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RESUMO 
Poucos homens dedicaram tanto cuidado para com as mulheres. No conjunto da obra de Chico 
Buarque é possível perceber uma enormidade de aparições claras, nominais ou veladas do ser 
mulher, em toda a sua potencialidade e diversidade, originadas pela própria condição do 
feminino. Chico se mistura, se funde e não raramente se faz mulher. 
MEU HOMEM E MINHAS MULHERES 
Cada mulher que amei esteve antes na mente, nas mãos e na boca de Chico. Impiedosa 
lascividade, desnuda de pudores e por vezes recato, submissa por vontade própria, 
encarnação do amor prisão de Camões. Amo cada uma dessas mulheres/canções que me 
rasgaram a pele, reviraram a casa e a alma, mas que me dão vida. 
O melancólico isolamento de Carolina. Eu daria o mundo para ela, porém ela sofreu tanto, que 
em nada mais acreditava. Seus olhos tristes que remoíam a dor, a dor que ocultou a flor. 
Carolina foi além da Alice de Lewis Caroll, perdeu o limite da dor, chorou tanto que morreu 
afogada em suas próprias lagrimas e se cegou pra beleza. 
Com violência avessa Lola tomou meus pensamentos, revirou meu mundo, varreu as coisas 
que eu sabia, arrancou tudo, me fez ter raiva dos dias de sol, da alegria dos outros, da 
primavera, da inevitável realidade de que essas feridas um dia cicatrizarão e das "50 receitas" 
de Leoni. Quando tateio a beleza em busca do amor é ela que me veem a fronte. 
Força do desmedido, aquela mulher que me cravou marcas na pele, profundas e indissociáveis 
de quem sou, feito tatuagem, a ternura da amiga no calor da amante, que de tanto brincar no 
meu corpo eu ainda mais a quero inseparável e me deixando cambaio, desassossegado pela 
menor ausência. Uma mulher que não cabe em si e que a dois trasborda. 
Saudades do colo carinhoso de rosário da minha estrangeira Yolanda, amor íntimo e distante 
que Chico dividiu com Pablo Milanés. Esse inevitável pecado de amar a mulher do outro, tal 
qual a paciente Lígia amada por um Tom enclausurado, não por acaso cantada em “sinal 
fechado”. 
O amar e suas muitas desventuras. Que raiva da Rita, mulata que me roubou a inocência, meu 
primeiro amor com dor. Uma avalanche de sentimentos, de samba e fossa. O amor virtual por 
Nina, nunca fui ao seu encontro que tanto imaginei, refiz e quis, coisa pura que guardamos em 
segredo, idealizado e atormentador estado de “e se?”, quão maior nas estações da solidão. Daí 
resultam amores por mulheres que nem ousamos pronunciar os nomes, como as amadas cuja 
identidade a canção não revela. 
Mesmo na aparente submissão as mulheres de Chico são protagonistas, não pela 
inferioridade, mas como estandarte de resistência. Tal como as mulheres de Atenas, 
apresentadas não à beira da passividade, mas como o sustentáculo de uma sociedade 
machista que limitava a mulher a uma condição subumana, a cômodos específicos da casa, ao 
gineceu. Mulheres que esperam, passividade contida na gênese da palavra paixão, sentir é 
paixão, prova irrefutável de que vivo na eterna dependência de um outro ser para humanizar-me, 
para amar, desejar, odiar. Só sinto porque há um outro.
Humana é aquela mulher que rastejava e implorava “atrás da porta”, rastejando, suplicando 
pelo amado. Sem dó de si mesma, sem convenções, orgulho ou amor próprio ela padecia 
sobre migalhas de amor se erguendo após a morte, como um colosso, só para se vingar no 
avesso do sentimento. Mesmo no cotidiano, na ritualização dos dias, na liturgia do amor, a 
amada não esmaece o cuidado, nem a intensidade do seu querer. 
Não é que ele simplesmente escreva para mulheres, é algo maior, mais íntimo. A composição 
de Chico é mulher, esse é o mister. Afinal a poesia é mulher, a rima e a dança também são 
mulheres. Chico deu nobreza a mais humilhada das mulheres, minha heroína Geni. Nem 
mesmo Jesus com Madalena, Vitor Hugo com Esmeralda ou Alexandre Dumas com Marguerite, 
ninguém encarnou tanto a existência do feminino como as canções de Chico Buarque, nelas as 
putas não precisavam de redenção, elas são senhoras do desejo, dos seus corpos, das mentes 
dos homens. 
Superar os limites da consciência masculina e transcender para o feminino é uma epopeia 
filosófica. O masculino, sobremaneira pela evolução dos seus processos óbvios e no comando 
da sua sociedade que assumiu feições machistas esgota seu significado em si; não falo aqui de 
uma oposição homem versus mulher, mas da condição com que a sexualidade ganhou feições 
ideológicas ou filosóficas pelo processo histórico transcorrido. 
Nesse sentido o feminino é resistência a opressão, artimanha para sobreviver em uma 
sociedade que a subjugava, a culpava pelo mal na terra, como Eva e Pandora, ou a desterrava 
de sua condição humana pela santidade modelada na castidade de Maria. Nem demônio, nem 
santa, em Chico a mulher não se limita ao imaculado ou maculado. Não apenas mulher, não 
essencialmente mulher, como quem guarda e retém nas sombras o melhor e o pior do ser, 
mas existencialmente mulher.

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  • 1. RESUMO Poucos homens dedicaram tanto cuidado para com as mulheres. No conjunto da obra de Chico Buarque é possível perceber uma enormidade de aparições claras, nominais ou veladas do ser mulher, em toda a sua potencialidade e diversidade, originadas pela própria condição do feminino. Chico se mistura, se funde e não raramente se faz mulher. MEU HOMEM E MINHAS MULHERES Cada mulher que amei esteve antes na mente, nas mãos e na boca de Chico. Impiedosa lascividade, desnuda de pudores e por vezes recato, submissa por vontade própria, encarnação do amor prisão de Camões. Amo cada uma dessas mulheres/canções que me rasgaram a pele, reviraram a casa e a alma, mas que me dão vida. O melancólico isolamento de Carolina. Eu daria o mundo para ela, porém ela sofreu tanto, que em nada mais acreditava. Seus olhos tristes que remoíam a dor, a dor que ocultou a flor. Carolina foi além da Alice de Lewis Caroll, perdeu o limite da dor, chorou tanto que morreu afogada em suas próprias lagrimas e se cegou pra beleza. Com violência avessa Lola tomou meus pensamentos, revirou meu mundo, varreu as coisas que eu sabia, arrancou tudo, me fez ter raiva dos dias de sol, da alegria dos outros, da primavera, da inevitável realidade de que essas feridas um dia cicatrizarão e das "50 receitas" de Leoni. Quando tateio a beleza em busca do amor é ela que me veem a fronte. Força do desmedido, aquela mulher que me cravou marcas na pele, profundas e indissociáveis de quem sou, feito tatuagem, a ternura da amiga no calor da amante, que de tanto brincar no meu corpo eu ainda mais a quero inseparável e me deixando cambaio, desassossegado pela menor ausência. Uma mulher que não cabe em si e que a dois trasborda. Saudades do colo carinhoso de rosário da minha estrangeira Yolanda, amor íntimo e distante que Chico dividiu com Pablo Milanés. Esse inevitável pecado de amar a mulher do outro, tal qual a paciente Lígia amada por um Tom enclausurado, não por acaso cantada em “sinal fechado”. O amar e suas muitas desventuras. Que raiva da Rita, mulata que me roubou a inocência, meu primeiro amor com dor. Uma avalanche de sentimentos, de samba e fossa. O amor virtual por Nina, nunca fui ao seu encontro que tanto imaginei, refiz e quis, coisa pura que guardamos em segredo, idealizado e atormentador estado de “e se?”, quão maior nas estações da solidão. Daí resultam amores por mulheres que nem ousamos pronunciar os nomes, como as amadas cuja identidade a canção não revela. Mesmo na aparente submissão as mulheres de Chico são protagonistas, não pela inferioridade, mas como estandarte de resistência. Tal como as mulheres de Atenas, apresentadas não à beira da passividade, mas como o sustentáculo de uma sociedade machista que limitava a mulher a uma condição subumana, a cômodos específicos da casa, ao gineceu. Mulheres que esperam, passividade contida na gênese da palavra paixão, sentir é paixão, prova irrefutável de que vivo na eterna dependência de um outro ser para humanizar-me, para amar, desejar, odiar. Só sinto porque há um outro.
  • 2. Humana é aquela mulher que rastejava e implorava “atrás da porta”, rastejando, suplicando pelo amado. Sem dó de si mesma, sem convenções, orgulho ou amor próprio ela padecia sobre migalhas de amor se erguendo após a morte, como um colosso, só para se vingar no avesso do sentimento. Mesmo no cotidiano, na ritualização dos dias, na liturgia do amor, a amada não esmaece o cuidado, nem a intensidade do seu querer. Não é que ele simplesmente escreva para mulheres, é algo maior, mais íntimo. A composição de Chico é mulher, esse é o mister. Afinal a poesia é mulher, a rima e a dança também são mulheres. Chico deu nobreza a mais humilhada das mulheres, minha heroína Geni. Nem mesmo Jesus com Madalena, Vitor Hugo com Esmeralda ou Alexandre Dumas com Marguerite, ninguém encarnou tanto a existência do feminino como as canções de Chico Buarque, nelas as putas não precisavam de redenção, elas são senhoras do desejo, dos seus corpos, das mentes dos homens. Superar os limites da consciência masculina e transcender para o feminino é uma epopeia filosófica. O masculino, sobremaneira pela evolução dos seus processos óbvios e no comando da sua sociedade que assumiu feições machistas esgota seu significado em si; não falo aqui de uma oposição homem versus mulher, mas da condição com que a sexualidade ganhou feições ideológicas ou filosóficas pelo processo histórico transcorrido. Nesse sentido o feminino é resistência a opressão, artimanha para sobreviver em uma sociedade que a subjugava, a culpava pelo mal na terra, como Eva e Pandora, ou a desterrava de sua condição humana pela santidade modelada na castidade de Maria. Nem demônio, nem santa, em Chico a mulher não se limita ao imaculado ou maculado. Não apenas mulher, não essencialmente mulher, como quem guarda e retém nas sombras o melhor e o pior do ser, mas existencialmente mulher.