O documento discute a necessidade de mudanças no ensino de ciência e tecnologia para torná-lo mais crítico e menos mecânico. Defende que a educação deve preparar estudantes para pensar criticamente sobre as consequências sociais e éticas das inovações tecnológicas, em vez de apenas transmitir conhecimentos. Também argumenta que professores e cientistas precisam estar abertos a novas abordagens e questionar seus próprios papéis na sociedade.
1. PENSANDO SOBRE POSSÍVEIS MUDANÇAS E CONTRIBUIÇÕES DAS
TECNOLOGIAS.
APOSTANDO NO PROCESSO EDUCATIVO
SILVANIA BUCAR
O cientista e o usuário das ciências tecnológicas — podemos incluir aqui o
professor de engenharia ou o pesquisador engenheiro — começam a sofrer
rechaços da opinião pública dada o seu posicionamento equivocado em
fingir que seus trabalhos, de alguma forma, são independentes do resto de
suas vidas. Este posicionamento tem lhes trazido uma espécie de
hostilidade do público geral, em decorrência de suas próprias faltas. Nós,
professores, engenheiros, tecnólogos e cientistas, deixamos a cargo de uma
imprensa não especializada a conscientização dos resultados positivos e
negativos desta ciência que não raro, através de sensacionalismo, trata a
questão de forma equivocada.
Esta interferência indubitável começa a atingir a nossa vida familiar e os
processos educacionais com uma intensidade nunca antes vista. Os filhos,
animados pelo uso de todas as grandes realizações e confortos, dos quais os
pais e avós são os mentores, tornam-se indefesos quais crianças que se
vissem de um momento para outro enfrentando a dura realidade de um
mundo cada vez mais agressivo em constante mutação para o
desconhecido. Sentimos a necessidade inadiável de criar ambiente para que
os problemas com os quais eles se defrontarão sejam estudados, refletidos
e, quem sabe, resolvidos. Apresenta-se-nos cada vez mais claro que as
questões educacionais devem procurar perder o excesso de paternalismo
com que 'cuidam' desta juventude. Passa despercebido, em função das
inúmeras atribuições que a vida moderna nos incute, que a escola, para
cumprir seus ditames formais, força os alunos a exercerem atividades
bastantes para ocupar-lhes toda a semana de trabalhos rotineiros, castrando
sua capacidade de criar e refletir.
Simplesmente (agora numa reflexão de ordem pedagógica) na qualidade de
professores nos julgamos muito mais capazes de observar, corrigir e refletir
por eles e medir o aprendizado através mais de exercícios de repetição do
que de qualquer outra atividade abstrata que lhes desenvolva o raciocínio.
Parece-nos mais fácil e mais seguro, só que, em vista de todas as
revoluções e mutabilidades sobre as quais alerta-se até aqui, sob tais
condições estaremos pondo em risco a oportunidade para progredir e
também a própria possibilidade da construção de conhecimentos, tornando
impossível uma mudança nesta característica cultural que se arrasta há
tanto tempo.
Se não queremos que esta relação de aprendizado de ciência e tecnologia se
perpetue, carregando consigo os medos, os ufanismos e o
desconhecimento, não podem alimentar o conformismo, a ponto de não
permitirmos que os estudantes estruturem seriamente uma nova idéia e não
busquem sempre novas reflexões. Temos que discutir a possibilidade de no
2. início nem sempre compreendermos aquilo que queremos fazer. De não
sabermos como devemos fazê-lo. O caminho que conduz ao aprendizado
inclui sucessivos erros. A precisão e a ordem vêm depois. Devemos usar a
dúvida como uma ferramenta importante e não como uma mazela que deve
ser prontamente extirpada do processo construtivo do aprendizado. É
comum, entre nós professores querer poupar os estudantes de reflexões
críticas, concedendo-lhes com isso mais tempo para tarefas mais
'relevantes' na formação do biólogo, por exemplo. Tal postura é
imensamente cerceadora da liberdade do pensamento que vai, inclusive,
refletir na própria formação mecanicista que tanto está consumindo a
criatividade de nossos alunos. Procuramos usar com eles um 'código' de
comunicação que facilite a sua tarefa de 'não precisar pensar'. Fourez trata
muito bem deste assunto quando separa estes códigos
entre restrito e elaborado nesta citação:
“Consideremos como a noção de ‘ciência’ é utilizada no código restrito e
no código elaborado. O código restrito é aquele utilizado na maior parte
dos cursos de ciências [também o é nos cursos de engenharia]. Supõe-se
saber do que se fala, e não se exige reflexão ulterior. Porém, caso se
procure fazer uma idéia do que seja ‘em definitivo’ a ciência, isto é, dar
uma interpretação que faça ‘sentido’ para nós, a tarefa se faz mais
complexa. Todas estas interpretações não são equivalentes. Nesse nível
interpretatório, a noção que se tem da ciência será ligada, graças a uma
linguagem elaborada, a outros conceitos, tais como a felicidade dos
humanos, o progresso, a verdade etc. Essa linguagem elaborada — essa
filosofia da ciência — permitirá uma interpretação daquilo que a
linguagem restrita diz a respeito da ciência. Além disso, a palavra
‘ciência’ pode por vezes ‘aprisionar’, por exemplo, quando alguns passam
a impressão de que, uma vez que se falou de cientificidade, não há nada
mais a fazer senão se submeter a ela, sem dizer ou pensar mais nada a
respeito. Um filósofo ‘crítico’ ou ‘emancipatório’ da ciência procurará
portanto compreender como e por que as ideologias da cientificidade
podem mascarar interesses de sociedade diversos” (Fourez, 1995, p. 21).
São estas preocupações que têm levado alguns cientistas e profissionais
ligados ao ensino de ciência/biologia e tecnologia — eu aqui me incluo
com este trabalho — a desempenhar um papel ativo na busca de tornar
públicas estas questões que influenciam nossa vida. Porém, muitos
continuam com suas posições imutáveis, pensando e falando como antes,
incapazes de compreender as circunstâncias — na grande maioria não por
desconhecimento, mas sim por vontade própria, para poder usufruir de
certos privilégios que esta postura proporciona — radicalmente mudadas,
nas quais prosseguem com sua profissão. Por que será que alguns
professores e cientistas não se conformam com estas mudanças e não
acrescentam a esta realidade outras ferramentas que tanto contribuiriam na
sua própria atuação junto aos seus alunos e à sociedade? Será que é a sua
posição dogmática do infalível que estará caindo por terra? Querem
continuar como 'mágicos' na busca de 'repassar' conhecimentos que
fatalmente levarão ao maior conforto humano independentemente de a
quem estão servindo?
3. Bernard Dixon já detectava há vinte anos, com muita propriedade, este
problema de intocabilidade de certos profissionais nas suas atuações e que
se mantém, em muitos casos, até hoje:
“De repente os cientistas estão sendo analisados. Enquanto os artistas
profissionais — poetas, pintores e compositores — prosseguem seu
trabalho numa posição social segura — se bem que mal paga; enquanto
encanadores continuam a consertar encanamentos; enquanto médicos
continuam a curar doenças, os cientistas enfrentam dúvidas crescentes
quanto a seu papel na sociedade. Não sabemos ao certo se gostamos da
nossa civilização tecnocrata, e duvidamos se queremos mais e melhores
engenhocas e teorias mais brilhantes que nos levem adiante na mesma
estrada. O que quer que possa acontecer no futuro continuaremos a precisar
da ciência e dos cientistas, nem que seja só para resolvermos os problemas
que eles criaram. Mas, no momento, os cientistas passam por uma
menopausa coletiva, acometidos de ansiedade sobre como sair dela. Alguns
sairão ilesos, e até rejuvenescidos do processo. Outros não” (Dixon, 1976,
p. 8).
Esta citação mostra que o problema não é novo. Para nós talvez seja, pois
nossas escolas que trabalham na formação dos futuros profissionais que
atuarão neste campo nem sequer produzem discussões que possam trazer à
tona semelhantes preocupações. Estamos no século XXI. E este problema
não está só ligado a nós professores que lidamos com tecnologia. O 'outro
lado' — os humanistas, os filósofos da ciência, os sociólogos... —, que nas
críticas dos tecnologistas só fica a procurar as mazelas da ciência e da
tecnologia, também não atacou a fundo semelhantes questões. Enquanto
bisbilhotavam alegremente os outros aspectos da sociedade — ainda que
importantes — relutavam em examinar os efeitos e as conseqüências da
ciência e da tecnologia na mutação social do ser humano. Dixon volta à
carga quando comenta este aspecto, agora ligado aos sociólogos e quem
sabe aos filósofos e historiadores:
“Algumas das razões — para não se preocuparem com a ciência — são
muito claras — sua complexidade intimidadora e seu jargão, o sabor irreal
e sufocadamente intelectual da disciplina acadêmica conhecida como
‘filosofia da ciência’, e a exclusão patológica do conteúdo real dos assuntos
científicos de publicações e periódicos especializados. Mas, a negligência
dos sociólogos a esse respeito continua sendo uma omissão surpreendente e
lastimável” (Dixon, 1976, p. 8).
Parece ser, agora, uma preocupação mais sólida a discussão sobre estes
aspectos. Aqui encontramos vários autores — que estarão seguidamente
citados ao longo deste texto — que nos dão subsídios para análises bem
sedimentadas sobre a inclusão destes assuntos dentro das academias que
lidam com o ensino tecnológico. Morin, Sanmartín, Schatzman, Postman,
Holton, Fourez, Prigogine, Pacey, Winner, Luján e outros possibilitam este
tipo de estudo. O tempo em que vivemos aparentemente nos propicia um
ambiente favorável para atacarmos estes problemas e preocupações.
Precisamos aproveitar esta possibilidade, agora que a unanimidade sobre os
4. resultados da ciência e da tecnologia como apenas bons resultados para os
seres humanos findou.
A existência desta nova concepção e desta atuação crescente em direção
aos problemas gerados pelo ressentimento compreensível de que foi
permitida à comunidade científica uma autonomia de vôo exacerbada, em
que os cidadãos tiveram pouca ou nenhuma influência, está proporcionando
discussões mais abertas, mais críticas e mais conscientes. Elas devem frear
esta conduta internalista e, por outro lado, analisar com mais propriedade as
suas conseqüências externas. Este procedimento poderá realmente
contribuir para um desenvolvimento científico-tecnológico imbricado ao
desenvolvimento de toda a sociedade. Como um importante começo nesta
mudança de cultura, ainda fortemente presente em nossa civilização,
precisamos, de certa maneira, no ensino tecnológico, além da adoção de
uma nova abordagem epistemológica, levar em consideração outros
aspectos fundamentais. Para isso a educação nas escolas não pode pensar
apenas em ‘equipar’ os estudantes com conhecimentos e habilidades para
que eles 'consigam' empregos na sua vida de adulto. Ela precisa muito
mais: precisa tornar os jovens criativos e críticos em relação às realizações
da ciência e da tecnologia que, em inúmeras situações, eles próprios
ajudaram a criar; precisa ajudá-los a pensar com respeito às aspirações de
seus colegas e de todos os cidadãos; precisa torná-los cuidadosos com a sua
saúde — hoje fortemente dependente de muitos resultados tecnológicos
— e, acima de tudo, precisa levá-los a pensar, num processo coletivo, nos
resultados e conseqüências dos artefatos científico-tecnológicos. A
educação deve, sobretudo, apontar na direção do pensamento crítico da
riqueza dos valores culturais e das dimensões morais e espirituais da vida.
Ela precisa ser levada a todos os jovens, com estes pressupostos,
independente de sua bagagem de conhecimento, sexo, credo, raça ou cor.
Texto de Walter Antonio Bazzo com adaptações.