‘especiais’, secretos ou mágicos
(LÉVI-STRAUSS,1985:27). E, no mesmo sentido, também as formas cerâmicas,
em especial os potes, são profundamente infundidos de significados mágico-sociais. Associados a antigas práticas religiosas, os potes – formas habitadas por
espíritos – movimentam-se entre o mundo doméstico e o mundo ritual (BARLEY, 1994:92).
Penso que esta conexão entre arte, arqueologia, antropologia e etnografia
pode ser um campo muito fértil para a criação de escultura contemporânea. A
partir da investigação sobre os possíveis pensamentos, decisões, motivações e
ideias existentes por trás de cada objecto e da reprodução dos respectivos processos tecnológicos, poderá a arte contemporânea (re)encontrar novas linguagens
plásticas, algumas das quais há muito perdidas. Desta forma, o trabalho artístico pode suscitar novas abordagens no domínio da arte contemporânea e novos
olhares e perspectivas relativamente aos objetos cerâmicos estudados, permitindo que se abram caminhos inovadores de reinterpretação e valorização do
património arqueológico e dos saberes etnográficos.
Sabendo eu que a arte é indissociável da sequência de objetos históricos que
lhe servem de enquadramento, o conceito de herança e continuidade no domínio da arte é central para o trabalho que realizo. Penso que cada obra humana se
coloca, de forma mais ou menos consciente, no interior de uma cadeia de obras
similares, ou de ‘sequências formais’, que atravessam os milénios. Neste sentido,
uma sequência formal, ainda que esteja inativa durante milénios, pode sempre
ser reativada pelo estímulo de novas técnicas ou de novos acontecimentos. Independentemente dos ciclos históricos, podemos verificar a ocorrência de sequências formais, numa história aberta onde não existe nada que não possa voltar a
ser atual (KUBLER, 1962).
As coisas possuem uma ‘idade sistémica’ que pouca relação tem com a idade cronológica:
as obras humanas são como as estrelas cuja luz partiu em direção ao observador muito
antes de lhe aparecer. (PERNIOLA, 2003)
No meu trabalho exploro a relação entre a mão e a matéria no sentido do saber-fazer artesanal, anunciando um possível retorno da escultura a uma produção
ancestral. Invoco as práticas primitivas da produção de objetos utilitários e co-
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Navarro, Sara (2013) “Arte, Arqueologia e Museus. Correspondências e Mediações Contemporâneas.”
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noto a prática da escultura com um valor arcaico, quase arquetípico. Concentro-me na forma como o corpo age sobre a argila, massa em movimento, que vai
ganhando forma ao receber a orgânica pressão das mãos. Caracterizadas pela
morfologia, simbologia e pelo processo de produção, as peças podem ser entendidas como testemunhos de uma origem, de um espaço-tempo ancestral, para o
qual parecem querer transportar o observador que com elas se relaciona.
Na exposição Formas de Terra e Fogo (Museu de Portimão, 2012), as peças,
que exprimem claramente a sua própria massa inerente às propriedades físicas
do material cerâmico, aparentam, pela técnica de instalação, estar em suspensão, livres do próprio peso. Esta extrema leveza aparente, ou visual, permite que
as esculturas saiam da condição de objecto, ultrapassem a sua materialidade e
ganhem novos significados simbólicos. Suspensas no espaço da exposição, as
peças, dotadas de um investimento de energia que as impele contra a gravidade,
vencem a resistência do seu próprio peso e pairam como corpos animados ou
planetas num espaço cósmico.
Figs. 1 e 2 - Exposição Formas de Terra e Fogo, escultura de Sara Navarro,
Museu de Portimão. Fotografia R. Soares
15. É no museu, ou no espaço da exposição, que, através da emoção estética, o
observador pode metamorfosear as peças em ideia. As peças aproximam-se de
uma ‘corporização abstracta’, isto é, se por um lado assumem a forma enquanto tal, por outro, a maneira como são colocadas no espaço expositivo contribui
para uma superação da sua ‘objetualidade’ formal. As peças colocam o observador num domínio da escultura que pressupõe uma envolvência conceptual, sem
a qual as peças não se distinguiriam de objetos vulgares, utilitários.
Configurando uma ontologia anímica, em diferentes tempos e diferentes culturas, determinados objetos tornam-se animados e passam a ser entendidos como
corpos vivos. Lembrando os ídolos das antigas civilizações, podemos entrever nas
peças, através da transfiguração e do movimento de ascensão, um sentido xamânico da arte, no qual estas, enquanto instrumentos de poder, se veem carregadas de
significados simbólico-rituais que ultrapassam a sua materialidade.
Interessa-me a carga cultural das matérias e dos objetos. A morfologia circular dos potes pré-históricos, a sua forma e o seu vazio, assim como as suas funções ligadas ao transporte, armazenamento, processamento e consumo de bens
alimentares, a par dos seus valores simbólicos associados ao início da agricultura/sedentarização, ao lar, aos rituais da comensalidade, ao corpo e ao papel feminino, têm sido aspectos fundamentais no âmbito da minha prática artística.
Fig. 3 - Poster da exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro.
wRuínas romanas de Milreu (Faro). Design T. Coelho e Fotografia R. Soares, 2012.
De forma diferente, mas com o mesmo sentido, as mesmas peças, na exposição Do Magma às Estrelas (ruínas romanas de Milreu - Faro, 2012), utilizam o
carácter arqueológico do espaço expositivo para se relacionarem ou dialogarem
com o observador. Mais uma vez, a suspensão de algumas das peças, no espaço das ruínas, imprime às esculturas um carácter transcendental, cósmico ou
cosmológico, neste caso, também, acentuado pelo próprio título da exposição.
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Navarro, Sara (2013) “Arte, Arqueologia e Museus. Correspondências e Mediações Contemporâneas.”
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Colocadas de forma mais ou menos dissimulada nos estratos arqueológicos das
ruínas, a sua exposição pressupõe o transporte ou a deslocação do observador
entre diferentes tempos, espaços ou mundos.
Fig. 4 - Exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro.
Ruínas romanas de Milreu (Faro). Fotografia R. Soares, 2012.
Articulando um inovador diálogo entre arte e arqueologia, esta exposição
propiciou uma nova experiência visual em que se sublinham as semelhanças
tácteis e cromáticas entre a terracota das peças e a estratigrafia do sítio. Com
uma poderosa significância de interpretação do passado no contemporâneo, a
ligação entre arte e arqueologia permite ao observador comprometer-se mais
ativamente com o passado. Aqui, a exposição surge como um ‘laboratório experimental’ onde, numa escavação imaginária, o observador é levado a usar a
imaginação visual para dar vida ao passado que ecoa nas peças.
Se, por um lado, a partir da exposição podemos questionar a forma como a
cultura material permanece, ao longo do tempo, como herança patrimonial, por
outro, podemos, numa equação oposta, pensar sobre a natureza do impacto do
sítio arqueológico sobre as peças. A exposição de obras de arte contemporânea
em sítios arqueológicos pode ser, para além de boa-de-olhar, boa-para-pensar, na
medida em que transforma o lugar e desafia o observador, redirecionando-o para
uma inovadora posição de compromisso entre o contemporâneo e a envolvência arqueológica do espaço. A exposição configura uma passagem do mundo da
matéria, do mundo da terra, para o universo das ideias, dos significados simbólicos da memória. Mais do que um objeto estático, encerrado nas sua limitações
17. materiais e conotações utilitárias, as peças representam um caminho, um destino, um movimento entre a matéria e a memória que as habita.
Conclusão
Em síntese, propus-me criar peças que evocam a arte e a cultura de outros lugares e de outros tempos. Peças que, pela morfologia e técnica de produção, nos
transportam a uma época em que a cerâmica era uma tecnologia de ponta, uma
conquista tecnológica. Num salto entre milénios, que parte de uma atração
pelas origens, pela arte antes da arte, pelo que foi parcialmente apagado pelo
tempo, as peças agora criadas fazem uma conexão entre os processos criativos
dos objetos mais arcaicos ou remotos e a criação contemporânea. Partindo de
fragmentos de uma realidade perdida, as formas que agora surgem, por mãos
contemporâneas, estabelecem a comunicação entre presente e passado. Pela
transfiguração, repenso e reinvento, num novo quadro, as velhas novidades neolíticas. Surgem objetos arquetípicos, reconhecíveis mas depurados das antigas
funcionalidades e com novas simbologias. Artefactos com significados sempre
múltiplos, com sentidos construídos e reconstruídos…
Contactar a autora: saranavarrocondesso@gmail.com
Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013
Referências
· BARLEY, N. Smashing Pots. Feats of Clay from Africa. London: British Museum Press, 1994.
· KUBLER, G. The Shape of Time: Remarks on the History of Things. New Haven (CT) Yale University
Press, 1962
· LEVI-STRAUSS, C. (1985). A Oleira Ciumenta. Lisboa: Edições 70, 1985.
· PERNIOLA, M. O sex appeal do inorgânico. Tradução de Carla David. Coimbra: Ariadne Editora, 2003
· SHANKS, M.; TILLEY, C. Re-Constructing Archaeology. London: Routledge, 1992.
· SINOPOLI, C. Approaches to Archaeological Ceramics. New York: Plenum Press, 1991.