O primeiro documento descreve a história de um jovem que aceita participar de um assalto para conseguir dinheiro para sustentar sua família, mas acaba se deparando com um homem armado no carro que iriam assaltar. O segundo documento narra a história de dois assassinos profissionais que matam um homem e brigam depois, acabando mortos. O terceiro documento é sobre um homem que planeja se vingar do pai comprando seu caixão.
1. Como nascem os ladrões
“... e sua posse se dá graças à sorte ou graças à virtude”.
(Maquiavel. O príncipe I).
O Mano Preto me disse que tinha a boa pra gente. Falou pra brotar na travessa liberdade
às 6 horas. Fui. Na descida da Rua Quatro, beco apertado e sujo, ia lembrando do aperto
do aluguel e do leite do filhote. Matias que saiu do ventre minúsculo de Isadora quando
ela só tinha 16 anos e um desejo de min que não cabia na casa da mãe dela... Ai peguei
ela e uma TV e fui ser gente grande... Morar sozinho.
Os nove meses de tesão deram em Matias e uma falta de grana até pro desodorante, por
isso a boa que o Mano Preto falou que tem vai salvar... Depois tem a continuação do
sufoco, mas ai eu arrumo outra boa. To lá às 6 horas e porrada, tarde, sol, janeiro, Rio.
O Mano Preto só brotou na Travessa Liberdade depois das 7 horas. Com os olhos
vermelhos e ténis da moda disse: Ta ai a pistola, parece até de verdade, tem até dois
cartuchos... Ver ai a ferramenta que me dá o lucro do trabalho... Olha. Mostrou
o tênis novo, uns 600 reais. Topa? Topo.
Topei mais por fome do que por maldade. Nunca roubei... Quer dizer já furtei. Sabe a
diferença entre roubo e furto? No furto pega e se corre, é o famoso 155. Já no roubo tem
que apontar e pegar e´ o também famoso 157, se for o caso atirar; era isso que faríamos
logo mais. Fui pra casa ver Isadora, Matias e suas formes.
Tchau Matias que dorme, tchau Isadora que me olha e pensa que vou fazer faxina num
Shopping as 2 da madrugada. Desço pela Cidade Nova falo com
conhecidos, maconheiros, cheiradores e bêbados. Todos doidões e esquecidos. Paro no
bar do Coroa. Na mesma Liberdade da tarde espero o Mano Preto que chega me dando
um baseado pra apertar enquanto ele limpa seus tênis da moda. Aperto, acendo, puxo,
prendo e penso na boa. Nunca assaltei. O fumo samba nas mãos até sua ultima ponta...
Hora do trabalho. Descemos a rua e pulamos dentro da van.
Na van o Mano vai dando o desenho da missão. A gente salta na Ataulfo e vai andando
de sinal em sinal o primeiro que parar com o carro perdeu... Oia. Mostrando a pistola de
mentira por baixo do casaco. Que bico sinistro! Descemos de preto e olhos vermelhos,
2. Caminhávamos calados, eu repetia comigo nunca fui 157, mas por Matias e Isadora viva
o reinado do diabo e do ladrão .Oia disse o mano preto, olhei e vi o carro cinza, carro
de play boy deslizando no sinal, deslizando, deslizando... Parou! Gritou o Mano Preto
correndo já pondo o bico de mentira no vidro do carro. Pediu que o motorista baixasse o
vidro do carro eu me preparava pra arrebentar o play boy de porrada. Quando olho pra
dentro do carro vejo um homem negro como eu e Mano Preto portando uma automática
só que de verdade. Ele disse com uma voz mansa de quem aconselho criança boba.
Também to na correria. O Mano Preto tirou o bico do vidro do carro e meteu o pé como
foge a vida da morte. Covarde. Eu fiz o mesmo.
Subindo a favela ia pensando no leite, em Matias, na Isadora e na
minha estreia frustrada como 157. Daí pra frente resolvi que a boa só se for com arma
de verdade. Chequei no quartinho apertado que alugávamos beijei Isadora que dormia
olhei pra Matias e agradeci por poder ser apenas pai e homem naquele resto de
madrugada.
Mocotó de Gente
O facão corta a panturrilha do sujeito. O pedaço do corpo desmembrado rola pelo chão
como carne no açougue. Um pouco de sangue respinga num rosto. Limpa o sangue com
a manga da camisa de marca. Com a grana que ganhar pago a dívida e compro outra
melhor. Esse filho da puta até pra morrer deu trabalho... Comedia, medido a pegador!
Vamos logo porra; esse troço tá fedendo.
Não via a hora de acabar. O matador pequeno com um machado na mão fuma um
cigarro olhando o matador de uns dois metros cortando como mocotó ossos de
gente. Com golpes certeiros de facão e machado o que era homem vira mocotó.
Tá bom chega. Vamos logo com isso que esse Zé galinha ladrão de mulher do zoto... Tá
bom cara chega de lembrar. Ok. Fala o matador pequeno suando muito. Fuma com
voracidade. Só mais uns corte para poder caber no saco... E a fala é interrompida pelo
bater da lamina afiada em pedra na junta de algum osso.
3. Cara pega o saco de lixo. O matador pequeno vai até o lado de fora do barracão. Bate a
porta com força como quem deixa transparecer, nos sons emitidos, a sua raiva do
mundo.
Os sons dos golpes de facão no mocotó são ouvidos do lado de fora do barracão. Uma,
duas, três, quatro, cinco... E outros muitos golpes são dados pelo matador de uns dois
metros dentro do barracão e ouvidos pelo matador pequeno do lado de fora.
Maldito tinha que ser morto num sábado à noite? Vai com suas pequenas mãos
vasculhando o entulho do lado de fora do barracão. Está escuro e os olhos ali apanham
feio. Toca algo. Esse dá. Volta para dentro.
Entra e bate a porta com a sua irritação costumeira. Vê o matador de uns dois metros
despejar diversos golpes no já despedaçado morto. Para! Vamos colocar dentro do saco.
O matador de uns dois metros olha seu companheiro de oficio e limpa o sangue nos
braços e rosto com a camisa de marca que usa. Sujou minha camisa esse filho da puta
metido a garanhão... Vamos logo com isso cara! As quatro mãos trabalham com a
agilidade do nojo provocado pelos pedaços de nefandade tocados.
Em instantes o saco fica cheio de pedaços de mocotó de gente. Vamos enterrar isso.
Ordena ou solicita o nojo presente ali. Saem do barracão posto na solidão desértica
necessária aos crimes. Todo o caminho é de barro. Barro molhado pela chuva que cai
pouco a pouco. Um deslizar dos pés é o inimigo de quem por ali passa. Caminha o
matador pequeno que fuma para aliviar a irritação com o mundo. O acompanha o
homem de quase dois metros. Ele carrega o saco cheio de mocotó de gente, anda
trôpego e resmunga algo incompreensível.
O Caminho barrento e incline é vencido com silencio de quem trabalha para o fim
chegar logo. Caminham. O matador de uns dois metros interrompe a caminhada. Toma.
E o saco é estendido para o esforço do matador pequeno. Põe o saco cheio de mocotó de
gente no ombro direito e segue. Com a mão esquerda segura o machado. No principio
tem a dificuldade que o escuro dá aos olhos. Ele escorrega ainda umas duas vezes antes
de dá os dez primeiros passos no terreno incline e barrento. Quando avista o seu
companheiro de oficio vê que ele, já longe, abre caminho com o facão na mata fechada.
Resmunga algo. Aqui tá bom. Para o matador de uns dois metros assim que chega a
4. uma clareira dizendo ser o fim da ladeira. O matador pequeno joga o saco cheio de
mocotó de gente no chão.
Agora vamos enterra o saco. Como se não tem pá? Você não trouxe a pá? Não. Idiota!
Sempre pagamos por sua burrice se deixamos isto aqui vão descobrir e... O desespero da
consciência criminosa aflora na voz do matador de uns dois metros que se agita de um
lado para o outro.
Acalma! São apenas cinco mil, vamos deixar aqui. Acende um cigarro como para dizer
que tudo ficaria bem, afinal o mocotó de gente dentro do saco não sairia dali. Continua
em tom de deboche: e afinal o cara assim não comerá sua mulher.
O soco é dado bem no queixo e o cigarro torto na boca do matador pequeno aponta na
direção contraria ao machado caído no chão. Veado! Filho da puta é por causa do seu
vício que tomo nessa. Nada; tu também deve grana pro cara que eu sei... E tem mais
todo mundo sabe que tu ainda tá devendo aquele desfalque no caixa da firma. O outro
revida: ele se fudeu porque tua mulher é uma vadia memo...
O golpe na perna direita do matador de dois metros o faz calar. Avançar com o facão em
direção ao oponente. Trocam golpes na escuridão da noite. Dois assassinos brigam na
vastidão escura. A certeza da vitória esta no toque da arma no corpo inimigo. A
provável derrota no sentir o toque da arma alheia na própria pele. Há sangue a escorrer e
a mistura-se com o barro do chão.
Após golpes dados no nada os dois homens exaustos pela briga e ferimentos caem no
barro e vivem a hemorragia do abandono. Olham um para ao outro. Espreitam para ver
quem morrerá primeiro. Por maldade ou coincidência morrem no mesmo momento,
enlameados e sozinhos. O saco cheio de mocotó de gente ainda está ali. Fica por ser
enterrado, jogado no chão o mocotó que já foi um homem.
Rafael Caetano
5. Dança de quem nasceu para lembrar
A primeira memória que me vem à tona de fatos passados é de uma violência. Minha
mãe batendo em min por não querer dormir a noite. O justo era-me ainda algo tão
desconhecido como a teoria da relatividade para Newton com a mesma idade. Tudo
ainda se pedia num constante agitar de criança, até mesmo a dor das pancadas se diluía
nesse agitar de coisas novas que vem a cada momento nos primeiros anos de vida.
Quando durmo vejo dois homens com tocas ninjas e pistolas automáticas entrando
perguntando: cadê o dinheiro, o malote... Meu pai foi correr e acabou baleado nas costas
antes de levar um tiro no braço. O homem mais gordo gritou ainda com meu pai caído
no chão. Onde é que você colocou... E atirou novamente. Dessa vez na cabeça, matando
meu pai. O ultimo tiro fez calar a vizinhança, esta é a lembrança mais antiga do silencio
que me restou e a recordo todas as noites antes de dormir.
Às dez horas da noite daquele dia voltei à lixeira na esquina perto de casa. Uma mala
que meu pai me pedira para guardar lá não estava. Os ratos debochavam de minha fome
e de minha estupidez digna de um homem de 13 anos. Lá pelas onze horas voltei em
casa e vir que minha mãe não estava fui até a vizinha que contou: ela saiu e pediu para
que você fosse também filho. Ótimo para onde e como?
Como a policia estava na casa resolvi vagar pelas ruas até poder voltar. A noite era de
lua alta e cheia. Bêbados rondavam o nada eu sentia apenas fome e uma vontade imensa
de poder mudar as coisas. As lembranças de minhas noites nas ruas do Rio começam
sempre por essa noite de fome; não sei por que.
Andei o tanto proibido por meus pais pelas ruas e vielas da parte baixa da favela,
cheguei a pensar na longa carreira que teria de rua, lua e asfalto. A forme apertava e
algo fazia com que meus pés me levassem de volta ao ponto de partida. Casa que antes
foi casa de mãe agora era casa abandonada... Entrei para ver se ainda havia o que comer.
Pude comer e sentir saudade. Achei a automática que enfeitava a cintura de meu pai.
Essa coisa era uma espécie de artefato de segurança do velho. Eu olhava-me no espelho,
a automática me emprestava um ar de interesse e poder. Eu era a própria potência
armada.
6. Alguém ou alguma coisa rondava pela casa. Com gesto extintivo de defesa atirei na
coisa ou gente assim que ela entrou na cozinha. Os tiros acertaram mortalmente a coisa
ou gente já junto ao chão. Reconheci o homem gordo que matara meu pai. Estava ali
caído e morto. Caminhei até a cama de meu pai e dormir com a automática ao lado.
Repetia comigo baixinho matei uma pessoa, agora tem uma coisa no chão da sala.
Naquela noite eu tive a primeira sensação de justiça e ela era muito semelhante a
minha primeira memória que me vem à tona de fatos passados. Cheira a violência.
Rafael Caetano
Compra de caixão
Papai morreu? Tá vou pra lá agorinha... Olha mana deixa que eu compro o caixão.
Pedro, Pedro Mitre sai da linha dois e entra no primeiro metrô no Estácio. Fala no
celular. Cíntia avisa pro pessoal do ponto de vendas que não apareço hoje; questão
familiar. O trabalho como vendedor de assinaturas de revistas o dera a devida discrição
em assuntos que só o dizem respeito. Bia, fala ele agora com a irmã mais nova, de que
cor o papai queria o caixão? Sei, creio que preto ou cinza; algo bem sóbrio. Ok meu
anjo depois conversamos... Como eu estou? Silêncio. Bem. Responde e encerra a
ligação.
Maldito durante toda a vida oprimiu tudo que tentava crescer ao seu redor. Filho da
puta; éramos todos seus servos. Hoje realizo minha pequena, porem, gloriosa vingança.
Pedro, Pedro Mitre arquiteta sua forrar sobre o cadáver de seu pai, homem de poucos
sorrisos e muita autoridade. A cor Preta, sua predileta; ela é autoritária como ele. Cinza
era a cor dos olhos dele, sérios como uma tarde em Brasília. O velho odiaria morrer
num dia ensolarado como hoje. Salta na Arco Verde caminha como se a morte de um
ditador fosse a manchete de seu jornal preferido. Leve entra na loja que vende caixões
como quem vai a soverteria num sábado de sol à tarde.
─Oi bom dia! Gostaria de sua ajuda─ dirige-se a mulher clara de cabelos escuros
como a noite─ para comprar um caixão
─Sim, pois não, quem era o falecido?─ fala com seus lábios de carne farta e vermelha
de mulher.
─ Meu pai.
7. ─Meus pêsames─ E ela disserta cerca de cinco minutos sobre a perda de entes queridos,
nisso diz seu nome e já apresenta o pacote Premium─ Quem era mesmo?
─Meu pai já te falei.
─ Ó; meus sinceros pêsames novamente.
─Não, não precisa... Era um ditador, bem feito!
─Ah─ fingi certo humor mórbido pelo dito, o que combina com seus cabelos negros, a
pele muito branca e o longo vestido que escondia um corpo farto como os lábios. Após
um minuto dum silencio desconcertante ela continua─ temos ótimos modelos senhor─
Ao dizer essas ultimas seis palavras ela cruzou as mãos sobre o ventre reto que antevia o
sexo.
─Qual o tamanho dele?
─ Dele quem?
─Do falecido.
─ Um e oitenta...
─Bom, veja estes modelos. A vendedora de caixões pega Pedro Mitre pelo braço
esquerdo e ele pode sentir aquele quente que é o quente da exótica vendedora de
caixões. Excita-se ao ver que ela o leva até um canto longe da vista de quem entra na
loja. Olha ele com seus olhos grandes e mostra por baixo de cortinas lilases dois
caixões um de cor preta e outro de cor cinza.
─Não! Quero um diferente... Abóbora talvez!
_ Abóbora? Geme a palavra àqueles fartos lábios vermelha e a excitação de Pedro junto
à vingança que estava por vir, era um gozo.
─Isso!
─Mas veja estes são bons! Têm detalhes com prata e ouro o que faz deles excelentes;
não acha senhor?
─Não─ Seco e ereto como um pau duro Pedro, Pedro Mitre insiste─ Quero o mais
bizarro que tiver... O velho era digamos... Extravagante!
8. ─Extravagante? Ela abre os dois olhos e vira de costas deixando ver sua nuca tatuada.
Estava na excitação da venda como quem caça. Sai e volta com um álbum de onde puxa
o catalogo e dize─ não é todo dia que temos extravagância!
─Pois é. Sente como é ser César ao ver sua vontade sendo atendida.
─ Aqui veja. Ela mostra para Pedro Mitre.
─Perfeito. Ele continua na posição por um tempo fingindo ver o catalogo, pois ela deixa
ver também parte da fartura dos seus seios fugitivos do vestido.
─Até dez vezes sem juros, entregamos ou trazemos o cliente para por dentro!
─Ok; Põem dentro mesmo. Pedro, Pedro mitre estende um cartão de credito para a
vendedora de caixões. Sente ao sair da loja a sensação orgástica da vingança. Na porta
da funerária vê os funcionários saírem para pegarem o conteúdo do caixão.
Gozou o gozo dos vingativos.
(...)
No cemitério dois coveiros jogam as últimas sete pás no caixão abóbora. Uma por
uma elas caem. Uma. A risada de Pedro Mitre pouco a pouco fica mais alta. Duas. Porra
que coisa mais extravagante. Dizem que era vontade dele e que era gay. Três. A risada
é, agora, hilariante. Quatro. Ele conseguiu. Cinco. As coisas são tão bem postas pela
vingança. Sexta. O pai vai ser enterrado com a cor do caixão contraria a sua vontade.
Sétima e ultima pá de terra. A vontade de Pedro, Pedro Mitre venceu.
Rafael Caetano