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Através da nossa página no Facebook vamos disponibilizar todos os ar-
tigos do livro BRASIL NÃO MOTORIZADO. A cada semana um texto será
editado. Desse modo, ao final de 16 semanas o livro estará completo e terá sido
aberto mais um canal de leitura e discussão dos temas abordados.
A publicação dos artigos no formato eletrônico também se deve ao su-
cesso da edição. Além das cotas dos patrocinadores, vendas em lançamentos
e livrarias e doações a instituições de ensino, foram colocados mais de 1.000
exemplares. Isso demonstra o interesse pelo assunto “mobilidade urbana” e nos
dá a certeza de continuarmos com a coleção. Está prevista ainda para 2015 a
edição do nosso 2º volume – com alguns novos autores e novas abordagens.
Boa leitura
Vale lembrar que os interessados ainda podem adquirir o livro nas Li-
vrarias Cultura; sob encomenda ou pela internet. www.livrariacultura.com.br
IMPORTANTE
Empresas e entidades que patrocinaram essa 1ª edição:
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
Os desafios para fazer de
Curitiba uma cidade ciclável
JorgeBRAND(GouraNataraj)
1
“Querer refazer a arquitetura em função da existência
atual, maciça e parasitária dos carros individuais é deslocar
os problemas com grave irrealismo. É preciso refazer a arqui-
tetura em função de todo o movimento da sociedade.”
(Posições Situacionistas sobre o trânsito - 1959)
“As vantagens do tráfego auto-propelido, moderno,
são óbvias e ignoradas. Que um sistema de trânsito melhor
e mais rápido é algo declarado, mas nunca provado. Antes
de se pedir às pessoas para que paguem por isso, aqueles que
propõem a aceleração deveriam tentar mostrar as provas de
suas alegações.”
(Toward a History of Needs, Ivan Illich - 1984)
1.	Considerações iniciais
Em Curitiba, como em diversas cidades do Brasil, a questão da mobi-
lidade por bicicletas ganhou um impulso maior com o início das Bicicletadas
(Critical Mass Rides), manifestações que se iniciaram em novembro de 2005. As
ações da Bicicletada causaram espanto, provocando reações e reflexões por par-
te da sociedade como um todo. Em setembro de 2007, na ocasião do Dia Mun-
dial Sem Carros, um grupo de 50 ciclistas pintou, clandestinamente, a primeira
ciclofaixa da cidade. Foram autuados por crime ambiental. A ação e a repressão
da prefeitura surtiram o efeito desejado. De uma hora para outra, a bicicleta
tornou-se objeto de acirradas disputas e controvérsias. A favor ou contra, a po-
pulação foi chamada a se posicionar e olhar um problema que sempre esteve
ali, ignorado pelos rituais complexos e muito caros do sistema de transportes.
Reflexo do que acontece nos principais centros urbanos do mundo, as
propostas da Bicicletada de Curitiba, de inserção da bicicleta como modal de
transporte, esbarraram em três estágios facilmente identificáveis. Foram criti-
cadas, reprimidas e ridicularizadas em seu início. Ganharam força e apelo de
1	 Graduação e Mestrado em Filosofia pela UFPR; Coordenador Geral da Associação de Ciclistas
do Alto Iguaçu – Cicloiguaçu
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
um número cada vez maior de pessoas e instituições. Passaram, final-
mente, a virar quase consenso, inserindo-se na vida pública da cidade de forma
contundente, pautando inclusive a última eleição municipal, na qual todos os
candidatos se manifestaram positivamente em relação às propostas. O prefeito
eleito, inclusive, foi à posse de bicicleta e comprometeu-se formalmente com
a implantação de medidas voltadas a tornar o uso dos biciclos mais seguro e
corriqueiro.
A capital do Estado do Paraná, apesar do que dizem os mais carrancudos
e preguiçosos, é bastante propícia para o uso cotidiano da bicicleta. Ela possui
84% de sua área plana, e o clima é temperado. Embora tenha muitos dias úmi-
dos no ano, Curitiba pode ser considerada uma cidade favorável ao uso deste
modal.
Capital de contrariedades, o município tem o mais alto índice de moto-
rização do Brasil. Os automóveis de luxo também abundam nela, bem como
os congestionamentos crescentes, frutos não só da política econômica federal,
mas também de decisões da engenharia de trânsito local, que favorecem ex-
plicitamente o automóvel. Tal engenharia, nas últimas décadas, priorizando o
fluxo automotivo, criou binários, trincheiras, viadutos e demais estruturas que
cortaram e mutilaram a história dos bairros da cidade.
Caso tudo isto seja considerado um exagero, ao menos guarde o leitor a
noção de descaracterização. O fluxo de tráfego, a especulação imobiliária e a
concentração dos espaços de convívio e lazer nos centros privados de compra
trouxeram, todos juntos, este efeito colateral, não desejado, mas tampouco re-
primido ou controlado com a devida postura pelo poder público.
Figuras 1 e 2: Exemplos de ausência de respeito à prioridade de passagem de ciclistas em ruas centrais
de Curitiba - PR, mesmo onde existem travessias demarcadas por sinalização horizontal na via, 2013
FONTE: Fotos do Autor, 2013
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
Pedalar em Curitiba por lazer ou por deslocamento utilitário ainda é ati-
vidade restrita aos mais entusiastas. Quase a totalidade da malha cicloviária –
127 km –, é composta de passeios compartilhados, e o conflito entre pedestres
e ciclistas é muito comum. E isto poderia ser evitado mediante a criação de
espaços adequados para um e outro. Até mesmo em trechos mais recentemente
construídos, onde ciclofaixas foram implantadas, o conforto e a segurança ao
pedalar não são completos. Os cruzamentos continuam sendo o ponto mais
frágil de uma rede que precisa ser inteiramente requalificada.
Pela estrutura bastante precária, os ciclistas inevitavelmente precisam ir
às ruas e compartilhar o espaço de circulação veicular com os demais modais
de transporte. O respeito por parte dos motoristas está longe do ideal. Entre-
tanto, já é bem mais comum presenciar cenas de respeito e gentileza, apesar de
as situações opostas, de impaciência, violência e imprudência, continuarem tão
presentes quanto minha geração é capaz de lembrar.
Tal malha, apesar de incompleta, possui trechos importantes que são su-
butilizados no planejamento da mobilidade da cidade. Intervenções pontuais
da Secretaria de Trânsito poderiam trazer mais segurança aos usuários da bici-
cleta. Teima-se em priorizar a fluidez do tráfego geral em detrimento da adoção
de medidas voltadas à busca de cruzamentos seguros. Ignoram-se os pequenos
detalhes, de custo baixíssimo, que fazem a diferença para o uso das duas rodas
leves. Falamos do nivelamento do piso nas intersecções, de uma sinalização ho-
rizontal bem feita e da semaforização que garanta tempo mínimo de travessia
aos ciclistas.
Essas exigências unem tanto ciclistas quanto pedestres na categoria de
cidadãos de segunda classe. E são estes que devem sempre ceder à autoridade
do motor, cujo fluxo deve ser mantido, custe o que custar. Tal lógica despreza
o fato de que todos somos, antes de tudo, pedestres. Assim, a mobilidade dos
motorizados não pode, em hipótese alguma, restringir a caminhada e o acesso
por bicicleta.
O desprezo ao pedestre e ao ciclista por parte dos planejadores é um sin-
toma que Ivan Illich (1926/2002), na década de 1970, apresentou, com ares um
tanto proféticos, através do conceito de monopólio radical, com o qual ques-
tionou os imperativos tecnocráticos da sociedade industrial. Sobre o sistema
de transporte, afirmou Illich que “um cartel industrial total pode restringir a
liberdade ainda mais: pode encurralar todos os transportes de massa em be-
nefício dos automóveis particulares, como fez a General Motors ao comprar e
arruinar todos os bondes de São Francisco. Podemos escapar deste monopólio
comprando uma bicicleta. Uso agora o termo ‘monopólio radical’ para designar
a substituição das atividades úteis em que a gente se comprometeria ou gostaria
de fazê-lo, por um produto industrial ou um serviço profissional. Enquanto os
veículos deslocam cada vez mais pessoas, mais administradores de trânsito
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
serão necessários, cada vez mais, e as pessoas serão cada vez mais impo-
tentes para caminhar até suas casas”.
De fato, faltam calçadas adequadas, bem como espaços demarcados para
os ciclistas. Postes, placas, lixeiras e orelhões (telefones públicos), são comuns
nos passeios, bem como totens publicitários, que jamais são encontrados obs-
truindo sequer dez centímetros da via. Ao carro, cedemos tudo. A cidade, desta
forma, não convida os seus cidadãos a experimentarem-na, em primeira mão,
pela força direta do corpo. Inverter esta ordem e possibilitar um caminho livre
para o caminhante e uma rede segura para os pedais é tarefa que se impõe, em
caráter de urgência, para os próximos anos. Isto, é claro, se estamos pensando
na saúde da cidade e tendo isto como nosso objetivo.
Cidades são espaços de convivialidade. Vivemos aglomerados nelas pelas
facilidades, prazeres e benefícios que o convívio com os outros nos oferece. Foi
assim que elas surgiram e isto persiste até os dias de hoje. É lugar comum, no
entanto, constatarmos que este papel das cidades passa por uma grave crise. As
cidades estão inchadas, o convívio acontece dentro dos espaços controlados do
grande comércio. A mobilidade é vista como consumo de transporte e o cida-
dão é cada vez mais subtraído das decisões que afetam diretamente sua experi-
ência da cidade e, por conseguinte, de si próprio.
As cidades como espaços de convívio e de encontros deveriam ser o pon-
to de partida e meta para toda intervenção urbana. Redundante constatar a di-
ficuldade de atingir tal objetivo em áreas urbanas inchadas, que sucumbiram à
lógica dos automóveis e que transferiram seus pontos de encontro nas ruas para
o interior dos shoppings. Talvez seja mesmo infrutífero questionar tão radical-
mente este cenário. A bicicleta, no entanto, pode servir para abrir novos cami-
nhos, mediante novas percepções, para o futuro das cidades. Esses caminhos,
no momento, de dentro de nossos carros, parecem impossíveis de vislumbrar.
A mobilidade inclui a discussão sobre temas como habitação e densidade
populacional; traz consigo a reflexão sobre saúde, meio ambiente, segurança e
cidadania. O problema da mobilidade não é apenas técnico. Não diz respeito
apenas à engenharia do trânsito, mas é um problema essencialmente político.
Estabelece normas, valores e práticas de conduta no espaço público. Talvez todo
urbanismo deva ser incluído nesta ressalva. A política e a cidadania deveriam
estar inclusas e pressupostas nas interrogações técnicas.
Por que conceder que as praças sejam destruídas ou mutiladas para o
fluxo dos automóveis? Por que tratar como natural que o homem não se utilize
mais da força muscular para seu deslocamento? Por que ignorar o fato de que
a cidade se constitui como local de existência, ou seja, fonte de inspiração e
inquietação, na medida em que sou dela conhecedor e possuidor? É necessário
que o cidadão se identifique com o espaço urbano e isto apenas acontece na
medida em que este é reconhecido, também, como seu habitat.
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
A dimensão humana nas cidades deve ser preservada. É este espaço que
cabe ao cidadão, em conjunto com os demais, gerir e cuidar. Na mobilidade isto
significa uma velocidade que não apresente riscos à integridade do corpo físico,
que coloque o sujeito num papel predominante, que não limite sua autonomia,
mas que, pelo contrário, a expanda tanto quanto possível.
Para que Curitiba tenha êxito nesta tarefa, apresentamos aqui algumas
reflexões. Que sirvam de alimento para inspirar e trazer mudanças.
1.	As bicicletas na via lenta, um centro acalmado
Atualmente estima-se em 2% o número de viagens por bicicleta em Curi-
tiba. Este número poderia ser muito maior se a rede cicloviária inicial, constru-
ída no início da década de 70 do Século XX, tivesse se incorporado às inovações
do transporte coletivo que alçaram Curitiba a uma espécie de Meca do urba-
nismo mundial. As canaletas exclusivas do sistema BRT (Bus Rapid Transit)
estabeleceram o sentido de ocupação e adensamento da cidade, assim como
criaram o mito da capital inovadora, noção que persiste até hoje, apesar das
falhas gritantes do sistema. As chamadas “estruturais” fizeram o corte dos ei-
xos cardeais do espaço e nelas permitiu-se a construção de edifícios altos, cujos
habitantes teriam acesso muito próximo ao transporte coletivo. A intenção era
que a classe média andasse de ônibus.
As primeiras ciclovias (passeios compartilhados) da cidade datam da
mesma época de urbanismo “frenético”, se nos for permitido comparar a ex-
pressão “frenzywriting” à gestão da cidade. Também daí veio o fechamento de
Figuras 3 e 4: Atual situação de uso na canaleta, onde ciclistas e ônibus bi-articulados compartilham
mesmo espaço, muitas vezes com situações de risco de vida para os usuários da bicicleta, Curitiba, 2013
FONTE: Fotos do Autor, 2013
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
um trecho da Rua XV de Novembro aos veículos. Uma rua de pedestres
foi formada. Mas, e a bicicleta? Nenhum dos trechos de ciclovia conectava-se
às estruturais. Curiosamente, a intenção de integrar a bicicleta à coluna ver-
tebral da mobilidade em Curitiba não esteve presente. Foi ignorada. Bastava
ter-se delimitado um espaço de circulação não motorizada nas vias lentas para
estimular o uso da bicicleta no dia a dia. Nada disso foi feito. Não demorou
para os ciclistas ocuparem as próprias vias exclusivas do transporte coletivo,
que ligavam a cidade de norte a sul, leste a oeste, passando pela região central.
Tal ocupação, ainda em voga hoje em dia, pela ausência de estrutura específica
para as bicicletas, criou situações de risco e conflito entre modais que deveriam
ser complementares.
O sistema de Curitiba criou um trinário. Na larga avenida dos eixos es-
truturais, em seu centro, está a pista exclusiva do BRT, e duas pistas marginais
– as vias lentas – existem para o acesso residencial e o comércio lindeiro. Estas
vias devem receber o tratamento necessário para que as bicicletas tenham nelas
o seu espaço digno. Paralelamente correm duas avenidas, de largura semelhan-
te, nos sentidos bairro/centro e centro/bairro, para o fluxo de automóveis e ôni-
bus que não circulam nas estruturais. São as chamadas “vias rápidas” – termo e
“coisa” que não deveriam ser permitidos na área urbana.
Por muito tempo, a prefeitura da cidade cogitou seriamente que, ao es-
timular as bicicletas, o número de usuários do transporte coletivo diminuiria,
trazendo prejuízo ao sistema. É recente o discurso da integração modal ou da
complementaridade dos modais na empresa público/privada que gerencia o sis
Figura 5: Exemplo de dificuldade de travessia de ciclista, mesmo tendo sinalização horizontal na via
demarcando o espaço para a sua passagem, com prioridade sobre o tráfego motorizado.
FONTE: Fotos do Autor, 2013
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
tema, a URBS. O uso da bicicleta sempre foi associado ao lazer, mesmo
sendo sua utilização majoritária por parte de trabalhadores, em geral de baixa
renda, que justamente por esta razão não tinham voz para expressar a desigual-
dade na distribuição do espaço viário.
Curitiba, em sua gestão do urbanismo, não conseguiu até agora incluir a
mobilidade por bicicleta de maneira satisfatória. Falta, antes de tudo, um Plano
Diretor Cicloviário, que estabeleça diretrizes e metas que seja construído com
a participação efetiva da sociedade civil. Tal plano deve criar inicialmente uma
rede de acesso a todas as direções da cidade. Neste sentido é natural que se uti-
lize dos atuais eixos do transporte coletivo, as vias estruturais, que tornaram a
cidade o que ela é nos dias de hoje.
Para se elevar o percentual de deslocamentos por bicicleta é necessário
que utilizemos a mesma lógica do adensamento provocado pelas estruturais.
É nelas que o fluxo majoritário de pessoas se desloca diariamente. A bicicleta é
uma tendência mundial, mas na maior parte das capitais brasileiras terá gran-
des dificuldades para se consolidar. Em Curitiba, felizmente, o espaço para tal
rede existe, e será o primeiro passo para a bicicleta estar presente na Rede Inte-
grada de Transporte (RIT).
O compartilhamento das vias lentas criará uma rede primária de aces-
so à cidade por bicicleta. A integração factual com o transporte coletivo será
uma consequência. A instalação de bicicletários nos terminais de ônibus e de
paraciclos junto às estações pode indicar um passo adiante, ainda impensado,
para aumentar as viagens por bicicletas. Um sistema de compartilhamento de
bicicletas públicas, no eixo estrutural, teria ali suas bases traçadas. A rede es-
trutural deve se conectar às redes locais dos bairros e às ciclovias já existentes.
Nos bairros, a criação de ciclorrotas, pela demarcação de ruas que podem servir
de conexão às ciclofaixas das estruturais, será ação importante. Garantir que a
totalidade dos bairros esteja conectada à rede cicloviária, através de ciclorrotas
e ciclovias, é uma meta desejável.
1.	Um centro acalmado
É ilusão – para nossa sorte – acharmos que o espaço atualmente ocupado
pelo automóvel possa se expandir infinitamente, devorando praças, bosques,
calçadas, ocupações irregulares, ou que esteja imune a qualquer restrição. Pelo
contrário, é certo que mais cedo ou mais tarde o gestor do transporte terá que
tomar decisões políticas, não técnicas, que restrinjam o ir e vir dos automóveis,
favorecendo o transporte coletivo e os não motorizados. A intenção, declarada
ou não, deve ser de dificultar a vida do motorista, que já é bastante complicada,
diga-se de passagem. O custo de ter e manter um automóvel são muito altos e
estão ligados, em nossa sociedade, a processos de diferenciação social. Na velo-
cidade da bicicleta somos todos mais próximos e estamos mais próximos tam-
bém da cidade, dos seus detalhes e de suas dinâmicas.
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
Junto à rede estrutural, um centro acalmado, com restrições ao automó-
vel, que preveja o alargamento dos passeios, no qual pedestres e ciclistas te-
nham prioridade, criará o desejo de circular pela cidade fora do carro – efeito
positivo para a revitalização da vida urbana como um todo. Este processo pode
se iniciar com a delimitação de um anel central no qual todos os cruzamentos
terão tempo de travessia para o pedestre, restrição ao estacionamento em áre-
as públicas, criação de faixas exclusivas para o transporte coletivo, bem como
travessias elevadas em todas as faixas de pedestres. Isto criará um trânsito de
velocidade mais baixa e terá um impacto muito grande na visão que o pedestre
tem de si, na sua atitude perante os carros.
Muitas vezes as notícias de acidentes no trânsito envolvendo pedestres e
ciclistas criminalizam a vítima, independentemente do erro do motorista. Ape-
sar de contradizer o bom senso e nossa noção de justiça, além do próprio Có-
digo de Trânsito Brasileiro, as regras não ditas do trânsito urbano, em muitas
cidades do Brasil, e Curitiba não é exceção, afirmam que o pedestre tem que
tomar cuidado, pois o automóvel é rei, senhor e destino: esperamos submissa-
mente que o carro passe, para só então seguirmos nosso caminho. Toda enge-
nharia de trânsito favorece o fluir do carro e não o dos pedestres e ciclistas, na
contramão do que teorizam os urbanistas conscientes sobre o papel da cidade.
1.	Conclusões e Recomendações
Curitiba pode se destacar na ciclomobilidade ao garantir recursos para
os projetos e obras, de forma contínua e bem planejada, expandindo assim o
percentual de viagens cotidianas em bicicleta. Essa expansão parte do pressu-
posto de que tal uso somente será viável para um número crescente de pessoas
quando uma rede for implantada, constituída de ciclovias, ciclofaixas e ciclor-
rotas, que atravessem toda a cidade. As estruturais serão, obviamente, o ponto
de partida para essa rede.
O montante de recursos destinados aos projetos cicloviários é ínfimo
se comparado com os valores destinados ao transporte motorizado em geral.
Cumpre ao poder público garantir, através de previsão orçamentária, a execu-
ção de projetos que possibilitem a criação de uma nova dinâmica na cidade. Os
tempos são outros e as soluções devem estar de acordo. O mínimo que se pede
é que seja permitido o caminhar e o pedalar seguros. Nas circunstâncias atuais,
isto será fruto de escolhas políticas deliberadas, conscientes, que tenham em
vista a cidade que queremos hoje e amanhã.
Referências bibliográficas
ILLICH, Ivan. La convivialité. Paris: Éditions du Seuil, 1973
ILLICH, Ivan. Énergie et Équité. Paris: Éditions du Seuil, 1973
    Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável.
ILLICH, Ivan. Libérer l’avenir. Paris: Éditions du Seuil, 1971
ILLICH, Ivan. O direito ao desemprego criador. São Paulo: Alhambra,
1978
LUDD, Ned (org.). Apocalipse Motorizado. São Paulo: Conrad, 2004
SITUACIONISTA. Teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad,
2002
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto,
2009
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal,
2010
AUGÉ, Marc. Éllogie de La bicyclette. Paris: Payot, 2008
FIGUEIREDO, Vinicius. Metáforas urbanas e política. Curitiba: MOB,
2011. Contexto e história
Capítulo 7 - Os desafios para fazer de curitiba uma cidade ciclável

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Capítulo 7 - Os desafios para fazer de curitiba uma cidade ciclável

  • 1. 07
  • 2. VOCÊ TAMBÉM PODE COMPARTILHAR Através da nossa página no Facebook vamos disponibilizar todos os ar- tigos do livro BRASIL NÃO MOTORIZADO. A cada semana um texto será editado. Desse modo, ao final de 16 semanas o livro estará completo e terá sido aberto mais um canal de leitura e discussão dos temas abordados. A publicação dos artigos no formato eletrônico também se deve ao su- cesso da edição. Além das cotas dos patrocinadores, vendas em lançamentos e livrarias e doações a instituições de ensino, foram colocados mais de 1.000 exemplares. Isso demonstra o interesse pelo assunto “mobilidade urbana” e nos dá a certeza de continuarmos com a coleção. Está prevista ainda para 2015 a edição do nosso 2º volume – com alguns novos autores e novas abordagens. Boa leitura Vale lembrar que os interessados ainda podem adquirir o livro nas Li- vrarias Cultura; sob encomenda ou pela internet. www.livrariacultura.com.br IMPORTANTE Empresas e entidades que patrocinaram essa 1ª edição:
  • 3.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável JorgeBRAND(GouraNataraj) 1 “Querer refazer a arquitetura em função da existência atual, maciça e parasitária dos carros individuais é deslocar os problemas com grave irrealismo. É preciso refazer a arqui- tetura em função de todo o movimento da sociedade.” (Posições Situacionistas sobre o trânsito - 1959) “As vantagens do tráfego auto-propelido, moderno, são óbvias e ignoradas. Que um sistema de trânsito melhor e mais rápido é algo declarado, mas nunca provado. Antes de se pedir às pessoas para que paguem por isso, aqueles que propõem a aceleração deveriam tentar mostrar as provas de suas alegações.” (Toward a History of Needs, Ivan Illich - 1984) 1. Considerações iniciais Em Curitiba, como em diversas cidades do Brasil, a questão da mobi- lidade por bicicletas ganhou um impulso maior com o início das Bicicletadas (Critical Mass Rides), manifestações que se iniciaram em novembro de 2005. As ações da Bicicletada causaram espanto, provocando reações e reflexões por par- te da sociedade como um todo. Em setembro de 2007, na ocasião do Dia Mun- dial Sem Carros, um grupo de 50 ciclistas pintou, clandestinamente, a primeira ciclofaixa da cidade. Foram autuados por crime ambiental. A ação e a repressão da prefeitura surtiram o efeito desejado. De uma hora para outra, a bicicleta tornou-se objeto de acirradas disputas e controvérsias. A favor ou contra, a po- pulação foi chamada a se posicionar e olhar um problema que sempre esteve ali, ignorado pelos rituais complexos e muito caros do sistema de transportes. Reflexo do que acontece nos principais centros urbanos do mundo, as propostas da Bicicletada de Curitiba, de inserção da bicicleta como modal de transporte, esbarraram em três estágios facilmente identificáveis. Foram criti- cadas, reprimidas e ridicularizadas em seu início. Ganharam força e apelo de 1 Graduação e Mestrado em Filosofia pela UFPR; Coordenador Geral da Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu – Cicloiguaçu
  • 4.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. um número cada vez maior de pessoas e instituições. Passaram, final- mente, a virar quase consenso, inserindo-se na vida pública da cidade de forma contundente, pautando inclusive a última eleição municipal, na qual todos os candidatos se manifestaram positivamente em relação às propostas. O prefeito eleito, inclusive, foi à posse de bicicleta e comprometeu-se formalmente com a implantação de medidas voltadas a tornar o uso dos biciclos mais seguro e corriqueiro. A capital do Estado do Paraná, apesar do que dizem os mais carrancudos e preguiçosos, é bastante propícia para o uso cotidiano da bicicleta. Ela possui 84% de sua área plana, e o clima é temperado. Embora tenha muitos dias úmi- dos no ano, Curitiba pode ser considerada uma cidade favorável ao uso deste modal. Capital de contrariedades, o município tem o mais alto índice de moto- rização do Brasil. Os automóveis de luxo também abundam nela, bem como os congestionamentos crescentes, frutos não só da política econômica federal, mas também de decisões da engenharia de trânsito local, que favorecem ex- plicitamente o automóvel. Tal engenharia, nas últimas décadas, priorizando o fluxo automotivo, criou binários, trincheiras, viadutos e demais estruturas que cortaram e mutilaram a história dos bairros da cidade. Caso tudo isto seja considerado um exagero, ao menos guarde o leitor a noção de descaracterização. O fluxo de tráfego, a especulação imobiliária e a concentração dos espaços de convívio e lazer nos centros privados de compra trouxeram, todos juntos, este efeito colateral, não desejado, mas tampouco re- primido ou controlado com a devida postura pelo poder público. Figuras 1 e 2: Exemplos de ausência de respeito à prioridade de passagem de ciclistas em ruas centrais de Curitiba - PR, mesmo onde existem travessias demarcadas por sinalização horizontal na via, 2013 FONTE: Fotos do Autor, 2013
  • 5.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. Pedalar em Curitiba por lazer ou por deslocamento utilitário ainda é ati- vidade restrita aos mais entusiastas. Quase a totalidade da malha cicloviária – 127 km –, é composta de passeios compartilhados, e o conflito entre pedestres e ciclistas é muito comum. E isto poderia ser evitado mediante a criação de espaços adequados para um e outro. Até mesmo em trechos mais recentemente construídos, onde ciclofaixas foram implantadas, o conforto e a segurança ao pedalar não são completos. Os cruzamentos continuam sendo o ponto mais frágil de uma rede que precisa ser inteiramente requalificada. Pela estrutura bastante precária, os ciclistas inevitavelmente precisam ir às ruas e compartilhar o espaço de circulação veicular com os demais modais de transporte. O respeito por parte dos motoristas está longe do ideal. Entre- tanto, já é bem mais comum presenciar cenas de respeito e gentileza, apesar de as situações opostas, de impaciência, violência e imprudência, continuarem tão presentes quanto minha geração é capaz de lembrar. Tal malha, apesar de incompleta, possui trechos importantes que são su- butilizados no planejamento da mobilidade da cidade. Intervenções pontuais da Secretaria de Trânsito poderiam trazer mais segurança aos usuários da bici- cleta. Teima-se em priorizar a fluidez do tráfego geral em detrimento da adoção de medidas voltadas à busca de cruzamentos seguros. Ignoram-se os pequenos detalhes, de custo baixíssimo, que fazem a diferença para o uso das duas rodas leves. Falamos do nivelamento do piso nas intersecções, de uma sinalização ho- rizontal bem feita e da semaforização que garanta tempo mínimo de travessia aos ciclistas. Essas exigências unem tanto ciclistas quanto pedestres na categoria de cidadãos de segunda classe. E são estes que devem sempre ceder à autoridade do motor, cujo fluxo deve ser mantido, custe o que custar. Tal lógica despreza o fato de que todos somos, antes de tudo, pedestres. Assim, a mobilidade dos motorizados não pode, em hipótese alguma, restringir a caminhada e o acesso por bicicleta. O desprezo ao pedestre e ao ciclista por parte dos planejadores é um sin- toma que Ivan Illich (1926/2002), na década de 1970, apresentou, com ares um tanto proféticos, através do conceito de monopólio radical, com o qual ques- tionou os imperativos tecnocráticos da sociedade industrial. Sobre o sistema de transporte, afirmou Illich que “um cartel industrial total pode restringir a liberdade ainda mais: pode encurralar todos os transportes de massa em be- nefício dos automóveis particulares, como fez a General Motors ao comprar e arruinar todos os bondes de São Francisco. Podemos escapar deste monopólio comprando uma bicicleta. Uso agora o termo ‘monopólio radical’ para designar a substituição das atividades úteis em que a gente se comprometeria ou gostaria de fazê-lo, por um produto industrial ou um serviço profissional. Enquanto os veículos deslocam cada vez mais pessoas, mais administradores de trânsito
  • 6.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. serão necessários, cada vez mais, e as pessoas serão cada vez mais impo- tentes para caminhar até suas casas”. De fato, faltam calçadas adequadas, bem como espaços demarcados para os ciclistas. Postes, placas, lixeiras e orelhões (telefones públicos), são comuns nos passeios, bem como totens publicitários, que jamais são encontrados obs- truindo sequer dez centímetros da via. Ao carro, cedemos tudo. A cidade, desta forma, não convida os seus cidadãos a experimentarem-na, em primeira mão, pela força direta do corpo. Inverter esta ordem e possibilitar um caminho livre para o caminhante e uma rede segura para os pedais é tarefa que se impõe, em caráter de urgência, para os próximos anos. Isto, é claro, se estamos pensando na saúde da cidade e tendo isto como nosso objetivo. Cidades são espaços de convivialidade. Vivemos aglomerados nelas pelas facilidades, prazeres e benefícios que o convívio com os outros nos oferece. Foi assim que elas surgiram e isto persiste até os dias de hoje. É lugar comum, no entanto, constatarmos que este papel das cidades passa por uma grave crise. As cidades estão inchadas, o convívio acontece dentro dos espaços controlados do grande comércio. A mobilidade é vista como consumo de transporte e o cida- dão é cada vez mais subtraído das decisões que afetam diretamente sua experi- ência da cidade e, por conseguinte, de si próprio. As cidades como espaços de convívio e de encontros deveriam ser o pon- to de partida e meta para toda intervenção urbana. Redundante constatar a di- ficuldade de atingir tal objetivo em áreas urbanas inchadas, que sucumbiram à lógica dos automóveis e que transferiram seus pontos de encontro nas ruas para o interior dos shoppings. Talvez seja mesmo infrutífero questionar tão radical- mente este cenário. A bicicleta, no entanto, pode servir para abrir novos cami- nhos, mediante novas percepções, para o futuro das cidades. Esses caminhos, no momento, de dentro de nossos carros, parecem impossíveis de vislumbrar. A mobilidade inclui a discussão sobre temas como habitação e densidade populacional; traz consigo a reflexão sobre saúde, meio ambiente, segurança e cidadania. O problema da mobilidade não é apenas técnico. Não diz respeito apenas à engenharia do trânsito, mas é um problema essencialmente político. Estabelece normas, valores e práticas de conduta no espaço público. Talvez todo urbanismo deva ser incluído nesta ressalva. A política e a cidadania deveriam estar inclusas e pressupostas nas interrogações técnicas. Por que conceder que as praças sejam destruídas ou mutiladas para o fluxo dos automóveis? Por que tratar como natural que o homem não se utilize mais da força muscular para seu deslocamento? Por que ignorar o fato de que a cidade se constitui como local de existência, ou seja, fonte de inspiração e inquietação, na medida em que sou dela conhecedor e possuidor? É necessário que o cidadão se identifique com o espaço urbano e isto apenas acontece na medida em que este é reconhecido, também, como seu habitat.
  • 7.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. A dimensão humana nas cidades deve ser preservada. É este espaço que cabe ao cidadão, em conjunto com os demais, gerir e cuidar. Na mobilidade isto significa uma velocidade que não apresente riscos à integridade do corpo físico, que coloque o sujeito num papel predominante, que não limite sua autonomia, mas que, pelo contrário, a expanda tanto quanto possível. Para que Curitiba tenha êxito nesta tarefa, apresentamos aqui algumas reflexões. Que sirvam de alimento para inspirar e trazer mudanças. 1. As bicicletas na via lenta, um centro acalmado Atualmente estima-se em 2% o número de viagens por bicicleta em Curi- tiba. Este número poderia ser muito maior se a rede cicloviária inicial, constru- ída no início da década de 70 do Século XX, tivesse se incorporado às inovações do transporte coletivo que alçaram Curitiba a uma espécie de Meca do urba- nismo mundial. As canaletas exclusivas do sistema BRT (Bus Rapid Transit) estabeleceram o sentido de ocupação e adensamento da cidade, assim como criaram o mito da capital inovadora, noção que persiste até hoje, apesar das falhas gritantes do sistema. As chamadas “estruturais” fizeram o corte dos ei- xos cardeais do espaço e nelas permitiu-se a construção de edifícios altos, cujos habitantes teriam acesso muito próximo ao transporte coletivo. A intenção era que a classe média andasse de ônibus. As primeiras ciclovias (passeios compartilhados) da cidade datam da mesma época de urbanismo “frenético”, se nos for permitido comparar a ex- pressão “frenzywriting” à gestão da cidade. Também daí veio o fechamento de Figuras 3 e 4: Atual situação de uso na canaleta, onde ciclistas e ônibus bi-articulados compartilham mesmo espaço, muitas vezes com situações de risco de vida para os usuários da bicicleta, Curitiba, 2013 FONTE: Fotos do Autor, 2013
  • 8.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. um trecho da Rua XV de Novembro aos veículos. Uma rua de pedestres foi formada. Mas, e a bicicleta? Nenhum dos trechos de ciclovia conectava-se às estruturais. Curiosamente, a intenção de integrar a bicicleta à coluna ver- tebral da mobilidade em Curitiba não esteve presente. Foi ignorada. Bastava ter-se delimitado um espaço de circulação não motorizada nas vias lentas para estimular o uso da bicicleta no dia a dia. Nada disso foi feito. Não demorou para os ciclistas ocuparem as próprias vias exclusivas do transporte coletivo, que ligavam a cidade de norte a sul, leste a oeste, passando pela região central. Tal ocupação, ainda em voga hoje em dia, pela ausência de estrutura específica para as bicicletas, criou situações de risco e conflito entre modais que deveriam ser complementares. O sistema de Curitiba criou um trinário. Na larga avenida dos eixos es- truturais, em seu centro, está a pista exclusiva do BRT, e duas pistas marginais – as vias lentas – existem para o acesso residencial e o comércio lindeiro. Estas vias devem receber o tratamento necessário para que as bicicletas tenham nelas o seu espaço digno. Paralelamente correm duas avenidas, de largura semelhan- te, nos sentidos bairro/centro e centro/bairro, para o fluxo de automóveis e ôni- bus que não circulam nas estruturais. São as chamadas “vias rápidas” – termo e “coisa” que não deveriam ser permitidos na área urbana. Por muito tempo, a prefeitura da cidade cogitou seriamente que, ao es- timular as bicicletas, o número de usuários do transporte coletivo diminuiria, trazendo prejuízo ao sistema. É recente o discurso da integração modal ou da complementaridade dos modais na empresa público/privada que gerencia o sis Figura 5: Exemplo de dificuldade de travessia de ciclista, mesmo tendo sinalização horizontal na via demarcando o espaço para a sua passagem, com prioridade sobre o tráfego motorizado. FONTE: Fotos do Autor, 2013
  • 9.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. tema, a URBS. O uso da bicicleta sempre foi associado ao lazer, mesmo sendo sua utilização majoritária por parte de trabalhadores, em geral de baixa renda, que justamente por esta razão não tinham voz para expressar a desigual- dade na distribuição do espaço viário. Curitiba, em sua gestão do urbanismo, não conseguiu até agora incluir a mobilidade por bicicleta de maneira satisfatória. Falta, antes de tudo, um Plano Diretor Cicloviário, que estabeleça diretrizes e metas que seja construído com a participação efetiva da sociedade civil. Tal plano deve criar inicialmente uma rede de acesso a todas as direções da cidade. Neste sentido é natural que se uti- lize dos atuais eixos do transporte coletivo, as vias estruturais, que tornaram a cidade o que ela é nos dias de hoje. Para se elevar o percentual de deslocamentos por bicicleta é necessário que utilizemos a mesma lógica do adensamento provocado pelas estruturais. É nelas que o fluxo majoritário de pessoas se desloca diariamente. A bicicleta é uma tendência mundial, mas na maior parte das capitais brasileiras terá gran- des dificuldades para se consolidar. Em Curitiba, felizmente, o espaço para tal rede existe, e será o primeiro passo para a bicicleta estar presente na Rede Inte- grada de Transporte (RIT). O compartilhamento das vias lentas criará uma rede primária de aces- so à cidade por bicicleta. A integração factual com o transporte coletivo será uma consequência. A instalação de bicicletários nos terminais de ônibus e de paraciclos junto às estações pode indicar um passo adiante, ainda impensado, para aumentar as viagens por bicicletas. Um sistema de compartilhamento de bicicletas públicas, no eixo estrutural, teria ali suas bases traçadas. A rede es- trutural deve se conectar às redes locais dos bairros e às ciclovias já existentes. Nos bairros, a criação de ciclorrotas, pela demarcação de ruas que podem servir de conexão às ciclofaixas das estruturais, será ação importante. Garantir que a totalidade dos bairros esteja conectada à rede cicloviária, através de ciclorrotas e ciclovias, é uma meta desejável. 1. Um centro acalmado É ilusão – para nossa sorte – acharmos que o espaço atualmente ocupado pelo automóvel possa se expandir infinitamente, devorando praças, bosques, calçadas, ocupações irregulares, ou que esteja imune a qualquer restrição. Pelo contrário, é certo que mais cedo ou mais tarde o gestor do transporte terá que tomar decisões políticas, não técnicas, que restrinjam o ir e vir dos automóveis, favorecendo o transporte coletivo e os não motorizados. A intenção, declarada ou não, deve ser de dificultar a vida do motorista, que já é bastante complicada, diga-se de passagem. O custo de ter e manter um automóvel são muito altos e estão ligados, em nossa sociedade, a processos de diferenciação social. Na velo- cidade da bicicleta somos todos mais próximos e estamos mais próximos tam- bém da cidade, dos seus detalhes e de suas dinâmicas.
  • 10.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. Junto à rede estrutural, um centro acalmado, com restrições ao automó- vel, que preveja o alargamento dos passeios, no qual pedestres e ciclistas te- nham prioridade, criará o desejo de circular pela cidade fora do carro – efeito positivo para a revitalização da vida urbana como um todo. Este processo pode se iniciar com a delimitação de um anel central no qual todos os cruzamentos terão tempo de travessia para o pedestre, restrição ao estacionamento em áre- as públicas, criação de faixas exclusivas para o transporte coletivo, bem como travessias elevadas em todas as faixas de pedestres. Isto criará um trânsito de velocidade mais baixa e terá um impacto muito grande na visão que o pedestre tem de si, na sua atitude perante os carros. Muitas vezes as notícias de acidentes no trânsito envolvendo pedestres e ciclistas criminalizam a vítima, independentemente do erro do motorista. Ape- sar de contradizer o bom senso e nossa noção de justiça, além do próprio Có- digo de Trânsito Brasileiro, as regras não ditas do trânsito urbano, em muitas cidades do Brasil, e Curitiba não é exceção, afirmam que o pedestre tem que tomar cuidado, pois o automóvel é rei, senhor e destino: esperamos submissa- mente que o carro passe, para só então seguirmos nosso caminho. Toda enge- nharia de trânsito favorece o fluir do carro e não o dos pedestres e ciclistas, na contramão do que teorizam os urbanistas conscientes sobre o papel da cidade. 1. Conclusões e Recomendações Curitiba pode se destacar na ciclomobilidade ao garantir recursos para os projetos e obras, de forma contínua e bem planejada, expandindo assim o percentual de viagens cotidianas em bicicleta. Essa expansão parte do pressu- posto de que tal uso somente será viável para um número crescente de pessoas quando uma rede for implantada, constituída de ciclovias, ciclofaixas e ciclor- rotas, que atravessem toda a cidade. As estruturais serão, obviamente, o ponto de partida para essa rede. O montante de recursos destinados aos projetos cicloviários é ínfimo se comparado com os valores destinados ao transporte motorizado em geral. Cumpre ao poder público garantir, através de previsão orçamentária, a execu- ção de projetos que possibilitem a criação de uma nova dinâmica na cidade. Os tempos são outros e as soluções devem estar de acordo. O mínimo que se pede é que seja permitido o caminhar e o pedalar seguros. Nas circunstâncias atuais, isto será fruto de escolhas políticas deliberadas, conscientes, que tenham em vista a cidade que queremos hoje e amanhã. Referências bibliográficas ILLICH, Ivan. La convivialité. Paris: Éditions du Seuil, 1973 ILLICH, Ivan. Énergie et Équité. Paris: Éditions du Seuil, 1973
  • 11.     Os desafios para fazer de Curitiba uma cidade ciclável. ILLICH, Ivan. Libérer l’avenir. Paris: Éditions du Seuil, 1971 ILLICH, Ivan. O direito ao desemprego criador. São Paulo: Alhambra, 1978 LUDD, Ned (org.). Apocalipse Motorizado. São Paulo: Conrad, 2004 SITUACIONISTA. Teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 2009 AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal, 2010 AUGÉ, Marc. Éllogie de La bicyclette. Paris: Payot, 2008 FIGUEIREDO, Vinicius. Metáforas urbanas e política. Curitiba: MOB, 2011. Contexto e história