1) O documento discute o período do governo Figueiredo no Brasil e as concessões feitas pelo regime militar à época, incluindo anistia a presos políticos e promessas de abertura democrática.
2) Analisa três áreas críticas que o governo Figueiredo teve que lidar: relacionamento com instituições da sociedade civil, questão dos partidos políticos, e questão social.
3) Comenta que o governo adotou uma política variável nessas áreas, ora fazendo concessões ora repri
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Os Anos Figueiredo
1. Anos modorrentos, em que pouco a pouco vai-se vendo que o
rumo traçado é uma via de muitas faixas, todas elas levando ao
mesmo: a ordem acima de tudo, querida por todos,
se possível; imposta na marra, se necessário. Ordem com lei,
por certo. O arbítrio de outrora — os anos de
incerteza — deu lugar a certa previsibilidade e a certas
garantias: o cidadão será respeitado (relativamente) e a ordem
estabelecida será mantida (absolutamente).
NOVOS ESTUDOS N.° 1
2. Marx, para amesquinhar, chamava Na- Da Distensão Para a Abertura
poleão III de quot;Souluquequot;, que fora impe-
rador do Haiti. Com carga dobrada de pre- Deixemos de lado, por já sabida, a trama
conceito, também Bolívar foi qualificado imediata da ascensão de Figueiredo. Re-
por ele como quot;o verdadeiro Souluquequot; cordemos apenas que, no plano político,
Engels é autor de frases parecidas. Entre- ela teve dois desdobramentos básicos no
tanto, nem o preconceito, injustificável, tempo de Geisel: a “operação encanta-
que levava a comparar Bolívar com o “rei mento” , pela qual os fiandeiros da tecela-
negro”, para insistir no tom desdenhoso, gem do rei, Portella e Golbery, abriram o
nem o ódio votado a Napoleão III, tolda- “diálogo” com a “sociedade civil” à mar-
vam o descortino de Marx. Criticando Vic- gem do Congresso, dos partidos — mas
tor Hugo, que considerava o golpe de Esta- também do Sistema —, e a quot;operação des-
do do 18 Brumário como o ato de força de baratamentoquot;, pela qual os granadeiros
um só indivíduo, que caíra sobre a História do rei decapitaram, um a um, os generais
de repente, como um raio em dia de céu se- rebeldes, fossem ministros, chefes da casa
reno Marx dizia: militar ou simplesmente ex-qualquer coi-
quot;Eu, pelo contrário, demonstro como a sa. Do quot;pacote de abrilquot; de 1977 às quot;elei-
luta de classes criou na França as circuns- çõesquot; de outubro de 1978, acionaram-se os
tâncias e as condições que permitiram a um mecanismos decisivos da transição: condi-
personagem medíocre e grotesco represen- ções para o fim do AI-5, controle do siste-
tar o papel de heróiquot;. ma eleitoral, volta do habeas corpus, tole-
Do lado de cá do Equador, nem os falsos rância relativa frente às primeiras greves,
Napoleões entram em cena. A quem, em para só falar dos principais.
nossa história recente, caberia sequer cha- No fim do processo, a operação surpresa
mar de Luís Bonaparte? A qual de nossos era já segredo de Polichinelo: o áspero ge-
generais-presidentes caberia o apodo? E neral Figueiredo recebera a quarta estrela,
qual deles teria representado o papel de assistira impávido aos boiardos de quepe
herói, embora fosse quot;personagem medío- ou de paletó-e-gravata beijarem a cruz do
cre e grotescoquot;? sisudo e prussiano Czar, elegendo todos
aqueles que quot;seuquot; lobo mandou. Cingi-
Geisel, que pelo nome e pela postura do aos baldes de ouro, como os Czarevitch
poderia confundir-se no panteão das figu- antigos, o novo Príncipe declarou logo que
ras guerreiras de outrora, foi quem mais se era plebeu: as verdes lentes escuras vira-
aproximou de ter desempenhado um certo ram cristais brancos, o fardamento — tão
papel pessoal na história: bem ou mal, nova a quarta estrela, que pena! — virou
opôs-se à surda aliança entre a burocracia e peça de museu e até mesmo, como nos ritos
a repressão. Em certo momento, quase se de passagem de grupos primitivos, houve a
pôde dizer dele com alívio: regem habe- re-denominação: qual general Figueire-
mus. E data de seu tempo o projeto de do, qual nada; João, simplesmente João.
abertura. Por trás do trono, Golbery e Por- Por trás da cena, muita coisa mais mu-
tella — o senador — fiavam sem parar as dou. Mudou o Brasil, mudou o vento do
redes da armadilha institucional em que mundo, mudaram as circunstâncias.
caímos. Ao contrário do que era de imaginar
Mas, se o desenho inicial da rota se fez até 1978 — e principalmente entre 1977 e
nos tempos de Geisel, a travessia faz-se 1978 — a transformação da distensão em
agora, na época de Figueiredo. abertura conseguiu solidificar apoios, sus-
Não será essa, precisamente, a dificulda- peitos e insuspeitos. O novo Governo
de para interpretar a história recente? Não emergia trazendo um sinal de paz para os
será que, em nossa política terra-a-terra, a donos do poder, sob os escombros da re-
falta do personagem mostra logo o autor e, sistência de alguns setores militares e sob
de repente, como se a história se fizesse sem o fogo de uma oposição unificada e derro-
agentes pessoais, se descobre que o projeto tada. Figueiredo era tanto Médici como
não é de ninguém e é de todos e por isso Geisel e, nessa última medida, era tam-
mesmo abomina e repugna a cada qual que bém Castello e, mais ainda, ao chamar
se descobre parte, e parte culpada, por tão Delfim para o gabinete, era ainda tudo o
melancólico desenrolar? que fora o milagre, de Costa e Silva a Mé-
Mesmo que assim seja, cabe inquirir, à dici.
boa moda antiga, pelas circunstâncias e Até aí, os insuspeitos. Bastiões do pró-
condições que fizeram de joão-ninguém prio regime, mais que apenas de Gover-
rei e senhor do aqui e do agora. nos. Mas Figueiredo veio para propor a
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negociação. Para ter sustentação fora do mais para que sejam expostos à execração
círculo imediato dos incondicionais, pre- pública.
cisava luzir ao público as virtudes do uo- O regime concedeu, também no plano
mo qualunque e não do general toni- político-institucional. Por três vezes o
truante. Essa ampliação da base do gover- presidente João negou que quisesse outra
no requereu prévia operação tática de vul- coisa além ou aquém da democracia. Es-
to. A operação quot;mídiaquot;. Criou-se o pre- tendeu a mão a todos. A princípio, ape-
sidente volante, homem-massa. Surtiu nas o gesto, prejudicado pela imagem de
efeito? outro personagem, que também três ve-
Até certo ponto. Até Florianópolis, zes negara ter traído. Depois, mais que
com certeza. Depois, cautamente. Não se gestos: eleições diretas para governadores,
quot;vendequot; um presidente como um sabo- reiteradas declarações de que o calendário
nete. Mas se paga a pauta da grande im- eleitoral será seguido, apelos à concórdia.
prensa e dos meios de comunicação. Com A opinião pública hesita em dar-lhe
sorriso, com informação exclusiva e... apoio. O presidente anuncia a democra-
também com anúncio. O presidente da cia, mas não impede prorrogação de man-
abertura é humano: sorri, xinga, até se datos de prefeitos — senão que a estimu-
desnuda com halteres. E fala! É melhor la; acena com as prerrogativas do Con-
que a estátua de Michelangelo. gresso, mas derrota as emendas que as res-
Mas política não é apenas símbolo: é tauram, mesmo quando propostas por
também transa e concessão. E o regime seus correligionários; faz aprovar o Estatu-
transou e concedeu. to Infame, dos estrangeiros, embora logo
Concedeu — sob pressão — a anistia. em seguida o ministro sucedâneo, Abi-
Curioso e paradigmático processo: pri- Ackel, comece a negociar com as oposi-
meiro, o anúncio vago, como a correspon- ções o abrandamento da lei. E assim por
der aos um, dois, três, muitos CBAs. De- diante.
pois, em off, a redonda negativa: os que Em suma: fronda conservadora no Mi-
ergueram o braço armado jamais serão nistério, como prato de substância, ima-
perdoados; seria uma ofensa às Forças Ar- gem popularesca, desafogo na repressão e
madas. Mais adiante, novamente — até uma política de concessões democráticas,
com lances de anteprojetos esquecidos em sob controle.
mesas de fácil acesso — a intenção rege- Para chegar a tal ponto, feita a anistia à
neradora, o perdão sem mácula. Envia-se moda da casa, havia três áreas críticas a re-
proposta ao Congresso, por fim. A lei não solver no plano político (sem falar no que
é ampla, nem geral nem irrestrita. Árdua logo virá, o plano econômico). A primei-
batalha, perdida pela oposição que ten- ra, o relacionamento com as quot;grandes
tou ampliá-la. instituiçõesquot; da sociedade civil. A segun-
Só que, à margem da Lei da Anistia, da, a questão dos partidos. A terceira, a
depois da derrota política das oposições, quot;questão socialquot;.
revêem-se administrativamente os prazos Quanto à primeira área crítica, a políti-
das penas e, um por um, os prisioneiros ca adotada foi variável, na linha do stick
são soltos, um por um os asilados retor- and carrots. Muita cenoura para os meios
nam. Só não retornam os desaparecidos, de comunicação de massa, como já disse;
os mortos do regime. Nem se desfazem as habeas-corpus para a OAB; bombas tam-
marcas da tortura, na carne e na alma. Por bém, mais tarde (embora vindas dos res-
antecipação, temendo alguma revanche, tos do Sistema e não do Governo); bom-
são anistiados também os autores de cri- bas e puxões de orelhas para a ABI; e,
mes quot;conexosquot; aos políticos: os tortura- principalmente, pauladas na Igreja. Entre
dores e os assassinos. as quot;grandes instituiçõesquot; essa é a área de
maior resistência aos desígnios oficiais.
As concessões do regime Não apenas pela quot;circunstânciaquot; brasileira
da miséria, dos posseiros, dos lotea-
Bem ou mal, contudo, foi superado o mentos clandestinos, das comunidades de
trauma do reingresso dos marginalizados base. Mas também pela política geral do
à vida política. Ficaram as marcas, as in- Vaticano que, à sua moda, como organi-
deléveis, já mencionadas, e os bolsões de zação hierarquizada e autoritária que
“patriotas sinceros mas equivocados”, ul- também é, prepara-se para o novo século:
tradireitistas inconformados, artilheiros à a Igreja será dos povos, mais que dos Esta-
tocaia, ainda hoje ativos intermitente- dos (posto que estes são leigos e agnósti-
mente e sempre preservados: sabem de- cos, quando não antideístas). E principal-
NOVOS ESTUDOS N.° 1
4. mente porque, para além do Vaticano, ela traído a democracia mais do que o
existe a Teologia da Libertação, e uma Presidente suas promessas?
parte significativa da cristandade fez uma Custa crer; custa escrever. Mas a demo-
opção contra a exploração e os poderosos. cracia que teremos é a democracia que nós
Nesse contexto, o governo Figueiredo queremos. Escrevo com raiva este quot;nósquot;
procura, simultaneamente, dialogar com — abusivamente, irritantemente inclusi-
os setores dialogáveis da Igreja, expulsar vo. Não é no plano da subjetividade que
padres, se necessário, e não conceder a queremos a contrafação que está sendo
transferência das funções diretivas do Es- montada. É no plano objetivo, que torna
tado para a Igreja e desta para as comuni- os cálculos realistas peças do regime da
dades. quot;democracia conservadoraquot;: visam à vi-
Quanto à segunda questão, a dos parti- tória dentro deste regime.
dos, embora mais espalhafatosa que a da A mesma sociedade que vomitou a tor-
Igreja, foi equacionada com mais facilida- tura, que congelou os generais-presiden-
de pelo Governo. O cronograma era cla- tes, absorveu (não diria aceitou) a demo-
ro: primeiro a anistia, depois a quebra do cracia dos joões-ninguém e, ato contínuo,
MDB, depois a via crucis da formação dos desinteressou-se, talvez enojada, das ins-
novos partidos e só depois a lei eleitoral... tituições. Largou-as — partidos, eleições,
A relação entre anistia e reforma parti- tribunais, imprensa — ao cozimento no
dária era direta: os velhos líderes, os do próprio caldo das ambições, dos sonhos,
Exterior e os marginalizados no País, não dos interesses. E fez-se de novo o muro en-
aceitariam alinhar-se com os da quot;resistên- tre, por um lado, a vida cotidiana e por
cia democráticaquot;, os que não se exilaram outro, o Estado e suas adjacências.
nem foram expulsos da vida pública. Dito Desse ângulo, os anos Figueiredo não
e feito. Com algumas exceções, a armadi- foram a vertigem dos anos iniciais do Rei
lha funcionou. E quando, por ingenuida- de Espanha restaurador da democracia,
de, acreditava-se que o quot;novoquot; surgiria nem o ardor dos cravos de abril de Portu-
com ímpeto, juntando a parte mais com- gal, nem nada que se lhes pareça. Talvez
bativa da resistência democrática com os sejam os anos sensaborões de Caramanlis.
quot;históricosquot;, viu-se que nada disso ocor- Ou talvez pior, pois ao lado da dimensão
reria. Para exorcizar tal risco, os fiadores da política, existe a da democracia e com
do regime não se pejaram de manipular e ela a da sociedade. Quem sabe o que ne-
as oposições de claudicar: o que seria o las nos espera?
PTB de Brizola virou partido-auxiliar do Antes de esmiuçar mais as causas dessa
PDS, com Ivete e Jânio Quadros; o que entrega sem prazer da sociedade ao po-
seria um forte movimento trabalhista no- der, convém pôr uma pitada de sal na
vo virou um PT demasiado principista para análise. A quot;questão socialquot; é a pedra no
ser forte sindical ou popularmente e, no meio do caminho do regime.
outro pólo, o trabalhismo histórico re- De onde vem, precisamente, a força da
novado virou um PDT demasiadamente Igreja? Por que D. Paulo e D. Pedro (Ca-
feito à medida de um só líder para dar ca- saldáliga) representam tanto, sendo prín-
bida à renovação pela base. O PMDB, cipes e não delegados do povo?
frente que aspira a ser partido, tornou-se Porque eles ecoam, em tom diverso, a
demasiado partido pelo que não une: a ladainha do sofrimento do povo: é a terra
expectativa de ser poder, sem poder dizer ambicionada da qual o posseiro é enxota-
que poder será. do; é a grande injustiça da fome — de
Mas não foram apenas os fiadores do terra e às vezes de gêneros também — ao
regime que manipularam. Fosse assim, e lado da abundância gerada por uma acu-
a introdução deste artigo não teria senti- mulação vultosa que hoje derrama seus
do: estaríamos mesmo diante de execrá- excedentes pelos ladrões dos tanques da
veis grandes homens, senhores do destino poupança na vastidão do mundo rural; é
da Nação. Ocorre, entretanto, que por ra- a periferia inóspita da grande cidade, vi-
zões mais profundas, quando se abre a veiro de ambições, calvário de muitos fe-
Caixa de Pandora da redemocratização ou dores de esgoto a céu aberto, de subnutri-
da democratização, começa-se a perceber ção da herança genética das classes subal-
que falta hoje à política Virtù e sobra, a ternas, cloaca de todos os desesperos dos
alguns, Fortuna. que se preocupam com as políticas sociais.
Por quê? Por que não houve maior re- Isso o regime não mudou, senão que,
sistência aos golpes e contragolpes do Pla- em certos casos, pela força mesma da acu-
nalto? Seria toda a oposição obtusa? Teria mulação que se espraia, revolveu e expôs,
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sem dar saída. E é por isso que a cada mo- denou a cessação de negociações por parte
mento vozes que vêm do fundo do poço dos patrões, fez o Tribunal do Trabalho
exclamam: quot;abertura? para quem?quot; As engolir a decisão prévia de que era incom-
Severinas que morrem cavam hoje, como petente para julgar da legalidade da greve
ontem, seu palmo de sepultura na única metalúrgica de 1980, interveio nos sindi-
terra que possuirão. Os habitantes da pe- catos e mostrou que esta terra tem dono:
riferia, se acaso tombam — muitas vezes nela o Estado manda mais que as classes.
vitimados pelas balas que as rotas e rondas Mas seria equivocado pensar que a polí-
da vida disparam para dar-lhes em princí- tica social do Governo Figueiredo faz-se
pio mais quot;segurançaquot; —, sequer têm o apenas com a borduna. Também no Bra-
consolo antigo de ver dividida a parte que sil os inimigos mandam flores: bem ou
lhes cabe no latifúndio da morte. mal o reajuste semestral minora as agruras
Mais ainda: a própria industrialização causadas pela inflação, o quot;arrochoquot; de
coagulou e engrossou nódulos das classes outras épocas deu lugar à política do con-
trabalhadoras que não foram — dificil- feito e do confete. E acima de tudo — co-
mente serão — absorvidos pelo regime, mo é clássico — reina neste terreno o divi-
nem lhes darão sustentação: a quot;nova clas- de et impera: cada categoria é uma reali-
se operáriaquot;. Está aí, ao alcance da mão, dade à parte, cada caso um caso, em cada
o ABC indomável. Ontem foram as gre- intervenção uma junta diferente. Diga-se
ves, a comunidade fundida com a fábrica: de passagem: do outro lado, o das lide-
o padre, o líder operário e o político da ranças sindicais e políticas, também reina
resistência, unidos de repente, afora e aci- o dividir, não para imperar, mas para im-
ma das siglas partidárias, das correntes pedir que alguém impere. Pior ainda: a
ideológicas, diante do fato bruto da ex- reivindicação máxima, a da autonomia,
ploração. Hoje, quando os sindicatos fo- da negociação direta entre patrões e ope-
ram decapitados e os partidos separaram o rários, faz-se no preciso momento em que
que deviam unir, novamente surge a voz o capitalismo oligopólico restabelece a
da altivez no voto: os trabalhadores da fá- norma de que, mesmo para os patrões,
brica mais quot;modernaquot; recusam compac- quot;fora do Estado não há salvaçãoquot;. Assim,
tuar com os cortes salariais e exigem que o nem bem os operários gritam seu berro de
Governo, que ontem subsidiou os patrões autonomia na sociedade civil, vêem-se,
em nome do desenvolvimento, subsidie o eles próprios, na contingência de pedir
emprego, em nome da justiça. que à mesa de negociações sentem-se re-
presentantes dos empresários, dos sindi-
Uma discussão sem seiva catos e... dos Ministérios.
Retomemos agora o fio da meada. Por
Seria incorreto imaginar que diante que, depois da liberalização de Geisel e
desse quadro o regime não entendeu, não da proposta de democracia conservadora
transou, não concedeu. Também aqui se de Figueiredo — que visa a separar o mo-
aplica o stick and carrots. Antes mesmo vimento das instituições políticas da mo-
de ser novamente o dono e senhor da vimentação social — ao invés de o ímpeto
quot;economia do encolhimentoquot;, o poderoso transformador ter tomado conta da socie-
chefão da dívida externa e da inflação dade, vê-se a modorra de uma discussão
propôs o quot;pactoquot;. Conversou com Lula, sem seiva e a descrença do homem da rua
Arnaldo e outros mais pedindo que a tro- minando propostas mobilizadoras?
co das cenouras (programa de habitação Responder dizendo que é porque as
popular, aumentos reais e módicos dos sa- classes subalternas quot;já eramquot; como mo-
lários, talvez negociações diretas entre tor da história, ou quot;ainda não sãoquot;, é
operários e patrões) os trabalhadores ce- simples, insuficiente e, no limite, falso.
dessem nas greves. Os exemplos de luta pululam, no campo
Doce ilusão: não estamos na Europa so- e na cidade. Dizer que quot;não há propostas
cial-democrãtica. Não haveria líder que se políticas adequadasquot; é mergulhar no sub-
agüentasse depois de tal pacto. Nem dá jetivismo mais vaidoso, pois quem assim
para acabar, por decreto, com a luta de pensa no fundo imagina que sabe, senão
classes. Eis aí a circunstância: ao invés de a solução, pelo menos seu encaminha-
ceder, o ânimo dos trabalhadores cresceu mento. E o que se vê na prática cotidiana
em 1979 e mais ainda em 1980. é que as mais diversas propostas mobiliza-
Diante disso, o ministro do Trabalho doras e transformadoras naufragam no
(que virou do Capital, nas palavras do desencontro de interesses e na desconfian-
bispo Angélico) não se fez de rogado: or- ça que cada grupo nutre pelo outro.
NOVOS ESTUDOS N° 1
6. Não seria mais frutífero voltar a pensar De quem é o regime, hoje?
nas condições que permitem a vigência de
um processo de abertura política tão me- Quem, em sã consciência, imagina que
díocre e que o tornam, apesar da crítica o regime hoje ainda é militar, no sentido
verbal, a bússola do rearranjo político da de que é a burocracia fardada quem lhe
sociedade? dá o rumo? O que o coronel comandante
Sobra repetir, mas vamos lá. O Brasil do batalhão de fronteiras tem a ver com
sofre hoje as conseqüências de dois terre- os quot;furosquot; do orçamento monetário para
motos: o do desenvolvimento dependen- subsidiar empresas? Tudo, no sentido de
te-associado e o da crise do capitalismo in- que sem o saber — e talvez sem o querer
ternacional. Pelo primeiro, novas classes e — a repressão militar e a ditadura foram
frações de classe foram decantadas: a bu- obra sua, e nada, no sentido de que hoje
rocracia é hoje parte integrante do modo em dia sua voz não fede nem cheira nos
de produção capitalista-oligopólico. Bu- altos conciliábulos da república. E desde
rocracia estatal, burocracia privada das Geisel nem sequer o Alto Comando tem
empresas e burocracia do setor produtivo vez e voz, nem na economia, nem na po-
estatal; a grande empresa (pública e priva- lítica. Houve, nesse aspecto, uma transi-
da, nacional e estrangeira) fornece a ar- ção. E transição importante.
mação fundamental do sistema: é o pau- O regime, hoje, é do grande capital oli-
mastro do circo. Mas ela dá apenas a gopólico, instrumentado por seus técni-
quot;anatomiaquot; da sociedade civil, não lhe cos, articulado dentro do Estado por seus
dá o quot;movimentoquot;. Este depende de co- políticos, que não são os políticos profis-
mo se articulam politicamente os interes- sionais, a quot;classe políticaquot;, mas os mem-
ses da Grande Empresa: quem fala por bros dos múltiplos serviços de informação
ela, como dinamiza as forças auxiliares, o (militares e civis), funcionários de vários
que propõe. E depende, ainda, das forças palácios, jornalistas a serviço da quot;comuni-
que se lhe opõem. dade de informaçãoquot;, as cúpulas das em-
presas estatais e dos Ministérios etc. O
Dada a peculiar articulação entre o in- presidente João é, de fato, o ex-general
teresse público e o privado gerado pelo Figueiredo. Ele impera, nesse aspecto, co-
capitalismo oligopólico nos países da peri- mo a rainha da Inglaterra impera sobre a
feria do sistema econômico internacional, City: assina em cruz, mas confia, porque
mesmo essa diferença entre a sociedade ele pertence ao núcleo dos que puseram
civil (as classes) e a sociedade política (o as Forças Armadas à margem e enlaçaram
Estado) esfuma-se: a empresa pública os grandes interesses civis e estatais por in-
alia-se à privada ou com ela entra em termédio de uma parte da burocracia civil
pugna; ambas isoladas ou, em certas cir- e militar que virou política.
cunstâncias, conjuntamente, guerreiam Que tem isso a ver com a crise? É que a
ou dão suporte a Governos; interesses pú- crise cerceia os passos dos donos do Estado
blicos e privados fundem-se através dos e não só do Governo. Desde 1974 já esta-
quot;anéis burocráticosquot;. va rompido o equilíbrio do milagre: não
O Estado aparece, assim, sob a forma dá para todos ganharem ao mesmo tempo
de capitalista individual, juridicamente em épocas de vacas magras.
proprietário da empresa estatal, e sob a O projeto da abertura (que, diga-se de
forma de burocracia gestora dos interesses passagem, para evitar qualquer mecanicis-
coletivos e especialmente dos interesses mo, era anterior à crise econômica mun-
capitalistas coletivos, como parte da socie- dial, sequer a previra e portanto não re-
dade civil. sulta dela) pegou a sociedade de calças
E ainda por cima, pelas razões que não curtas: o povo esteve sempre insatisfeito;
cabe repetir neste artigo, uma parte es- a quot;classe políticaquot; contra o regime, então
sencial da quot;fisiologiaquot; desse sistema é o sim, claramente militar-tecnocrático-oli-
nevrálgico jogo monetário e financeiro no gopólico-empresarial; o empresariado,
qual toda uma classe de prestamistas do desanimado com a expansão do quot;setor
Estado ou de prestamistas simplesmente, públicoquot;; este último, na berlinda, asso-
mas sempre sujeitos à regulamentação do ciado ao grande capital e politicamente
Estado, passa a ser a parceria do Governo: acovardado. Se a quot;aberturaquot; surge como
banqueiros de todos os tipos, nacionais e projeto palaciano, ela foi se transfiguran-
estrangeiros, agentes financeiros vários e do, aos trancos e barrancos, até virar a pe-
investidores privados formam essa fauna dra de salvação de todos para a quot;próxima
privilegiada. etapaquot;. Perdida a substância repressiva
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da quot;Revoluçãoquot;, marginalizada a corpo- ções específicas de sociabilidade criadas
ração militar e desfeito o milagre econô- pelo capitalismo oligopólico quot;moderni-
mico, precisava-se inventar novo cimento zamquot; as relações entre os produtores —
ideológico para refazer o regime. Pedra operário e patrões — e deles com a socie-
de salvação de todos, menos da maioria. dade, aguçam-lhe apetites novos, am-
Os trabalhadores do campo e da cidade, a pliam sua consciência crítica, mas fazem
pequena classe média, os assalariados, tudo isso no contexto da luta imediata e
mal provaram o desafogo político e dele sem que, pelo menos até agora, se divise
gostaram, começaram a comer o pão-que- quem (que categoria, que fração de clas-
o-diabo-amassou da inflação, da quot;auste- se, que grupo) dará o salto do círculo de
ridadequot; etc. (que nada tem, em si mes- convivência imediata para o conjunto da
mo, com a abertura), sem terem sido ja- sociedade. O Estado — reforçado por suas
mais chamados a participar, direta ou in- funções de capitalista direto — e a buro-
diretamente, da mesa de negociações. cracia — reforçada por seu vínculo técnico
Havendo brechas na contenção políti- com a organização da administração e
ca, o movimento social avança por sua com a produção modernas — engolem,
conta. Avança e pára: a sociedade que o sugam da quot;sociedade civilquot; as funções
grande capital criou e a burocracia contro- globalizadoras e as distorcem. Na medida
lou é cheia de compartimentos estanques; em que logram cooptar a Intelligentzia (e
fragmenta-se em um sem-número de o fazem, via tecnoburocracia e via enfeu-
questões que são percebidas, vividas e re- damento da Universidade aos programas
solvidas (ou não) isoladamente. São Ber- de desenvolvimento estatais), o Estado e a
nardo, da altivez, pára sozinho: a solida- burocracia conseguem, ademais, propor a
riedade da liderança das outras categorias cara da quot;nova sociedadequot;.
operárias não se traduz pela generalização É por isso, porque todos sentem que a
da greve; os líderes sindicais processados e pauta já está dada e que sua ruptura im-
condenados amargam no isolamento suas plicaria em desatar forças incontroláveis
penas. Não que o resto da sociedade opri- no parâmetro ora vigente, que a resposta,
mida se desinteresse, mas sua solidarieda- mesmo a mais crítica, ou é abstrata ou é
de é passiva, mediatizada pela TV, barra- tímida. No plano geral, da crítica dos
da pela ausência de uma rede efetiva de princípios, a ousadia é permitida. No pla-
solidariedades encadeadas; o grito do no concreto, da ação política, as batalhas
camponês, a homília do padre, o clamor que se travam — quase todas — são como
da dona-de-casa explodem sem eco capaz as de Itararé: nunca chegam ao tiroteio.
de mover as massas no interior de uma so- A quot;democracia conservadoraquot;, a insti-
ciedade altamente diferenciada e segmen- tucionalização de certas regras de acesso
tada. ao poder sem que delas derive o curto-cir-
Não se pense que esse fenômeno atinge cuito entre política e reivindicação social,
apenas as classes subalternas: assim como entre política e mudança econômica de
a liderança operária protesta, a comuni- base, passa a ser, nessas condições, aspira-
dade de base conscientiza e a Universida- ção de todos (ou quase): os agentes políti-
de ideologiza, o empresariado, no círculo cos, se não a aceitam na subjetividade, a
limitado de seu interesse privado, geme e ela se conformam objetivamente. Mesmo
lamúria. É o setor de bens de capital hoje os mais autênticos e puros reformadores
quem protesta, amanhã são todos, pela e lutadores contra a exploração — ao invés
voz da FIESP, contra os juros e o FMI. Mas de denunciar e somar força no plano polí-
disso tampouco decorre a cascata de tico, recuam para o plano da luta imediata
apoios que levem à ação. no círculo do cotidiano e abominam,
Só o Estado (falando pelos interesses quando não vituperam, a política (e os
nele aninhados) dispõe dos meios para políticos). No fundo, a regressão para o
transformar a proposta em política. A plano da ética é o reconhecimento tácito
FIESP protesta. Pois bem: dela se tira o de que no aqui e no agora a fragmentação
dinheiro do SESI, para forçar a acomoda- de interesses e de propósitos é de tal mon-
ção dos dirigentes. Se o líder sindical se ta que tudo que não seja imediato e ime-
enche de coragem e vira político, pois Lei diatamente popular aparece como abstrato
de Segurança nele, e amanhã será outro ou mistificação. Sem o saber e sem o
dia. Por certo, são dois pesos e duas medi- querer, com essa postura também dão vi-
das. Mas nos dois casos o Estado mantém gência à lei inexorável do sistema: cada
as rédeas curtas. macaco no seu galho, que da árvore cuida
Dito de modo mais abstrato: as condi- o Imperador.
NOVOS ESTUDOS N°1
8. É neste sentido específico que este regi- toritária — contempla momentos de veri-
me é o regime que a sociedade quer: seu ficação de vontades. Apesar da fragmen-
querer está condicionado por uma estru- tação do social, apesar da divisão das cor-
tura de determinações sociais que torna a rentes políticas, apesar de tudo, se é certo
negação da ordem valor moral, sem con- que a solidariedade das classes subalternas
seqüência prática. E a ordem aparece co- não é ativa e se é certo que pelas razões in-
mo se fosse a ordem dos Joões-ninguém. dicadas falta o pião social e político a par-
De fato, a proposta do João que é alguém, tir do qual se descortine quot;outra coisa que
do João Figueiredo, é a forma política que não isso que aí estáquot;, não é menos verda-
convém a uma sociedade bloqueada, a de que há situações nas quais é difícil fa-
um sistema econômico privatista, mas cuja zer valer a nova ordem: quando no plano
privacidade é conexa ao Estado. Estado e social se rompem os equilíbrios mínimos
Capital, hoje, não são duas caras da mes- suportáveis (do que decorrem saques de
ma moeda. São a moeda da mesma cara. armazéns na zona da seca, depredação de
Solidificado não o regime — que ainda trens de subúrbios, greves operárias quot;sel-
está engatinhando — mas o sistema de vagensquot; etc.) e quando, no plano políti-
produção que criou a nova sociedade bu- co, se pede ao povo (à cidadania?) que vo-
rocratizada e de massas (simultânea e con- te e despeje, no isolamento da cabina in-
traditoriamente), a proposta Figueiredo devassável, toda a raiva contida.
(ou Golbery, ou Portella, ou que adjetivo De pouco valeria que as oposições, ao
tenha, porque seu nome é o mesmo) é — reconhecerem a armadilha do regime e as
que ninguém se iluda — o momento da amarras do sistema social, ficassem apenas
busca da hegemonia. Não a liberal-bur- na lamúria ou no sonho de uma impossí-
guesa, do consenso dos partidos. Mas a vel volta atrás. Há que recuperar, a partir
oligopólico-autoritária que se funda no das condições atuais, o ímpeto para a lu-
Estado e dá à sociedade a ilusão da parti- ta. Nem tudo o que o Planalto prevê e de-
cipação. E por isso, porque ela é forte, seja ocorre. Bem ou mal, estão aí os novos
que o presidente pode parecer (e ser) fra- partidos, está aí uma sociedade insatisfei-
co. Medíocre sem ser grotesco e sem qual- ta. Há que desenhar os horizontes de um
quer heroísmo. futuro baseado em ideais de igualdade e
Foram estes, até agora, os anos Figuei- participação; é preciso restabelecer a cren-
redo. Anos modorrentos em que pouco a ça em uma alternativa real e a confiança
pouco vai-se vendo que o rumo que está na capacidade de condução do processo
traçado é uma via de muitas faixas, todas pelas massas e dessas em suas lideranças.
elas levando ao mesmo: a ordem acima de Há, portanto, apesar de tudo, espaço para
tudo, querida por todos, se possível; im- a ação.
posta na marra, se necessário. Ordem com Não se acomodem, pois, nos louros do
lei, por certo. O arbítrio de outrora — dos já obtido, os fiadores do Rei. Pela frente
anos da incerteza — deu lugar a certa pre- ainda há borrasca: da inflação à eleição
visibilidade e a certas garantias. Mas ga- não se vê mais que céu cinzento. Quem
rantias nos dois sentidos: o cidadão será sabe estejam aí nossas estepes frias, como
respeitado (relativamente) e a ordem esta- aquelas da Europa, engolidoras até de
belecida será mantida (absolutamente). Napoleão, o Bonaparte verdadeiro. Mas
A sociedade aceitou, aliviada, o fim do acautelem-se também as oposições: antes
arbítrio; os agentes políticos engolem, um código napoleônico discutível do que
com maior ou menor dose de náusea, os a Santa Aliança do grande capital somado
condicionamentos do jogo institucional; à burocracia e à repressão. E é por isso,
o povo esperneia na defesa do interesse também, que no contexto da atual corre-
imediato e desinteressa-se das regras do lação das forças sociais e políticas a socie-
Estado. A ameaça, agora, vem da direita dade traga, goela adentro, o óleo de ríci-
terrorista, que tem os pés nos porões da no da democracia conservadora.
repressão e quer reagir contra a sua margi-
nalização do Estado.
Até quando? NOTAS
Não é o caso de olhar a bola de cristal. Este artigo foi escrito cm maio de 1981 (N. da R.).
Mas, mesmo sem catastrofismo econômi- (1) MARX, K. - E/ Dieciocho Brumario de Luís Bonaparte.
cos (hoje possíveis de acalentar ou temer) In: Obras Escogidas, Moscou, 1973, tomo 1, pág. 405.
e sem visões falsamente heróicas da reação
Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
popular, uma coisa é certa: a legitimidade v. 1, 1, p. 4-11, dez. 81
buscada — a hegemonia oligopólico-au-
DEZEMBRO DE 1981