1. 1
Pontifícia Universidade Católica
Faculdade de Psicologia
E TU, AT?
Análise das alterações emocionais descritas
por acompanhantes terapêuticos no trabalho com psicóticos
Claudia Valentina de Arruda Campos
Orientadora: Camila Sampaio
Trabalho de conclusão de curso
como exigência para graduação
no curso de Psicologia.
São Paulo
1996
2. 2
Agradeço aos que amo
aos que me acompanham
e aos que acompanho
na loucura nossa de cada dia.
Agradeço ao tempo
que por rexistir
me obriga a parar num ponto
fazer história
deste ciclo tortuoso
que é escrever/viver.
3. 3
AGRADECIMENTOS
Aos ATs entrevistados pela disponibilidade e pelo trabalho emocionante
que fazem.
À Camila por me ajudar a olhar para o outro.
Ao Welson por me ajudar a olhar para mim.
À Vilma pela delicadeza.
Ao Hemir pelas aulas e histórias.
À Lucinha pela atenção e paciência.
À Bia Almeida por me ajudar em meus descabelamentos sorrindo.
Ao pessoal d’A Casa:
Nelson e Leonel, pelos olhos (super-visões),
e à Lúcia, Bia Portella, Bia Almeida, Cristina, Renata, Júlio, Rodrigo,
Maurício Hermann, Eliane, Maurício Porto, Iso, Kléber, Luciana, João,
Claudia e Débora, por acompanharem de perto meu acompanhar.
Ao pessoal da Oficina de Inventos:
Eliana, Paula, Bia, Kátia e Saulo,
pelas discussões regada a vinho e macarronada.
À minha família querida.
Aos meus amigos e amores que foram, são e serão.
4. 4
Sumário
RESUMO ..........................................................................................................................5
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................6
INTRODUÇÃO .................................................................................................................9
I. O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO ............................................................... 11
II. ASPECTOS TEÓRICOS ......................................................................................... 19
1 A Transferência ................................................................................................... 19
2 A Psicose............................................................................................................. 21
3 A Transferência Psicótica .................................................................................... 24
4 A Contratransferência .......................................................................................... 27
5 A Contratransferência na Psicose........................................................................ 29
6 A Identificação Projetiva ...................................................................................... 34
7 As sensações provocadas pela identificação projetiva ......................................... 40
8 O sinistro na contratransferência vivido a partir da identificação projetiva ........... 42
9 A Interpretação .................................................................................................... 45
METODOLOGIA ............................................................................................................. 48
I Sujeitos de pesquisa ................................................................................................ 48
II Entrevista ................................................................................................................ 49
III Metodologia de análise e discussão da entrevista.................................................. 49
ANÁLISE E DISCUSSÃO DA ENTREVISTA DE H ......................................................... 51
I O Trabalho do AT..................................................................................................... 51
II O que sente o AT? .................................................................................................. 59
III Hipóteses sobre o sentir: particularidades do acompanhamento terapêutico ......... 79
1. A intimidade: o espaço e o corpo ........................................................................ 80
2. A relação da dupla com o social ......................................................................... 82
3. Duração: tempo e temporalidade ........................................................................ 84
4. O lugar do AT ..................................................................................................... 85
5. A dificuldade em nomear .................................................................................... 87
IV O que fazer com “isso”? ........................................................................................ 88
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 93
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 96
5. 5
RESUMO
Este trabalho visa correlacionar três objetos de estudo: a psicanálise, o
acompanhamento terapêutico e a psicose.
Tudo começou quando, ao acompanhar uma moça psicótica, comecei a
perceber “coisas estranhas” em mim. Do que se tratava? O que era aquilo?
Comecei a investigar e observei que diversos acompanhantes descreviam
sensações, vivências particulares, semelhantes em sua estranheza. Passei a
buscar referências nos livros, e na falta de material sobre acompanhamento, me
dirigi à psicanálise: o que existia a respeito das sensações que sentia? Quais as
descrições de análises de pacientes psicóticos? Ao constatar uma proximidade
entre o que era descrito na psicanálise ao que era descrito pelos
acompanhantes, decidi investigar as reações emocionais do acompanhante
através de um estudo de caso. A entrevista me permitiu descrever o
acompanhamento terapêutico e correlacioná-lo à teoria psicanalítica.
A pesquisa encontra-se dividida em duas partes: a primeira teórica, onde
são discutidos em especial os conceitos de transferência na psicose,
contratransferência e identificação projetiva; e uma segunda, dedicada à análise
de entrevista realizada com um acompanhante terapêutico, articulando a
experiência do acompanhamento terapêutico à teoria psicanalítica.
Como conclusão, a análise da entrevista possibilitou verificar aproximações
entre essas duas clínicas da psicose _ o acompanhamento terapêutico e a
psicanálise _ além de destacar quais são as características particulares do
acompanhamento terapêutico. A pesquisa também permitiu levantar questões
para investigações futuras.
6. 6
APRESENTAÇÃO
No decorrer desta pesquisa me dei conta de que ela vinha ocupar um lugar
incômodo em minha vida: não me deixar esquecer, não deixar aquietar,
naturalizar, os estranhamentos que eu sentia em meu trabalho como
acompanhante terapêutica. Isto certamente me trouxe desgaste e cansaço a
cada vez que eu olhava para meu próprio tema. O trabalho de reflexão e
produção teórica foi uma experiência onde senti ser possível retornar à angústia
vivida nas situações sobre as quais eu pensava e, a partir do processo reflexivo,
ultrapassá-la. Em diversos momentos, mergulhei em minha própria experiência,
sendo difícil observar a experiência alheia, mas essa era a tarefa a que me havia
proposto: olhar para fora, para além de minha vivência particular, e produzir um
texto sobre o acompanhamento terapêutico.
Ao iniciar o trabalho eu tinha uma questão clara: correlacionar o
acompanhamento terapêutico e as reações emocionais descritas pelos
acompanhantes de pacientes psicóticos, com a teoria da psicanálise. A partir daí,
iniciou-se uma viagem teórica. A princípio, pensei em utilizar a teoria da
contratransferência, e não um autor em particular, porque queria enfocar o
fenômeno, as “sensações” descritas por analistas que atendem pacientes
psicóticos em seus consultórios. Assim, busquei autores que falassem da reação
emocional do analista frente a pacientes psicóticos, e terminei por utilizar um
grande número de autores, sem me aprofundar na construção teórica de cada
um em particular.
Nesta busca, novas questões foram surgindo: ao falar de contratransferência
na psicose precisei escrever sobre que referência de psicose estava utilizando,
assim como de transferência. As questões pareciam intermináveis: Como se dá a
transferência na psicose e qual sua relação com a contratransferência? O que é
a identificação projetiva, conceito a que cheguei através da leitura sobre a
7. 7
contratransferência? Quais as manifestações observáveis da identificação
projetiva? Qual a relação entre identificação projetiva, transferência e
contratransferência? Pode-se interpretar a partir da percepção da identificação
projetiva? E tudo isso poderia servir para o acompanhamento terapêutico?
Ao mesmo tempo em que este caminho foi percorrido, havia outro paralelo: a
experiência como acompanhante terapêutica (AT) me levou a correlacioná-la à
experiência descrita por Freud (1924) do sinistro. O encontro destes dois
caminhos derivou em uma nova questão: Como correlacionar a experiência do
sinistro com a contratransferência na psicose? E pude entrever que esta questão
me levaria a outras que indicavam para o corpo. O que é o corpo e onde está
inserido o corpo do analista e do acompanhante terapêutico na relação com um
indivíduo psicótico? O tempo se foi antes de poder chegar ao corpo. Se você
está confuso, imagine eu que a esta altura já nem me lembrava de qual havia
sido a questão inicial.
Tive que me voltar para as entrevistas e aí redescobrir minha questão. A
partir da análise da entrevista, a discussão busca correlacionar os aspectos
teóricos da psicanálise com o acompanhamento terapêutico.
Pensando sobre o que perseguia ao construir uma “colcha de retalhos”
teórica, me deparei com uma grande ansiedade, e com o desejo de encontrar
uma resposta, buscar compreender o que havia vivenciado na experiência
enquanto acompanhante terapêutica. A necessidade de entender o que havia
vivido, em momentos, foi maior que qualquer tentativa de organização
metodológica que desse um contorno melhor a isto que eu buscava descrever,
ao mesmo tempo em que descobria.
Certamente ficaram muitas falhas, contradições e buracos. Um trabalho
“louco”, como disse uma amiga. Um trabalho que vagueia, mas que ao final
8. 8
encontra, se não respostas, talvez hipóteses e, com certeza, muitas novas
questões.
Se ele provocar, instigar a pensar, está cumprido. Um pequeno paralelo com
o trabalho do AT: apresentar um mundo novo, interno e externo, e deixar que o
outro se ligue, viva.
9. 9
INTRODUÇÃO
“Eu sou Ofélia. A mulher na forca. A mulher com seios cortados. A mulher com
excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE a mulher com a cabeça no fogão a
gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu
ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro - a cadeira, a mesa, a cama.
Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o
vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos
sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim
na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas
roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para
a rua, vestida em meu sangue.”
Ofélia
Heiner Müler
Hamlet Máquina
“Arrombo a minha carne lacrada. Quero habitar nas minhas veias, na medida dos
meus ossos, no labirinto do meu crânio. Retiro-me para as minhas vísceras.
Sento-me na minha merda, no meu sangue. N’algum lugar são rompidos ventres
para que eu possa morar na minha merda. N’algum lugar ventres são abertos
para que eu possa estar sozinho com o meu sangue. Meus pensamentos são
chagas em meu cérebro. O meu cérebro é uma cicatriz. Quero ser uma máquina.
Braços para agarrar pernas andar nenhuma dor nenhum pensamento.”
Hamlet
Heiner Müller
Hamlet Máquina
10. 10
Estes são trechos da peça de Heiner Müller, Hamlet Máquina. Textos literários
que nos comovem pela crueza, primariedade do que é dito. É a descrição de
sentimentos de pessoas que vivem algo da radicalidade da experiência humana,
radicalidade que podemos encontrar na loucura como uma vivência trágica,
particular e tantas vezes inexplicável. Se um texto literário é capaz de nos fazer
sentir, nos angustiar a partir da possibilidade de vivermos uma parcela do que
nos é descrito, o que poderia provocar em alguém a proximidade e o contato
com quem vive uma experiência de tamanha ruptura de seus mundos interno e
externo como a loucura?
Este trabalho é uma tentativa de organização de sentimentos de alguém que
pôde sentir esta proximidade, relato de uma procura pessoal, da busca de pares,
da busca teórica de possíveis explicações para o que foi observado e vivido na
relação com uma pessoa “louca”. “Louco” porque: o que é ser louco? O que nos
distancia desta vivência? O que nos garante do lado de cá e eles do lado de lá,
além de um muro? Estas sendo questões que me rodeavam permanentemente
ao acompanhar uma dessas pessoas estranhas. Estranhas estrangeiras em sua
terra natal. Esquisitas desconcertantes, desviantes das regras da razão, onde o
porquê positivista não encontra uma resposta. Críticas não intencionais à custa
de suas próprias subjetividades, sem espaço para a existência, fadadas a viver
em um tempo, que por ser outro que o tempo da produção, não tem lugar. E
então, o que é possível? É possível acompanhar, acompanhar a história e o que
a mudança dos tempos nos permite.
11. 11
I. O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
Anteriormente à realização de um trabalho como acompanhante terapêutica,
a loucura era para mim pura teoria, filmes, textos literários. Depois de iniciar o
trabalho como acompanhante terapêutica de psicóticos, deixaram a teoria de ser
pura, os filmes ficção e a literatura texto. A teoria, em especial, pude entendê-la
como experiência sistematizada, flexível, mutável. A partir do acompanhamento
continuei sem saber o que é ser louco, e este desconforto me levou a falar (as
intermináveis conversas dos acompanhantes terapêuticos), escrever e entrevistar
pessoas a fim de encontrar outros pensamentos, destes que também vivem esta
experiência. Uma aproximação da loucura através do trabalho como
acompanhante terapêutico (AT).
O que faz um acompanhante terapêutico? De uma forma geral saímos com
pessoas que tem tido dificuldades em sua relação com o mundo. Muitas vezes
são pacientes psiquiátricos e com eles vamos ao cinema, ao teatro, a um bar,
viajar, etc. Em suma, atividades que as pessoas comumente realizam com
amigos (o antigo nome do acompanhante terapêutico era amigo qualificado).
Acompanhante e acompanhado buscam no mundo possibilidades de novos
caminhos de circulação, novos contatos deste indivíduo com o social, para que o
acompanhado um dia não precise mais de acompanhamento.
O acompanhamento terapêutico é uma das formas contemporâneas de
tratamento da psicose. Existe pouco material publicado sobre esta prática, sendo
este um dos motivos que me levaram a refletir sobre ela. Há apenas dois livros
sobre o tema editados em português: Acompanhantes Terapêuticos e
Pacientes Psicóticos, de Mauer e Resnizky (1987), e A Rua como Espaço
Clínico, da Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital Dia A Casa
(1991). Além desses, é possível encontrar artigos dispersos, muitas vezes
publicados por grupos independentes de acompanhantes terapêuticos. A
12. 12
transmissão do que é o trabalho até hoje se dá basicamente por via oral:
palestras, cursos, grupos de estudo e discussões entre acompanhantes.
Esta é uma questão intrigante sobre esta prática: como, apesar de possuir
mais de 20 anos de existência na Argentina, e pelo menos 13 anos no Brasil, ela
continue ainda sendo transmitida oralmente? Qual seria a dificuldade de teorizar
sobre o acompanhamento terapêutico, dificuldade esta a que os acompanhantes
terapêuticos tanto se referem? Sem tentar responder a estas questões, penso
em alguns elementos que poderiam direcionar novas pesquisas. O
acompanhamento é uma prática que se dá no quotidiano. Acompanhante e
acompanhado percorrem a cidade juntos, buscando realizar atividades que para
muitos seriam básicas em suas vidas, como ir à padaria, ao supermercado,
assistir um filme ou passear de carro. Patto (1990) refere-se à dificuldade que
encontram os teóricos ao tentar elaborar uma teoria do quotidiano. Além disso, o
acompanhamento é um trabalho que possui muitas variáveis, como a questão do
vínculo, da interpretação, a ação, a relação do AT com a família do
acompanhado, o que torna o tratamento algo difícil de ser configurado,
circunscrito. Afinal, disso tudo, o que trata no trabalho como acompanhante?
Quais os fatores terapêuticos? Qual o campo específico desta forma de
trabalho? Como não se perder frente às inúmeras possibilidades existentes?
Estas questões, ainda sem respostas, permitem pensar que é apenas dentro
da relação existente entre acompanhante e acompanhado que se pode saber o
que é terapêutico, ou analítico, para aquele indivíduo em particular. É a partir de
sua situação de vida atual que se elabora um projeto terapêutico, sendo possível
pensar que as generalizações do que fazer ao se acompanhar alguém,
generalizações estas que poderiam surgir na forma de regras, limites pré-
estabelecidos do que é correto ou incorreto dentro de um acompanhamento
terapêutico, correm o risco de funcionar mais como defesa do terapeuta frente à
angústia do não saber, do desconhecido em que a relação com a psicose nos
coloca, do que como “regras fundamentais” do acompanhamento terapêutico.
13. 13
Existem propostas divergentes sobre o papel do AT no tratamento da psicose
que podem ser observadas nos dois livros existentes sobre acompanhamento
terapêutico. Resnizky e Mauer (1987) definem as funções do acompanhante
terapêutico como sendo as seguintes: contenção do paciente, oferecimento do
acompanhante como modelo de identificação, funcionar como “ego auxiliar” do
paciente, perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente,
informar sobre o mundo objetivo do paciente, representar o terapeuta, atuar
como agente ressocializador e, finalmente, servir como catalizador das relações
familiares.
Já a proposta do grupo do hospital dia A Casa (1991) está mais voltada para
uma concepção analítica da relação, não sendo possível criar itens tão
determinados como os citados acima. É importante, nesta forma de pensar o
acompanhamento, a formação de um vínculo entre acompanhante e
acompanhado, vínculo compreendido no terreno dos fenômenos transferenciais
que permitiria ao acompanhado arriscar-se de uma forma particular no mundo,
tendo a sustentação de um companheiro, de um anteparo afetivo entre ele e o
mundo.
A rua é considerada o espaço privilegiado para o trabalho do
acompanhamento. Neste espaço de múltiplas possibilidades, o acompanhante
terapêutico busca estar atento às necessidades e capacidades de seu
acompanhado. Busca construir com ele um novo roteiro da cidade, acreditando
que quando um indivíduo psicótico consegue fazer demandas, ali existe a
possibilidade de este construir novas relações afetivas com o mundo, com a vida.
É acreditar, de alguma forma, que a subjetividade se constrói durante toda a
vida, que a possibilidade de transformação e mudança é algo inerente ao
humano, que o social e o quotidiano podem ser terapêuticos. Isto,
paradoxalmente, associado à ideia de que este indivíduo não precisa deixar de
ser um psicótico para habitar este mundo, esta cidade. O acompanhante
14. 14
terapêutico busca construir juntamente com o acompanhado, em um trabalho
microscópico, uma pequena abertura no macro social.
Esta pequena abertura pode se dar em uma ida à farmácia, onde a boa
acolhida de um farmacêutico a uma pessoa que delira transformações em seu
corpo, respondendo muitas vezes e muitos dias às mesmas perguntas com bom
humor, talvez revele algo _ o fragmento de uma mudança social possível na
forma de se relacionar com a loucura. Seria possível considerar estes pequenos
acontecimentos uma forma de transformação social? Segundo Baremblitt (1991):
“O paciente não é uma forma de ser no mundo, mas sim, uma forma de
produzir o mundo, o mundo próprio, único, irrepetível. O desafio do
acompanhante terapêutico, ou de quem seja, consiste então, em participar
na construção deste mundo, fazendo de maneira com que ele seja
compatível com o mundo que é produzido, consagrado e implantado por
certas maneiras de ser triunfantes. Maneiras de ser que têm conseguido
produzir um mundo no qual o mundo do chamado paciente não tem lugar.”
(pág. 81)
Quem melhor do que Althusser (1992) para descrever este não lugar no
mundo. Sociólogo francês, diagnosticado maníaco depressivo, em novembro de
1980 estrangulou a esposa em seu apartamento e não foi a julgamento por ter
sido “beneficiado” pela impronúncia, ou seja, foi considerado incapaz de
responder em juízo. Posteriormente, Althusser escreveu o livro “O futuro dura
muito tempo”, publicado após sua morte, em 1990. Nele descreve o limbo que
cabe ao louco em nossa sociedade. O relato é uma resposta à impronúncia que
lhe foi imputada. Uma forma de sobrevivência e de existência:
“É provável que se julgue chocante que eu não me resigne ao silêncio
depois do ato que cometi, e também a impronúncia que o sancionou e da
qual, segundo a expressão espontânea, eu me beneficiei.
Mas, não tivesse eu esse benefício, e deveria ter sido julgado. E, se
tivesse de ser julgado, teria de responder.
15. 15
Este livro é essa resposta à qual, de outra forma, eu teria sido submetido.
E tudo que eu peço é que isso me seja concedido; que me concedam
agora o que então poderia ter sido uma obrigação.” (pág. 21)
Sobre a impronúncia, o não direito à palavra, ele escreve: “O destino da
impronúncia é na realidade a pedra sepulcral do silêncio.” (pág. 25)
Escreve também sobre a condição do louco:
“Se falo dessa estranha condição, é porque a vivi e, de certa forma, vivo-a
ainda hoje. Mesmo libertado após dois anos de internação psiquiátrica,
sou, para uma opinião que conhece meu nome, um desaparecido. Nem
morto nem vivo, não ainda enterrado mas ‘sem obra’ - a magnífica
expressão de Foucault para designar a loucura: desaparecido.” (pág. 29)
O livro que escreve é um retorno ao mundo deste ser “desaparecido”. Mundos
exteriores e interiores, mundos familiares, mundo relacional. O AT junto a seu
acompanhado busca ligar, criar uma trança entre estes mundos. A partir de uma
afetividade lançada sobre ele, é possível buscar relançá-la sobre outros objetos,
reconectando quem se desligou da vida, dar voz a quem perdeu o direito à fala.
Trabalho de tentativa e erro constantes, desejos frustrados e alegrias enormes.
O que é ser um acompanhante terapêutico? Há algo nesta atividade de
acompanhar que vai muito além do fazer. Ao acompanhante cabe a capacidade
de se co-mover, seguir junto, suportar que alguém sem caminhos claros o guie,
ao mesmo tempo em que busca sustentar os afetos que o invadem, comovem. A
possibilidade de suporte sendo um dos atos terapêutico. Assim, se por um lado
há uma grande importância da própria rua enquanto espaço possibilitador para
este trabalho, o fator que viabilizaria a saída às ruas é o vínculo criado entre
acompanhante e acompanhado. Se, por um lado, a rua pode ser pensada
enquanto exterioridade viabilizadora de relações com o fora, o acompanhante
também é o fora, o terceiro, que entra na casa não apenas de seu
acompanhado, mas muitas vezes de uma família desorganizada
emocionalmente.
16. 16
O “fora” é pensado no acompanhamento terapêutico, para além da rua, a
partir da perspectiva de Rolnik (1995). Segundo ela, o fora não seria um lugar,
mas uma dimensão da realidade em constante movimento de forças, turbilhão de
transformações. Em suas palavras:
“(...)Se o fora não é um lugar, como ficaria então o dentro? Onde se
dão estas sensações e este estranhamento? Como fica a
subjetividade? Pois bem, para sua surpresa ele (AT) constata que o
dentro nada mais é do que o interior de uma dobra do fora,
estratificação temporária de certas reações de força - exatamente
aquelas relações cuja diferença incompatível tivera por efeito
desestabilizar os contornos que lhe eram familiares e lhe exigir um
processo de subjetivação de um novo tipo. A subjetividade portanto é
feita das próprias partículas do fora; ela é o dentro do fora. Um dentro
que como um cristal do fora que teria sedimentado em determinada
forma, continua a ser trabalhado pelas forças até que a dobra que o
constitui se desfaça e outras dobras se façam num só e mesmo
movimento. Nesse processo que nunca para, somos levados para fora
de nós mesmos e nos tornamos “um sempre outro”. A subjetividade é
então este dentro-e-fora indissociáveis, mas também, inconciliáveis:
‘um si e não-si` concomitantemente.” (pág. 8)
É no fora de quem se encerrou em uma forma de vida petrificada, exatamente
por ser absolutamente vulnerável, aberto ao avassalamento do mundo, e no fora
de quem se constituiu dentro quase protegido e semi-lacrado, que ambos,
acompanhante e acompanhado, vão caminhar. O acompanhante sendo, em si, o
“fora” que adentra o espaço da casa e da família.
Neste espaço sem formas definidas é que se dá este passeio pelo
estranhamento. Estranhamento vivido muitas vezes pelo AT que busca dar um
nome ao “isso”, sensação de difícil nomeação, sensações vividas na convivência
com um psicótico. Este inominável pode encontrar-se, talvez, um pouco mais
próximo da fala do que da escrita. Seria possível que isto levasse o AT a referir-
se à sua prática basicamente através de casos? Pois este é outro
questionamento constante, o fato de ser tão difícil falar sobre o
acompanhamento sem se referir a uma vivência.
17. 17
Também eu não escaparei à descrição da vivência, pois esta foi fundamental
para o surgimento da necessidade de reflexão: Saía com minha primeira
acompanhada, Renata, há cerca de quatro meses quando ela me propôs que
viajássemos por três dias para o sítio. Passado este período eu retornaria a São
Paulo e outra acompanhante que também a atendia ficaria com ela no sítio por
mais três dias. Aceitei entusiasmada e fomos para o sítio. No terceiro dia da
viagem tive uma intoxicação alimentar. Passei mal e voltei para São Paulo
sentindo fortes dores abdominais. Na volta, eu estava dirigindo sozinha, e
comecei a fantasiar sobre o que se passava comigo. Somente depois de chegar
a São Paulo pude notar que o teor de minhas fantasias havia sido o mesmo das
fantasias de Renata. O medo da morte desproporcional às causas,
persecutoriedade, imaginar as possíveis doenças que poderiam ter me
acometido, todos esses sintomas de Renata que nesse momento me encontrei
reproduzindo.
A partir deste momento, minha relação com ela se tornou mais distante e
difícil. Passei a ficar irritada nos acompanhamentos, não via a hora passar. Este
movimento não foi unilateral. Na volta da viagem, as duas, acompanhante e a
acompanhada, estavam perturbadas. Enquanto eu estava na estrada dirigindo,
tinha a sensação de estar intoxicada, e depois de semanas eu continuava me
sentindo assim. Associado a isto, sentia culpa, pois meu papel seria o de tratá-la
e não estava conseguindo. Eu havia mudado e me tornado supersensível à sua
aproximação, irritada com ela e comigo mesma por haver escolhido estar ali.
Passadas duas semanas, em supervisão, foi decidido que eu tiraria duas
semanas de férias e a frase importante que marcou esta supervisão foi: “Diga
que vai sair de férias, mas diga feliz. Deixe as coisas dela com ela.”
A separação restauradora me permitiu pensar sobre estas questões e voltar,
com menos horas semanais, e sem viagens por um período. Ao mesmo tempo,
esta ebulição me levantou perguntas sobre o que havia acontecido. O que eu
18. 18
havia “carregado”? Aquilo era algo meu despertado pela minha relação com ela
ou ela teria “colocado” aqueles sentimentos em mim? Como era possível que eu
considerasse delírio suas considerações sobre meus poderes sobre seu corpo e
ao mesmo tempo acreditasse em seus poderes sobre minha mente? Onde
estaria esta “abertura” em mim que havia permitido essa invasão? A partir destas
questões fui buscar bibliografia que se referisse a este tipo de experiência que eu
havia vivenciado.
Encontrei descrições semelhantes na psicanálise. A investigação sobre o que
me acontecia provocou uma ressignificação do conhecimento teórico que
possuía até então. O sentido teórico já não bastava, caso não encontrasse uma
equivalência prática na relação. Isto, tomadas as precauções de não ser a
relação de acompanhamento o equivalente a uma relação psicanalítica na rua,
não permitindo, assim, uma transposição literal dos conceitos psicanalíticos. No
entanto, estes mesmos conceitos poderiam me ajudar a pensar as semelhanças
e diferenças entre os dois trabalhos. Pude observar fenômenos muito
semelhantes aos descritos como transferência psicótica, contratransferência e
identificação projetiva durante o trabalho de acompanhamento.
19. 19
II. ASPECTOS TEÓRICOS
A parte teórica da pesquisa era, a princípio, uma investigação cujo objetivo
era o de embasar a análise da entrevista. No decorrer do processo, esta parte foi
adquirindo uma dimensão maior que a prevista. Além de interminável, pois não a
considero terminada, ao terminar a primeira versão do trabalho achava esta parte
confusa, incômoda, indigesta. Havia muito a ser retirado e transformado. Na
segunda versão do trabalho tal era minha irritação e insatisfação com esta parte
que a transformei em anexo. Não a queria dentro, “sujando”, o trabalho. Para
realizar a terceira versão, pensei muito no porquê desta parte haver sido
excluída: ela estava louca em demasia, um tanto árida, esquizoide. E pensei que
um trabalho sobre a loucura que exclui de si próprio sua desorganização se
afasta de seu objeto. Em função disto, readmiti os aspectos teóricos como parte
integrante do trabalho. Enfim, na quarta versão, aqui presente, reduzi a
dimensão deste capítulo.
Os conceitos investigados são: a partir do conceito de transferência me
encaminho para os conceitos de psicose, da transferência na psicose, da
contratransferência, da contratransferência na psicose e da identificação
projetiva. Paralelamente, há também uma investigação a respeito do sinistro em
Freud, o sinistro na contratransferência e uma questão final a respeito da
possibilidade de interpretação a partir da contratransferência.
1 A Transferência
O conceito de transferência é apresentado e retomado em diversos momento
na obra de Freud. Em 1905, define da seguinte forma a transferência, ao analisar
o Caso Dora:
“O que são as transferências? Reedições ou produtos facsímiles dos
impulsos e fantasias que serão despertados e feitos conscientes
20. 20
durante o desenvolvimento da análise e que possuem como
singularidade característica de sua espécie a substituição de uma
pessoa anterior pela pessoa do médico. Ou para dizer de outro modo:
toda uma série de acontecimentos psíquicos anteriores voltam à vida,
mas não já como passado, se não como relação atual com a pessoa
do médico.” (p. 998 trad. livre)
Segundo Freud (1905), a transferência existe em todas as relações humanas,
sendo especifico da psicanálise a utilização deste recurso para propiciar a
análise. O tratamento psicanalítico não cria a transferência, mas se limita a
“descobri-la”. Posteriormente Freud considerará a transferência como sendo,
além de uma forma de resistência, também a mola que impulsionaria o
tratamento psicanalítico.
Freud publicou, em 1910, o texto “Observações psicanalíticas sobre um caso
de paranóia” também conhecido como o caso Schreber. Nesse texto, afirma não
ser possível a realização de um trabalho analítico com pacientes psicóticos, pois
estes não poderiam estabelecer uma relação transferencial. Haveria, nestes
pacientes, um afastamento de todo interesse pela realidade, pelo mundo exterior.
Na psicose, naquele momento chamado por Freud de parafrenia, haveria uma
retração da libido objetal para o eu, processo que descreve o fenômeno do
narcisismo, que impossibilitaria a relação tranferencial.
Posteriormente, diversos autores vieram a contestar esta hipótese freudiana,
constatando a ocorrência de uma transferência bastante peculiar na relação
analítica com psicóticos, bastante diferente das características da transferência
neurótica.
Os autores selecionados para descrever a transferência na psicose o foram a
partir de seu trabalho sobre a contratransferência e a identificação projetiva, ou
seja, foi a partir do estudo sobre a contratransferência e a identificação projetiva
que cheguei a Klein, Winnicott, Bion e Rosenfeld, entre outros. Há ainda autores
dentro da psicanálise que, a partir de Lacan, produziram uma teoria bastante
21. 21
diversa sobre a psicose. No entanto, tendo sido o enfoque inicial deste trabalho a
contratransferência, e não sendo este um conceito utilizado pela escola
lacaniana, não foi possível um aprofundamento sobre a definição de psicose e
das forma de transferência na psicose, desde a perspectiva lacaniana.
2 A Psicose
Freud (1924) em seu artigo Neurose e psicose afirma que o que caracterizaria
a psicose seria o afastamento do ego da realidade. “A neurose seria o resultado
de um conflito entre o ego e o id, enquanto que na psicose o ego, a serviço do id,
retira-se do mundo exterior.” (pág. 2.742 trad. livre) Freud considerava que
indivíduos psicóticos eram inanalisáveis.
Klein, por sua vez, desenvolveu uma teoria sobre a vida emocional dos bebês.
É possível pensar, a partir de suas teorias, que ela realiza com a psicose o que
Freud realizou com a neurose, no sentido da “despatologização”. Por que a
psicose pode deixar de ser pensada como doença? Em 1946, em “Notas sobre
alguns mecanismos esquizoides”, ela escreve:
‘Não será preciso entrar em pormenores quanto ao fato de que
algumas outras características das relações objetais esquizoides, por
mim anteriormente descritas, podem ser encontradas, em menor grau
e de uma forma menos impressionante, em pessoas normais(...). De
modo semelhante, as perturbações normais nos processos de
pensamento estão ligadas ao desenvolvimento da posição
esquizoparanóide. Pois todos nós somos susceptíveis, por vezes, de
um enfraquecimento momentâneo do pensamento lógico (...) de fato o
ego está temporariamente cindido.” (pág. 329)
Neste mesmo artigo Klein (1946) escreve:
“Nos primeiros anos da infância, manifestam-se ansiedades
características da psicose que obrigam o ego a desenvolver
mecanismos específicos de defesa. Nesse período se encontram os
pontos de fixação para todos os distúrbios psicóticos.” (pág. 314)
22. 22
Assim, segundo Klein, todos vivenciamos, nos primeiros anos da infância,
não a psicose, mas ansiedades psicóticas, e o que diferenciaria um indivíduo
psicótico de um neurótico são os pontos de fixação em uma fase primitiva do
desenvolvimento. Nessa medida, os neuróticos não se isentariam destas
ansiedades, que estariam incorporadas ao processo psíquico de formação da
personalidade de qualquer indivíduo. A psicose, deste ponto de vista, pode ser
pensada não como uma doença, mas como uma possibilidade para qualquer ser
humano.
A partir de Klein, outros autores se aventuraram pela questão da psicose.
Winnicott (1954-5) pouco utiliza as categorias neurótico ou psicótico, mas sim
refere-se a pacientes mais ou menos regredidos, o que determina a gravidade de
cada caso. Winnicott correlaciona o nível de regressão de um indivíduo a fatores
ambientais os quais poderiam haver provocado essa forma de defesa. Segundo
ele, “A doença psicótica se relaciona a um fracasso ambiental em um estádio
primitivo do desenvolvimento emocional de um indivíduo.” (pág. 470)
Ao falar em “fracasso ambiental”, Winnicott se refere à relação mãe-bebê. O
que caracteriza este fracasso é a impossibilidade de a mãe dar suporte
emocional para as experiências afetivas do bebê. Um indivíduo que vive esta
experiência emocional tem, segundo ele, seu desenvolvimento afetivo
comprometido.
Bion, por sua vez, dá maior ênfase a aspectos constitutivos do indivíduo. Em
relação à personalidade psicótica, em 1957, ele considera a coexistência de uma
parte neurótica e de uma parte psicótica na personalidade de um só indivíduo. A
partir da distinção feita por Freud (1924) entre neurose e psicose, Bion (1957)
propõe que na psicose o ego não perderia completamente o contato com a
realidade, pois haveria a permanência de uma parte não psicótica da
personalidade existindo paralelamente a parte psicótica. Outra distinção da
23. 23
posição de Bion em relação à Freud é que o afastamento da realidade seria
ilusório, e se daria através do uso da identificação projetiva contra o aparelho
mental. Segundo Bion, a diferenciação entre as partes psicóticas e não
psicóticas da personalidade dependeria de uma cisão e de uma fragmentação da
parte da personalidade relacionada à percepção da realidade interna e externa
em fragmentos muito pequenos, que seriam expulsos através do mecanismo de
identificação projetiva. O significado deste conceito será discutido adiante.
Em 1957 ele caracteriza a personalidade psicótica como tendo quatro
características fundamentais:
“(...) uma preponderância tão grande de impulsos destrutivos, que
mesmo o impulso de amor é inundado por eles e transformado em
sadismo; um ódio da realidade, interna e externa, que se estende a
tudo que contribui para a percepção dela; um terror de aniquilação
iminente (Klein 1946) e, finalmente, uma formação prematura e
precipitada de relações de objeto (...), cuja fragilidade contrasta
acentuadamente com a tenacidade com que são mantidas.” (pág. 70)
É possível pensar que a proposta analítica desses autores se relaciona com a
forma como é pensada a etiologia da psicose. Enquanto Winnicott considera a
psicose como uma defesa que se originaria de uma falha ambiental, Bion
enfatiza os fatores constitucionais do indivíduo. Enquanto técnica, Winnicott
preconiza um retorno a este momento em que se deu a falha inicial, através da
regressão, para que possa haver uma recomposição do indivíduo, enfatizando o
ambiente na situação analítica. Bion, por sua vez, dá uma maior ênfase à
interpretação verbal, pois esta seria capaz de “devolver” ao paciente aspectos
seus que estariam fragmentados e expelidos fora, buscando reconstituir esta
psiquê estilhaçada.
A partir desta breve aproximação entre estes autores é possível pensar que
cada corpo teórico mereceria um aprofundamento particular. O recorte da teoria
em um ponto poderia esconder pressupostos que não estão sendo discutidos
naquele momento.
24. 24
3 A Transferência Psicótica
Diversos autores, após Freud, puderam constatar a existência de
transferência no tratamento analítico de psicóticos. Ainda que haja diferentes
denominações e caracterizações deste tipo de transferência, uma coisa tem em
comum: ela é diferente da transferência neurótica.
Winnicott (1947) afirma que uma das diferenças existentes entre análise de
neuróticos e de psicóticos é que os primeiros podem perceber “símbolos”
enquanto os segundos são concretos. Isto levaria a uma transferência bastante
diferenciada, pois enquanto na neurose haveria o “como se”, na psicose as
coisas “são”. Este caráter de concretude estaria presente na relação
transferencial:
“Para o neurótico, o divã, o calor e o conforto podem ser o símbolo do
amor materno; para o psicótico, seria mais certo dizer que estas coisas
são a expressão física do amor do analista. O divã é o colo ou o útero
do analista, e o calor é o calor vivo do corpo do analista.” (pág. 347)
O outro lado desta formulação de Winnicott é dado por Margareth Little,
psicanalista que foi analisada por ele e considerada “borderline”. Little (1992)
escreve: “Para mim D.W. não representava a minha mãe. Em minha ilusão de
transferência, ele realmente era a minha mãe.” (pág. 95)
Winnicott (1963) fala em psicose de transferência. Esta ocorreria em
pacientes muito regredidos e esta relação analítica seria de grande risco tanto
para o analista quanto para o paciente. O risco seria de o analista não se dar
conta da aproximação de conteúdos muito regredidos e interpretar em uma
situação onde o que seria necessário seria apenas dar sustentação para que o
paciente pudesse encontrar um caminho próprio. Haveria também riscos para o
analista em função de sua aproximação com as partes psicóticas do paciente e
25. 25
das consequências disto, questão que será retomada ao analisarmos a
contratransferência.
Bion (1957) descreve a transferência na psicose como tendo as seguintes
características: maciça, adesiva, rápida e tênue, tendo uma intensidade bastante
diferente da intensidade da transferência neurótica. Em suas palavras:
“A relação com o analista é prematura, precipitada e intensamente
dependente; quando o paciente, sob pressão das pulsões de vida e de
morte, amplia o contato, manifestam-se duas correntes simultâneas de
fenômenos. Primeiro, a cisão de sua personalidade e a projeção dos
fragmentos para dentro do analista (isto é, identificação projetiva) tornam-
se hiperativas, com os conseqüentes estados confusionais tais como
descritos por Rosenfeld (1952). Segundo, as atividades mentais e as
demais atividades através das quais o impulso dominante, seja este de
pulsão de vida ou de morte, busca expressar-se, são imediatamente
submetidas à mutilação por parte do impulso temporariamente
subordinado. Atormentado pelas mutilações e lutando por escapar dos
estados confusionais, o paciente retorna à relação restrita. A oscilação
entre a tentativa de ampliar o contato e a tentativa de restringi-lo
prossegue durante toda a análise.” (pg 70)
Rosenfeld (1987), que em muitos aspectos concorda com Bion, discute o
porquê desta forma de transferência:
“Uma parte importante de minha teoria é que os pacientes psicóticos
projetam seus sentimentos porque se sentem assustados demais para
lidar com eles ou para refletir a respeito deles sozinhos. O analista, porém,
como os pais no desenvolvimento mais normal, tem o potencial de
enfrentar os sentimentos e de refletir sobre eles, e é essa capacidade que
ele dá aos poucos ao paciente para desenvolver para si mesmo. A
natureza de transferência psicótica é que ela proporciona a oportunidade
de demonstrar que os sentimentos insuportáveis podem ser contidos e
considerados de modo criativo.” (pág. 55/56)
Ainda sobre a transferência na psicose, ele descreve duas de suas
características:
26. 26
“A transferência psicótica típica observada nos esquizofrênicos tratados
por mim e alguns colegas que supervisionei pode ser entendida
teoricamente como uma relação em que a identificação projetiva
predomina de maneira muito forte.” (pág. 256)
“Uma segunda característica da transferência psicótica no tratamento de
pacientes esquizofrênicos é que eles tendem a apresentar uma forte
transferência erótica desde o início do tratamento.” (pág. 264)
Dentro de uma outra vertente do pensamento psicanalítico, McDougall (1978),
que dá uma importância maior à questão da linguagem que os autores
anteriormente citados, propõe uma outra denominação para a transferência na
psicose. Esta é chamada por ela de “transferência fundamental”. A forma como
ela caracteriza esta a transferência de um psicótico com seu analista é a
seguinte:
“Num certo sentido ele (psicótico) permanece fusionado com o outro.
Recusando-se o estatuto de sujeito distinto e autônomo, ele não pode
tampouco conceder ao Outro este direito fundamental de ser. Na
impossibilidade de se comunicar com partes importantes de si mesmo, ele
trata o Outro como uma parte de si próprio: na análise, essa forma de se
relacionar será repetida com o analista.
Nestes casos, constatamos movimentos de transferência que não têm
muita coisa em comum com a relação transferencial que se estabelece
entre o sujeito neurótico-normal (para quem a psicanálise foi inventada) e
a representação que este faz do analista. O analista vê-se confrontado ao
que poderíamos chamar de transferência fundamental, transferência
original que procura anular a diferença entre o ser e o Outro, ao mesmo
tempo em que se teme uma fusão mortífera. Para mobilizar este elo
arcaico, seria necessário que a separação, vivida como morte psíquica, se
transformasse num sinal de desejo, de identidade, de vida.” (pág. 112)
McDougall (1978) correlaciona a “transferência fundamental” com a forma de
comunicação que se estabelece na relação entre o paciente e o analista:
“Essa língua privativa procura de uma certa maneira restaurar a unidade
mãe-criança, o que torna a comunicação simbólica supérflua. Nesse
sentido, a capacidade do analisando de se fazer compreender através de
27. 27
meias palavras, e a do analista de ouvi-lo, não diferem da comunicação
entre a mãe e seu bebê.” (pág. 112)
A forma com ela entende o que Winnicott (1947) caracterizou como a
impossibilidade de o psicótico de perceber símbolos, ou seja, que o analista se
torne “a mãe” do paciente para este, seria a não realização de uma separação
inicial entre a mãe e o bebê. Não tendo havido este luto inicial, o indivíduo estaria
impossibilitado de distinguir entre o analista real e o imaginário, fruto de sua
transferência:
“(...) em outros pacientes, aqueles para quem a necessidade de existir
invade inteiramente o território do desejo, nenhum espaço entre o analista
real e o analista imaginário pode ser preservado. Não se pode elaborar o
luto de um objeto cuja perda jamais foi reconhecida.” (pg114)
A relação analítica pode ser pensada como não possuindo uma relação de
causalidade: em função de uma transferência ocorre uma contratransferência,
mas dialética, onde a transferência e a contratransferência se determinam
mutuamente em um processo de constante transformação. Que processos essa
modalidade de transferência provoca no analista? Aqui adentramos à questão da
contratransferência.
4 A Contratransferência
Será apresentado um breve histórico do conceito de contratransferência na
psicanálise. Freud, em toda sua obra, utiliza poucas vezes o termo. O conceito
foi introduzido em 1910 no texto “O futuro da terapia psicanalítica”, onde ele
escreve:
“Outras inovações da técnica se referem à própria pessoa do médico. Se
nos fez visível a ‘contra-transferência’ que surge no médico, sob a
influência do doente, sobre seu sentir inconsciente, e nos achamos muito
inclinados a exigir, como norma geral, o reconhecimento desta ‘contra-
transferência’ pelo médico e seu vencimento. Desde que a prática
28. 28
psicanalítica vem sendo exercida por um número considerável de
pessoas, as quais trocam entre si suas impressões, temos observado que
nenhum psicanalista chega além de onde lhe permitem seus próprios
complexos e resistências, razão pela qual exigimos que todo principiante
inicie sua atividade com uma auto-análise e se aprofunde cada vez mais,
conforme vá ampliando sua experiência no tratamento dos doentes.” (pág.
1.566, trad. livre)
Para Freud, neste momento, os sentimentos surgidos no analista a partir dos
sentimentos transferenciais de seu paciente, seus sentimentos
contratransferenciais, deveriam ser sobrepujados em sua própria análise.
Posteriormente, Freud afirma em seu artigo “O inconsciente”, de 1915:
“É muito singular e digno de atenção o feito de que o sistema Inc. de um
indivíduo possa relacionar-se ao de outro, eludindo absolutamente o
sistema Cc. Este feito merece ser objeto de uma penetrante investigação,
encaminhada precisamente a comprovar se a atividade pré-consciente fica
excluída em tal processo; mas de qualquer forma, descritivamente o feito é
irrebatível.” (pág. 2.077, trad. livre)
Assim, se por um lado Freud considera a existência da contratransferência
um empecilho a ser vencido na relação analítica, ele também dá margem, a partir
das considerações sobre as formas de comunicação inconsciente, a toda a teoria
da contratransferência que se desenvolveu posteriormente.
Ferenczi, ainda nesta década (1919), defende que tudo o que se passa do
lado do analista pode ser considerado contratransferência, e não apenas seus
pontos cegos. Ele chegou a desenvolver a técnica de análise mútua (1932), onde
o analista trocaria de papel com o paciente. Depois de realizar algumas
experiências, abandonou a técnica.
Klein usa o termo raríssimas vezes e, como Freud, considera que a
contratransferência indica aspectos não analisados do analista. Por sua vez,
Klein (1946) introduziu o conceito de identificação projetiva, a ser discutido à
frente.
29. 29
Em 1950 Paula Heiman publicou um artigo que se tornou um marco na história
da psicanálise, e o motivo de seu rompimento com Melanie Klein. Este se chama
“Sobre a contratransferência”, onde afirma:
“Minha tese é de que a resposta emocional do analista ao paciente na
situação analítica representa uma das ferramentas mais importantes para
seu trabalho. A contratransferência do analista constitui um instrumento de
pesquisa do inconsciente do paciente.” (pág. 105)
O que justifica esta afirmação é a premissa básica de que o inconsciente do
analista entenderia o inconsciente do paciente. Para ela, todos os sentimentos
do analista na relação analítica devem ser considerados para sua interpretações.
Este artigo se tornou um clássico na teoria da contratransferência. Na época foi
muito polêmico, e mesmo hoje levanta questões sobre o uso dos sentimentos
contratransferenciais na análise.
5 A Contratransferência na Psicose
É possível pensar que as características peculiares da transferência psicótica
estabeleçam uma relação peculiar, um tipo de contratransferência específica no
trabalho com psicóticos. A “concretude” da transferência psicótica poderia exigir
uma resposta contratransferencial da mesma natureza? E que não apenas o
analista, mas também outras pessoas que tivessem um contato próximo com
psicóticos, poderiam viver este tipo de experiência?
Meltzer (apud Fédida, 1988) descreve a transferência psicótica como sendo
adesiva e a relaciona à contratransferência. Segundo ele:
“A transferência ‘colante’ na qual é o analista, mais do que o processo e os
objetos internos, que é sentido como sendo único, manifesta-se através de
uma enorme pressão sobre a contratransferência do analista.”(pág. 77)
30. 30
Assim, a transferência psicótica possui, segundo Meltzer, uma relação muito
próxima à contratransferência.
Winnicott (1947), sobre este fenômeno, escreve: “Pacientes insanos
representam sempre um pesado fardo emocional para os que cuidam deles.”
(pág. 341). Esse “fardo emocional” a que se refere Winnicott poderia ser
observado a partir das manifestações contratransferenciais em uma relação
analítica. Em suas palavras:
“Na análise (análise de pesquisa) ou no manejo comum do tipo mais
psicótico de paciente, uma grande pressão é exercida sobre o analista
(psiquiatra, enfermeira) e é importante que estudemos as maneiras
através das quais a ansiedade de qualidade psicótica, assim como o ódio,
são produzidos naqueles que trabalham com pacientes psiquiátricos
seriamente doentes. Somente desta maneira pode haver qualquer
esperança de se evitar a terapia que se adapta às necessidades do
terapeuta em vez de se adaptar às necessidades do paciente.” (pág. 353)
Também Winnicott considera a existência de uma forma de “pressão”
sentida pelo analista a partir da transferência, mas ele abre a possibilidade de
este tipo de transferência ocorrer em outras relações _ ”psiquiatras, enfermeiras”
_ o que poderia ser pensado para o acompanhante terapêutico.
Neste artigo de 1947, “O ódio na contratransferência”, Winnicott distingue
três diferentes possibilidades de aspectos presentes na relação analítica que
podem estar sendo chamados de contratransferência: 1. as identificações
reprimidas do analista que se atualizam na relação com um paciente, o que
indicaria falta de análise do analista; 2. as identificações do analista que fazem
parte de sua experiência pessoal e possibilitariam a relação analítica e 3. a
“verdadeira e objetiva contratransferência”, ou seja, a partir da personalidade e
dos comportamentos “reais” do paciente, a reação de amor e ódio do analista
baseado em sua observação “objetiva”.
31. 31
Haveria, segundo Winnicott, a possibilidade de uma contratransferência
“objetiva”. No entanto, ele restringe o uso da contratransferência na relação
analítica apenas para o caso da análise de psicóticos e antissociais (1947, 1960).
Segundo ele, a contratransferência em uma relação analítica com um paciente
neurótico perturbaria a objetividade do analista. Em 1960 ele escreve: “(...) o
significado da palavra contratransferência só pode ser o de aspectos neuróticos
que estragam a atitude profissional e perturbam o curso do processo analítico
determinado pelo paciente.” ( pág. 148)
Em 1947 ele já escrevia o seguinte a respeito da importância da
contratransferência na análise de pacientes psicóticos:
“Sugiro que se um analista quer analisar psicóticos ou antissociais, ele
deve conseguir ter uma consciência tão completa da contratransferência
que seja capaz de isolar e estudar suas reações objetivas ao paciente.
Estes incluindo ódio. Os fenômenos da contratransferência, às vezes,
serão as coisas mais importantes da análise.” (pág. 342)
Assim, o entendimento da contratransferência é fundamental quando se
refere a este tipo específico de relação analítica. Inclusive porque, segundo
Winnicott (1947), é preciso estar consciente das reações contratransferenciais
para que elas permaneçam latentes e não sejam atuadas.
Winnicott (1960) escreve que pacientes psicóticos ou borderline precisam de
um movimento de regressão muito intenso e que seria este movimento na
direção da fusão que provocaria a contratransferência da forma em que ela se dá
neste tipo de relação analítica. Segundo ele:
“O psicótico borderline atravessa gradativamente as barreiras que
denominei de técnica do analista e atitude profissional e força um
relacionamento direto de tipo primitivo, chegando até o limite da fusão.”
(pág. 150)
32. 32
Esta possibilidade de uma resposta total exige uma grande disponibilidade do
analista na relação analítica. Winnicott descreve a possibilidade de um “uso”
primitivo do analista pelo paciente em seu artigo “O uso de um objeto” (1971).
Neste artigo, ele afirma que este uso só é possível quando o analista consegue
tolerar que o paciente se relacione com ele de maneira que pertencem a estágios
muito iniciais da vida. Nessa experiência, a busca inconsciente do paciente é a
de encontrar um objeto que possa sobreviver a ser ‘destruído’, e nesta relação é
fundamental que o analista/objeto sobreviva à destruição. Esta vivência pode
exercer grande pressão sobre o analista e ele só deveria entrar neste tipo de
relação na medida em que se sentisse “seguro” de poder suportar as pressões
contratransferenciais existentes em consequência desta relação primitiva.
Winnicott propõe que haveria no analista um ego observador que escaparia à
contratransferência, e que permaneceria “sadio”.
Sobre a regressão do analista, Money-Kyrle (1956) também descreve uma
identificação temporária do analista com seu paciente. Segundo ele, esta
identificação só seria possível em função do analista reconhecer no seu paciente
partes de seu self arcaico já analisado.
Segundo Rocha (1994), Bion mudou de posição com relação ao uso da
contratransferência. Em 1955, no artigo “A linguagem e o esquizofrênico”, Bion
possui uma posição favorável ao uso da contratransferência. Segundo ele:
“O analista que ensaia, em nosso atual estado de ignorância, o
tratamento de tais pacientes, deve estar preparado para descobrir que, em
uma considerável extensão do tempo analítico, a única evidência em que
uma interpretação pode basear-se é a que se propicia através da
contratransferência.” (Bion apud Rocha 1994, pág. 121)
Em 1962 Bion não se utiliza mais da contratransferência, apesar de estar
atento às sensações e sentimentos do analista a fim de interpretar a identificação
projetiva, conceito que será retomado adiante. Segundo Bion (1962):
33. 33
“A teoria das contratransferências apenas oferece explicação satisfatória
pela metade, por voltar-se para a manifestação como sintoma das
motivações inconscientes do analista, deixando pois por explicar a
psicopatologia do paciente.” (pág. 46)
Na revisão de uma série de artigos que foram publicados com o nome
“Estudos psicanalíticos revisados”, Bion, segundo Rocha (1994), haveria
suprimido diversas referências à contratransferência. Ele teria passado a utilizar
o termo, assim como Freud e Klein, referindo-se aos sentimentos patológicos
inconscientes do analista, o que indicaria necessidade de mais análise por parte
do analista.
Rosenfeld, autor que possui muitos pontos de concordância com Bion,
diverge quanto à questão da contratransferência. Ele utiliza o conceito de
contratransferência em sua teoria. Em 1952, Rosenfeld defende o uso da
contratransferência como “aparelho receptor sensível” do analista.
Em trabalho bastante posterior, Rosenfeld (1987) escreve sobre a existência
e o uso da contratransferência:
“Concordo, naturalmente, com muitos outros analistas em que nossa
contratransferência é um aspecto muito importante do nosso trabalho.
Ajuda-nos consideravelmente a entender a diferença entre o que o
paciente nos diz e o que nos vem à mente. Usamos nossa
contratransferência para captar o significado mais oculto do que está
sendo expresso pelo paciente e para ter consciência daquilo que diz. Esse
é um aspecto muito importante de nossa tentativa de descobrir a verdade
psíquica.” (pág. 308)
Rosenfeld, além de escrever sobre a importância da contratransferência,
também defende que em um processo analítico o analista deve ter consciência
de seus sentimentos para que não corra o risco de aceitar o lugar na
transferência atuando contratransferencialmente. Segundo Rosenfeld (1987),
caberia ao analista sustentar o papel atribuído a ele pelo paciente, aceitar seu
34. 34
lugar na transferência do outro sem, no entanto, atuar (acting out) este papel.
Caso isto ocorra, a relação analítica seria levada a um impasse. Segundo
Rosenfeld (1987):
“Às vezes é muito difícil conter as projeções do paciente, principalmente se
o analista ou o paciente ficar muito perturbado com o processo (...). Para
lidar com a situação é fundamental que o analista esclareça para si
mesmo o que sente a respeito do paciente. Então pode elaborar os
problemas por si mesmo.” (pág. 253)
Rosenfeld destaca os momentos em que as projeções do paciente podem ser
difíceis de serem contidas pelo analista, o qual deve estar atento para sua
contratransferência.
Em algumas situações Rosenfeld (1987) considera que a contratransferência
pode ser a melhor forma de se entender a transferência existente. Segundo ele:
“(...) o analista precisará observar muito atentamente seus próprios
sentimentos e reações, porque em situações de forte identificação
projetiva essa pode ser a principal pista que ele tem a respeito da relação
transferencial psicótica.” (pág. 204)
Já citada por Bion e Rosenfeld, a identificação projetiva é um conceito que
possibilita um novo pensamento sobre o que se passa na relação analítica com
um indivíduo psicótico. Afinal, o que é identificação projetiva e quais suas
características?
6 A Identificação Projetiva
Klein em seu artigo “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides”, de 1946,
define pela primeira vez identificação projetiva. Segundo ela:
“A investida fantasiada contra a mãe segue duas linhas principais: uma
é o impulso predominantemente oral para sugar, morder, esvaziar de todo
conteúdo bom. (...) A outra linha de ataque se deriva dos impulsos anais e
35. 35
uretrais e implica a evacuação de substâncias venenosas (excrementos),
que são expelidos do eu e introduzidos na mãe. Em conjunto com esses
excrementos nocivos, expelidos com ódio, as partes destacadas do ego
também são projetadas ou, como prefiro dizer, para dentro da mãe. Esses
excrementos e partes más do eu têm o intuito não só de causar dano, mas
também de controlar e tomar posse do objeto. Na medida em que a mãe
passa a conter as partes más do eu, ela não é sentida como um indivíduo
separado, mas como o eu mau.
Muito do ódio contra algumas partes do eu é agora dirigido para a mãe.
Isso conduz a uma forma particular de identificação que estabelece o
protótipo de uma relação objetal agressiva. Sugiro para esses processos a
expressão ‘identificação projetiva’.” (pág. 322)
Ou seja, a identificação projetiva é uma fantasia na qual as partes
consideradas más do ego do bebê seriam destacadas e projetadas para “dentro”
da mãe, a qual passaria a conter as partes más do eu, não sendo mais sentida
como um indivíduo separado do bebê, mas como perseguidora, como o eu mau.
Também as partes boas podem ser projetadas, o que levaria a um fortalecimento
do ego e a boas relações de objeto.
Segundo Klein, a identificação projetiva não é um problema em si. O que
caracteriza a patologia é o grau em que este mecanismo de defesa é utilizado.
Na psicose há um uso excessivo da identificação projetiva, onde as partes más
do eu são projetadas criando uma forma de relação objetal agressiva.
A partir de Klein, diversos autores passaram a utilizar este conceito. Bion
(1952, 1957, 1959) escreve sobre a identificação projetiva e descreve sua
capacidade de despertar emoções no analista, o que caracterizaria tanto
aspectos defensivos quanto comunicativos da identificação projetiva. Ele enfatiza
a identificação projetiva como uma forma de comunicação. Segundo Bion (1959),
a projeção na identificação projetiva se dá de tal forma que leva o analista a
vivenciar os sentimentos projetados, e este se sente pressionado a atuar estes
sentimentos. Seria uma característica da parte psicótica da personalidade e
atuaria muitas vezes como um ataque aos elos de ligação.
36. 36
A definição dada por Bion (1957) para identificação projetiva é que se trata de
um mecanismo onde “(...) o paciente excinde uma parte da sua personalidade e
projeta para dentro de um objeto onde se instala, por vezes como um
perseguidor, deixando correspondentemente empobrecida a psique da qual foi
excindida.” (pág. 70)
Sobre a função da identificação projetiva, Bion (1959) escreve: “A
identificação projetiva lhe possibilita (ao paciente) investigar seus próprios
sentimentos dentro de uma personalidade forte o suficiente para contê-los.” (pág.
106)
O analista tem a função de ser o continente destes sentimentos projetados
pelo paciente. Estes são projetados por serem insuportáveis e podem ser
considerados, por serem muitas vezes violentos, como um ataque “(...) à paz de
espírito do analista e, originalmente, da mãe.” (Bion 1959, pág. 105)
Ele considera este um conceito fundamental na clínica da psicose. Sobre a
importância clínica deste conceito, Bion (1956) escreve:
“A experiência clínica com essas teorias convenceu-me, na prática, de que
o tratamento da personalidade psicótica não terá êxito a menos que se
elaborem não só os ataques destrutivos do paciente contra seu ego, mas
também o fato de ele substituir a repressão e a introjeção pela
identificação projetiva. E mais, admito que mesmo em se tratando de
neuróticos graves existe uma personalidade psicótica que tem de ser
trabalhada, de modo análogo, para que se obtenha êxito.” (pág. 54)
Assim, este é um mecanismo pertencente à parte psicótica da personalidade
e pode estar presente em neuróticos graves.
Bion correlaciona o uso da identificação projetiva com a incapacidade de
vivenciar a frustração por parte do paciente. Segundo ele (1962), “O impulso do
paciente a subtrair a fantasia onipotente de identificação projetiva à realidade,
diretamente se vincula à sua incapacidade para tolerar a frustração.” (pág. 55)
37. 37
Posteriormente, ele questiona a identificação projetiva como uma fantasia
onipotente, no sentido em que ela efetivamente provocaria sentimentos no
analista e, portanto, deixaria de ser somente uma fantasia. Segundo Bion (1973):
“A teoria de Melanie Klein é que os pacientes têm uma fantasia onipotente,
e o modo de verbalizar essa fantasia é que o paciente se sente capaz de
expelir certos sentimentos desagradáveis e indesejáveis e colocá-los no
analista. Não tenho certeza, pela prática da análise, que se trate apenas
de uma fantasia onipotente; ou seja, de algo que o paciente, de fato, não
pode fazer. Tenho certeza e que é assim como a teoria deveria ser usada -
o modo correto de usar a teoria correta. Mas acho que a teoria correta e a
formulação correta não acontecem no consultório. Tenho sentido, e
também assim alguns dos meus colegas, que quando o paciente parece
estar vivenciando uma identificação projetiva ele pode me fazer sentir
perseguido, como se pudesse, na verdade, expelir certos sentimentos
maus e empurrá-los para dentro de mim, de modo que, na realidade, eu
experimento sentimentos de perseguição e ansiedade. Se isto está
correto, ainda é possível sustentar a teoria de uma fantasia onipotente,
mas, ao mesmo tempo poderíamos pensar na possibilidade de alguma
outra teoria que explicasse aquilo que o paciente faz ao analista, que o
leva a sentir-se assim, ou qual o problema do analista, que assim se
sente.” (pág. 133/134)
Assim, Bion considera a possibilidade de se pensar outra teoria que pudesse
explicar o fato do analista sentir o que é projetado pelo paciente, o que tornaria
esta fantasia onipotente do paciente algo mais que fantasia.
Rosenfeld (1971) também considera fundamental o entendimento da
identificação projetiva ao tratar a parte psicótica da personalidade do paciente, e
escreve sobre as várias formas de uso da identificação projetiva. Segundo ele,
esta pode ser utilizada como forma de comunicação, como foi descrito por Bion.
A continência destas experiências pelo analista altera a qualidade assustadora e
insuportável dessas experiências. Rosenfeld considera fundamental que o
analista seja capaz de colocar em palavras estas experiências através das
interpretações, o que possibilitaria ao paciente tolerar e pensar sobre estas
experiências que antes eram assustadoras e sem sentido
38. 38
Além de ser uma forma de comunicação, a identificação projetiva também
pode ser usada como uma forma de “evacuação”, quando o paciente procura
negar sua realidade psíquica, e como forma de controle do analista, onde a partir
de uma crença onipotente, o paciente acredita ter se forçado para dentro do
analista, o qual neste momento é percebido como tendo enlouquecido. Neste
momento é frequente o perigo de desintegração do paciente. Sobre esta situação
Rosenfeld (1971) observa:
“É a excessiva identificação projetiva no processo psicótico que oblitera a
diferença entre self e objetos, que causa confusão entre realidade e
fantasia e uma regressão ao pensamento concreto devido à perda da
capacidade de simbolização e de pensamento simbólico.” (pág. 130)
Segundo Rosenfeld (1971, 1987), estes três tipos de identificação projetiva
podem existir de forma simultânea ou alternada no mesmo paciente.
Para o autor, a identificação projetiva não é idêntica à simbiose. Isto porque,
para que haja identificação projetiva é necessário que tenha havido alguma
diferenciação entre “eu” e “não eu”, o que não ocorre na simbiose.
Rosenfeld (1987) correlaciona a contratransferência à identificação projetiva.
Sentimentos muito fortes do paciente podem ser transmitidos ao analista através
da identificação projetiva, e isto pode causar dificuldades na contratransferência,
tornando difícil o trabalho do analista e um impasse na relação analítica.
O primeiro ponto descrito é o risco do rompimento da comunicação verbal
entre paciente e analista. Segundo Rosenfeld (1987):
“Ao investigar tais situações, observei que a identificação projetiva
onipotente interfere na capacidade de pensamento verbal e abstrato para
produzir uma concretude dos processos mentais, o que acarreta confusão
entre realidade e fantasia.“ (pág. 195)
39. 39
Ainda segundo Rosenfeld (1987):
“O analista nessa situação pode ter a nítida experiência, em sua
contratransferência, de que não é bom e não tem nada de valor a dar para
o paciente. Até mesmo sintomas físicos podem ser experimentados pelo
analista com tais pacientes, porque as expulsões do paciente podem ser
concretas; ele pode sentir náuseas, assim como o paciente pode
realmente vomitar.“ (pág. 196)
Sobre a situação em que a identificação projetiva é utilizada como forma de
defesa contra a realidade psíquica, escreve Rosenfeld (1987):
“O fato de a identificação projetiva poder ser usada para evacuar e negar
a realidade psíquica tem de ser reconhecido juntamente com o fato de
que, quando o paciente está tentando lançar o conteúdo mental
insuportável para dentro do analista, ele também está forçando a
compartilhar as experiências desagradáveis.(...) Tal comportamento por
parte do paciente é frequentemente entendido de forma equivocada e
interpretado por alguns terapeutas como totalmente agressivo.” (pág. 199)
Rosenfeld (1987) alerta que em uma situação de identificação projetiva muito
intensa, o analista pode não se dar conta dos problemas do paciente até o
momento em que se sente “esmagado“ por eles. Ele sugere que a projeção
recebida pelo analista “espelha” com exatidão os sentimentos do paciente, e
portanto, que o entendimento da reação contratransferencial do analista é um
meio “fundamental” de compreensão das comunicações de pacientes psicóticos
via identificação projetiva. Segundo Rosenfeld (1987):
“Emoções muito violentas de amor e ódio, sentimentos confusionais
agudos e estados mentais gravemente desintegrados podem ser
transmitidos por meio de formas primitivas de identificação projetiva, que
às vezes não são registradas de modo facilmente compreensível pelo
analista. Quando as emoções são particularmente violentas, o analista
pode sentir-se esmagado e ser incapaz de funcionar como continente. Em
tais momentos, o paciente comunica-se não-verbalmente por uma força
hipnótica primitiva. O analista pode, então, apresentar reações
contratransferenciais defensivas, talvez se sentindo irritado. É possível
40. 40
que somente mais tarde ele perceba que o que está sentindo é desespero
e depressão ligados a uma sensação de fracasso.“ (pág. 277)
É essencial que as ansiedades expressas pelo paciente na forma de
identificação projetiva sejam “reconciliadas” na mente do analista, inicialmente
sentindo o que foi projetado e identificando para si o que foi projetado.
7 As sensações provocadas pela identificação projetiva
As descrições existentes sobre as sensações vividas pelo analista na situação
analítica de psicóticos são muitas.
Rosenfeld (1987) descreve alguns dos efeitos do processo de identificação
projetiva no analista:
“A experiência frequentemente produz um forte efeito físico no analista e
provoca sonolência ou mal-estar físico. Pode causar grandes dificuldades
para a capacidade de pensar ou se concentrar. É como se algo tivesse
sido projetado para dentro do analista de modo real e concreto.” (pág. 193)
E continua: “A identificação projetiva pode abranger a transformação do
self e do objeto, acarretando confusão, despersonalização, vazio, fraqueza
e vulnerabilidade à influência, a qual pode chegar a ponto de o indivíduo
ser hipnotizado ou até mesmo levado a dormir.(...) Contudo, quando o
analista adquire experiência na compreensão da maneira como o paciente
psicótico se comunica, está claro que a esmagadora influência da
identificação projetiva diminui.” (pág. 204)
Rosenfeld (1987) ainda cita os riscos para a personalidade do analista, pois a
relação com a parte psicótica da personalidade do outro estimula
“inevitavelmente” os sentimentos de impotência e de onipotência no analista.
Além disso, ele se refere ao medo mais frequente ao se tratar de psicóticos, que
seria o medo de enlouquecer. Segundo ele:
“O paciente psicótico projeta, com frequência, seus sentimentos e
problemas de modo bastante violento, e qualquer analista que tenha medo
41. 41
desse contato com seu paciente pode ficar também seriamente
perturbado, ao tentar tratar de psicóticos. O medo mais frequente, embora
muitas vezes inconsciente, é o de ser levado à loucura pelo paciente.”
(pág. 51)
É bastante curioso como as referências são frequentemente ligadas ao corpo
do analista. Não é uma experiência apenas mental, mas também corporal.
Rosenfeld (1987) descreve o relato de uma supervisionanda sua sobre sua
reação à identificação projetiva da paciente: “Decidi durante a sessão que a
deixaria ir, já que ela não conseguia ouvir o que eu estava dizendo. Depois que
ela se foi, senti uma dor atroz e tive a impressão de que não conseguiria suportá-
la.” (pág. 237)
Neste caso, é difícil a distinção entre a realidade e a fantasia tanto para o
analista quanto para o paciente, porque envolve o corpo. A analista sente em seu
corpo a dor que “seria” da paciente, sem que esta estivesse presente no
momento.
A análise que Rosenfeld (1987) faz da situação: “(...) creio que, quando esta
(a crise da paciente) ocorreu de fato, de início esmagou-a completamente (a
analista), deixando-a com a incrível dor que Claire (paciente) havia projetado
para dentro dela.” (pág. 238)
Esta experiência é bastante confusa, na medida em que parece que há uma
mistura entre as projeções do paciente e os sentimentos e o corpo do analista.
Há autores que se referem especialmente à influência do paciente sobre o
corpo do analista. Fédida (1988) descreve esta influência da seguinte forma: “(...)
somos extremamente sensíveis ao poder das palavras e dos gestos: nosso
próprio corpo se torna uma cena importante sobre a qual se representam as
fantasias mais violentas do inconsciente do paciente.” (pág. 31)
42. 42
Para Fédida, permanecer no corpo seria engano. É necessário que isto seja
transformado em palavra, para assim ser passível de representação, tanto para o
analista quanto para o paciente.
Ainda sobre o aspecto do corpo, Melanie Klein, em 1946, descreve a
concretude física das fantasias inconscientes e que as projeções se dariam
direcionadas a uma parte específica do corpo do receptor, do analista.
É possível pensar que é esta concretude corporal, esta sensação de envolver
o corpo do analista, que caracteriza a transferência “concreta” existente na
psicose, sendo este o “pesado fardo emocional” a que se refere Winnicott em
1947.
Estas descrições das sensações vividas por analistas serão úteis ao serem
comparadas às sensações dos acompanhantes terapêuticos de psicóticos.
8 O sinistro na contratransferência vivido a partir da identificação
projetiva
Haver encontrado estas referências sobre a identificação projetiva me
trouxeram a sensação de haver achado meus pares. Ali estava a resposta que
buscava. Reencontrei minha experiência teorizada. No entanto, a imagem de
dois corpos fechados onde um possuía a capacidade, ainda que não intencional,
de “colocar” coisas no outro me trazia certa estranheza. E esta sensação
associada às descrições de indescritibilidade, de estranhamento das sensações,
me fez levantar a hipótese de ser este fenômeno um fenômeno que poderia ter
sido descrito por Freud em seu artigo “Unheimlich”, traduzido como “O estranho”,
“O sinistro”, ou “Inquietante estranheza”.
Freud (1924) escreve o seguinte sobre o fenômeno do sinistro:
43. 43
“(...) o sinistro não seria realmente nada novo, porém algo que sempre foi
familiar à vida psíquica e que só se tornou estranho mediante o processo
de repressão. E este vínculo com a repressão nos ilumina agora a
definição de Schelling, segundo a qual o sinistro seria algo que, devendo
haver ficado oculto, se há manifestado.” (pág. 2.498, trad. livre)
Segundo Freud, o sinistro não é a experiência do novo, mas do familiar.
Aquilo que é vivido com a sensação de estranhamento estava já presente mas
reprimido. Sobre a relação do sinistro com a psicose ele afirma:
“O caráter sinistro da epilepsia e da demência tem origem idêntica. O
profano vê nelas a manifestação de forças que não suspeitava no próximo,
mas cuja existência chega a pressentir obscuramente nos cantos
recônditos de sua própria personalidade.” (pág. 2.499, trad. livre)
Freud parece apontar para uma familiaridade do “profano” com o louco.
Haveria algo já vivido, mas reprimido, que remeteria qualquer ser humano à
loucura. Ainda sobre o sinistro, ele escreve:
“O sinistro nas vivências se dá quando complexos infantis reprimidos são
reanimados por uma impressão exterior, ou quando comunicações
primitivas superadas parecem achar uma nova confirmação.” (pág. 2.503,
trad. livre)
É possível realizar um paralelo entre a afirmação de Freud e a de Melanie
Klein sobre as ansiedades psicóticas dos bebês. A vivência do sinistro seria
marcada pelo retorno de algo primitivo que foi reprimido.
É possível pensar que, exatamente por se encontrar reprimido, algo de um
estágio muito inicial da pessoa do analista é “despertado” pelo psicótico. Algo
que remeta às relações objetais primárias, e que quando o psicótico nos
aproxima disso através de sua transferência concreta e corporal, tenhamos
manifestações contratransferenciais. A sensação de estranhamento descrita por
alguns analistas, algo que ele sente, mas sente que não lhe pertence, pode estar
relacionada à proximidade do reprimido.
44. 44
Fédida (1988) escreve sobre a experiência do sinistro na contratransferência.
Segundo ele, as teorizações sobre a contratransferência são tentativas de tornar
pensável a experiência subjetiva do sinistro decorrente da transferência.
Sobre o sinistro na relação com transferências “delirantes” ele escreve:
“O sinistro - particularmente perceptível nos casos de transferências
delirantes - faz o analista viver não apenas a sensação de ser
despossuído de seu próprio eu, não apenas de se ver no seu paciente
numa imagem que explicita formações recalcadas, mas o torna prisioneiro
de seus pensamentos de onipotência dos quais não pode mais sair.” (pág.
82)
Fédida fala aqui sobre os riscos de o analista manter-se na situação, tornar-se
prisioneiro da imagem que o outro lhe fornece. Daí a característica de o sinistro
destruir temporariamente a capacidade analítica da contratransferência.
Fédida (1988) afirma que uma das características ameaçadoras desta
vivência na contratransferência é a perda da capacidade do analista de sua
mobilidade mental, em especial a perda da linguagem é sentida como uma
ameaça. Segundo ele:
“A perda da linguagem é certamente o que é vivido como a mais terrível
ameaça. Se o analista chega a se ver vendo-se incapaz de mobilidades
cinestésicas que lhe são habituais, (...) a angústia contratransferencial é
vivida como uma sideração mortífera antes de permitir entender a
necessidade do paciente de criar um duplo simbiótico exatamente igual a
si.” (pág. 76)
A necessidade do paciente é de criar um duplo simbiótico e a do analista de
não se deixar aprisionar neste lugar. Fédida (1988) escreve sobre a dificuldade
do analista em compreender o que acontece nestes momentos e que a prática
clínica deveria ajudar, a descrever melhor o fenômeno do sinistro vivenciado pelo
analista no tratamento.
45. 45
9 A Interpretação
A partir de uma experiência na contratransferência proveniente de uma
identificação projetiva, o analista poderia utilizar isto para interpretar
verbalmente? Seria a interpretação uma possibilidade de tornar o fenômeno
consciente e assim evitar a situação de impasse de que fala Rosenfeld (1987),
onde o analista perderia sua capacidade analítica?
Segundo Winnicott (1947), a contratransferência deve ser observada e
“guardada”, podendo ser utilizada para uma interpretação em um momento
adequado.
Posteriormente, Winnicott parece considerar mais importante a questão
ambiental da análise do que a interpretação verbal. Em 1971, em seu livro “O
brincar e a realidade”, ele propõe a situação de “uso do objeto” onde, a partir da
possibilidade de “uso” do analista, o paciente se ligaria ao princípio de realidade.
Winnicott formula o seguinte neste artigo: o uso de um objeto é diferente de uma
relação de objeto. O analista deveria permitir seu “uso” por pacientes
“fronteiriços”, e isto consistiria em “O analista (...) precisa relacionar-se à
capacidade do paciente de colocar o analista fora da área dos fenômenos
subjetivos.” (pág. 122) Ou seja, permitir ser usado é poder ser “destruído” pelo
paciente. Destruição nesta teoria está intimamente ligada à possibilidade de
criação. É fundamental para o paciente que o objeto seja destruído e possa
sobreviver, pois isto permite que o paciente se dê conta de sua não onipotência,
que seu desejo de destruição não possui este poder sobre o mundo. Este é um
dado de realidade capaz de transformar a realidade psíquica porque existe a
transferência sobre o objeto, o analista, o qual inicialmente se confunde com as
projeções do paciente. O princípio de realidade pode ser alcançado a partir da
destruição das projeções para que o analista se torne externo à própria
transferência e adquira vida própria. Poder sustentar este lugar na transferência,
46. 46
e não sucumbir atuando contratransferencialmente, por exemplo, é ser analista.
É a sobrevivência do analista aos ataques que está em jogo, e é fundamental
que isto ocorra para que se dê alguma melhora para o paciente. A destruição
“real” do analista, quer por uma ausência concreta ou por uma não
permeabilidade deste a esta transferência, apenas confirmaria o trauma inicial.
Neste momento da teoria a capacidade do objeto de sobreviver, representado
pela figura do analista, é muito mais importante do que a interpretação.
A partir do texto de Winnicott (1971) sobre o uso do objeto é possível pensar
que se encontramos no acompanhante terapêutico um tipo de
ataque/comunicação semelhante ao descrito na psicanálise, o que, segundo
Bion, seriam ataques à percepção e ao pensar através do processo de
identificação projetiva, é analítica a sobrevivência do AT aos ataques que sofre.
É possível pensar que o trabalho conduzido a partir do princípio da sobrevivência
do objeto permite uma conexão do acompanhado com o princípio de realidade.
Bion possui uma posição diversa da apresentada por Winnicott. Segundo ele
(1957) o analista em uma interpretação devolve para o paciente o que foi
projetado e nisto se constitui o trabalho analítico: proporcionar o retorno destas
partículas de ego expelidas e que está agregado a elas de volta à personalidade.
Segundo Bion (1957): “A identificação projetiva é, assim revertida, e esses
objetos são trazidos de volta pela mesma via pela qual foram expelidos.” (pág.
83). O processo de reintrojeção do que foi projetado provocaria, muitas vezes,
uma intensa reação por parte do paciente, que sente a entrada do objeto como
um “assalto”.
Bion também considera, como Winnicott, a necessidade de contensão, por
parte do analista, das projeções do paciente, mas a interpretação seria um passo
fundamental no tratamento.
47. 47
Rosenfeld (1952) possui uma posição bastante semelhante à de Bion. Ele
também considera a interpretação um aspecto fundamental na relação analítica
com psicóticos. Segundo ele (1971):
“(a) interpretação verbal dos processos de identificação projetiva quando
estes aparecem na transferência, o que considero como sendo de
importância central na elaboração dos processos psicóticos na situação
transferencial.” (pág. 127)
Para Rosenfeld (1987), as “experiências inquietantes” que são criadas pelo
paciente no analista, desaparecem na medida em que o analista consiga
compreender o que se passa. As projeções devem ser verbalizadas pelo
analista, para si mesmo, o mais rápido possível, ou ele não entenderá o que se
passa com o paciente e não poderá interpretar.
Rosenfeld (1987) também afirma que há pacientes que vivenciam a
interpretação verbal como uma separação do analista, o que pode ser vivido
como uma rejeição ao desejo de unidade não verbal. Nesses casos, a
interpretação verbal poderia ser prejudicial. No entanto, quando o analista
consegue transmitir o que o paciente sente e precisa, este pode receber a
interpretação como uma forma de acolhimento e contenção. Para isto, é
importante que o analista tenha a capacidade de usar seus próprios sentimentos
para compreender a comunicação não verbal de seus pacientes.
O caminho apresentado por Rosenfeld é, a partir da identificação projetiva,
perceber como esta se manifesta na contratransferência, nomeá-la para si, e
então elaborar uma interpretação que devolva ao paciente o que ele havia
colocado fora.
48. 48
METODOLOGIA
Para a realização deste trabalho, a metodologia utilizada foi entrevista semi
dirigida. Os sujeitos entrevistados são acompanhantes terapêuticos, M e H, que
realizam trabalhos com psicóticos. A partir destas duas entrevistas, uma foi
escolhida, a de H, para que fosse realizado um estudo de caso aprofundado.
I Sujeitos de pesquisa
Para que o sujeito entrevistado pudesse servir como sujeito de pesquisa,
considerei ser necessário que o AT desse importância à questão do vínculo no
tratamento. Isto porque há correntes teóricas que valorizam o distanciamento e a
aplicação de procedimentos comportamentais na relação com os pacientes.
Como eu buscava investigar, não apenas as reações emocionais do
acompanhante à relação de acompanhamento, pois talvez isto independa da
linha teórica seguida, mas também, como estas mesmas reações poderiam ser
convertidas em tratamento, achei que seria importante que o AT entrevistado
estivesse atento às mobilizações afetivas que pudessem haver ocorrido durante
seus acompanhamentos.
Foram realizadas duas entrevistas onde a questão inicial foi relativa ao que
este sujeito acreditava ser o que tratava no seu trabalho como acompanhante.
Isto, para investigar a importância dada à questão do vínculo. Ambos os sujeitos
entrevistados deram grande importância ao fator relacional no tratamento. A
entrevista escolhida para ser analisada, o foi em decorrência de H possuir
experiência como acompanhante terapêutico de psicóticos e como analista de
pacientes psicóticos em seu consultório. Isto possibilitou que ele relatasse sua
percepção das diferenças e semelhanças entre os dois trabalhos. Na medida em
que este é um dos aspectos que esta pesquisa busca enfocar, o fato de H
também ser analista se tornou um fator determinante na escolha da entrevista.
49. 49
H é acompanhante terapêutico há seis anos e trabalha tanto com pacientes
psicóticos quanto com deficientes mentais.
II Entrevista
Não havia questões elaboradas antes da entrevista, mas tópicos a serem
abordados. No decorrer da entrevista as questões foram formuladas a fim de
investigar os tópicos considerados relevantes. A entrevista foi gravada e
posteriormente transcrita.
Os pontos investigados podem ser divididos da seguinte forma:
1. O que caracteriza o trabalho do acompanhante terapêutico de psicóticos?
2. O acompanhante já notou alterações do pensamento, do sentimento ou
teve sensações corporais incomuns no decorrer de algum
acompanhamento realizado com um psicótico?
3. Caso tenha havido alguma percepção particular, como isto foi entendido?
4. O que pôde ser feito a partir desta percepção?
Esta pesquisa visa descrever e analisar a partir de um ponto de vista
psicanalítico as alterações emocionais de acompanhantes terapêuticos, que
trabalham com pacientes psicóticos.
III Metodologia de análise e discussão da entrevista
A análise e a discussão da entrevista foram realizadas simultaneamente. Isto
porque não havia sentido em separar os dados fornecidos por H, da tentativa de
correlacioná-los com a teoria da psicanálise, apresentada no item “Aspectos
teóricos”.
50. 50
A análise e discussão da entrevista está dividida em quatro partes. Cada
parte visa enfocar um diferente aspecto do acompanhamento terapêutico,
abordado por H.
A primeira parte, “O trabalho do AT”, se refere à forma como H pensa este
trabalho. O que o faz pensar que esta forma de tratamento seja eficaz no
tratamento da psicose.
A segunda parte, “O que sente o AT?”, se refere às sensações “estranhas”
vividas no trabalho como AT por H: Elas existem? Como são descritas estas
vivências?
A terceira parte, “Hipóteses sobre o sentir: particularidades do
acompanhamento terapêutico”, é a formulação de hipóteses sobre fatores que
poderiam favorecer o surgimento das sensações de “estranhamento” descritas
por H. As hipóteses foram divididas em cinco grupos: a intimidade: o espaço e o
corpo; a relação da dupla com o social; duração: tempo e temporalidade; o lugar
do AT e a dificuldade em nomear.
A quarta parte, “O que fazer com ‘isso’?”, descreve e discute o que é possível
ser feito a partir destes sentimentos, descritos por H, no acompanhamento
terapêutico.
Ao final do trabalho, na conclusão, busca-se correlacionar os dados
encontrados na análise com a questão que originou a pesquisa. Na conclusão
também são levantadas questões para novas possíveis investigações dentro do
campo do acompanhamento terapêutico.