SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 114
Descargar para leer sin conexión
0 nascimento de urn filho como momenta
de ruptura na vida de urn casal. Uma
crianc;:a desejada, mas diferente. Nas
palavras do pai, na tfmida tentativa de
explicar para os conhecidos, nos primeiros
meses, uma crianc;:a com "urn pequeno
problema. Ele tern mongolismo." De
infcio, o estranhamento, e o pai assu'me
que a urgencia nao e resolver 0 tal
problema da crianc;:a - haveria algo a ser
resolvido? -, mas o espac;:o que o filho
ocupara na propria vida .
     E a crianc;:a o ocupa, ocupara pelo
resto da vida. Num livro corajoso,
Cristovao Tezza expoe as dificuldades,         0 FILHO ETERNO
inumeras, e as saborosas pequenas
vitorias de criar urn filho com sfndrome
de Down. 0 periplo por clfnicas e
consultorios medicos numa epoca em que
o assunto nao era tao estudado e ainda
tinha"0 veu do misticismo, a tensa relac;:ao
inicial com a mulher. "Numa das crises,
ela !he diz, no desespero do choro alto:
Eu acabei com a tua vida. E ele nao
respondeu, como se concordasse - a mao
que estendeu aos cabelos dela consolava
o sofrimento, nao a verda de dos fatos. ··
     Aproveita as questoes que apareceram
pelo caminho nestes 26 anos de Felipe
para reordenar sua propria vida: a
experimentac;:ao da vida em comunidade
quando adolescente, a vida como ilegal
na Alemanha para ganhar dinheiro, as
dificuldades de escritor com trinta e
poucos anos e alguns livros na gaveta,
a pretensa estabilidade com o cargo de
professor em universidade publica.
     Com precisao literaria para encadear
de maneira clara referencias de anos e
situac;:oes tao dfspares, as vezes dentro ~0
mesmo capitulo, Cristovao Tezza reforc;:a,
com a publicac;:ao de 0 filho etemo, seu
Iugar entre os maio res escritores
brasileiros.
0
 tj
        z
        ~
 ~      ~
                                  Q
                                  ~3
 ~      ~                         o;.<;
                                       ::0
 a      ~                0
                         •«
                                  Uo
                                      ><(
                          -
                                  IJl<n
 ltj                     0>       ~.
 ~
 .8
        0                Cl
                         [.J..l   ...::~
                                             0
                                             ~
 CJ')
 ·e
        ::c:
        ~                -
                         "''
                         0
                                  ~iii
                                  0~
                                       z
                                             0
                                             N
 u      ~
                                  f-<<U
                                  ..... Q
        ~                         Q~
                                      ~
                                  IJl
        0
--          ----------
CIP-Brasil. Cataloga<;ao-na-fonte
      Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
           Tezza, Cristovao, 1952-
T339f         0 filho eterno I Cristovao Tezza. - 10• ed. -Rio
10• ed.    de Janeiro: Record, 2010.

               ISBN 978-85-01-07788-2

               l. Romance brasileiro. I. Titulo.

                                    COD 869.93                                        Queremos dizer a verdade e, no entanto, nao dizemos a
                                    CDU 821.134.3(81)-3
07-1946                                                                           verdade. Descrevemos alga buscando fidelidade a verdade e,
                                                                                       no entanto, o descrito eoutra coisa que niio a verdade.
                                                                                                                            Thomas Bernhard



                                                                                           Um filho ecomo um espelho no qual o pai se ve, e,
 Copyright © Cristovao Tezza, 2007                                                                para o filho, o pai epar sua vez um espelho
 Projeto grafico: Regina Ferraz
                                                                                                                    no qual ele seve no futuro.
                                                                                                                           S0ren Kierkegaard
 Texto revisado segundo o novo Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa

 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodu<;ao, armazenamento
 ou transmissao de partes deste livro, atraves de quaisquer meios, sem
 previa autoriza<;ao por escrito.

 Direitos exclusivos desta edi<;ao reservados pela
 EDITORA RECORD LTDA.
 Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 -Tel.: 2585-2000



  Impresso no Brasil

  ISBN 978-85-01-07788-2

                                                           ~ ~~
                                                               p.'l'tORI~


                                                               ~"
                                                                             ..
  Seja urn leitor preferencial Record
                                                          8 ~
                                                          ;;




                                                                0-
  Cadastre-se e receba informa<;6es sobre            ~I>~

  nossos lan<;amentos e nossas promo<;6es.           ~-,~"/~
  Atendimento e venda ao leitor:                          EDITORA AFILIADA
  mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002
- Acho que e hoje - ela disse. - Agora - completou,
com a voz mais forte, tocando-lhe 0 bra90, porque ele e urn
homem distrafdo,
   Sim, distrafdo, quem sabe? Alguem provis6rio, talvez; al-
guem que, aos 28 anos, ainda nao come9ou a viver. A rigor,
exceto por urn leque de ansiedades felizes, ele nao tern nada,
e nao e ainda exatamente nada. E essa magreza semovente
de uma alegria agressiva, as vezes ofensiva, viu-se diante da
mulher gravida quase como se s6 agora entendesse a exten-
sao do fato: urn filho. Urn dia ele chega, ele riu, expansivo.
Vamos la!
    A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava ja havia
quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguarda-
vam o elevador, a meia-noite. Ela esta palida. As contra96es.
A bolsa, ela disse - algo assim. Ele nao pensava em nada -
em materia de novidade, amanha ele seria tao novo quanto o
filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-
se de uma garrafinha caub6i de ufsque, que colocou no outro
bolso; no primeiro estavam os cigarros. Urn cartum: a figura
fuma urn cigarro atras do outro na sala da espera ate que a
enfermeira, o medico, alguem lhe mostra urn pacote e lhe diz
alguma coisa muito engra9ada, e nos rimos. Sim, ha algo de
engra9ado nesta espera. Eurn papel que representamos, o pai


                              9
angustiado, a mae feliz, a crianya chorando, o medico sor-        seguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro.
ridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos da          Uma tensao que quase sempre escapa pelo riso, a libertayao
parabens, a vertigem de urn tempo que, agora, se acelera em       que ele tern.
desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em tomo               No balcao da matemidade a moya, gentil, pede urn che-
de urn bebe, para so estacionar alguns anos depois - as           que de garantia, e as coisas se passam rapidas demais, par-
vezes nunca. Ha urn cenario inteiro montado para o papel,         que alguem esta levando sua mulher para longe, sim, sim,
e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, tambem. Ele        a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os tramites -
merecera respeito. Ha urn dicionario inteiro de frases ade-       e mais uma vez tern dificuldade de preencher o espayo da
quadas para o nascimento. De certa forma - agora ele dava         profissao, quase ele diz "quem tern profissao e a minha mu-
partida no fusca amarelo (eles nao dizem nada, mas sent em        lher. Eu"- e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a
uma coisa boa no ar) e cuidou para nao raspar o para-lama         mulher tambem, mas a afetividade se transforma, sob olhos
na coluna, como ja aconteceu duas vezes - ele tambem esta-        alheios, em solenidade - alguma coisa maior, parece, esta
ria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos           acontecendo, uma especie de teatro se desenha no ar, somos
edificante. Embora continuasse nao estando onde estava -          delicados demais para 0 nascimento e e preciso disfaryar to-
essa a sensayao permanente, por isso fumava tanto, a maqui-       dos os perigos desta vida, como se alguem (a imagem e ab-
na inesgotavel pedindo gas. E urn terreno inteiro de ideias:      surda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse
pisando nele, nao temos coisa alguma, so a expectativa de         nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sen-
urn futuro vago e mal desenhado. Mas eu tambem nao tenho          te diante dos hospitais, dos predios publicos, das instituiy6es
nada ainda, ele diria, numa especie metafisica de compe-          solenes, de colunas, halls, guiches, ab6badas, filas, da sua
tiyao. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bern, urn filho -          granftica estupidez - a gramatica da burocracia repete-se
e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando        tambem ali, que e urn espayo pequeno e privado. Mais tarde,
em alguma coisa enfim salida, uma fotografia publicitaria da      ele se ve em alguma sala diante da mulher na maca, que, pa-
familia congelada na parede. Nao: ele esta em outra esfera        lida, sorri para ele, e eles tocam as maos, tfmidos, quase como
da vida. Ele e urn predestinado a literatura - alguem neces-      quem comete uma transgressao. 0 lenyol e azul. Ha uma
sariamente superior, urn ser para o qual as regras do jogo sao    assepsia em tudo, uma ausencia bruta de objetos, os passos
outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade e discre-      fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angustia
ta, tolerante e sorridente. Ele vive a margem: isso e tudo. Nao   da falsidade, ha urn erro primeiro em algum lugar, e ele nao
e ressentimento, porque ele nao esta ainda maduro para o          consegue localiza-lo, mas em seguida nao pensa mais nisso.
ressentimento, essa forya que, em algum momenta, pode             Os segundos escorrem.
nos p6r agressivamente em nosso lugar. Talvez o inicio des-           Dizem alguma coisa que ele nao ouve; e na espera, perde
sa contraforya (mas ele seria incapaz de saber, tao proximo       a noyao do tempo- que horas sao? Noite avanyada. Agora
assim do instante presente) seja o fato de que jamais con-        esta sozinho num corrector ao lado de uma rampa vazia e em

                              10                                                                11
dinossauro medieval. Se ainda tivesse a dadiva do comercio,
frente a duas portas basculantes, corn urn vidro circular no
                                                                     atras de urn balcao. Mas nao: escolheu consertar rel6gios, o
centro de cada lamina por onde as vezes ele espia mas nada
                                                                     fascinio infantil dos rnecanismos e a delicadeza inutil do tra-
ve. Ele nao pensa ern coisa algurna, mas, se pensasse, talvez
                                                                     balho manual.
dissesse: estou como sernpre estive - sozinho. Acendeu urn
                                                                         E no entanto sente-se urn otirnista - ele sorri, vendo-se
cigarro, feliz: e isso e born. Deu urn gole do ufsque que tirou
                                                                     do alto, como no cartum irnaginado, agora urna figura real.
do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coi-
                                                                     Sozinho no corrector, da outro gole de ufsque e come<;a a ser
sas vao bern - ele nao pensava no filho, pensava nele rnes-
                                                                     tornado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam.
rno, e isso inclufa a totalidade de sua vida, rnulher, filho, li-
                                                                     Urn cromo publicitario, e ele ri do paradoxa: quase como se o
teratura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada
                                                                     simples fato de ter urn filho significasse a definitiva imolac;:ao
realrnente born. Pilhas de rnaus poernas, dos 13 anos ate o
                                                                     ao sistema, mas isso nao e necessariamente rnau, desde que
rnes passado: 0 filho da primavera. A poesia arrasta-o sern
                                                                     es tejamos "inteiros", sejamos "autenticos", "verdadeiros"-
piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas e preci-
                                                                     ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso proprio,
so dizer algurna coisa sobre o que est.i acontecendo, e ele nao
                                                                     a mitologia dos poderes da pureza natural contra os drag6es
sabe exatarnente o que est.i acontecendo. Tern a vaga sensa-
                                                                     do artificio. Ele ja cornec;:a a desconfiar dessas totalidades re-
<;ao de que as coisas vao dar certo, porque sao frutos do de-
                                                                     t6ricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas - de
sejo; e quem est.i a rnargern, arrisca- ou estaria encaixado
                                                                     fato, nunca se livrou completamente desse imaginario, que,
na subvida do sistema, essa rnerda toda, ele quase declarna,
                                                                     no fundo da alma, significava manter o pe atras, atento, em
e d.i outro gole de ufsque e acende outro cigarro. Aos 28 anos
                                                                     todos os rnomentos da vida, para nao ser devorado pelo vio-
nao acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe rnui-
                                                                     lento e inesgotavel poder do lugar-comum e da irnpessoali-
to, da risadas prolongadas e inconvenientes, le caoticarnente
                                                                     dade. Era preciso que a "verdade" safsse da ret6rica e se
e escreve textos que atafulham a gaveta. Urn gancho atavico
                                                                     transforrnasse ern inquietac;:ao perrnanente, urna breve utopia,
ainda o prende a nostalgia de urna cornunidade de teatro, que
                                                                     urn brilho nos olhos.
frequenta urna vez por ano, nurna prolongada dependencia
                                                                         Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entran-
 ao guru da infancia, urna gin.istica interrninavel e insoluvel
                                                                     do no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daque-
 para ajustar o rel6gio de hoje a fantasrnagoria de urn tempo
                                                                     le rnornento, urna solenidade para uso proprio, fntirno, in-
 acabado. Filhote retardatario dos anos 70, irnpregnado da so-
                                                                     transferfvel. Como o diretor de urna pe<;a de teatro indicando
 berba da periferia da periferia, vai farejando pela intui<;ao al-
                                                                     ao ator os pontos da cena: sinta-se assirn; rnova-se ate ali; sor-
 guma safda. E dificil renascer, ele dira, alguns anos depois,
                                                                     ria. Veja como voce tira o cigarro da carteira, sentado sozinho
 rnais frio. Enquanto isso, da aulas particulares de reda<;ao e
                                                                     neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho.
 revisa cornpenetrado teses e disserta<;6es de rnestrado sobre
                                                                     Cruze as pernas. Pense: voce nao quis acornpanhar o parto.
 qualquer terna. A grarnatica e urna abstra<;ao que aceita tudo.
                                                                     Agora comec;:a a ficar moda os pais acompanharem o parto
 Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profissao, urn

                                                                                                    13
                                12
dos filhos - uma participac;ao quase religiosa. Tudo parece         finitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz
que esta virando religiao. Mas voce nao quis, ele seve dizen-       alta, no silencio daquele corrector final, poucos minutos an-
do. E que o meu mundo e mental, talvez ele dissesse, se fos-        tes de sua nova vida. Era como se o espfrito comunitario re-
se mais velho. Urn filho e a ideia de urn filho; uma mulher e a     ligioso que florescia secretamente na alma do pafs, todo o
ideia de uma mulher. As vezes as coisas coincidem com a             sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracio-
ideia que fazemos delas; as vezes nao. Quase sempre nao,            nalismo, sua transcendencia eterea, a paz celestial dos cor-
mas af o tempo ja passou, e entao nos ocupamos de coisas            deiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou li-
novas, que se encaixam em outra familia de ideias . Ele nao         vros-texto - vale tudo, 6 Senhor! -, encontrasse tambem
quis nem mesmo saber se sera urn filho ou uma filha: a man-         no poeta marginal, talvez prin~ipalmente nele, o seu refugio.
cha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se           0 empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos,
projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridao e no         sandalias franciscanas, as portas da percepc;ao, vida natural,
calor, nao se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos nao       sexo livre, somas todos autenticos. Sim, era preciso urn con-
saber, foi o que disseram ao medico. Tudo esta bern, parece,        trapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como varias vezes
 e 0 que importa.                                                   nos matou. Ha urn descompasso nesse projeto supostamente
     Ali, era enfim a sensac;ao de urn tempo parado, suspenso.      pessoal, mas isso ele ainda nao sabe, ao acaso de uma vida
 Naquele silencio iluminado, em que pequenos rufdos distan-         renitentemente provis6ria; a minha vida nao comec;ou ainda,
 tes - passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa -           ele gostava de dizer, como quem se defende da propria in-
 ganhavam a solenidade de urn breve eco, ele imagina a mu-          competencia - tantos anos dedicados a ... a o que mesmo?
 danc;a de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para         as letras, a poesia, a vida alternativa, a criac;ao, a alguma coi-
 que as coisas nao mudem muito. Tern energia de sabra para          sa maior que ele nao sabe o que e - tantos anos e nenhum
 ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos interva-       resultado! Ficar sozinho e uma boa defesa. Vivendo numa ci-
 los, fumando bastante, dando risadas e contando hist6rias,         dade com genios agressivos em cada esquina, ele contempla
 enquanto a mulher se recupera. Seria agora urn pai, o que          a magreza de seus cantos, finalmente publicados, onde en-
  sempre dignifica a biografia. Sera urn pai excelente, ele tern    contra defeitos cada vez que abre uma pagina. 0 romance ju-
  certeza: fara de seu filho a arena de sua visao de mundo. Ja      venillanc;ado nacionalmente vai se encerrar na primeira edi-
  tern pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de al-       c;ao, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o
  guns dos versos de 0 filho da primavera- a professora ami-        editor de Sao Paulo, daqui a alguns meses. "E preciso cortar
  ga vai publica-los na Revista de Letras. Sim, os versos sao bo-   esse paragrafo na segunda edic;ao porque as professorinhas
  nitos, ele sonhou. 0 poeta e born conselheiro. Fac;a isso, seja   do interior estao reclamando." Desistiu do livro.
  assim, respire esse ar, olhe o mundo - as metaforas, uma a            Ele nao sabe ainda, mas ja sente que aquila nao e a sua
  uma, evocam a bondade humana. Kipling da provincia, ele           literatura. Tres meses antes terminou 0 terrorista Urico, e
  se sente impregnado de humanismo. 0 filho sera a prova de-        parece que alguma coisa melhor comec;a ali, ainda informe.


                                14                                                                 15
Alguem se debatendo para se livrar da influencia do guru,           - Tudo bern? - ele pergunta, por perguntar: a cabe<;a ja
tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da per-        esta no mes seguinte, sete meses depois, urn ano e tres me-
cep<;ao, sob a frieza da razao. Ele nao e mais urn poeta. Per-   ses, cinco anos a frente, o filho crescendo, a cara dele.
deu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe            - Eurn menino . - Tambem nenhuma surpresa: eu tinha
envelhecido, e o combustive! necessaria para escrever poe-       certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito,
sia. A ideia do sublime nao basta, ele come<;a a vislumbrar      se falasse. - A mae esta muito bern.
- com ela, chegamos s6 ao simulacra. E precise ter for<;a e          E desapareceu por onde veio.
pei1o para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no
ridicule. Ha algo incompatfvel entre mim e a poesia, ele se
diz, defensive - assumir a poesia, parece, e assumir uma re-
ligiao, e ele, desde sempre, e alguem completamente despro-
vido de sentimento religiose. Urn ser que se move no deser-
to, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a
propria solidao. A solidao como urn projeto, nao como uma
tristeza. Eu ainda nao consegui ficar sozinho, conclui, com
urn fio de angustia- e agora (ele olha para a porta bascu-
lante, sem pensar) nunca mais. Come<;ou ha pouco a escre-
ver outro romance, Ensaio da Paixao, em que - ele imagina
- passara a limpo sua vida. E a dos outros, com a lingua
da satira. Ninguem se salvara. Tres capftulos prontos. E urn
livro alegre, ele sup6e. Eu precise comef;ar, de uma vez por
todas, ele diz a ele mesmo, e s6 escrevendo sabera quem e.
Assim espera. Sao coisas demais para organizar, mas talvez
justo por isso ele se sinta bern, feliz, povoado de pianos.
     Subito, o medico - por quem nunca sentiu simpatia, e
portanto nada espera dele - abre as portas basculantes, co-
mo sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausencia de
sorriso, daf porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha
de ufsque, nao se perturbou. 0 homem tirava as luvas verdes
 das maos, como quem encerra uma tarefa desagradavel -
por alguma razao foi essa a imagem absurda, certamente
 falsa, que lhe ficou daquele momenta.

                              16                                                                17
Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofa vermelho ao lado
da cama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em
algum momenta da madrugada. A crianya estaria no berya-
rio, uma especie de gaiola asseptica, que o fez lembrar do
Admiravel mundo novo: todos aqueles bebes urn ao lado do
outro, atras de uma proteyao de vidro, etiquetados e cadas-
trados para a entrada no mundo, todos identicos, enfaixados
na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos
amassados, sustos respirantes, todos imoveis, de uma fragili-
dade absurda, todos tabula rasa, cada urn deles apenas urn
breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e a
lingua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as
quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e
para que estavam aqui, se e que uma pergunta assim pode
fazer sentido.
    Qual era mesmo o seu filho? - aquele ali, mostrou a en-
fermeira solicita, e ele sorriu diante da crianya imovel, bus-
cando urn ponto de convergencia. Alguma coisa de fora que
o tocasse subita, como urn dedo de urn anjo. Mas nao, ele
sorriu, invencivel - e preciso criar esse ponto, que nao cai
do ceu. Uma crianya e uma ideia de uma crianya, e a ideia
que ele tinha era muito boa. Urn born comeyo. Mas aquela

                             19
presenc;a era tambem urn nascimento as avessas, porque ago-
                                                                    do llOVO, aquela assepsia do nascimento sem dares nem pais.
ra, talvez ele imaginasse, expulso do parafso, estou do ou-
                                                                     VIVl'mos grudados, mas, em vez de sentir nausea da imagem
tro lado do balcao - nao estou mais em ben;o esplendido,
                                                                         o1 invencfvel viscosidade das relac;:oes humanas -, ele sor-
nao sou eu mais que estou ali, e ele riu, quase bebado, a
                                                                    11 di,m te daquele pequeno joelho respirante e empacotado do
garrafinha vazia, inebriado do cigarro que nao parava de fu-
                                                                    fltllro lado do vidro: isso parece borne bonito, o filho da pri-
mar, naqueles tempos tolerantes. Como quem, prosaicamen-
                                                                    lllolvcra. Relembrou a data: madrugada do dia 3 de novembro
te, apenas perde urn privilegio, o da liberdade. 0 que e uma        til! 1980.
palavra que, se objetivamente quer dizer muito (estar dentro
da cadeia, estar fora da cadeia, por exemplo; poder dizer e
escrever tudo e nao poder dizer nem escrever nada, outro
exemplo pratico - o Brasil esta nos ultimos minutos de uma
ditadura), subjetivamente, em outra esfera. nos da 0 dam da
ilusao . As vezes basta . Livre significa: sozinho. Claro, tern a
mulher, por quem ele alimenta uma nftida mas insuspeitada
paixao (ele nunca foi precoce), mas ao mesmo tempo tern de
prestar muita atenc;ao em si mesmo, juntar aqueles pedac;:os
disformes da inseguranc;:a, urn garoto tao desgrac;:adamente
incompleto, para olhar mais atento para ela, o que so conse-
guira fazer anos depois; tern a mulher, mas eles nao nasce-
ram juntos. Podem se separar, e a ordem do mundo se man-
tern. Mas o filho e urn outro nascimento: ele nao pode se
separar dele. Todas as palavras que o novo pai recebeu ao Ion-
go da vida criaram nele esta escravidao consentida, esse bre-
ve mas poderoso imperativo etico que se faz em torno de tao
pouca coisa: quem e a crianc;:a que esta ali? 0 que temos em
comum? 0 que, afinal, eu escolhi? Como conciliar a ideia fun-
damental de liberdade individual, que move a fantastica roda
do Ocidente, ele declama, corn a selvageria da natureza bru-
ta, que por uma sucessao inextricavel de acasos me trouxe
agora essa crianc;:a? 0 proprio Rousseau abandonou os filhos,
ele se lembra, divertindo-se. Muito melhor o Admiravel mun-

                               20
                                                                                                  21
Afinal acordou daquela noite intranquila mas feliz (ou te-
 riarn sido apenas alguns rninutos?), e urna boa sensa<;ao de
 gravidade lhe tornava os gestos ressaqueados de urna especie
 de renascirnento·. Ou de deslocarnento, ele pensou, quase que
 ffsico - agora nao estava rnais ern seu Iugar de sernpre. Nao
estaria nunca rnais, ele decidiu, sernpre pronto as conclus6es
lirnftrofes e altissonantes, boas no palco - urn deslocarnento
definitivo, perrnanente, inelutavel. E isso e born, concluiu.
Palavras. Que horas seriarn? A rnulher parecia dorrnir naque-
la carna que rnais parece urn altar, urna engenhoca de ala-
vancas. Ele passara a vida gostando de engenhocas - e urn
relojoeiro. Dedica urn rninuto para descobrir como aquilo fun-
dona: urna rnanivela na proa, como de urn Ford bigode, co-
rnanda o guindaste. Urna enferrneira chega e se vai- nao ha
rnuitos sorrisos, mas e assirn rnesrno que funciona a rnaqui-
na, corn a exata eficiencia. Ele se aproxirna, tfrnido, da rnu-
lher, ja de tranquilos olhos abertos, e terne que ela espere dele
algurna efusao sentimental ou arnorosa, o que sernpre o de-
sajeita, defensivo. Sernpre teve algurna ponta de dificuldade
para lidar corn o afeto. Ele prefere a suavidade do humor ao
ridfculo do arnor, mas disso nao sabe ainda, pernas rnuito fra-
cas para o peso da alma.
     A mao dela esta quente.


                              23
- Tudo bern?                                                  tando o dedo para alguem sem nome, e sorriem tambern para
    - Tudo bern- ela diz. -Urn pouco dolorida ainda. 0            ele, compartilhando a alegria: o nascimento e uma felicidade
medico veio aqui?                                                 coletiva, somas de fato todos irmaos, tao parecidos uns com
    -Nao.                                                         os outros! Ele retribui o sorriso, diz urn "parabens" intimida-
    0 nascimento e uma brutalidade natural, a expulsao obs-       do e se afasta, com medo de que lhe perguntem alga. Epreci-
cena da crian<;:a, o desmantelamento fisico da mae ate o ulti-    so telefonar - 0 mundo e grande, precisa saber da grande
mo limite da resistencia, o peso e a fragilidade da carne viva,   nova, e ele nao tern fichas. No guiche da recep<;:ao e recebido
o sangue - cria-se urn mundo inteiro de signos para ocultar       com sorrisos, e compra algumas fichas de telefone. Civiliza-
a coisa em si, tosca como uma caverna escura.                     do, resistiu a pedir para ligar dali mesmo, o telefone ao al-
    - Telefonou para as familias? - e ela sorriu pela primei-     cance da mao- justamente para que nao pedissem, coloca-
ra vez.                                                           ram a plaquinha desviatoria: FICHAS AQUI, e na cal<;:ada logo
    As familias. Familia e urn horror, mas urn horror necessa-    a safda estava a fileira de telefones publicos, urn deles com o
ria - ou inevitavel, o que da no mesmo. Agora terei ami-          fane arrancado eurn patetico fio solto.
nha, ele pensa. Chega de briga. So arabes e judeus conse-             Da antes uma boa caminhada, para respirar fundo - esta
guem viver em guerra a vida inteira, e ele ri da piada que        uma manha fresca e bonita, uma brevfssima nevoa prome-
imagina, quase contando a mulher, mas desiste.                    tendo urn dia de urn azullimpo no ceu - e tenta mais uma
    - Vou ligar agora. Que horas sao? - como se ela pudes-        vez organizar o dia, a semana, o mes, o ana e a vida. Agora
se saber.                                                         nao tern mais volta, 0 que e born, ele pensa e sorri, com 0
    Ao sair para o corrector, descobre que ja penduraram na       lugar-comum: fecha-se a porteira do passado, abre-se a do
porta urn bonequinho azul, e absurdamente ele pensa em di-        futuro. A sensa<;:ao de inferioridade ainda e pesada; ele a com-
nheiro, tranquilizando-se em seguida. Tudo esta indo bern.        pensa com urn orgulho campones, teimoso, obtuso, as vezes
Na gaiola publica dos recem-nascidos, tenta reconhecer seu        covarde, que reveste habilmente de humor. Ele se conhece.
filho, ha uma fileira de seres identicos atras do vidro, mas      Muitas vezes parecia que nao havia volta, e sempre houve.
parece que nao esta mais ali. Que nome dariam a ele? Se fos-      Na luz ainda acesa do paste da esquina, apenas urn brilho
se mulher seria Alice, se fosse homem seria Felipe. Felipe. Urn   na lampada contra o brilho do dia, lembra de sua adoles-
bela nome. Nftido como urn cavaleiro recortado contra o ho-       cencia absurda, cheirando alucinogenos nas pra<;:as de Curiti-
rizonte. Urn nome com contornos definidos. Uma dignidade          ba, so para ouvir aquele zumbido repetido na alma e ver as
simples, autoevidente, ele vai fantasiando: Felipe. Repete o      luzes fantasmagoricas da noite multiplicando-se num eco
nome varias vezes, quase em voz alta, para conferir se ele        psicodelico. Uma vez, o zumbido permaneceu por dois dias,
nao se desgasta pelo usa, se nao se esfarela no proprio sam,      e ele, sem pai, so pelo susto, decidiu parar. Sim, ele conse-
esvaziado pelo eco- Felipe, Felipe, Felipe, Felipe. Nao: man-     guiu parar porque nao era urn menino de rua: aos 15 anos
tem-se intacto no horizonte, firme sabre o cavalo, a lan<;:a na   tinha uma boa escola, casa, mae, familia-e urn desejo de
mao direita. Felipe. Urn casal de avos sorri ao seu lado, apon-   virar o mundo do avesso. Agora, e ele sorri com a ficha na


                              24                                                                25
mao, agora ele esta no lado certo do mundo, ja alimentando
a autoironia com que se defende do que seria a propria deca-
dencia. Urn homem do sistema. Familia e sistema. Daqui a
cinquenta anos, ele imagina, sem de fato acreditar na fanta-
sia que poe no corpo, nao havera mais familias, e o mundo
sera melhor. Por enquanto, vamos levando com as armas que
temos, a entona<;ao ja levemente ironica.
    - Sim, nasceu ainda ha pouco! Ehomem! Nao sei o peso
ainda! Ele parece parrudo! Nao avisei ninguem porque nao
precisava.- Quase diz, numa pre-irrita<;ao: 56 o que faltava             A manha mais brutal da vida dele come<;ou com o sono
eu esperar meu proprio filho com a parentalha toda em volta!        que Se interrompe- chegavam OS parentes. Ele esta feliz, e
Basta a ideia para satisfaze-lo, e ele prossegue _gentil: - Era     visfvel, uma alegria meio dopada pela madrugada insane,
de madrugada, para que incomodar voces? Sim. Sim! Ve-              lll.lis as doses de ufsque, a intensidade do acontecimento, a

nham! Felipe! Bonito, nao? Ela esta 6tima! Obrigado! Preci-          uccssao de pequenas estranhezas naquele espa<;o oficial que
samos festejar!                                                    n.io e o seu, mais uma vez ele nao esta em casa, e ha agora
    Em frente ha urn bare restaurante- "frangos fritos", diz       11111 alheamento em tudo, como se fosse ele mesmo, e nao a

a placa enorme. Funcionarios arrastam latoes de lixo para a        111ulher, que tivesse o filho de suas entranhas - a sensa<;ao
cal<;ada, uma barulheira descompensada, o dia come<;a. Tal-        i>oJ, mas irremediavel ao mesmo tempo, vai se transforman-
vez ir direto aquele balcao e pedir uma cerveja antecipada,        do numa afli<;ao invisfvel que parece respirar com ele. Talvez
antes mesmo que abram a porta, mas desiste da ideia idiota.       t>le, como algumas mulheres no choque do parto, nao queira
Subindo a rampa de volta ao quarto, olha para o rel6gio e reve    o filho que tern, mas a ideia e apenas uma sombra. Afinal,
ali o dia do nascimento do seu primeiro filho: 3, como se isso    L'le e s6 urn homem desempregado e agora tern urn filho. Pon-
contivesse urn segredo. No apartamento, a mulher dorme            to final. Nao e mais apenas uma ideia, e nem mais o mero
tranquila, ele confere, e sente subita a brutalidade do so no -   dcsejo de agradar que o seu poema representa, o ridfculo fi-
nao devia ter avisado ninguem. Daqui a pouco come<;a a            lho da primavera - e uma ausencia de tudo. Mas OS paren-
aporrinha<;ao dos parentes. Olha de novo o rel6gio e calcula      les estao alegres, todos falam ao mesmo tempo. A tensao de
os minutos que ainda tern, muito poucos para o desejo que         quem acorda sonado se esvazia, minuto a minuto. Como ele
sente, os olhos fechando, quase o peso de urn ser que o puxa      c?  Nao sei, parece urn joelho - ele repete o que todos dizem
para baixo com a mao. Deita-se no desajeitado sofa verme-         sobre recem-nascidos para fazer gra<;a, e funciona. 0 bebe e
lho, curto para suas pernas, o que lembra subito urn instante     parrudo, grande, forte, ele inventa: e 0 que querem ouvir.
perdido na infancia, ainda ve o lustre no alto, com uma das       Sim, esta tudo bern. E preciso que todos vejam, mas parece
lampadas ausente, fecha os olhos e dorme.                         que ha horarios. Daqui a pouco ele vern - aquele pacotinho


                              26                                                               27
como urn renascimento - veja, a minha vida agora tern ou-
suspirante. A mulher esta placida, naquela cama de hospital
                                                                       tro significado, ele dira, pesando as palavras; tenho de me
- sim, sim, tudo vai bern. Ha tambem urn rol de recomenda-
                                                                       disciplinar para que eu reconquiste uma nova rotina e possa
c;:oes que se atropelam - todos tern alguma coisa fundamen-
                                                                       sobreviver tranquilo com o meu sonho. 0 filho e como - e
tal a dizer sobre urn filho que nasce, ainda mais para pais
                                                                         le sorri, sozinho, idiota, no meio dos parentes - como urn
idiotas como ele. Eu fiz urn curso de pai, ele alardeia, palha-
                                                                       atestado de autenticidade, ele arriscara; e ainda uma vez fan-
c;:o, fazendo piada. Mas era verdade: passou uma tarde numa
                                                                       tasia o sonho rousseauniano de comunhao com a natureza,
grande roda de mulheres buchudas, a dele incluida, e claro,
                                                                       que nunca foi dele mas que ele absorveu como urn mantra, e
com mais dois ou tres futuros pais devotos, atentissimos, ou-
                                                                       cle que tern medo de se livrar - sem urn ultimo elo, o que
vindo uma prelec;:ao basica de urn medico paternal, e de tudo
                                                                       fica? Em toda parte, sao os outros que tern autoridade, nao
guardou urn unico conselho - e born manter uma boa rela-
                                                                        'le. 0 unico territ6rio livre e 0 da literatura, ele talvez sonhas-
c;:ao com as sogras, porque os pais precisam eventualmente
                                                                       SC, se conseguisse pensar a respeito. Sim, e preciso telefonar
descansar da crianc;:a, sair para jantar uma noite; tentar sar-
                                                                       para o seu velhd guru, de certa forma receber sua benc;:ao.
ver urn pouco o velho ar de antigamente que nao voltara
                                                                       Muitos anos depois uma aluna lhe dira, por escrito, porque
jamais.
                                                                        'ie nao e de intimidades: voce e uma pessoa que da a impres-
      E as familias falam e sugerem - eMs, ervas, remedinhos,
                                                                       sao de estar sempre se defendendo. Sentimentos primarios
infusoes, cuidados com o leite -, e preciso dar uma palma-
                                                                       que se sucedem e se atropelam - ele ainda nao entende ab-
da para que ele chore alto, assim que nasce, diz alguem, e
                                                                       solutamente nada, mas a vida esta boa. Ainda nao sabe que
alguem diz que nao, que o mundo mudou, que bater em
                                                                       agora comec;:a urn outro casamento com a mulher pelo sim-
bebe e uma estupidez (mas nao usa essa palavra) - eles nao
                                                                       ples fato de que eles tern urn filho. Ele nao sabe nada ainda.
 vao trazer a crianc;:a? E que horas foi? Eo que o medico disse?
                                                                            Subito, a porta se abre e entram os dois medicos, o pedia-
 E voce, o que fez? E o que aconteceu? E por que nao avisa-
                                                                       tra eo obstetra, e urn deles tern urn pacote na mao. Estao sur-
 ram antes? E por que nao chamaram ninguem? E vamos que
                                                                       preendentemente serios, absurdamente serios, pesados, para
 acontece alguma coisa? Ele ja tern nome? Sim: Felipe. Os pa-
                                                                       urn momenta tao feliz - parecem militares. Ha umas dez
 rentes estao animados, mas ele sente urn cansac;:o subterra-      ~
                                                                       pcssoas no quarto, e a mae esta acordada. E uma entrada
 neo, sente renascer uma ponta da mesma ansiedade de sem-
                                                                       ,1brupta, ate violenta - passos rapidos, decididos, cada urn
 pre, insoluvel. Ir para casa de uma vez e reconstruir uma boa
                                                                       sc dirige a urn lado da cama, com o espaldar alto: a mae ve o
 rotina, que logo ele tera livros para escrever - gostaria de
                                                                       filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda,
 mergulhar no Ensaio da Paixdo de novo, alguma coisa para
                                                                       mas ninguem sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros
 sair daqui, sair deste pequeno mundo provis6rio. Sim, e be-
                                                                       tempos, o punhal de urn deles desceria num golpe medido
 ber uma cerveja, e claro! A ideia e boa- e ele quase que gira
                                                                       para abrir as entranhas do ser e dali arrancar o futuro. Cinco
 o olhar atras de uma companhia para, de fato, conversar so-
                                                                       segundos de silencio. Todos se imobilizam- uma tensao ele-
 bre esse dia, organizar esse dia, pensar nele, literariamente,

                                                                                                       29
                               28
trica, subita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquan-        granftica e intransponfvel; 0 ultimo limite, 0 da inocencia, es-
to urn dos medicos desenrola a crianc;a sobre a cama. Sao as          tava ultrapassado; a infancia teimosamente retardada termi-
formas de urn ritual que, instantaneo, cria-se e cria seus ges-       nava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos
tos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam.          cmpurr5es, sem mais ouvir aquela lenga-lenga imbecil dos
    Ha urn infcio de prelec;ao, quase religiosa, que ele, enton-      medicos e apenas lembrando o trabalho que ele lera linha a
tecido, nao consegue ainda sintonizar senao em fragmentos             linha, corrigindo caprichosamente aqui e ali detalhes de sin-
da voz do pediatra:                                                   taxe e de esfilo, divertindo-se com as curiosidades que des-
     - ... algumas caracterfsticas ... sinais importantes ... vamos   creviam com o poder frio e exato da ciencia a alma do seu
descrever. Observem os olhos, que tern a prega nos cantos, e          filho . Que era esta palavra: "mongoloide".
a palpebra oblfqua ... o dedo mindinho das maos, arqueado                    Ele recusava-se air adiante na linha do tempo; lutava por
para dentro ... achatamento da parte posterior do cranio ... a        pcrmanecer no segundo anterior a revelac;ao, como urn boi
hipotonia muscular... a baixa implantac;ao da orelha e ...            cabeceando no espac;o estreito da fila do matadouro; recusa-
     0 pai lembra imediatamente da dissertac;ao de mestrado           va-se mesmo a· olhar para a cama, onde todos se concen-
de urn amigo da area de genetica - dois meses antes fez a             travam num silencio bruto, o pasmo de uma maldic;ao ines-
revisao do texto, e ainda estavam nftidas na memoria as ca-           pcrada. lsso e pior do que qualquer outra coisa, ele concluiu
racterfsticas da trissomia do crornossomo 2t chamada de sfn-                 nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte sao
drome de Down, ou, mais popularmente - ainda nos anos                 Hl'tc dias de luto, e a vida continua. Agora, nao . Isso nao tera
 1980- "mongolismo", objeto do trabalho. Conversara mui-               ttm . Recuou dois, tres passos, ate esbarrar no sofa vermelho
tas vezes com o professor sobre detalhes da dissertac;ao e            ~~ olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando-
curiosidades da pesquisa (uma delas, que lhe veio subita ago-          Hl', bovino, a ver e a ouvir. Nao era urn choro de comoc;ao
 ra, era a primeira pergunta de uma familia de origem arabe           q uc se armava, mas alguma co is a misturada a uma especie
 ao saber do problema: "Ele podera ter filhos"?- o que pare-           lttri osa de 6dio. Nao conseguiu voltar-se completamente con-
 ceu engrac;ado, como outro cartum). Assim, em urn atimo de            I 1,1 a mulher, que era talvez o primeiro desejo e primeiro alibi
 segundo, em meio a maior vertigem de sua existencia, a rigor          (l'lc prosseguia recusando-se a olhar para ela); por algum
 a unica que ele nao teve tempo (e durante a vida inteira nao          11  •sfduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso
 tera) de domesticar numa representac;ao literaria, apreendeu          d.t violencia; e ao mesmo tempo vivia a certeza, como vin-
 a intensidade da expressao "para sempre" - a ideia de que             1 llt t;a e valvula de escape- a certeza verdadeiramente cien-
                                                                         ·
 algumas coisas sao de fato irremediaveis, e o sentimento ab-          1ill ca, ele lembrava, como quem ergue ao mundo urn trunfo
 soluto, mas 6bvio, de que o tempo nao tern retorno, algo que          litd iscutfvel, eu sei, eu li a respeito, nao me venham com
 ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomec;ado,          ltl ~ l 6ria s - de que a unica correlac;ao que se faz das causas
 mas agora nao; tudo pode ser refeito, mas isso nao; tudo pode         do mongolismo, a unica variavel comprovada, e a idade da
 voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo e de uma solidez           lltttlher e os antecedentes hereditarios, e tambem (no mesmo


                                30                                                                   31
sofrimento sem safda, olhando o ceu azul do outro lado da
janela) relembrou como alguns anos antes procuraram acon-
selhamento genetico sobre a possibilidade de recorrencia nos
filhos (se dominante ou recessiva) de uma retinose, ada mae,
uma limita<;ao visual grave, mas suportavel, estacionada na
infancia. Recusa. Recusar: ele nao olha para a cama, nao olha
para 0 filho , nao olha para a mae, nao olha para OS parentes,
nem para os medicos - sente uma vergonha medonha de
 seu filho e preve a vertigem do inferno em sada minuto sub-
 sequente de sua vida. Ninguem esta preparado para urn pri-          Uma rede silenciosa de solidariedade -       a solidariedade
 meiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais urn filho   tt l trJgedia, uma solidariedade taciturna- ergueu-se em tor-
 assim, algo que ele simplesmente nao consegue transformar        I ll) dele em pou~as horas, mas ele nao queria ouvir ninguem.

em filho.                                                         I 'ont in ua cabeceando; o minuto seguinte de sua vida est a
    No momento em que enfim se volta para a cama, nao ha          tl i,t nle dele, mas ele nao quer abrir essa porta. No silencio
mais ninguem no quarto - s6 ele, a mulh~r, a crian<;a no colo     t'O ill a mulher eo filho, viu-se chorando, o que durou pouco.
dela . Ele nao consegue olhar para o filho . Sim - a alma ain-    Elc L   entava desesperadamente achar alguma palavra naquele
da esta cabeceando atras de uma solu<;ao, ja que nao pode         v.tzio; nao havia nenhuma. Tambem era dificil concentrar o
voltar cinco minutos no tempo . Mas ninguem esta condena-         olhar em alguma coisa- como a coisa que estava nas maos
do a ser o que e, ele descobre, como quem ve a pedra filoso-      t1 ,1 mae, a mae a quem nao achava nada para dizer. Urn pe-
fal: eu nao preciso deste filho, ele chegou a pensar, e o pen-    qucno sopro de civiliza<;ao ainda o fez tocar suas maos, urn
samento como que foi deixando-o novamente em pe, ainda            gcslo esvaziado e falso, frio como gelo, enquanto os olhos
que ele avan<;asse passo a passo tropego para a sombra. Eu        tl an<;avam pelas paredes brancas, atras de uma saida. Seria
tambem nao preciso desta mulher, ele quase acrescenta, num        prcciso dizer alguma coisa, mas ele nunca sabe o que dizer;
 dialogo mental sem interlocutor: como sempre, esta sozinho.      muitos anos atras, na formatura do ginasio, tentou redigir urn
                                                                  discurso para concorrer ao posto de orador da turma, o que
                                                                  faria dele alguem visualmente importante, la no pulpito, e
                                                                  nao foi alem da primeira exorta<;ao: Colegas! 0 bra<;o fazia o
                                                                  gesto, o tom de voz era born, a postura condizia: Colegas! E a
                                                                  alma despencava no vazio: as palavras dao em arvores, e s6
                                                                  estender a mao, elas estao todas prontas, mas ele era absur-
                                                                  damente incapaz de achar uma s6 que lhe servisse. Hoje, de
                                                                  novo, a mesma sensa<;ao. Colegas! Como as vezes fazia nos

                               32                                                               33
momentos desagrada.veis, projetou urn futuro acelerado so-         boca aberta, lingua muito grande, pescoc;:os achatados, e lar-
bre si mesmo, a passagem vertiginosa do tempo, as coisas fa-       gos como troncos. Em poucos minutos- ele nao pensou nis-
talmente acontecendo umas depois das outras, o envelheci-          so, mas era o que estava acontecendo - aquela crianc;:a hor-
mento e a morte, pronto, acabou, urn cartum delirante, os          rivel ja ocupava todos os poros de sua vida. Haveria, para
trac;:os se sucedendo - o que era aquele momento diante de         todo o sempre, uma corda invisfvel de dez ou doze metros
tudo que talvez ja estivesse desenhado diante dele? Urn mo-        prendendo os dois. E entao iluminou-se uma breve senda,
menta insignificante de alguem insignificante preocupado           tambem na memoria do trabalho que ele revisou, e, na ma-
tambem com urn ser insignificante - apenas uma estatfsti-          nha de uma noite maldormida, mal acordado ainda de urn
ca: va em qualquer maternidade e a cada mil nascimentos ha-        pesadelo, a ideia- ou o fato, alias cientffico, portanto indis-
vera, loterica, uma crianc;:a Down, que alimentara outras es-      cutfvel- bateu-lhe no cerebra como a salvac;:ao da sua vida.
tatfsticas e estudos como aquele que ele revisou, curioso.        A liberdade!
Cada coisa que ha no mundo! Crianc;:as cretinas- no senti-             Era como se ja tivesse acontecido - largou as maos da
do tecnico do termo -, crianc;:as que jamais chegarao a me-        mulher e saiu abrupto do quarto, numa euforia estupida e in-
tade do quociente de inteligencia de alguem normal; que nao        tensa, que lhe varreu a alma. Era preciso sorver essa verda-
terao praticamente autonomia nenhuma; que serao incapa-           de, esse fato cientffico, profundamente: sim, as crianc;:as com
zes de abstrac;:ao, esse milagre que nos define; e cuja noc;:ao   sfndrome de Down morrem cedo. Por algum misterio daque-
do tempo nao ira muito alem de urn ontem imemorial, mi-            le embaralhar de enzimas excessivas de alguem que tern tres
lenar, e urn amanha nebuloso. Para eles, o tempo nao existe.      cromossomos numero 21, e nao apenas do is, como todo mun-
A fala sera, para sempre, urn balbuciar de palavras avulsas,      tlo, as crianc;:as mongoloides - a palavra monstruosa ganha-
 sentenc;:as curtas truncadas; sera incapaz de enunciar uma es-    va agora urn toque asseptico do jargao cientffico, apenas a
 trutura na voz passiva (a janela foi quebrada par Joao estara    definic;:ao fria, nao a sua avaliac;:ao- sao anormalmente inde-
 alem de sua compreensao). 0 equilibria do andar sera sem-         fcsas diante de infecc;:oes. Urn simples resfriado se transfor-
 pre incerto, e lento; se os pais se distraem, eles engordarao     ma rapidamente em pneumonia e daf a morte - as vezes e
 como toneis, debaixo de uma fome nao censurada pela sen-          uma questao de horas, ele calculava. E ha mais, entusiasmou-
 sac;:ao de saciedade, que neurologicamente demora a chegar.      se: quase todas tern problemas graves de corac;:ao, malforma-
 Tudo neles demora a chegar. Nao veem a distancia - o mun-        ~·oes de origem que lhes dao uma expectativa de vida muito
 do e exasperadamente curto; s6 existe o que esta ao alcance      curta. Extremamente curta, ele reforc;:ou, como quem da uma
 da mao. Sao caturros e teimosos - e controlam com dificul-       ,1 ula, 0 balanc;:ar compreensivo de cabec;:a - e triste, mas e
 dade os impulsos, que se repetem, circulares. S6 conseguirao     real. Anotaram no caderno? E ha milhares de outros peque-
 andar muito tempo depois do tempo normal. E sao crianc;:as       nos defeitos de fabricac;:ao. Urn carro nao conseguiria andar
 feias, baixinhas, pr6ximas do nanismo - pequenos ogros de        assim. Ele acendeu urn cigarro, e parecia que a vida inteira

                              34                                                                35
voltava ao normal ao sentir aquela tragada maravilhosa, in-       lllnllgoloides sao seres hospitalares, vivem na antessala dos
tensa, perfumada: veja, ele se dizia, nao h.i velhos mongo-       111 !'• di cos. Poucos vao alem dos ... quantos anos? Ele pensou
loides. Voce tern certeza disso?, alguem perguntaria, erguen-     e111 1 anos, e calculou a propria idade, achando muito; tal-
                                                                             0
do o brac;:o; sim, nenhuma duvida; eles morrem logo, e ele        VI'/, 5, fantasiou, vendo imediatamente uma sequencia rapi-

desejou passear por uma rua movimentada as seis da tarde          il.l dL' anos, os amigos consternados pela sua luta, a mao no
so para conferir in loco, cabec;:a a cabec;:a, essa verdade in-     I' ll ombro, mas foi inutil - rnorreu ontern. Sirn, nao resis-
discutfvel: eles nao existem. Veja voce mesmo. Procure na         lltl . V   oltariarn do cerniterio corn o peso da tragedia na alma,
multidao : nao existem. Era quase meio-dia, a maternidade         tn .t:-1, enfim, a vida recornec;:a, nao e? Urn sopro de renovac;:ao
agitada. Uma enfermeira lhe pergunta alguma coisa, ele diz                co mo se ele tivesse existido apenas para lhes dar forc;:as,
que nao, que vai sair, nao querendo pensar muito na sua           p.11-.1 uni-los, ao pai e a mae, sagrados. Viu-se carninhando no
descoberta para nao estraga-la, para melhor usufruir a li-        pMque Barigui, quem sabe urna rnanha bonita e rnelancolica
berdade que, subita, estava diante dele, talvez - ele calculou    ro lll O esta, repensando aqueles cinco - aqueles tres anos,
- seja so uma questao de dias, dependendo da gravidade            l.d vcz dois. A tempera da alma: eis a expressao certa para co-
da sfndrome.                                                       lll l'~'a r seu discurso de orador. Colegas! Precisamos da tern-
     Nao h.i mongoloides na historia, relato nenhum - sao se-     1H'ra   da alma!
res ausentes. Leia os dialogos de Platao, as narranvas medie-           Por que se preocupar? Refugiado na verdade cristalina de
vais, Dam Quixote, avance para a Comedia humana..de Bal-          qu e seu filho nao viveria rnuito - era apenas uma especie
zac, chegue a Dostoievski, nem este comenta, sempre atento        dt• provac;:ao que Deus, se existisse, teria colocado na sua vida
aos humilhados e ofendidos; os mongoloides nao existem.           p.tra testar a tempera de sua alma, como fez a Job- o rnundo
 Nao era exatamente uma perseguic;:ao historica, ou urn pre-      p.trece que se reorganizou inteiro . Ele sernpre foi urn hornern
conceito, ele se antecipa, acendendo outro cigarro - o dia        otimista. Alguem do seculo XX, ele sonhou, apaixonado pela
esta muito bonito, a neblina quase fria da manha ja se dissi-     l l~c nica, entusiasmado pela ideia do prazer, fascinado pelas
pou, e o ceu esta maravilhosamente azul, o ceu azul de Curi-      tnulheres, atrafdo pela inteligencia, rnergulhado no rnundo
 tiba, que, quando acontece (ele se distrai), e urn dos melho-    verbal, irnpregnado de duas ou tres ideias basicas de hurna-
 res do mundo - simplesmente acontece o fato de que eles          nismo e liberdade, urn pequeno Pangloss da provincia, ern
 nao tern defesas naturais. Eles so surgiram no seculo XX, tar-   1,i pida transformac;:ao. Ao rnesrno tempo, uma rede tentacular

 diamente. Em todo o Ulisses, James Joyce nao fez Leopold         de afetos, de que ate o fim da vida ele jamais conseguira
 Bloom esbarrar em nenhuma crianc;:a Down, ao longo daque-        HC livrar cornpletamente, parece que o arrasta para tras e o
 las 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamen-         imobiliza. Eu nao tenho cornpetencia para sobreviver, con-
 te. 0 cinema, em seus lill_ano~~contabiliza, fon;ando a            ·lui. Nao consegui nern urn unico trabalho regular na vida.
 memoria, jamais os colocou em cena. Nem vai coloca-los. Os        Penso que sou escritor, mas ainda nao escrevi nada. Tudo que

                              36                                                                   37
tenho e urn filho recem-nascido que deve morrer em breve.
Mas esse, mas essa morte proxima, esse - ele gaguejava,
tentando nao pensar nisso, acendendo outro cigarro, tentan-
do recuperar o fio de uma rotina que simulasse normalidade,
o que fazer agora? almo<;ar? - mas esse fato, essa morte
anunciada, parecia-lhe, nesse momento, o unico lado born
de sua vida.


                                                                   Como no cartum imaginario em que os fatos se sucedem
                                                              lninterruptos, ele ja esta em casa. Ha urn simulacra de nor-
                                                              ntalidade, desde o bonequinho azul na porta do quarto do fi-
                                                              llto- os preserites, os pacotinhos, os chocalhos pendurados,
                                                              os enfeites, a incrfvel parafernalia de urn recem-nascido, fral-
                                                              d,ls, talcos, roupas, sapatinhos, babados, brinquedos - ate
                                                              .ts providencias miudas. Pai e mae conversam como se nao
                                                              ltouvesse nada diferente acontecendo, ate que urn pequeno
                                                              surto de depressao aflore, e entao urn breve gesto do outro
                                                              1'l'p6e a normalidade possfvel, numa balan<;a compensat6ria.
                                                              A ideia - ou a esperan<;a - de que a crian<;a vai morrer logo
                                                              tranquilizou-o secretamente. Jamais partilhou com a mulher
                                                              ,1 revela<;ao libertadora. Numa das fantasias recorrentes, abra-
                                                              ~·a-a e consola-a da morte tragica do filho, depois de uma fe-
                                                              bre fulminante. Mas ela sabe muito bern do risco, e trabalha
                                                              L'ffi sentido contrario; nesses poucos dias esta permanente-
                                                              mente, obsessivamente atenta a cada mfnimo sinal que par-
                                                              ventura surja para amea<;ar o filho. Que, alias, parece muito
                                                              saudavel para uma crian<;a com aquela folha corrida geneti-
                                                               ·a. Abre a boca horrorosa e chora muito; quando dorme, dor-
                                                              me em excesso; e preciso acorda-lo, alguem sugeriu. Quanto
                                                              mais ele se mover, melhor - melhor para quem?, o pai se
                                                              pergunta. Move-se como qualquer outra crian<;a. A lingua pa-


                             38                                                             39
r-



                                                                            ~
         rece urn pouco mais comprida que a lingua dos outros, ele                 Llncia estupida em romper como proprio passado, naufrago
         pensa, mas os bebes sao animais ducteis, formam-see defor-               dt•lc mesmo, depois o curso universitario com a definitiva in-
         mam-se com facilidade, vao tomando contornos diferentes                   lt•grac;ao ao sistema, mas nenhuma de suas vantagens, de-
         dia a dia. Se ele coloca o dedo na sua palma, o menino agar-               t•rnpregado indocil, escritor sem obra, movendo-se na som-
         ra-o com alguma forc;a, 0 que, dizem, e sinal de boa saude.              hr ,l cnsaboada de seu born humor- e agora pai sem filho.
         Mas a cabec;a, ele pensa, e grande demais, mesmo para urn                     Epreciso enfrentar as coisas tais como elas sao; e preciso
         hebe, que sao cabec;udos por natureza. Esse pescoc;o. E esse             tlt•sarmar-se, ele sonhava. Nao fugir do peso medonho do ins-
         choro esganic;ado - isso e normal?                                       Lillie presente. A filosofia inteira do seculo se debruc;a sabre
             Nao, nada mais sera normal na sua vida ate o fim dos                 t•ssc instante vazio, ele relembra. 0 problema e que as coisas
         tempos. Comec;a a viver pela primeira vez, na alma, a an-                     o filho agora, e toda a interminavel e asfixiante soma dos
         gustia da normalidade. Ele nunca foi exatamente urn homem                pl't]uenos fatos cotidianos que ele acumulou a vida inteira
         normal. Desde que o pai morreu, muitos anos antes, o seu                rom a sensac;ao .de que criava e nutria uma personalidade
         padrao de normalidade se quebrou. Tudo o que ele fez desde               pr6pria- as coisas nao sao nada em si. 0 mundo nao fala.
         entao desviava-o de urn padrao de normalidade - ao mesmo                Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que
         tempo, desejava ardentemente ser reconhecido e admirado                 .t s coisas sao. Esse e urn poder inigualavel- eu posso falsifi-
         pelos outros. 0 que, bern pensado, e a normalidade abso-                r.rr tudo e todos, sempre, urn Midas Narciso, fazendo de tudo
         luta, ele calcularia hoje. Uma crianc;a tfpica, urn adolescente         111inha imagem, desejo e semelhanc;a. Que e mais ou menos
         tfpico. Urn adulto tfpico? Era uma mistura de ideologia e de            o que todos fazem, o tempo todo: falsificar. Essa algaravia
         inadequac;ao, de sonho e de incompetencia, de desejo e de               rnonumental em toda parte, todos falando tudo a todo ins-
         frustrac;ao, de muita leitura e nenhuma perspectiva. Todos              l.rnte, esse horror coletivo ao silencio. Ha outra perspectiva?
         os projetos pela metade, tudo parece mais urn teatro pes-               N.1da tern essencia alguma (ele lembra dos livros que leu) em
         soal que alguma coisa concreta, porque eram poucos os ris-              hrgar algum. Isso, sim, faz sentido. Eu so preciso escapar des- ·
         cos. 0 medo da mesma solidao que ele alimentava todos                  1,1 asfixia. 0 filho e a imagem mais proxima da ideia de desti-
         os dias. A tentativa de se tornar piloto da marinha mer-                ne, daquilo de que voce nao escapa. Ou daquilo de que voce
         cante, a profissao de relojoeiro, o envolvimento no projeto            n,1o pode escapar? Por que? Por que eu nao posso tamar ou-
         rousseauniano-comunitario de arte popular, a dependencia de            lro rumo?- sera a pergunta que fara varias vezes ao longo
         urn guru acima do bern e do mal, a arrogancia nietzschiana             da vida. Porque eu ja tenho uma essencia, ele responde, que
         e autossuficiente com toques fascistas daqueles tempos ale-            l'Umesmo construf. A minha liberdade e uma margem muito
         gres (ele percebe hoje}, enfim a derrocada de se entregar ao            ·~;treita, suficiente apenas para me deixar em pe.
         casamento formal assinando aquela papelada ridfcula num                      No escuro, a crianc;a dorme.
         evento mais ridfculo ainda vestindo urn paleto (mas nao uma                  Ele acende urn cigarro na sala. Urn dos raros momentos
         gravata, ele resistiu, sem gravata!}, a falta de rumo, uma relu-   1   tranquilos, mas, ao apurar o ouvido, ouve o choro da mulher

                                       40                                                                     41
.

                                                                                                    ..
no quarto, quase urn choro de crianc;a inibida. Ele fica im6-     1.1   da melhor ciencia do imperio britanico, descreveu pela pri-
     vel, ouvindo. A crianc;a nao acerta sugar o seio - e preciso        rnl'ira vez a sfndrome frisando a semelhanc;a da vftima com a
     toda uma operac;ao de guerra para conseguir algumas gotas          t•xpressao facial dos mong6is, la nos confins da Asia; daf
     de Ieite. Indicam uma traquitana (o que lhe agrada, e claro):      "111ongoloides". Que tipo de mentalidade define uma sfndro-
     urn pequeno funil de vidro com uma bombinha de borracha.           llll' pela semelhanc;a com os trac;os de uma etnia? 0 homem
     Urn objeto delicado : lembra-lhe algo antigo, uma farmacia de      Ill itanico como medida de todas as coisas. 0 prfncipe Charles,
     filme, urn alquimista medieval. Aquilo suga o Ieite como urn       .tquela figura apolfnea, sera o padrao de normalidade racial,
     projeto de Da Vinci, ele fantasia. Gotas amareladas - nao          t' l'lc comec;a a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como
     parece Ieite. Dias tensos para a mae, ele sabe. Numa das cri-      t•ssa denominac;ao durou mais de urn seculo, como algo nor-
     ses, ela lhe diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a      Ilia! e aceitavel? Sim, normal e aceitavel, inclusive por ele
     tua vida. E ele nao respondeu, como se concordasse - a mao         rnesmo - ele lembra agora, com urn frio na espinha, como
     que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, nao a        ll ,i poucas semanas comentou com urn colega a burrice de
     verdade dos fatos. Talvez ela tenha razao, ele pensa agora,        11ma professora: Parece uma mongoloide, ele disse. A palavra
     no escuro da sala - e preciso nao falsificar nada. Ela acabou      veio-lhe facil, do trabalho que revisava - foi s6 estender a
     com a minha vida- refugia-se no oco da frase, sentindo-lhe        111ao e recolher da arvore. Nao cuspa para cima, que cai no
     o eco, e isso lhe da algum conforto.                              olho, lembrou ele do dito popular, essa sabedoria calculista e
         A normalidade. 0 que dizer aos outros, quando encontra        pragmatica, procurando sempre uma justic;a secreta em todas
     com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, esta tudo bern. Quer        .1s coisas, para fugir do peso terrfvel do acaso que nos define.
     dizer, ele e mongoloide. Nao - essa palavra e pesada demais.             0 problema da normalidade. Talvez ele mesmo escreva
     E em 1980 ninguem sabia o que era "sfndrome de Down".             urn pequeno roteiro com o texto certo para as pessoas reci-
     A maneira delicada de dizer e: Sim, urn pequeno problema.         tarem no momento da confissao da tragedia. Algo como "Nao
     Ele tern mongolismo. Mas isso exige uma rede de explicac;6es      me diga! Mas imagino que hoje em dia ja ha muitos recursos,
     subsequentes - e as pessoas nunca sabem o que dizer ou            nao? Olha, precisando de alguma coisa, conte comigo" -
     fazer diante daquela coisa esquisita. Ao "nao me diga!" cons-     c entao ele diria, obrigado, vai tudo bern. Mudariam de as-
     ternado, ele da urn tapinha nas costas, urn sorriso, e tranqui-   sunto e pronto . Bern, em grande numero de encontros, nao
     liza - mas esta tudo bern, sao crianc;as bem-humoradas, com       precisaria dizer nada: sao bilh6es de pessoas que nao o co-
     urn born tratamento elas ficam praticamente normais. "Prati-      nhecem, contra apenas umas dez ou doze que o conhecem.
     camente normais". 0 que ele quer resolver agora nao eo pro-       Essas ja sabem; nao e preciso acrescentar nada. Na maior par-
     blema da crianc;a, mas o espac;o que ela ocupa na sua vida.       te dos casos, basta dizer: Sim, a crianc;a vai bern. Felipe, o
      E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Ja viu         nome dele. Obrigado. E nada mais foi perguntado e nada mais
      na enciclopedia que o nome da sfndrome se deve a John            se respondeu, dando-se por encerrado o assunto e prosse-
      Langdon Haydon Down (1828-1896), medico ingles. A manei-         guindo a vida em seus tramites normais. Ele respira aliviado.


                                   42                                                                43
..
0 problema, ele insiste, e que nao ha bern urn lugar para essa      A fa milia do velho Kennedy escondeu do mundo, a vida
crianc;a na sua vida. Lembrou, em panico, do poema 0 filho       l11 1drJ, urn filho retardado. Havia muita coisa em jogo, ever-

da primavera, que lhe ressurgiu subito inteiramente ridfculo,     ri.H IL• - mas o grande motor era a vergonha . A vergonha
patetico, o horror do texto ruim, do mau gosto, do arquikitsch    11 '11 11 ,1 do catador de lixo ao presidente da Republica. E uma
desabando na cabec;a e na memoria - ele havia entregue           ' ll o~vc poderosa da vida cotidiana: esses politicos deviam e
para publicac;ao numa revista de letras, e comec;ou a suar, so   1 vcrgonha na cara!, nos dizemos todos os dias, o que e urn
                                                                    1'1
de lembrar. Teria de suportar aquilo impressa - talvez ate       11 1.1 11 tra que nos redime enos tranquiliza. Como se fosse a
o viessem cumprimentar pelo talento e pela sensibilidade:         l l ll '~ m a coisa, agora ele sentia vergonha, embora a palavra,
                                                                 11111 algum misterio, nao lhe aflorasse, o som da palavra em
"Como voce superou bern o problema!", diriam, solidarios, o
solido aperto de maos, o sorriso de admirac;ao. Sim, todos           1 .1 simplicidade, como se alguma coisa tao absurdamen-
                                                                       1
sempre souberam que ele tern talento. E a mentira escarrada:     11 • ~ imples, vergonha, nao pudesse fazer parte de sua vida
                                                                 ( •1 t'1 os medfocres sen tern vergonha, ele recitava) - o que che-
urn poema meloso para urn filho retardado. Era preciso im-
                                                                 I.IV,1 a pele, 0 que queimava, era 0 sentimento insuportavel
pedir a publicac;ao daquilo. Ele perde qualquer resqufcio de
sono, so em lembrar: amanha cedo mesmo falara com a edi-         d1• alguma coisa errada. E alguma coisa errada nao com o
tora da revista: Por favor, nao publique o poema. Ainda ha       IIIII o, mas com ele mesmo.
tempo, nao? Ele nao sabe ainda, mas bastou urn breve fiapo                A crianc;a dorme, a mae agora tambem dorme, e ele acen-
de realidade mais diffcil para que se apurasse seu senso de      dv outro cigarro, no escuro. A mulher tern razao: ela acabou
literatura. Mas aqui o problema e outro .                        n un a vida dele, ele suspira, concordando, e sente-se miste-
     A vergonha. A vergonha- ele dirci depois- e uma das         liosamente mais tranquilo.
mais poderosas maquinas de enquadramento social que exis-
tem. 0 faro para reconhecer a medida da normalidade, em
cada gesto cotidiano. Nao saia da linha. Nao enlouquec;a.
E, principalmente, nao passe ridfculo. Ele pensava sincera-
mente que ja havia transposto esse Rubicao de uma vez por
todas - o teatro de rua de que participara anos atras, na co-
munidade, aquela grandiloquencia pretensiosa fantasiando-
se de teatro popular ja lhe dera micos suficientes para urn
doutorado em cara de pau. Mas havia a protec;ao de grupo e
o involucra da inconsequencia - ele ainda podia ser qual-
 quer coisa a qualquer momento; ele ainda podia mudar de
 rumo; ele nao tinha destino algum. Tinha so a arrogancia fe-
 liz da liberdade. Fodam-se.

                                                                                                45
                             44
Em apenas dais dias surgiu outro argumento poderoso
p.tta escapar do peso do momenta presente: a hip6tese de que
ltouvesse urn erro de diagn6stico, e que, de fato, a crian~a
losse normal oil tivesse algum problema de outra natureza,
la•m menos grave.
       S6 havia urn modo de tirar a duvida: fazer o cari6tipo da
f:l 1.1n~a, a fotografia dos cromossomos. Mas ele nao consegue
 ~ ~· enganar: sabe que essa hip6tese e remota- o menino pa-
 tl'l'l' uma demonstrayao viva de todas as caracteristicas mais
ollvias da sindrome, praticamente urn exemplo didatico para
 tt s,u em sala de aula. Conversando como professor da area
dt• genetica, descobre a possibilidade de uma salva~ao mila-
grosa, mas que seria pelo menos rigorosamente cientifica.
() cstudo de urn pesquisador frances de alguns anos antes,
sobre a ocorrencia da trissomia em gemeos, teria revelado
que pode haver manifestayao parcial da sfndrome- desco-
llriu-se que uma parte delimitada do cromossomo extra e res-
ponsavel estritamente pelo retardo mental, e outro segmento,
1 ,1mbem perfeitamente delimitado, e responsavel pela aparen-
cia fisica, pelo fen6tipo, o conjunto de caracteristicas exter-
nas que permitem o diagn6stico. No caso dos gemeos, urn
exemplo fortuito, houve uma "distribuiyao do problema": urn
deles, de aparencia perfeitamente normal, apresentava a defi-


                              47
ciencia mental tfpica da sfndrome; o outro, de aparencia ine-     Vt' l.lr as fotos dos cromossomos que tirou em urn laborat6rio
quivocamente Down, era uma crianc;a mentalmente normal.           d.t Franc;a. Mais tarde, no Canada, ele apresenta a tese do
     0 caso era urn milagre- de ocorrencia e de sorte cientffi-   "dl'lcrminismo cromossomico" dos "mongoloides". No ano
ca do pesquisador em flagra-la- mas o paise aferrou ao mi-          q:uinte, publica seu trabalho - pela primeira vez se de-
lagre assim que soube dele. Sim - praticamente nao havia          lt 'lll1ina a relac;ao entre uma aberrac;ao cromossomica e uma
duvida de que o Felipe era uma crianc;a normal; veja como         dt•li ciencia mental. Era mais urn passo em direc;ao a desde-
ele aperta o dedo com forc;a assim que voce toea na palma         ltlonizac;ao do mundo , comprovando-se nessa area sensfvel,
dele! Muito provavelmente, ele argumentava, agitado, talvez       lt'l rit6rio privilegiado da magia, dos bruxos, dos maus-olha-
para nao ouvir o que ele mesmo dizia, muito provavelmente         dos, das maldic;oes e das transcendencias de ocasiao, mais
a parte afetada do cromossomo e apenas a das caracterfsticas      11ma vez a natureza arbitraria, absurda, loterica, erratica dos
ffsicas, nao a responsavel pelo retardo mental. Essa fantasia     l.1 tos; em suma, urn cari6tipo e por si s6 mais urn passo de-
lhe dava folego para sobreviver mais alguns dias (ja se ante-     1 10nstrativo da vida em direc;ao a profunda indiferenc;a de
cipava, em lapsos visionaries de que ele mesmo achava gra-        totlas as coisas. Ele fecha os olhos, tentando dar uma digni-
c;a, nervoso, preocupando-se com a feiura da crianc;a- como       d,lde fria ao seu desespero : a contingencia do ser e urn fato,
convencer os outros de que aquele pequeno monstro seria,          ll'pete ele, como se a revelac;ao por si s6 o salvasse do abis-
de fato, uma crianc;a normal?); a outra hip6tese, a mais s6li-    1 Mas e ainda incapaz da pergunta seguinte: e daf?
                                                                    110.
da - trata-se sem discussao de uma trissomia do cromosso-               Ainda no hospital (lembra-se agora, acendendo outro ci-
mo 21 -, tambem nao seria tao tragica, afinal, pela vulnera-      garro e olhando para 0 teto), 0 irmao dele veio ve-lo.
bilidade da crianc;a - uma infecc;ao e ela nao sobreviveria.            - Voce ja sabia - o irmao disse, serio como urn sacer-
Em qualquer caso, Pangloss esta feliz! Tudo que ele queria        dote, como quem sussurra urn segredo esoterico acessfvel
era urn apoio silencioso naquela passagem de tempo, qual-         .1penas aos iniciados, aproximando o rosto como urn cristao
quer coisa que nao fosse encarar o fato em si. Deixar escorrer    tl isfarc;ado do primeiro seculo, movendo-se nas sombras do
o tempo, no limbo da inconsciencia. Mais uma vez ele sairia       paganismo hostil-e mostrou-lhe o documento indiscutfvel,
do outro lado, sozinho, sao e salvo, mais experiente, mais        urn dos dez poemas que o pai do Felipe havia escrito anot
maduro, mais compenetrado de seu grande destino.                  antes, numa pensao em Portugal, em seus tempos de mo-
     Era preciso, entretanto, enfrentar o cari6tipo. Ate meados   chileiro, e enviado ao irmao . "Tudo esta em tudo", talvez ele
dos anos 1950 nao se sabia o que causava o chamado mon-           dissesse em complemento. Mesmo com 42 graus de febre, o
golismo . Foi o medico frances Jerome Lejeune (1926-1994)         irmao sempre se recusou a tamar remedio; no maximo, uma
quem pela primeira vez relacionou a sfndrome com uma ca-          agua fria na testa - "A natureza sabe o que faz." 0 pai do
racterfstica genetica perfeitamente delimitada, a trissomia do    Felipe abriu o papel, ja antevendo o que estava ali. Irritando-
cromossomo 21. Em 1958- o pai le, avido, o material que o         se com a consolac;ao tranquila e medieval que o irmao ofe-
professor lhe empresta - Lejeune vai a Dinamarca para re-         recia, releu 0 proprio texto, de rna vontade:

                              48                                                                49
Nada do que nao foi                            t. 1    tt.tda do que nao foi" e urn eco longfnquo e inepto do Qua-
                poderia ter sido.                              {,rlt/tUlrletos,    que por sua vez repete o Eclesiastes; mas ami-
                Nao ha outro tempo                               '"'" rdcrencia e posti9a. Nunca assisti a uma missa inteira na
                sobre esse tempo.                                rlillllt,l vida. Nao sei latim nem sou leitor da Bfblia. Nao gosto
                                                                i11 • p.tdres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de
                Amanha e amanha                                   lltticlcricalismo atavico. Nao tenho absolutamente nada aver
                e uma escada curva.                             '"'" cssa causalidade mftica que querem inventar na cultura
                Ninguem abre a porta                            '''' Ocidente, esses brasoes de isopor, pintados de ouro, que
                ainda em modelo.                                 !11 .tvcssam OS tempos; nunca li Virgilio inteiro; tudo isso e
                Hoje ouvimos os ratos                              .dwdoria de urn almanaque sofisticado - T. S. Eliot e al-
                roendo o outro lado.                            f:llt''m incompreensfvel para mim. E continua, quase em voz
                Ninguem chegou l.i,                            .dt,t : "Nada do que nao foi poderia ter sido" e urn prosafsmo
                porque hoje e aqui.                             ltnnfvel herdado das teses do velho guru, para quem haveria
                                                               11111.1 misteriosa "propon;ao correta" entre todas as coisas -
                Mas o sonho insiste                            dt• novo, a magica explicac;ao medieval do mundo, tudo esta
                o sonho transporta                             '·' "' tudo, esse delfrio capaz de atrair (e tranquilizar) tantos
                o sonho desenha                                111ilh6es de pessoas todos os dias. Ha uma causae uma culpa
                uma escada reta.                               ('Ill tudo - e preciso que haja, e absolutamente indispensa-

                                                               Vl'l que haja urn sentido para as coisas, ou cafmos no abismo.
               Quando cortas o pao                             Elc sente que a ideia do acaso e insuportavel - pois e exata-
               o depois-de-amanha                              mente af que ele quer estar, naquilo que nao pode ser supor-
               nao te interessa.                               t.ldo, ele sonha, como quem se afasta do corpo e se transfor-
               Mesmo que sabes:                                ma em abstra9ao. A escada curva do amanha, a porta ainda
               todas as fon;as                                em modelo, sao ecos de algum verso de Carlos Drummond
               estao reunidas                                 de Andrade, que ele leu, repetiu e decorou tantos milhares
               para que o dia amanhe9a.                       de vezes desde a infancia que ja fazem parte de sua sintaxe.
                                                              "Mesmo que sabes" e urn enigma oco. A estrofe final, que pa-
    Ele estava demasiadamente destrufdo, no momento, para     rece uma marcha militar, vern de algum ideario marxista di-
contra-argumentar, mas come9ou a moer e remoer o seu pro-     fuso, linguagem do tempo, estilo revolu9ao cubana, compa-
prio poema assim que ficou sozinho. Nada aqui sou eu, disse   nheiros, avante!, determinismo dialetico, a ideia de que a
ele, em voz alta. Isso e urn simulacra de poesia; cada ver-   causalidade absoluta da natureza se confunde com a causa-
so deixa o seu rastro a vista, num amadorismo elementar.      lidade contingente dos fatos da cultura e da hist6ria; "realis-

                            so                                                                51
mo" socialista. As "fon;:as reunidas" descem pela escada de          tl       .'I mago das coisas, nesse momento, e a descoberta de
algum verso retumbante em berc,:o esplendido, talvez. 0 de-            lt•tttH.', tao simples na sua metodologia prosaica de labora-
sejo de que o dia amanhec,:a, quem sabe num sabado, tern urn      tlll ill, na completa ausencia de pathos da melhor ciencia, o
que de Vinicius de Moraes, outro tanto de Geraldo Vandre,         lt . d ~o tlil o de formiga diante de plaquinhas de vidro, anos a fio.
para nao dizer que nao falei de flores. E lembrou que o poe-      llttllt ,tbalho realmente nao espetacular. Uma coisa mediocre.
rna foi escrito em Portugal, em plena Revoluc;ao dos Cravos       I f'V.t tll a-se uma hipotese e testa-sea hipotese: repita-se a ope-
- cinco governos provisorios em urn ano. Ele absorvia aqui-       ' t, to ate se chegar a "verdade dos fatos". Sim, a mac;a cai na
lo pelos poros - e urn pouco por preguic,:a. 0 parafso estava     ' dn•<,·a e pode-se ter urn estalo de criac,:ao- a lei da gravida-
proximo, faltava so acertar os detalhes.                          tit •, mas isso nao elimina a hipotese nem a sua repetic,:ao sis-
    Problema mesmo, de verdade, era o dele, agora. A auto-        lt•tn , tica. E urn terreno pantanoso, ele sabe, e sabe que esse
demolic;ao poetica deixa-o sem chao, ainda no corrector do        11.1o co terreno dele. Qual e mesmo o terreno dele? 0 orgulho
hospital. Mas ele sabe exatamente o que nao quer, ao reagir       dt"K'o munal, teirnoso como urn campones, a consciencia lu-
ao conforto poetico: nao quer uma muleta. Quer o fato em si.      tt tl nosa do proprio destino, grande como o dos gregos, a soli-
0 amago das coisas, sonha ele, nao resistindo ao prazer da        d.to como urn valor etico. Eo que ele tern? Nada. Vive ascus-
bravata. E quer manter intacto o orgulho, o sentimento da         l.t H da mulher, jamais escreveu urn texto verdadeiramente
propria superioridade, que custou tanto a alimentar, que foi      hom, sofre de uma inseguranc;a doentia e, agora, tern urn fi-
sempre a direc;ao cega de sua vida - ou nao teria feito nada,     lilo que, se sobreviver, o que e pouco provavel, sera uma pe-
ou teria sido igual a todo mundo, carimbando formulario em        dra inutil que ele tera de arrastar todas as manhas para reco-
algum balcao, puxando o saco de alguem, dependendo da             tn cc;ar no dia seguinte e assim ate o fim dos dias, pequeno
propria gentileza e da gentileza alheia, pedindo favor, sendo     Sfsifo do vilarejo. Porque nao tera sequer a coragem de mata-
aquila que todos os outros sao, no seu olhar incompleto. Essa     lo , oferece-lo em sacriffcio aos deuses, o que nos daria a di-
porcariada toda, esse lixo que ele ve em volta. Eu nao quero      mensao epica dos tempos sagrados, ele divaga. A saudade da
isso. Eu nunca quis isso. Nao, ele tern outro destino (vem-lhe    pureza primordial; a brutalidade do mundo dionisfaco; o va-
a mente outro desfile de fantasias, os arquetipos, as figuras     lor da tribo. Se alguem grande como Heidegger entregou de
mfticas de uma Grecia retumbante e kitsch, com seus deuses        t:io boa vontade a alma numa bandeja a tribo, por que ele
seminus, contra os quais, parcas do destino, nao ha desgrac,:a-   nao poderia fazer o mesmo? Mas ele, o pai, ri- e a sua uni-
damente 0 que fazer, estamos escritos para todo 0 sempre; e 0     ca boa dimensao, nesse momento. Oculta-se na sombra do
nascimento da tragedia, de Nietzsche, cujos trechos mais          humor. 0 riso desmonta- nenhuma tragectia sobrevive a ele.
impactantes ele copiava laboriosamente no silencio sinistro da    E oculta: o homem que ri nao e visfvel. 0 riso nao tern forma
Biblioteca de Coimbra). 0 amago das coisas. Repita varias ve-     - ele da a ilusao da igualdade universal de todas as coisas.
zes essa expressao, ele se diz, em voz alta, e veja se ela man-          0 amago. Repita: 0 amago das coisas. Ele avanc;a com a
tern algum sentido. 0 amago das coisas. 0 amago das coisas.       mulher e o filho para o predio da genetica, na universidade.


                              52                                                                   53
,.---                                                               -

        Ja esteve aqui, anos antes, tentando avaliar a probabilidade               li'      tmmossomo aqui, o 21, e o dedo aponta - veio com
        de repetir;ao hereditaria de uma provavel retinose da mulher,             1 ,1 1.11nflia maior; sao tres, em vez de dais. Se for esse o
                                                                                    111
        de caracteristicas indecifraveis. Newton Freire-Maia classifi-              ltllt, (• clara, embora ... embora o fen6tipo , o conjunto das
        cou-a como gene dominante - a possibilidade de que acon-                    l 'ltt tl•dsticas fisicas, nao desminta. Mas .
        tecesse o mesmo com os filhos seria de 50% . Ouvindo Freire-                     IJn1,1 gota de sangue. A crianr;a mal se move, mergulhada
        Maia, ele lembrou das leis de Mendel, nos tempos de colE~gio .           ~~ ~ 1•sr uridao do sono. Depois sera o sangue dos pais, mas dai
        Gostava daquilo - era uma arvore perfeita, geometricamen-                   jtC'II.IS em nome da ciencia, para abastecer o banco geneti-
        te delimitando olhos azuis (dependendo dos pais, 25%) e                  ut Algum pesquisador, diante dos cari6tipos de centenas de
        olhos castanhos (os outros 75%); ele via, graficamente, o                p.tl'l de crianr;as Down, podera quem sabe ter urn momenta
        poder da possibilidade, tirando linhas daqui e dali, genes               d•• n iar;ao e descobrir alguma nova lei de recorrencia geneti-
        recessivos, genes dominantes. Uma cH~ncia exata. (Alguem                 1,1 Mas nao e nisso que ele pensa agora - e SO no resultado
                                                                                  ,
        lhe disse, anos depois, que Mendel muito provavelmente frau-             IIIH' vira. Ja esta~a perfeitamente integrado ao destino, nesse
        dou o calculo de suas ervilhas, para que o resultado fosse tao           tttllllciro momenta : tenho urn filho com mongolismo (nao
        miraculosamente exato. Nao importa: ele extraiu a lei, que               llliiScguia mais pronunciar a palavra "mongoloide"), ele di-
        continua viva, em cada nascimento dos bilh6es do mundo .)                    1.1, e e com isso que tenho de lidar. Esse eo problema; nao
        Cinquenta par cento? - era uma aposta razoavel contra o                   lnvente outros; nao agora. 0 impacto inicial de dias antes
        destino; o poder da paixao, e ele abrar;ou a mulher. Que sao              l'omer;ava a amortecer. Mesmo porque ele reservava urn so-
        50%? Uma pura ideia. Sim, vamos colo car nossas fichas em                 ll tl'destino sabre o primeiro: a fragilidade da crianr;a (de urn
        nos mesmos, no vermelho, e se beijaram e se amaram. Mas                   1110mento em diante, evitava pensar nisso , sacudindo a ca-
        a roleta perdeu o rumo, deu preto, a bolinha saltou para                  hl't;a, mas a ideia estava la) faria o resto. Simulando conster-
        outra mesa do cassino e agora eles tinham nos brar;os uma                 llilt;ao, ele ouvia a estatistica dos professores: cerca de 80 %
        trissomia 21.                                                             das crianr;as mongoloides nao sobrevivem muito tempo. Mas
            Era ainda preciso classificar o tipo de trissomia. Se sim-            hoje, eles ressaltavam, isso tende rapidamente a mudar. (Nao
        ples, a possibilidade de repetir;ao da sindrome era minima.                no meu caso, ele sonhava, e sacudia a caber;a.) Quem sabe
        Se de outro tipo, nem tanto. Os professores, gentis, explicam              haja mesmo, de fato, uma proporr;ao correta entre todas as
        sorridentes a maquina dos cromossomos - ele ve aquela fo-                  coisas? Mas agora entrava outra variavel, como urn jogador
        tografia ampliada em preto e branco, uma sequencia nume-                   descartado que, subitamente, ve a chance de voltar ao jogo
        rada de duplas irregulares que parecem dentes com raiz, fora               - e se o cari6tipo indicasse de fato que se trata de uma crian-
        de foco. Estamos inteiros ali, ele imagina. Pensando bern, sao             r;a normal? Apenas esse fiapo ridiculo de esperanr;a dava-lhe
        poucas variaveis para tantos resultados disparatados. A den-               alguns dias de normalidade, ate que o exame ficasse pronto.
        cia organiza - o que vern embaralhado na natureza, a cien-           •     Talvez, ele pensava, ao voltar a ceu aberto, urn dia bonito -
        cia abstrai e dispoe em fila, par tamanho e caracteristicas.               eu deva continuar meu livro e me esquecer urn pouco.

                                     54                                  ~                                       55

..                                                                       I
r·: preciso ainda consul tar urn especialista em genetica me-
dlt 1, para conferir uma eventual cardiopatia- todos os me-
dhos disseram que nao ha nada de errado com a saude do
nH•nino, mas a incidencia de problemas de corac;ao em crian-
'•"s com trissomia 21 e muito alta. Urn especialista saberia lo-
t ,liizar o problema, se houver, com precisao. Ao cruzar o pa-

llo dos milagres do Hospital das Clinicas, aquela pobreza
   ttja, estropiada, crista, os molambentos em fila, a desgrac;a
  ttt cmorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulancias de
ptdeituras do interior trazendo votos potenciais que se arras-
1.1111 em muletas, o gada balanc;ando a cabec;a e contemplan-
do no balcao uma cerca incompreensfvel e intransponfvel,
t'tlidada por outra especie de gada que carimba papeis e en-
lrcga senhas; o setimo ceu e algum corrector que cte em outra
   ala onde urn ap6stolo de branco estendera a mao limpa e
clara sabre as cabec;as para promover a cura milagrosa- ele
pcnsa em Nietzsche e no horror da misericordia, a humilha-
~10 como valor, a humildade como causa, a miseria como
grandeza. Pais o seu filho, confirmada a tragedia, nem mes-
mo a esse ponto (ele olha em torno) chegara, porque nao tera
cerebra suficiente para inventar urn deus que 0 ampare e nao
tera linguagem para pedir urn favor. 0 que o ampara agora,
no vaivem desses dias medonhos, e a perspectiva justamente


                                57
da cardiopatia do seu filho, que acabara logo com o pesade-      tli Vitg.t, cles poderao passear como filho sem ter de dar ne-
lo, ele sonha, e mais uma vez se anteve recebendo abrac;os e     lillltttt.l cxplicac;ao adicional.
condolencias sentidas. Pensa vagamente na imagem de urn                 N.t outra sala, esta o medico - urn velho senhor cansado
                                                                 i1 ut'lll humor que mostra urn sorriso contrariado ao pegar a
filme ingles, urn enterro sob uma arvore, num fim de tarde
melanc6lico, todos de preto. Ma~ nao havera servic;o religio-    u lttt~'<l e coloca-la no pequeno balcao protegido por uma
so. Uma cerim6nia limpa e tranquila. Urn recomec;o: o mun-       lit ,tttl .l c lcnc;6is. Enquanto tira a roupa do bebe, o que ele faz
                                                                 •Piol 'il' com alguma rispidez, o homem vai dando informac;6es
do comec;a com urn suspiro de alfvio. 0 desejo estupido de
morte nao o deixa - hJ. urn esforc;o de derrota-lo (primeiro a    Wllb;,ts sobre a sfndrome com uma voz mon6tona- eo pai
                                                                  pi' tn•he, agulhadas silenciosas na alma, que hJ. uma brutali-
miragem de urn engano genetico, que faria desse nascimento
                                                                 tlttll' medida em cada palavra. Cada palavra e rigorosamente
s6 urn pequeno trote do destino), depois a vergonha do pro-
                                                                     l'td.tdcira, com certeza- e no entanto, ele sente, uma gran-
prio sentimento, a estupidez de sua frieza oculta - ele nao
                                                                 ilt• tlll'ntira esta. em curso, cuja fonte ele nao consegue loca-
consegue oculta-lo; em lapsos, esse desejo volta irresistfvel,
                                                                  li ~ .tL "A mentira sou eu, talvez." Agora senta-se diante da
e e como urn sonho.
                                                                  itll'S,l, os olhos atrafdos por urn livro de que ele vislumbra as
    A porta se abre e uma jovem medica residente, gentil, os
                                                                  p.tl.tvras "mongolismo" e "estimulac;ao", e estende imedia-
recebe com urn sorriso - olha com urn carinho maternal para
                                                                  l,tttll'nte a mao para pega-lo, mas 0 medico e mais rapido
a crianc;a, que dorme suave no colo da mae. Epreciso preen-
                                                                 • como quem apenas limpa o terreno, tira dali o volume, que
                                                                  J.
cher alguns papeis, ela diz, em tom amigavel. Ele se sente urn   dt•s,tparece numa gaveta. No mesmo instante surgem lapis e
animal chucro, puxando o pescoc;o para se livrar do freio na      p.tpl'l - e o homem comec;a a fazer alguns trac;os e escrever
boca, aquela prisao inc6moda que o arrasta para tras: respon-      tlguns numeros, como quem ensaia a demonstrac;ao de urn
der a perguntas idiotas diante de uma mesa, hJ. sempre uma        lt•orcma.
invasao de intimidade - 0 que voce faz, do que voce vive,               - A crianc;a, com urn born estfmulo, podera chegar a
quem voce pensa que e -, e aquela irritante compreensao           nnquenta, sessenta por cento da inteligencia de uma crian-
humanista dos que tern poder mas o usam com moderac;ao.           ~· .t normal. E, bern cuidada, pode ate ter uma vida quase nor-
Aceite a regra do jogo, e o que eles dizem. Euma mulher bo-       lila!, com relativa autonomia. Vejamos agora como esta o
nita e realmente tranquila, ele vai descobrindo, e se angustia   corac;ao.
com a ideia de ser urn homem tao transparente - todos des-              Uma especie de aula para alunos estupidos. Coloca o este-
cobrem de imediato o que se passa na sua cabec;a, ele imagi-      tosc6pio nos ouvidos e, como quem investiga uma mensagem
na. No colo da mae, a crianc;a move a cabec;a e boceja, olhos     do alem, os olhos quase fechados, aquela rede de rugas no
fechados. Sera que, assim, ninguem percebe que esta nao e         rosto envelhecido, urn paje na tribo, ausculta o corac;ao du-
uma crianc;a normal? Os bebes - mesmo o dele - sao todos          rante alguns minutos, movendo milimetricamente a pec;a so-
parecidos. Por urn born tempo, ate que a crianc;a cresc;a, ele    bre o peito da crianc;a (que deve sentir o frio do metal, ele


                             58                                                                   59
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão
O Filho Eterno - Tezza  Cristóvão

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

La actualidad más candente (18)

2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 13   érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
 
Chama 175
Chama 175Chama 175
Chama 175
 
23. depois da chuva
23. depois da chuva23. depois da chuva
23. depois da chuva
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 23   érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
 
Carlos heitor cony pessach, a travessia
Carlos heitor cony   pessach, a travessiaCarlos heitor cony   pessach, a travessia
Carlos heitor cony pessach, a travessia
 
Esau e jaco
Esau e jacoEsau e jaco
Esau e jaco
 
Antologia de autores brasileiros - alem do tempo e do espaço
Antologia de autores brasileiros - alem do tempo e do espaçoAntologia de autores brasileiros - alem do tempo e do espaço
Antologia de autores brasileiros - alem do tempo e do espaço
 
A força que verte do coração
A força que verte do coraçãoA força que verte do coração
A força que verte do coração
 
Velhodahorta
VelhodahortaVelhodahorta
Velhodahorta
 
Musicas
MusicasMusicas
Musicas
 
Memorial de aires
Memorial de airesMemorial de aires
Memorial de aires
 
Virgilio
VirgilioVirgilio
Virgilio
 
Phroybido
PhroybidoPhroybido
Phroybido
 
Podemos-recordar-para-voce-por-um-preco-razoavel
Podemos-recordar-para-voce-por-um-preco-razoavelPodemos-recordar-para-voce-por-um-preco-razoavel
Podemos-recordar-para-voce-por-um-preco-razoavel
 
74
7474
74
 
Depois de uma tragedia
Depois de uma tragediaDepois de uma tragedia
Depois de uma tragedia
 
Boletim verso 27.01.13
Boletim verso 27.01.13Boletim verso 27.01.13
Boletim verso 27.01.13
 

Similar a O Filho Eterno - Tezza Cristóvão

Gramática do grego bíblico
Gramática do grego bíblicoGramática do grego bíblico
Gramática do grego bíblicoisraelfaifa
 
Gonzaga Barbosa
Gonzaga Barbosa Gonzaga Barbosa
Gonzaga Barbosa Ze Legnas
 
Revista moderna. afonso c
Revista moderna. afonso cRevista moderna. afonso c
Revista moderna. afonso cKarina Schil
 
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdffranciscasoares29
 
Adolfo caminha tentação
Adolfo caminha   tentaçãoAdolfo caminha   tentação
Adolfo caminha tentaçãoTulipa Zoá
 
200 anos a família real e a viagem que mudou a história
200 anos a família real e a viagem que mudou a história200 anos a família real e a viagem que mudou a história
200 anos a família real e a viagem que mudou a históriaLuiz Valentim
 
Poetas de ontem e de hoje
Poetas de ontem e de hojePoetas de ontem e de hoje
Poetas de ontem e de hojeCris Félix
 
Rotina E Amor Sarau De Maio 07 05
Rotina E Amor   Sarau De Maio 07 05Rotina E Amor   Sarau De Maio 07 05
Rotina E Amor Sarau De Maio 07 05rowalino
 
N.º 00 o ideias abril 96 ano ii
N.º 00 o ideias   abril 96 ano iiN.º 00 o ideias   abril 96 ano ii
N.º 00 o ideias abril 96 ano iiAAA_ESGTS
 
Agatha christie desenterrando o passado
Agatha christie   desenterrando o passadoAgatha christie   desenterrando o passado
Agatha christie desenterrando o passadograsiele_ertal
 
O pai august strindberg wrweirowerojworiwoir
O pai   august strindberg wrweirowerojworiwoirO pai   august strindberg wrweirowerojworiwoir
O pai august strindberg wrweirowerojworiwoirRodrigo Basilio
 

Similar a O Filho Eterno - Tezza Cristóvão (16)

O avejao raul brandao
O avejao   raul brandaoO avejao   raul brandao
O avejao raul brandao
 
Gramática do grego bíblico
Gramática do grego bíblicoGramática do grego bíblico
Gramática do grego bíblico
 
Gonzaga Barbosa
Gonzaga Barbosa Gonzaga Barbosa
Gonzaga Barbosa
 
Alain-1.pdf
Alain-1.pdfAlain-1.pdf
Alain-1.pdf
 
Revista moderna. afonso c
Revista moderna. afonso cRevista moderna. afonso c
Revista moderna. afonso c
 
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf
11.2.17_Cena I, Ato II + Lusíadas (Teste).pdf
 
Adolfo caminha tentação
Adolfo caminha   tentaçãoAdolfo caminha   tentação
Adolfo caminha tentação
 
200 anos a família real e a viagem que mudou a história
200 anos a família real e a viagem que mudou a história200 anos a família real e a viagem que mudou a história
200 anos a família real e a viagem que mudou a história
 
Paragrafação
ParagrafaçãoParagrafação
Paragrafação
 
Poetas de ontem e de hoje
Poetas de ontem e de hojePoetas de ontem e de hoje
Poetas de ontem e de hoje
 
Rotina E Amor Sarau De Maio 07 05
Rotina E Amor   Sarau De Maio 07 05Rotina E Amor   Sarau De Maio 07 05
Rotina E Amor Sarau De Maio 07 05
 
Luz do Baço
Luz do BaçoLuz do Baço
Luz do Baço
 
N.º 00 o ideias abril 96 ano ii
N.º 00 o ideias   abril 96 ano iiN.º 00 o ideias   abril 96 ano ii
N.º 00 o ideias abril 96 ano ii
 
Agatha christie desenterrando o passado
Agatha christie   desenterrando o passadoAgatha christie   desenterrando o passado
Agatha christie desenterrando o passado
 
O pai august strindberg wrweirowerojworiwoir
O pai   august strindberg wrweirowerojworiwoirO pai   august strindberg wrweirowerojworiwoir
O pai august strindberg wrweirowerojworiwoir
 
Salmos Feriais
Salmos FeriaisSalmos Feriais
Salmos Feriais
 

Último

About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de HotéisAbout Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéisines09cachapa
 
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdf
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdfo ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdf
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdfCamillaBrito19
 
Introdução a Caminhada do Interior......
Introdução a Caminhada do Interior......Introdução a Caminhada do Interior......
Introdução a Caminhada do Interior......suporte24hcamin
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdfAna Lemos
 
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanhola
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanholaSLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanhola
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanholacleanelima11
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfLeloIurk1
 
Estudar, para quê? Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2
Estudar, para quê?  Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2Estudar, para quê?  Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2
Estudar, para quê? Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2Maria Teresa Thomaz
 
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESCOMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESEduardaReis50
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...IsabelPereira2010
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...Rosalina Simão Nunes
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...azulassessoria9
 
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSOLeloIurk1
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Ilda Bicacro
 
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfRecomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfFrancisco Márcio Bezerra Oliveira
 
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇ
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇ
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇJaineCarolaineLima
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfTutor de matemática Ícaro
 

Último (20)

About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de HotéisAbout Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
 
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdf
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdfo ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdf
o ciclo do contato Jorge Ponciano Ribeiro.pdf
 
Introdução a Caminhada do Interior......
Introdução a Caminhada do Interior......Introdução a Caminhada do Interior......
Introdução a Caminhada do Interior......
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
 
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanhola
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanholaSLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanhola
SLIDE DE Revolução Mexicana 1910 da disciplina cultura espanhola
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
 
Estudar, para quê? Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2
Estudar, para quê?  Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2Estudar, para quê?  Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2
Estudar, para quê? Ciência, para quê? Parte 1 e Parte 2
 
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESCOMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
 
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdfRecomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
 
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇ
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇ
ATIVIDADE - CHARGE.pptxDFGHJKLÇ~ÇLJHUFTDRSEDFGJHKLÇ
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
 

O Filho Eterno - Tezza Cristóvão

  • 1.
  • 2. 0 nascimento de urn filho como momenta de ruptura na vida de urn casal. Uma crianc;:a desejada, mas diferente. Nas palavras do pai, na tfmida tentativa de explicar para os conhecidos, nos primeiros meses, uma crianc;:a com "urn pequeno problema. Ele tern mongolismo." De infcio, o estranhamento, e o pai assu'me que a urgencia nao e resolver 0 tal problema da crianc;:a - haveria algo a ser resolvido? -, mas o espac;:o que o filho ocupara na propria vida . E a crianc;:a o ocupa, ocupara pelo resto da vida. Num livro corajoso, Cristovao Tezza expoe as dificuldades, 0 FILHO ETERNO inumeras, e as saborosas pequenas vitorias de criar urn filho com sfndrome de Down. 0 periplo por clfnicas e consultorios medicos numa epoca em que o assunto nao era tao estudado e ainda tinha"0 veu do misticismo, a tensa relac;:ao inicial com a mulher. "Numa das crises, ela !he diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a tua vida. E ele nao respondeu, como se concordasse - a mao que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, nao a verda de dos fatos. ·· Aproveita as questoes que apareceram pelo caminho nestes 26 anos de Felipe para reordenar sua propria vida: a experimentac;:ao da vida em comunidade quando adolescente, a vida como ilegal na Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros na gaveta, a pretensa estabilidade com o cargo de professor em universidade publica. Com precisao literaria para encadear de maneira clara referencias de anos e situac;:oes tao dfspares, as vezes dentro ~0 mesmo capitulo, Cristovao Tezza reforc;:a, com a publicac;:ao de 0 filho etemo, seu Iugar entre os maio res escritores brasileiros.
  • 3. 0 tj z ~ ~ ~ Q ~3 ~ ~ o;.<; ::0 a ~ 0 •« Uo ><( - IJl<n ltj 0> ~. ~ .8 0 Cl [.J..l ...::~ 0 ~ CJ') ·e ::c: ~ - "'' 0 ~iii 0~ z 0 N u ~ f-<<U ..... Q ~ Q~ ~ IJl 0 -- ----------
  • 4. CIP-Brasil. Cataloga<;ao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Tezza, Cristovao, 1952- T339f 0 filho eterno I Cristovao Tezza. - 10• ed. -Rio 10• ed. de Janeiro: Record, 2010. ISBN 978-85-01-07788-2 l. Romance brasileiro. I. Titulo. COD 869.93 Queremos dizer a verdade e, no entanto, nao dizemos a CDU 821.134.3(81)-3 07-1946 verdade. Descrevemos alga buscando fidelidade a verdade e, no entanto, o descrito eoutra coisa que niio a verdade. Thomas Bernhard Um filho ecomo um espelho no qual o pai se ve, e, Copyright © Cristovao Tezza, 2007 para o filho, o pai epar sua vez um espelho Projeto grafico: Regina Ferraz no qual ele seve no futuro. S0ren Kierkegaard Texto revisado segundo o novo Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa Todos os direitos reservados. Proibida a reprodu<;ao, armazenamento ou transmissao de partes deste livro, atraves de quaisquer meios, sem previa autoriza<;ao por escrito. Direitos exclusivos desta edi<;ao reservados pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 -Tel.: 2585-2000 Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-07788-2 ~ ~~ p.'l'tORI~ ~" .. Seja urn leitor preferencial Record 8 ~ ;; 0- Cadastre-se e receba informa<;6es sobre ~I>~ nossos lan<;amentos e nossas promo<;6es. ~-,~"/~ Atendimento e venda ao leitor: EDITORA AFILIADA mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002
  • 5.
  • 6. - Acho que e hoje - ela disse. - Agora - completou, com a voz mais forte, tocando-lhe 0 bra90, porque ele e urn homem distrafdo, Sim, distrafdo, quem sabe? Alguem provis6rio, talvez; al- guem que, aos 28 anos, ainda nao come9ou a viver. A rigor, exceto por urn leque de ansiedades felizes, ele nao tern nada, e nao e ainda exatamente nada. E essa magreza semovente de uma alegria agressiva, as vezes ofensiva, viu-se diante da mulher gravida quase como se s6 agora entendesse a exten- sao do fato: urn filho. Urn dia ele chega, ele riu, expansivo. Vamos la! A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava ja havia quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguarda- vam o elevador, a meia-noite. Ela esta palida. As contra96es. A bolsa, ela disse - algo assim. Ele nao pensava em nada - em materia de novidade, amanha ele seria tao novo quanto o filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou- se de uma garrafinha caub6i de ufsque, que colocou no outro bolso; no primeiro estavam os cigarros. Urn cartum: a figura fuma urn cigarro atras do outro na sala da espera ate que a enfermeira, o medico, alguem lhe mostra urn pacote e lhe diz alguma coisa muito engra9ada, e nos rimos. Sim, ha algo de engra9ado nesta espera. Eurn papel que representamos, o pai 9
  • 7. angustiado, a mae feliz, a crianya chorando, o medico sor- seguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro. ridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos da Uma tensao que quase sempre escapa pelo riso, a libertayao parabens, a vertigem de urn tempo que, agora, se acelera em que ele tern. desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em tomo No balcao da matemidade a moya, gentil, pede urn che- de urn bebe, para so estacionar alguns anos depois - as que de garantia, e as coisas se passam rapidas demais, par- vezes nunca. Ha urn cenario inteiro montado para o papel, que alguem esta levando sua mulher para longe, sim, sim, e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, tambem. Ele a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os tramites - merecera respeito. Ha urn dicionario inteiro de frases ade- e mais uma vez tern dificuldade de preencher o espayo da quadas para o nascimento. De certa forma - agora ele dava profissao, quase ele diz "quem tern profissao e a minha mu- partida no fusca amarelo (eles nao dizem nada, mas sent em lher. Eu"- e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a uma coisa boa no ar) e cuidou para nao raspar o para-lama mulher tambem, mas a afetividade se transforma, sob olhos na coluna, como ja aconteceu duas vezes - ele tambem esta- alheios, em solenidade - alguma coisa maior, parece, esta ria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos acontecendo, uma especie de teatro se desenha no ar, somos edificante. Embora continuasse nao estando onde estava - delicados demais para 0 nascimento e e preciso disfaryar to- essa a sensayao permanente, por isso fumava tanto, a maqui- dos os perigos desta vida, como se alguem (a imagem e ab- na inesgotavel pedindo gas. E urn terreno inteiro de ideias: surda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse pisando nele, nao temos coisa alguma, so a expectativa de nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sen- urn futuro vago e mal desenhado. Mas eu tambem nao tenho te diante dos hospitais, dos predios publicos, das instituiy6es nada ainda, ele diria, numa especie metafisica de compe- solenes, de colunas, halls, guiches, ab6badas, filas, da sua tiyao. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bern, urn filho - granftica estupidez - a gramatica da burocracia repete-se e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando tambem ali, que e urn espayo pequeno e privado. Mais tarde, em alguma coisa enfim salida, uma fotografia publicitaria da ele se ve em alguma sala diante da mulher na maca, que, pa- familia congelada na parede. Nao: ele esta em outra esfera lida, sorri para ele, e eles tocam as maos, tfmidos, quase como da vida. Ele e urn predestinado a literatura - alguem neces- quem comete uma transgressao. 0 lenyol e azul. Ha uma sariamente superior, urn ser para o qual as regras do jogo sao assepsia em tudo, uma ausencia bruta de objetos, os passos outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade e discre- fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angustia ta, tolerante e sorridente. Ele vive a margem: isso e tudo. Nao da falsidade, ha urn erro primeiro em algum lugar, e ele nao e ressentimento, porque ele nao esta ainda maduro para o consegue localiza-lo, mas em seguida nao pensa mais nisso. ressentimento, essa forya que, em algum momenta, pode Os segundos escorrem. nos p6r agressivamente em nosso lugar. Talvez o inicio des- Dizem alguma coisa que ele nao ouve; e na espera, perde sa contraforya (mas ele seria incapaz de saber, tao proximo a noyao do tempo- que horas sao? Noite avanyada. Agora assim do instante presente) seja o fato de que jamais con- esta sozinho num corrector ao lado de uma rampa vazia e em 10 11
  • 8. dinossauro medieval. Se ainda tivesse a dadiva do comercio, frente a duas portas basculantes, corn urn vidro circular no atras de urn balcao. Mas nao: escolheu consertar rel6gios, o centro de cada lamina por onde as vezes ele espia mas nada fascinio infantil dos rnecanismos e a delicadeza inutil do tra- ve. Ele nao pensa ern coisa algurna, mas, se pensasse, talvez balho manual. dissesse: estou como sernpre estive - sozinho. Acendeu urn E no entanto sente-se urn otirnista - ele sorri, vendo-se cigarro, feliz: e isso e born. Deu urn gole do ufsque que tirou do alto, como no cartum irnaginado, agora urna figura real. do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coi- Sozinho no corrector, da outro gole de ufsque e come<;a a ser sas vao bern - ele nao pensava no filho, pensava nele rnes- tornado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. rno, e isso inclufa a totalidade de sua vida, rnulher, filho, li- Urn cromo publicitario, e ele ri do paradoxa: quase como se o teratura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada simples fato de ter urn filho significasse a definitiva imolac;:ao realrnente born. Pilhas de rnaus poernas, dos 13 anos ate o ao sistema, mas isso nao e necessariamente rnau, desde que rnes passado: 0 filho da primavera. A poesia arrasta-o sern es tejamos "inteiros", sejamos "autenticos", "verdadeiros"- piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas e preci- ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso proprio, so dizer algurna coisa sobre o que est.i acontecendo, e ele nao a mitologia dos poderes da pureza natural contra os drag6es sabe exatarnente o que est.i acontecendo. Tern a vaga sensa- do artificio. Ele ja cornec;:a a desconfiar dessas totalidades re- <;ao de que as coisas vao dar certo, porque sao frutos do de- t6ricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas - de sejo; e quem est.i a rnargern, arrisca- ou estaria encaixado fato, nunca se livrou completamente desse imaginario, que, na subvida do sistema, essa rnerda toda, ele quase declarna, no fundo da alma, significava manter o pe atras, atento, em e d.i outro gole de ufsque e acende outro cigarro. Aos 28 anos todos os rnomentos da vida, para nao ser devorado pelo vio- nao acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe rnui- lento e inesgotavel poder do lugar-comum e da irnpessoali- to, da risadas prolongadas e inconvenientes, le caoticarnente dade. Era preciso que a "verdade" safsse da ret6rica e se e escreve textos que atafulham a gaveta. Urn gancho atavico transforrnasse ern inquietac;:ao perrnanente, urna breve utopia, ainda o prende a nostalgia de urna cornunidade de teatro, que urn brilho nos olhos. frequenta urna vez por ano, nurna prolongada dependencia Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entran- ao guru da infancia, urna gin.istica interrninavel e insoluvel do no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daque- para ajustar o rel6gio de hoje a fantasrnagoria de urn tempo le rnornento, urna solenidade para uso proprio, fntirno, in- acabado. Filhote retardatario dos anos 70, irnpregnado da so- transferfvel. Como o diretor de urna pe<;a de teatro indicando berba da periferia da periferia, vai farejando pela intui<;ao al- ao ator os pontos da cena: sinta-se assirn; rnova-se ate ali; sor- guma safda. E dificil renascer, ele dira, alguns anos depois, ria. Veja como voce tira o cigarro da carteira, sentado sozinho rnais frio. Enquanto isso, da aulas particulares de reda<;ao e neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. revisa cornpenetrado teses e disserta<;6es de rnestrado sobre Cruze as pernas. Pense: voce nao quis acornpanhar o parto. qualquer terna. A grarnatica e urna abstra<;ao que aceita tudo. Agora comec;:a a ficar moda os pais acompanharem o parto Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profissao, urn 13 12
  • 9. dos filhos - uma participac;ao quase religiosa. Tudo parece finitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz que esta virando religiao. Mas voce nao quis, ele seve dizen- alta, no silencio daquele corrector final, poucos minutos an- do. E que o meu mundo e mental, talvez ele dissesse, se fos- tes de sua nova vida. Era como se o espfrito comunitario re- se mais velho. Urn filho e a ideia de urn filho; uma mulher e a ligioso que florescia secretamente na alma do pafs, todo o ideia de uma mulher. As vezes as coisas coincidem com a sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracio- ideia que fazemos delas; as vezes nao. Quase sempre nao, nalismo, sua transcendencia eterea, a paz celestial dos cor- mas af o tempo ja passou, e entao nos ocupamos de coisas deiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou li- novas, que se encaixam em outra familia de ideias . Ele nao vros-texto - vale tudo, 6 Senhor! -, encontrasse tambem quis nem mesmo saber se sera urn filho ou uma filha: a man- no poeta marginal, talvez prin~ipalmente nele, o seu refugio. cha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se 0 empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos, projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridao e no sandalias franciscanas, as portas da percepc;ao, vida natural, calor, nao se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos nao sexo livre, somas todos autenticos. Sim, era preciso urn con- saber, foi o que disseram ao medico. Tudo esta bern, parece, trapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como varias vezes e 0 que importa. nos matou. Ha urn descompasso nesse projeto supostamente Ali, era enfim a sensac;ao de urn tempo parado, suspenso. pessoal, mas isso ele ainda nao sabe, ao acaso de uma vida Naquele silencio iluminado, em que pequenos rufdos distan- renitentemente provis6ria; a minha vida nao comec;ou ainda, tes - passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa - ele gostava de dizer, como quem se defende da propria in- ganhavam a solenidade de urn breve eco, ele imagina a mu- competencia - tantos anos dedicados a ... a o que mesmo? danc;a de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para as letras, a poesia, a vida alternativa, a criac;ao, a alguma coi- que as coisas nao mudem muito. Tern energia de sabra para sa maior que ele nao sabe o que e - tantos anos e nenhum ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos interva- resultado! Ficar sozinho e uma boa defesa. Vivendo numa ci- los, fumando bastante, dando risadas e contando hist6rias, dade com genios agressivos em cada esquina, ele contempla enquanto a mulher se recupera. Seria agora urn pai, o que a magreza de seus cantos, finalmente publicados, onde en- sempre dignifica a biografia. Sera urn pai excelente, ele tern contra defeitos cada vez que abre uma pagina. 0 romance ju- certeza: fara de seu filho a arena de sua visao de mundo. Ja venillanc;ado nacionalmente vai se encerrar na primeira edi- tern pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de al- c;ao, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o guns dos versos de 0 filho da primavera- a professora ami- editor de Sao Paulo, daqui a alguns meses. "E preciso cortar ga vai publica-los na Revista de Letras. Sim, os versos sao bo- esse paragrafo na segunda edic;ao porque as professorinhas nitos, ele sonhou. 0 poeta e born conselheiro. Fac;a isso, seja do interior estao reclamando." Desistiu do livro. assim, respire esse ar, olhe o mundo - as metaforas, uma a Ele nao sabe ainda, mas ja sente que aquila nao e a sua uma, evocam a bondade humana. Kipling da provincia, ele literatura. Tres meses antes terminou 0 terrorista Urico, e se sente impregnado de humanismo. 0 filho sera a prova de- parece que alguma coisa melhor comec;a ali, ainda informe. 14 15
  • 10. Alguem se debatendo para se livrar da influencia do guru, - Tudo bern? - ele pergunta, por perguntar: a cabe<;a ja tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da per- esta no mes seguinte, sete meses depois, urn ano e tres me- cep<;ao, sob a frieza da razao. Ele nao e mais urn poeta. Per- ses, cinco anos a frente, o filho crescendo, a cara dele. deu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe - Eurn menino . - Tambem nenhuma surpresa: eu tinha envelhecido, e o combustive! necessaria para escrever poe- certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito, sia. A ideia do sublime nao basta, ele come<;a a vislumbrar se falasse. - A mae esta muito bern. - com ela, chegamos s6 ao simulacra. E precise ter for<;a e E desapareceu por onde veio. pei1o para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no ridicule. Ha algo incompatfvel entre mim e a poesia, ele se diz, defensive - assumir a poesia, parece, e assumir uma re- ligiao, e ele, desde sempre, e alguem completamente despro- vido de sentimento religiose. Urn ser que se move no deser- to, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a propria solidao. A solidao como urn projeto, nao como uma tristeza. Eu ainda nao consegui ficar sozinho, conclui, com urn fio de angustia- e agora (ele olha para a porta bascu- lante, sem pensar) nunca mais. Come<;ou ha pouco a escre- ver outro romance, Ensaio da Paixao, em que - ele imagina - passara a limpo sua vida. E a dos outros, com a lingua da satira. Ninguem se salvara. Tres capftulos prontos. E urn livro alegre, ele sup6e. Eu precise comef;ar, de uma vez por todas, ele diz a ele mesmo, e s6 escrevendo sabera quem e. Assim espera. Sao coisas demais para organizar, mas talvez justo por isso ele se sinta bern, feliz, povoado de pianos. Subito, o medico - por quem nunca sentiu simpatia, e portanto nada espera dele - abre as portas basculantes, co- mo sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausencia de sorriso, daf porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha de ufsque, nao se perturbou. 0 homem tirava as luvas verdes das maos, como quem encerra uma tarefa desagradavel - por alguma razao foi essa a imagem absurda, certamente falsa, que lhe ficou daquele momenta. 16 17
  • 11. Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofa vermelho ao lado da cama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em algum momenta da madrugada. A crianya estaria no berya- rio, uma especie de gaiola asseptica, que o fez lembrar do Admiravel mundo novo: todos aqueles bebes urn ao lado do outro, atras de uma proteyao de vidro, etiquetados e cadas- trados para a entrada no mundo, todos identicos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imoveis, de uma fragili- dade absurda, todos tabula rasa, cada urn deles apenas urn breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e a lingua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se e que uma pergunta assim pode fazer sentido. Qual era mesmo o seu filho? - aquele ali, mostrou a en- fermeira solicita, e ele sorriu diante da crianya imovel, bus- cando urn ponto de convergencia. Alguma coisa de fora que o tocasse subita, como urn dedo de urn anjo. Mas nao, ele sorriu, invencivel - e preciso criar esse ponto, que nao cai do ceu. Uma crianya e uma ideia de uma crianya, e a ideia que ele tinha era muito boa. Urn born comeyo. Mas aquela 19
  • 12. presenc;a era tambem urn nascimento as avessas, porque ago- do llOVO, aquela assepsia do nascimento sem dares nem pais. ra, talvez ele imaginasse, expulso do parafso, estou do ou- VIVl'mos grudados, mas, em vez de sentir nausea da imagem tro lado do balcao - nao estou mais em ben;o esplendido, o1 invencfvel viscosidade das relac;:oes humanas -, ele sor- nao sou eu mais que estou ali, e ele riu, quase bebado, a 11 di,m te daquele pequeno joelho respirante e empacotado do garrafinha vazia, inebriado do cigarro que nao parava de fu- fltllro lado do vidro: isso parece borne bonito, o filho da pri- mar, naqueles tempos tolerantes. Como quem, prosaicamen- lllolvcra. Relembrou a data: madrugada do dia 3 de novembro te, apenas perde urn privilegio, o da liberdade. 0 que e uma til! 1980. palavra que, se objetivamente quer dizer muito (estar dentro da cadeia, estar fora da cadeia, por exemplo; poder dizer e escrever tudo e nao poder dizer nem escrever nada, outro exemplo pratico - o Brasil esta nos ultimos minutos de uma ditadura), subjetivamente, em outra esfera. nos da 0 dam da ilusao . As vezes basta . Livre significa: sozinho. Claro, tern a mulher, por quem ele alimenta uma nftida mas insuspeitada paixao (ele nunca foi precoce), mas ao mesmo tempo tern de prestar muita atenc;ao em si mesmo, juntar aqueles pedac;:os disformes da inseguranc;:a, urn garoto tao desgrac;:adamente incompleto, para olhar mais atento para ela, o que so conse- guira fazer anos depois; tern a mulher, mas eles nao nasce- ram juntos. Podem se separar, e a ordem do mundo se man- tern. Mas o filho e urn outro nascimento: ele nao pode se separar dele. Todas as palavras que o novo pai recebeu ao Ion- go da vida criaram nele esta escravidao consentida, esse bre- ve mas poderoso imperativo etico que se faz em torno de tao pouca coisa: quem e a crianc;:a que esta ali? 0 que temos em comum? 0 que, afinal, eu escolhi? Como conciliar a ideia fun- damental de liberdade individual, que move a fantastica roda do Ocidente, ele declama, corn a selvageria da natureza bru- ta, que por uma sucessao inextricavel de acasos me trouxe agora essa crianc;:a? 0 proprio Rousseau abandonou os filhos, ele se lembra, divertindo-se. Muito melhor o Admiravel mun- 20 21
  • 13. Afinal acordou daquela noite intranquila mas feliz (ou te- riarn sido apenas alguns rninutos?), e urna boa sensa<;ao de gravidade lhe tornava os gestos ressaqueados de urna especie de renascirnento·. Ou de deslocarnento, ele pensou, quase que ffsico - agora nao estava rnais ern seu Iugar de sernpre. Nao estaria nunca rnais, ele decidiu, sernpre pronto as conclus6es lirnftrofes e altissonantes, boas no palco - urn deslocarnento definitivo, perrnanente, inelutavel. E isso e born, concluiu. Palavras. Que horas seriarn? A rnulher parecia dorrnir naque- la carna que rnais parece urn altar, urna engenhoca de ala- vancas. Ele passara a vida gostando de engenhocas - e urn relojoeiro. Dedica urn rninuto para descobrir como aquilo fun- dona: urna rnanivela na proa, como de urn Ford bigode, co- rnanda o guindaste. Urna enferrneira chega e se vai- nao ha rnuitos sorrisos, mas e assirn rnesrno que funciona a rnaqui- na, corn a exata eficiencia. Ele se aproxirna, tfrnido, da rnu- lher, ja de tranquilos olhos abertos, e terne que ela espere dele algurna efusao sentimental ou arnorosa, o que sernpre o de- sajeita, defensivo. Sernpre teve algurna ponta de dificuldade para lidar corn o afeto. Ele prefere a suavidade do humor ao ridfculo do arnor, mas disso nao sabe ainda, pernas rnuito fra- cas para o peso da alma. A mao dela esta quente. 23
  • 14. - Tudo bern? tando o dedo para alguem sem nome, e sorriem tambern para - Tudo bern- ela diz. -Urn pouco dolorida ainda. 0 ele, compartilhando a alegria: o nascimento e uma felicidade medico veio aqui? coletiva, somas de fato todos irmaos, tao parecidos uns com -Nao. os outros! Ele retribui o sorriso, diz urn "parabens" intimida- 0 nascimento e uma brutalidade natural, a expulsao obs- do e se afasta, com medo de que lhe perguntem alga. Epreci- cena da crian<;:a, o desmantelamento fisico da mae ate o ulti- so telefonar - 0 mundo e grande, precisa saber da grande mo limite da resistencia, o peso e a fragilidade da carne viva, nova, e ele nao tern fichas. No guiche da recep<;:ao e recebido o sangue - cria-se urn mundo inteiro de signos para ocultar com sorrisos, e compra algumas fichas de telefone. Civiliza- a coisa em si, tosca como uma caverna escura. do, resistiu a pedir para ligar dali mesmo, o telefone ao al- - Telefonou para as familias? - e ela sorriu pela primei- cance da mao- justamente para que nao pedissem, coloca- ra vez. ram a plaquinha desviatoria: FICHAS AQUI, e na cal<;:ada logo As familias. Familia e urn horror, mas urn horror necessa- a safda estava a fileira de telefones publicos, urn deles com o ria - ou inevitavel, o que da no mesmo. Agora terei ami- fane arrancado eurn patetico fio solto. nha, ele pensa. Chega de briga. So arabes e judeus conse- Da antes uma boa caminhada, para respirar fundo - esta guem viver em guerra a vida inteira, e ele ri da piada que uma manha fresca e bonita, uma brevfssima nevoa prome- imagina, quase contando a mulher, mas desiste. tendo urn dia de urn azullimpo no ceu - e tenta mais uma - Vou ligar agora. Que horas sao? - como se ela pudes- vez organizar o dia, a semana, o mes, o ana e a vida. Agora se saber. nao tern mais volta, 0 que e born, ele pensa e sorri, com 0 Ao sair para o corrector, descobre que ja penduraram na lugar-comum: fecha-se a porteira do passado, abre-se a do porta urn bonequinho azul, e absurdamente ele pensa em di- futuro. A sensa<;:ao de inferioridade ainda e pesada; ele a com- nheiro, tranquilizando-se em seguida. Tudo esta indo bern. pensa com urn orgulho campones, teimoso, obtuso, as vezes Na gaiola publica dos recem-nascidos, tenta reconhecer seu covarde, que reveste habilmente de humor. Ele se conhece. filho, ha uma fileira de seres identicos atras do vidro, mas Muitas vezes parecia que nao havia volta, e sempre houve. parece que nao esta mais ali. Que nome dariam a ele? Se fos- Na luz ainda acesa do paste da esquina, apenas urn brilho se mulher seria Alice, se fosse homem seria Felipe. Felipe. Urn na lampada contra o brilho do dia, lembra de sua adoles- bela nome. Nftido como urn cavaleiro recortado contra o ho- cencia absurda, cheirando alucinogenos nas pra<;:as de Curiti- rizonte. Urn nome com contornos definidos. Uma dignidade ba, so para ouvir aquele zumbido repetido na alma e ver as simples, autoevidente, ele vai fantasiando: Felipe. Repete o luzes fantasmagoricas da noite multiplicando-se num eco nome varias vezes, quase em voz alta, para conferir se ele psicodelico. Uma vez, o zumbido permaneceu por dois dias, nao se desgasta pelo usa, se nao se esfarela no proprio sam, e ele, sem pai, so pelo susto, decidiu parar. Sim, ele conse- esvaziado pelo eco- Felipe, Felipe, Felipe, Felipe. Nao: man- guiu parar porque nao era urn menino de rua: aos 15 anos tem-se intacto no horizonte, firme sabre o cavalo, a lan<;:a na tinha uma boa escola, casa, mae, familia-e urn desejo de mao direita. Felipe. Urn casal de avos sorri ao seu lado, apon- virar o mundo do avesso. Agora, e ele sorri com a ficha na 24 25
  • 15. mao, agora ele esta no lado certo do mundo, ja alimentando a autoironia com que se defende do que seria a propria deca- dencia. Urn homem do sistema. Familia e sistema. Daqui a cinquenta anos, ele imagina, sem de fato acreditar na fanta- sia que poe no corpo, nao havera mais familias, e o mundo sera melhor. Por enquanto, vamos levando com as armas que temos, a entona<;ao ja levemente ironica. - Sim, nasceu ainda ha pouco! Ehomem! Nao sei o peso ainda! Ele parece parrudo! Nao avisei ninguem porque nao precisava.- Quase diz, numa pre-irrita<;ao: 56 o que faltava A manha mais brutal da vida dele come<;ou com o sono eu esperar meu proprio filho com a parentalha toda em volta! que Se interrompe- chegavam OS parentes. Ele esta feliz, e Basta a ideia para satisfaze-lo, e ele prossegue _gentil: - Era visfvel, uma alegria meio dopada pela madrugada insane, de madrugada, para que incomodar voces? Sim. Sim! Ve- lll.lis as doses de ufsque, a intensidade do acontecimento, a nham! Felipe! Bonito, nao? Ela esta 6tima! Obrigado! Preci- uccssao de pequenas estranhezas naquele espa<;o oficial que samos festejar! n.io e o seu, mais uma vez ele nao esta em casa, e ha agora Em frente ha urn bare restaurante- "frangos fritos", diz 11111 alheamento em tudo, como se fosse ele mesmo, e nao a a placa enorme. Funcionarios arrastam latoes de lixo para a 111ulher, que tivesse o filho de suas entranhas - a sensa<;ao cal<;ada, uma barulheira descompensada, o dia come<;a. Tal- i>oJ, mas irremediavel ao mesmo tempo, vai se transforman- vez ir direto aquele balcao e pedir uma cerveja antecipada, do numa afli<;ao invisfvel que parece respirar com ele. Talvez antes mesmo que abram a porta, mas desiste da ideia idiota. t>le, como algumas mulheres no choque do parto, nao queira Subindo a rampa de volta ao quarto, olha para o rel6gio e reve o filho que tern, mas a ideia e apenas uma sombra. Afinal, ali o dia do nascimento do seu primeiro filho: 3, como se isso L'le e s6 urn homem desempregado e agora tern urn filho. Pon- contivesse urn segredo. No apartamento, a mulher dorme to final. Nao e mais apenas uma ideia, e nem mais o mero tranquila, ele confere, e sente subita a brutalidade do so no - dcsejo de agradar que o seu poema representa, o ridfculo fi- nao devia ter avisado ninguem. Daqui a pouco come<;a a lho da primavera - e uma ausencia de tudo. Mas OS paren- aporrinha<;ao dos parentes. Olha de novo o rel6gio e calcula les estao alegres, todos falam ao mesmo tempo. A tensao de os minutos que ainda tern, muito poucos para o desejo que quem acorda sonado se esvazia, minuto a minuto. Como ele sente, os olhos fechando, quase o peso de urn ser que o puxa c? Nao sei, parece urn joelho - ele repete o que todos dizem para baixo com a mao. Deita-se no desajeitado sofa verme- sobre recem-nascidos para fazer gra<;a, e funciona. 0 bebe e lho, curto para suas pernas, o que lembra subito urn instante parrudo, grande, forte, ele inventa: e 0 que querem ouvir. perdido na infancia, ainda ve o lustre no alto, com uma das Sim, esta tudo bern. E preciso que todos vejam, mas parece lampadas ausente, fecha os olhos e dorme. que ha horarios. Daqui a pouco ele vern - aquele pacotinho 26 27
  • 16. como urn renascimento - veja, a minha vida agora tern ou- suspirante. A mulher esta placida, naquela cama de hospital tro significado, ele dira, pesando as palavras; tenho de me - sim, sim, tudo vai bern. Ha tambem urn rol de recomenda- disciplinar para que eu reconquiste uma nova rotina e possa c;:oes que se atropelam - todos tern alguma coisa fundamen- sobreviver tranquilo com o meu sonho. 0 filho e como - e tal a dizer sobre urn filho que nasce, ainda mais para pais le sorri, sozinho, idiota, no meio dos parentes - como urn idiotas como ele. Eu fiz urn curso de pai, ele alardeia, palha- atestado de autenticidade, ele arriscara; e ainda uma vez fan- c;:o, fazendo piada. Mas era verdade: passou uma tarde numa tasia o sonho rousseauniano de comunhao com a natureza, grande roda de mulheres buchudas, a dele incluida, e claro, que nunca foi dele mas que ele absorveu como urn mantra, e com mais dois ou tres futuros pais devotos, atentissimos, ou- cle que tern medo de se livrar - sem urn ultimo elo, o que vindo uma prelec;:ao basica de urn medico paternal, e de tudo fica? Em toda parte, sao os outros que tern autoridade, nao guardou urn unico conselho - e born manter uma boa rela- 'le. 0 unico territ6rio livre e 0 da literatura, ele talvez sonhas- c;:ao com as sogras, porque os pais precisam eventualmente SC, se conseguisse pensar a respeito. Sim, e preciso telefonar descansar da crianc;:a, sair para jantar uma noite; tentar sar- para o seu velhd guru, de certa forma receber sua benc;:ao. ver urn pouco o velho ar de antigamente que nao voltara Muitos anos depois uma aluna lhe dira, por escrito, porque jamais. 'ie nao e de intimidades: voce e uma pessoa que da a impres- E as familias falam e sugerem - eMs, ervas, remedinhos, sao de estar sempre se defendendo. Sentimentos primarios infusoes, cuidados com o leite -, e preciso dar uma palma- que se sucedem e se atropelam - ele ainda nao entende ab- da para que ele chore alto, assim que nasce, diz alguem, e solutamente nada, mas a vida esta boa. Ainda nao sabe que alguem diz que nao, que o mundo mudou, que bater em agora comec;:a urn outro casamento com a mulher pelo sim- bebe e uma estupidez (mas nao usa essa palavra) - eles nao ples fato de que eles tern urn filho. Ele nao sabe nada ainda. vao trazer a crianc;:a? E que horas foi? Eo que o medico disse? Subito, a porta se abre e entram os dois medicos, o pedia- E voce, o que fez? E o que aconteceu? E por que nao avisa- tra eo obstetra, e urn deles tern urn pacote na mao. Estao sur- ram antes? E por que nao chamaram ninguem? E vamos que preendentemente serios, absurdamente serios, pesados, para acontece alguma coisa? Ele ja tern nome? Sim: Felipe. Os pa- urn momenta tao feliz - parecem militares. Ha umas dez rentes estao animados, mas ele sente urn cansac;:o subterra- ~ pcssoas no quarto, e a mae esta acordada. E uma entrada neo, sente renascer uma ponta da mesma ansiedade de sem- ,1brupta, ate violenta - passos rapidos, decididos, cada urn pre, insoluvel. Ir para casa de uma vez e reconstruir uma boa sc dirige a urn lado da cama, com o espaldar alto: a mae ve o rotina, que logo ele tera livros para escrever - gostaria de filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mergulhar no Ensaio da Paixdo de novo, alguma coisa para mas ninguem sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros sair daqui, sair deste pequeno mundo provis6rio. Sim, e be- tempos, o punhal de urn deles desceria num golpe medido ber uma cerveja, e claro! A ideia e boa- e ele quase que gira para abrir as entranhas do ser e dali arrancar o futuro. Cinco o olhar atras de uma companhia para, de fato, conversar so- segundos de silencio. Todos se imobilizam- uma tensao ele- bre esse dia, organizar esse dia, pensar nele, literariamente, 29 28
  • 17. trica, subita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquan- granftica e intransponfvel; 0 ultimo limite, 0 da inocencia, es- to urn dos medicos desenrola a crianc;a sobre a cama. Sao as tava ultrapassado; a infancia teimosamente retardada termi- formas de urn ritual que, instantaneo, cria-se e cria seus ges- nava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos tos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam. cmpurr5es, sem mais ouvir aquela lenga-lenga imbecil dos Ha urn infcio de prelec;ao, quase religiosa, que ele, enton- medicos e apenas lembrando o trabalho que ele lera linha a tecido, nao consegue ainda sintonizar senao em fragmentos linha, corrigindo caprichosamente aqui e ali detalhes de sin- da voz do pediatra: taxe e de esfilo, divertindo-se com as curiosidades que des- - ... algumas caracterfsticas ... sinais importantes ... vamos creviam com o poder frio e exato da ciencia a alma do seu descrever. Observem os olhos, que tern a prega nos cantos, e filho . Que era esta palavra: "mongoloide". a palpebra oblfqua ... o dedo mindinho das maos, arqueado Ele recusava-se air adiante na linha do tempo; lutava por para dentro ... achatamento da parte posterior do cranio ... a pcrmanecer no segundo anterior a revelac;ao, como urn boi hipotonia muscular... a baixa implantac;ao da orelha e ... cabeceando no espac;o estreito da fila do matadouro; recusa- 0 pai lembra imediatamente da dissertac;ao de mestrado va-se mesmo a· olhar para a cama, onde todos se concen- de urn amigo da area de genetica - dois meses antes fez a travam num silencio bruto, o pasmo de uma maldic;ao ines- revisao do texto, e ainda estavam nftidas na memoria as ca- pcrada. lsso e pior do que qualquer outra coisa, ele concluiu racterfsticas da trissomia do crornossomo 2t chamada de sfn- nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte sao drome de Down, ou, mais popularmente - ainda nos anos Hl'tc dias de luto, e a vida continua. Agora, nao . Isso nao tera 1980- "mongolismo", objeto do trabalho. Conversara mui- ttm . Recuou dois, tres passos, ate esbarrar no sofa vermelho tas vezes com o professor sobre detalhes da dissertac;ao e ~~ olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando- curiosidades da pesquisa (uma delas, que lhe veio subita ago- Hl', bovino, a ver e a ouvir. Nao era urn choro de comoc;ao ra, era a primeira pergunta de uma familia de origem arabe q uc se armava, mas alguma co is a misturada a uma especie ao saber do problema: "Ele podera ter filhos"?- o que pare- lttri osa de 6dio. Nao conseguiu voltar-se completamente con- ceu engrac;ado, como outro cartum). Assim, em urn atimo de I 1,1 a mulher, que era talvez o primeiro desejo e primeiro alibi segundo, em meio a maior vertigem de sua existencia, a rigor (l'lc prosseguia recusando-se a olhar para ela); por algum a unica que ele nao teve tempo (e durante a vida inteira nao 11 •sfduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso tera) de domesticar numa representac;ao literaria, apreendeu d.t violencia; e ao mesmo tempo vivia a certeza, como vin- a intensidade da expressao "para sempre" - a ideia de que 1 llt t;a e valvula de escape- a certeza verdadeiramente cien- · algumas coisas sao de fato irremediaveis, e o sentimento ab- 1ill ca, ele lembrava, como quem ergue ao mundo urn trunfo soluto, mas 6bvio, de que o tempo nao tern retorno, algo que litd iscutfvel, eu sei, eu li a respeito, nao me venham com ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomec;ado, ltl ~ l 6ria s - de que a unica correlac;ao que se faz das causas mas agora nao; tudo pode ser refeito, mas isso nao; tudo pode do mongolismo, a unica variavel comprovada, e a idade da voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo e de uma solidez lltttlher e os antecedentes hereditarios, e tambem (no mesmo 30 31
  • 18. sofrimento sem safda, olhando o ceu azul do outro lado da janela) relembrou como alguns anos antes procuraram acon- selhamento genetico sobre a possibilidade de recorrencia nos filhos (se dominante ou recessiva) de uma retinose, ada mae, uma limita<;ao visual grave, mas suportavel, estacionada na infancia. Recusa. Recusar: ele nao olha para a cama, nao olha para 0 filho , nao olha para a mae, nao olha para OS parentes, nem para os medicos - sente uma vergonha medonha de seu filho e preve a vertigem do inferno em sada minuto sub- sequente de sua vida. Ninguem esta preparado para urn pri- Uma rede silenciosa de solidariedade - a solidariedade meiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais urn filho tt l trJgedia, uma solidariedade taciturna- ergueu-se em tor- assim, algo que ele simplesmente nao consegue transformar I ll) dele em pou~as horas, mas ele nao queria ouvir ninguem. em filho. I 'ont in ua cabeceando; o minuto seguinte de sua vida est a No momento em que enfim se volta para a cama, nao ha tl i,t nle dele, mas ele nao quer abrir essa porta. No silencio mais ninguem no quarto - s6 ele, a mulh~r, a crian<;a no colo t'O ill a mulher eo filho, viu-se chorando, o que durou pouco. dela . Ele nao consegue olhar para o filho . Sim - a alma ain- Elc L entava desesperadamente achar alguma palavra naquele da esta cabeceando atras de uma solu<;ao, ja que nao pode v.tzio; nao havia nenhuma. Tambem era dificil concentrar o voltar cinco minutos no tempo . Mas ninguem esta condena- olhar em alguma coisa- como a coisa que estava nas maos do a ser o que e, ele descobre, como quem ve a pedra filoso- t1 ,1 mae, a mae a quem nao achava nada para dizer. Urn pe- fal: eu nao preciso deste filho, ele chegou a pensar, e o pen- qucno sopro de civiliza<;ao ainda o fez tocar suas maos, urn samento como que foi deixando-o novamente em pe, ainda gcslo esvaziado e falso, frio como gelo, enquanto os olhos que ele avan<;asse passo a passo tropego para a sombra. Eu tl an<;avam pelas paredes brancas, atras de uma saida. Seria tambem nao preciso desta mulher, ele quase acrescenta, num prcciso dizer alguma coisa, mas ele nunca sabe o que dizer; dialogo mental sem interlocutor: como sempre, esta sozinho. muitos anos atras, na formatura do ginasio, tentou redigir urn discurso para concorrer ao posto de orador da turma, o que faria dele alguem visualmente importante, la no pulpito, e nao foi alem da primeira exorta<;ao: Colegas! 0 bra<;o fazia o gesto, o tom de voz era born, a postura condizia: Colegas! E a alma despencava no vazio: as palavras dao em arvores, e s6 estender a mao, elas estao todas prontas, mas ele era absur- damente incapaz de achar uma s6 que lhe servisse. Hoje, de novo, a mesma sensa<;ao. Colegas! Como as vezes fazia nos 32 33
  • 19. momentos desagrada.veis, projetou urn futuro acelerado so- boca aberta, lingua muito grande, pescoc;:os achatados, e lar- bre si mesmo, a passagem vertiginosa do tempo, as coisas fa- gos como troncos. Em poucos minutos- ele nao pensou nis- talmente acontecendo umas depois das outras, o envelheci- so, mas era o que estava acontecendo - aquela crianc;:a hor- mento e a morte, pronto, acabou, urn cartum delirante, os rivel ja ocupava todos os poros de sua vida. Haveria, para trac;:os se sucedendo - o que era aquele momento diante de todo o sempre, uma corda invisfvel de dez ou doze metros tudo que talvez ja estivesse desenhado diante dele? Urn mo- prendendo os dois. E entao iluminou-se uma breve senda, menta insignificante de alguem insignificante preocupado tambem na memoria do trabalho que ele revisou, e, na ma- tambem com urn ser insignificante - apenas uma estatfsti- nha de uma noite maldormida, mal acordado ainda de urn ca: va em qualquer maternidade e a cada mil nascimentos ha- pesadelo, a ideia- ou o fato, alias cientffico, portanto indis- vera, loterica, uma crianc;:a Down, que alimentara outras es- cutfvel- bateu-lhe no cerebra como a salvac;:ao da sua vida. tatfsticas e estudos como aquele que ele revisou, curioso. A liberdade! Cada coisa que ha no mundo! Crianc;:as cretinas- no senti- Era como se ja tivesse acontecido - largou as maos da do tecnico do termo -, crianc;:as que jamais chegarao a me- mulher e saiu abrupto do quarto, numa euforia estupida e in- tade do quociente de inteligencia de alguem normal; que nao tensa, que lhe varreu a alma. Era preciso sorver essa verda- terao praticamente autonomia nenhuma; que serao incapa- de, esse fato cientffico, profundamente: sim, as crianc;:as com zes de abstrac;:ao, esse milagre que nos define; e cuja noc;:ao sfndrome de Down morrem cedo. Por algum misterio daque- do tempo nao ira muito alem de urn ontem imemorial, mi- le embaralhar de enzimas excessivas de alguem que tern tres lenar, e urn amanha nebuloso. Para eles, o tempo nao existe. cromossomos numero 21, e nao apenas do is, como todo mun- A fala sera, para sempre, urn balbuciar de palavras avulsas, tlo, as crianc;:as mongoloides - a palavra monstruosa ganha- sentenc;:as curtas truncadas; sera incapaz de enunciar uma es- va agora urn toque asseptico do jargao cientffico, apenas a trutura na voz passiva (a janela foi quebrada par Joao estara definic;:ao fria, nao a sua avaliac;:ao- sao anormalmente inde- alem de sua compreensao). 0 equilibria do andar sera sem- fcsas diante de infecc;:oes. Urn simples resfriado se transfor- pre incerto, e lento; se os pais se distraem, eles engordarao ma rapidamente em pneumonia e daf a morte - as vezes e como toneis, debaixo de uma fome nao censurada pela sen- uma questao de horas, ele calculava. E ha mais, entusiasmou- sac;:ao de saciedade, que neurologicamente demora a chegar. se: quase todas tern problemas graves de corac;:ao, malforma- Tudo neles demora a chegar. Nao veem a distancia - o mun- ~·oes de origem que lhes dao uma expectativa de vida muito do e exasperadamente curto; s6 existe o que esta ao alcance curta. Extremamente curta, ele reforc;:ou, como quem da uma da mao. Sao caturros e teimosos - e controlam com dificul- ,1 ula, 0 balanc;:ar compreensivo de cabec;:a - e triste, mas e dade os impulsos, que se repetem, circulares. S6 conseguirao real. Anotaram no caderno? E ha milhares de outros peque- andar muito tempo depois do tempo normal. E sao crianc;:as nos defeitos de fabricac;:ao. Urn carro nao conseguiria andar feias, baixinhas, pr6ximas do nanismo - pequenos ogros de assim. Ele acendeu urn cigarro, e parecia que a vida inteira 34 35
  • 20. voltava ao normal ao sentir aquela tragada maravilhosa, in- lllnllgoloides sao seres hospitalares, vivem na antessala dos tensa, perfumada: veja, ele se dizia, nao h.i velhos mongo- 111 !'• di cos. Poucos vao alem dos ... quantos anos? Ele pensou loides. Voce tern certeza disso?, alguem perguntaria, erguen- e111 1 anos, e calculou a propria idade, achando muito; tal- 0 do o brac;:o; sim, nenhuma duvida; eles morrem logo, e ele VI'/, 5, fantasiou, vendo imediatamente uma sequencia rapi- desejou passear por uma rua movimentada as seis da tarde il.l dL' anos, os amigos consternados pela sua luta, a mao no so para conferir in loco, cabec;:a a cabec;:a, essa verdade in- I' ll ombro, mas foi inutil - rnorreu ontern. Sirn, nao resis- discutfvel: eles nao existem. Veja voce mesmo. Procure na lltl . V oltariarn do cerniterio corn o peso da tragedia na alma, multidao : nao existem. Era quase meio-dia, a maternidade tn .t:-1, enfim, a vida recornec;:a, nao e? Urn sopro de renovac;:ao agitada. Uma enfermeira lhe pergunta alguma coisa, ele diz co mo se ele tivesse existido apenas para lhes dar forc;:as, que nao, que vai sair, nao querendo pensar muito na sua p.11-.1 uni-los, ao pai e a mae, sagrados. Viu-se carninhando no descoberta para nao estraga-la, para melhor usufruir a li- pMque Barigui, quem sabe urna rnanha bonita e rnelancolica berdade que, subita, estava diante dele, talvez - ele calculou ro lll O esta, repensando aqueles cinco - aqueles tres anos, - seja so uma questao de dias, dependendo da gravidade l.d vcz dois. A tempera da alma: eis a expressao certa para co- da sfndrome. lll l'~'a r seu discurso de orador. Colegas! Precisamos da tern- Nao h.i mongoloides na historia, relato nenhum - sao se- 1H'ra da alma! res ausentes. Leia os dialogos de Platao, as narranvas medie- Por que se preocupar? Refugiado na verdade cristalina de vais, Dam Quixote, avance para a Comedia humana..de Bal- qu e seu filho nao viveria rnuito - era apenas uma especie zac, chegue a Dostoievski, nem este comenta, sempre atento dt• provac;:ao que Deus, se existisse, teria colocado na sua vida aos humilhados e ofendidos; os mongoloides nao existem. p.tra testar a tempera de sua alma, como fez a Job- o rnundo Nao era exatamente uma perseguic;:ao historica, ou urn pre- p.trece que se reorganizou inteiro . Ele sernpre foi urn hornern conceito, ele se antecipa, acendendo outro cigarro - o dia otimista. Alguem do seculo XX, ele sonhou, apaixonado pela esta muito bonito, a neblina quase fria da manha ja se dissi- l l~c nica, entusiasmado pela ideia do prazer, fascinado pelas pou, e o ceu esta maravilhosamente azul, o ceu azul de Curi- tnulheres, atrafdo pela inteligencia, rnergulhado no rnundo tiba, que, quando acontece (ele se distrai), e urn dos melho- verbal, irnpregnado de duas ou tres ideias basicas de hurna- res do mundo - simplesmente acontece o fato de que eles nismo e liberdade, urn pequeno Pangloss da provincia, ern nao tern defesas naturais. Eles so surgiram no seculo XX, tar- 1,i pida transformac;:ao. Ao rnesrno tempo, uma rede tentacular diamente. Em todo o Ulisses, James Joyce nao fez Leopold de afetos, de que ate o fim da vida ele jamais conseguira Bloom esbarrar em nenhuma crianc;:a Down, ao longo daque- HC livrar cornpletamente, parece que o arrasta para tras e o las 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamen- imobiliza. Eu nao tenho cornpetencia para sobreviver, con- te. 0 cinema, em seus lill_ano~~contabiliza, fon;ando a ·lui. Nao consegui nern urn unico trabalho regular na vida. memoria, jamais os colocou em cena. Nem vai coloca-los. Os Penso que sou escritor, mas ainda nao escrevi nada. Tudo que 36 37
  • 21. tenho e urn filho recem-nascido que deve morrer em breve. Mas esse, mas essa morte proxima, esse - ele gaguejava, tentando nao pensar nisso, acendendo outro cigarro, tentan- do recuperar o fio de uma rotina que simulasse normalidade, o que fazer agora? almo<;ar? - mas esse fato, essa morte anunciada, parecia-lhe, nesse momento, o unico lado born de sua vida. Como no cartum imaginario em que os fatos se sucedem lninterruptos, ele ja esta em casa. Ha urn simulacra de nor- ntalidade, desde o bonequinho azul na porta do quarto do fi- llto- os preserites, os pacotinhos, os chocalhos pendurados, os enfeites, a incrfvel parafernalia de urn recem-nascido, fral- d,ls, talcos, roupas, sapatinhos, babados, brinquedos - ate .ts providencias miudas. Pai e mae conversam como se nao ltouvesse nada diferente acontecendo, ate que urn pequeno surto de depressao aflore, e entao urn breve gesto do outro 1'l'p6e a normalidade possfvel, numa balan<;a compensat6ria. A ideia - ou a esperan<;a - de que a crian<;a vai morrer logo tranquilizou-o secretamente. Jamais partilhou com a mulher ,1 revela<;ao libertadora. Numa das fantasias recorrentes, abra- ~·a-a e consola-a da morte tragica do filho, depois de uma fe- bre fulminante. Mas ela sabe muito bern do risco, e trabalha L'ffi sentido contrario; nesses poucos dias esta permanente- mente, obsessivamente atenta a cada mfnimo sinal que par- ventura surja para amea<;ar o filho. Que, alias, parece muito saudavel para uma crian<;a com aquela folha corrida geneti- ·a. Abre a boca horrorosa e chora muito; quando dorme, dor- me em excesso; e preciso acorda-lo, alguem sugeriu. Quanto mais ele se mover, melhor - melhor para quem?, o pai se pergunta. Move-se como qualquer outra crian<;a. A lingua pa- 38 39
  • 22. r- ~ rece urn pouco mais comprida que a lingua dos outros, ele Llncia estupida em romper como proprio passado, naufrago pensa, mas os bebes sao animais ducteis, formam-see defor- dt•lc mesmo, depois o curso universitario com a definitiva in- mam-se com facilidade, vao tomando contornos diferentes lt•grac;ao ao sistema, mas nenhuma de suas vantagens, de- dia a dia. Se ele coloca o dedo na sua palma, o menino agar- t•rnpregado indocil, escritor sem obra, movendo-se na som- ra-o com alguma forc;a, 0 que, dizem, e sinal de boa saude. hr ,l cnsaboada de seu born humor- e agora pai sem filho. Mas a cabec;a, ele pensa, e grande demais, mesmo para urn Epreciso enfrentar as coisas tais como elas sao; e preciso hebe, que sao cabec;udos por natureza. Esse pescoc;o. E esse tlt•sarmar-se, ele sonhava. Nao fugir do peso medonho do ins- choro esganic;ado - isso e normal? Lillie presente. A filosofia inteira do seculo se debruc;a sabre Nao, nada mais sera normal na sua vida ate o fim dos t•ssc instante vazio, ele relembra. 0 problema e que as coisas tempos. Comec;a a viver pela primeira vez, na alma, a an- o filho agora, e toda a interminavel e asfixiante soma dos gustia da normalidade. Ele nunca foi exatamente urn homem pl't]uenos fatos cotidianos que ele acumulou a vida inteira normal. Desde que o pai morreu, muitos anos antes, o seu rom a sensac;ao .de que criava e nutria uma personalidade padrao de normalidade se quebrou. Tudo o que ele fez desde pr6pria- as coisas nao sao nada em si. 0 mundo nao fala. entao desviava-o de urn padrao de normalidade - ao mesmo Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que tempo, desejava ardentemente ser reconhecido e admirado .t s coisas sao. Esse e urn poder inigualavel- eu posso falsifi- pelos outros. 0 que, bern pensado, e a normalidade abso- r.rr tudo e todos, sempre, urn Midas Narciso, fazendo de tudo luta, ele calcularia hoje. Uma crianc;a tfpica, urn adolescente 111inha imagem, desejo e semelhanc;a. Que e mais ou menos tfpico. Urn adulto tfpico? Era uma mistura de ideologia e de o que todos fazem, o tempo todo: falsificar. Essa algaravia inadequac;ao, de sonho e de incompetencia, de desejo e de rnonumental em toda parte, todos falando tudo a todo ins- frustrac;ao, de muita leitura e nenhuma perspectiva. Todos l.rnte, esse horror coletivo ao silencio. Ha outra perspectiva? os projetos pela metade, tudo parece mais urn teatro pes- N.1da tern essencia alguma (ele lembra dos livros que leu) em soal que alguma coisa concreta, porque eram poucos os ris- hrgar algum. Isso, sim, faz sentido. Eu so preciso escapar des- · cos. 0 medo da mesma solidao que ele alimentava todos 1,1 asfixia. 0 filho e a imagem mais proxima da ideia de desti- os dias. A tentativa de se tornar piloto da marinha mer- ne, daquilo de que voce nao escapa. Ou daquilo de que voce cante, a profissao de relojoeiro, o envolvimento no projeto n,1o pode escapar? Por que? Por que eu nao posso tamar ou- rousseauniano-comunitario de arte popular, a dependencia de lro rumo?- sera a pergunta que fara varias vezes ao longo urn guru acima do bern e do mal, a arrogancia nietzschiana da vida. Porque eu ja tenho uma essencia, ele responde, que e autossuficiente com toques fascistas daqueles tempos ale- l'Umesmo construf. A minha liberdade e uma margem muito gres (ele percebe hoje}, enfim a derrocada de se entregar ao ·~;treita, suficiente apenas para me deixar em pe. casamento formal assinando aquela papelada ridfcula num No escuro, a crianc;a dorme. evento mais ridfculo ainda vestindo urn paleto (mas nao uma Ele acende urn cigarro na sala. Urn dos raros momentos gravata, ele resistiu, sem gravata!}, a falta de rumo, uma relu- 1 tranquilos, mas, ao apurar o ouvido, ouve o choro da mulher 40 41 . ..
  • 23. no quarto, quase urn choro de crianc;a inibida. Ele fica im6- 1.1 da melhor ciencia do imperio britanico, descreveu pela pri- vel, ouvindo. A crianc;a nao acerta sugar o seio - e preciso rnl'ira vez a sfndrome frisando a semelhanc;a da vftima com a toda uma operac;ao de guerra para conseguir algumas gotas t•xpressao facial dos mong6is, la nos confins da Asia; daf de Ieite. Indicam uma traquitana (o que lhe agrada, e claro): "111ongoloides". Que tipo de mentalidade define uma sfndro- urn pequeno funil de vidro com uma bombinha de borracha. llll' pela semelhanc;a com os trac;os de uma etnia? 0 homem Urn objeto delicado : lembra-lhe algo antigo, uma farmacia de Ill itanico como medida de todas as coisas. 0 prfncipe Charles, filme, urn alquimista medieval. Aquilo suga o Ieite como urn .tquela figura apolfnea, sera o padrao de normalidade racial, projeto de Da Vinci, ele fantasia. Gotas amareladas - nao t' l'lc comec;a a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como parece Ieite. Dias tensos para a mae, ele sabe. Numa das cri- t•ssa denominac;ao durou mais de urn seculo, como algo nor- ses, ela lhe diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a Ilia! e aceitavel? Sim, normal e aceitavel, inclusive por ele tua vida. E ele nao respondeu, como se concordasse - a mao rnesmo - ele lembra agora, com urn frio na espinha, como que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, nao a ll ,i poucas semanas comentou com urn colega a burrice de verdade dos fatos. Talvez ela tenha razao, ele pensa agora, 11ma professora: Parece uma mongoloide, ele disse. A palavra no escuro da sala - e preciso nao falsificar nada. Ela acabou veio-lhe facil, do trabalho que revisava - foi s6 estender a com a minha vida- refugia-se no oco da frase, sentindo-lhe 111ao e recolher da arvore. Nao cuspa para cima, que cai no o eco, e isso lhe da algum conforto. olho, lembrou ele do dito popular, essa sabedoria calculista e A normalidade. 0 que dizer aos outros, quando encontra pragmatica, procurando sempre uma justic;a secreta em todas com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, esta tudo bern. Quer .1s coisas, para fugir do peso terrfvel do acaso que nos define. dizer, ele e mongoloide. Nao - essa palavra e pesada demais. 0 problema da normalidade. Talvez ele mesmo escreva E em 1980 ninguem sabia o que era "sfndrome de Down". urn pequeno roteiro com o texto certo para as pessoas reci- A maneira delicada de dizer e: Sim, urn pequeno problema. tarem no momento da confissao da tragedia. Algo como "Nao Ele tern mongolismo. Mas isso exige uma rede de explicac;6es me diga! Mas imagino que hoje em dia ja ha muitos recursos, subsequentes - e as pessoas nunca sabem o que dizer ou nao? Olha, precisando de alguma coisa, conte comigo" - fazer diante daquela coisa esquisita. Ao "nao me diga!" cons- c entao ele diria, obrigado, vai tudo bern. Mudariam de as- ternado, ele da urn tapinha nas costas, urn sorriso, e tranqui- sunto e pronto . Bern, em grande numero de encontros, nao liza - mas esta tudo bern, sao crianc;as bem-humoradas, com precisaria dizer nada: sao bilh6es de pessoas que nao o co- urn born tratamento elas ficam praticamente normais. "Prati- nhecem, contra apenas umas dez ou doze que o conhecem. camente normais". 0 que ele quer resolver agora nao eo pro- Essas ja sabem; nao e preciso acrescentar nada. Na maior par- blema da crianc;a, mas o espac;o que ela ocupa na sua vida. te dos casos, basta dizer: Sim, a crianc;a vai bern. Felipe, o E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Ja viu nome dele. Obrigado. E nada mais foi perguntado e nada mais na enciclopedia que o nome da sfndrome se deve a John se respondeu, dando-se por encerrado o assunto e prosse- Langdon Haydon Down (1828-1896), medico ingles. A manei- guindo a vida em seus tramites normais. Ele respira aliviado. 42 43 ..
  • 24. 0 problema, ele insiste, e que nao ha bern urn lugar para essa A fa milia do velho Kennedy escondeu do mundo, a vida crianc;a na sua vida. Lembrou, em panico, do poema 0 filho l11 1drJ, urn filho retardado. Havia muita coisa em jogo, ever- da primavera, que lhe ressurgiu subito inteiramente ridfculo, ri.H IL• - mas o grande motor era a vergonha . A vergonha patetico, o horror do texto ruim, do mau gosto, do arquikitsch 11 '11 11 ,1 do catador de lixo ao presidente da Republica. E uma desabando na cabec;a e na memoria - ele havia entregue ' ll o~vc poderosa da vida cotidiana: esses politicos deviam e para publicac;ao numa revista de letras, e comec;ou a suar, so 1 vcrgonha na cara!, nos dizemos todos os dias, o que e urn 1'1 de lembrar. Teria de suportar aquilo impressa - talvez ate 11 1.1 11 tra que nos redime enos tranquiliza. Como se fosse a o viessem cumprimentar pelo talento e pela sensibilidade: l l ll '~ m a coisa, agora ele sentia vergonha, embora a palavra, 11111 algum misterio, nao lhe aflorasse, o som da palavra em "Como voce superou bern o problema!", diriam, solidarios, o solido aperto de maos, o sorriso de admirac;ao. Sim, todos 1 .1 simplicidade, como se alguma coisa tao absurdamen- 1 sempre souberam que ele tern talento. E a mentira escarrada: 11 • ~ imples, vergonha, nao pudesse fazer parte de sua vida ( •1 t'1 os medfocres sen tern vergonha, ele recitava) - o que che- urn poema meloso para urn filho retardado. Era preciso im- I.IV,1 a pele, 0 que queimava, era 0 sentimento insuportavel pedir a publicac;ao daquilo. Ele perde qualquer resqufcio de sono, so em lembrar: amanha cedo mesmo falara com a edi- d1• alguma coisa errada. E alguma coisa errada nao com o tora da revista: Por favor, nao publique o poema. Ainda ha IIIII o, mas com ele mesmo. tempo, nao? Ele nao sabe ainda, mas bastou urn breve fiapo A crianc;a dorme, a mae agora tambem dorme, e ele acen- de realidade mais diffcil para que se apurasse seu senso de dv outro cigarro, no escuro. A mulher tern razao: ela acabou literatura. Mas aqui o problema e outro . n un a vida dele, ele suspira, concordando, e sente-se miste- A vergonha. A vergonha- ele dirci depois- e uma das liosamente mais tranquilo. mais poderosas maquinas de enquadramento social que exis- tem. 0 faro para reconhecer a medida da normalidade, em cada gesto cotidiano. Nao saia da linha. Nao enlouquec;a. E, principalmente, nao passe ridfculo. Ele pensava sincera- mente que ja havia transposto esse Rubicao de uma vez por todas - o teatro de rua de que participara anos atras, na co- munidade, aquela grandiloquencia pretensiosa fantasiando- se de teatro popular ja lhe dera micos suficientes para urn doutorado em cara de pau. Mas havia a protec;ao de grupo e o involucra da inconsequencia - ele ainda podia ser qual- quer coisa a qualquer momento; ele ainda podia mudar de rumo; ele nao tinha destino algum. Tinha so a arrogancia fe- liz da liberdade. Fodam-se. 45 44
  • 25. Em apenas dais dias surgiu outro argumento poderoso p.tta escapar do peso do momenta presente: a hip6tese de que ltouvesse urn erro de diagn6stico, e que, de fato, a crian~a losse normal oil tivesse algum problema de outra natureza, la•m menos grave. S6 havia urn modo de tirar a duvida: fazer o cari6tipo da f:l 1.1n~a, a fotografia dos cromossomos. Mas ele nao consegue ~ ~· enganar: sabe que essa hip6tese e remota- o menino pa- tl'l'l' uma demonstrayao viva de todas as caracteristicas mais ollvias da sindrome, praticamente urn exemplo didatico para tt s,u em sala de aula. Conversando como professor da area dt• genetica, descobre a possibilidade de uma salva~ao mila- grosa, mas que seria pelo menos rigorosamente cientifica. () cstudo de urn pesquisador frances de alguns anos antes, sobre a ocorrencia da trissomia em gemeos, teria revelado que pode haver manifestayao parcial da sfndrome- desco- llriu-se que uma parte delimitada do cromossomo extra e res- ponsavel estritamente pelo retardo mental, e outro segmento, 1 ,1mbem perfeitamente delimitado, e responsavel pela aparen- cia fisica, pelo fen6tipo, o conjunto de caracteristicas exter- nas que permitem o diagn6stico. No caso dos gemeos, urn exemplo fortuito, houve uma "distribuiyao do problema": urn deles, de aparencia perfeitamente normal, apresentava a defi- 47
  • 26. ciencia mental tfpica da sfndrome; o outro, de aparencia ine- Vt' l.lr as fotos dos cromossomos que tirou em urn laborat6rio quivocamente Down, era uma crianc;a mentalmente normal. d.t Franc;a. Mais tarde, no Canada, ele apresenta a tese do 0 caso era urn milagre- de ocorrencia e de sorte cientffi- "dl'lcrminismo cromossomico" dos "mongoloides". No ano ca do pesquisador em flagra-la- mas o paise aferrou ao mi- q:uinte, publica seu trabalho - pela primeira vez se de- lagre assim que soube dele. Sim - praticamente nao havia lt 'lll1ina a relac;ao entre uma aberrac;ao cromossomica e uma duvida de que o Felipe era uma crianc;a normal; veja como dt•li ciencia mental. Era mais urn passo em direc;ao a desde- ele aperta o dedo com forc;a assim que voce toea na palma ltlonizac;ao do mundo , comprovando-se nessa area sensfvel, dele! Muito provavelmente, ele argumentava, agitado, talvez lt'l rit6rio privilegiado da magia, dos bruxos, dos maus-olha- para nao ouvir o que ele mesmo dizia, muito provavelmente dos, das maldic;oes e das transcendencias de ocasiao, mais a parte afetada do cromossomo e apenas a das caracterfsticas 11ma vez a natureza arbitraria, absurda, loterica, erratica dos ffsicas, nao a responsavel pelo retardo mental. Essa fantasia l.1 tos; em suma, urn cari6tipo e por si s6 mais urn passo de- lhe dava folego para sobreviver mais alguns dias (ja se ante- 1 10nstrativo da vida em direc;ao a profunda indiferenc;a de cipava, em lapsos visionaries de que ele mesmo achava gra- totlas as coisas. Ele fecha os olhos, tentando dar uma digni- c;a, nervoso, preocupando-se com a feiura da crianc;a- como d,lde fria ao seu desespero : a contingencia do ser e urn fato, convencer os outros de que aquele pequeno monstro seria, ll'pete ele, como se a revelac;ao por si s6 o salvasse do abis- de fato, uma crianc;a normal?); a outra hip6tese, a mais s6li- 1 Mas e ainda incapaz da pergunta seguinte: e daf? 110. da - trata-se sem discussao de uma trissomia do cromosso- Ainda no hospital (lembra-se agora, acendendo outro ci- mo 21 -, tambem nao seria tao tragica, afinal, pela vulnera- garro e olhando para 0 teto), 0 irmao dele veio ve-lo. bilidade da crianc;a - uma infecc;ao e ela nao sobreviveria. - Voce ja sabia - o irmao disse, serio como urn sacer- Em qualquer caso, Pangloss esta feliz! Tudo que ele queria dote, como quem sussurra urn segredo esoterico acessfvel era urn apoio silencioso naquela passagem de tempo, qual- .1penas aos iniciados, aproximando o rosto como urn cristao quer coisa que nao fosse encarar o fato em si. Deixar escorrer tl isfarc;ado do primeiro seculo, movendo-se nas sombras do o tempo, no limbo da inconsciencia. Mais uma vez ele sairia paganismo hostil-e mostrou-lhe o documento indiscutfvel, do outro lado, sozinho, sao e salvo, mais experiente, mais urn dos dez poemas que o pai do Felipe havia escrito anot maduro, mais compenetrado de seu grande destino. antes, numa pensao em Portugal, em seus tempos de mo- Era preciso, entretanto, enfrentar o cari6tipo. Ate meados chileiro, e enviado ao irmao . "Tudo esta em tudo", talvez ele dos anos 1950 nao se sabia o que causava o chamado mon- dissesse em complemento. Mesmo com 42 graus de febre, o golismo . Foi o medico frances Jerome Lejeune (1926-1994) irmao sempre se recusou a tamar remedio; no maximo, uma quem pela primeira vez relacionou a sfndrome com uma ca- agua fria na testa - "A natureza sabe o que faz." 0 pai do racterfstica genetica perfeitamente delimitada, a trissomia do Felipe abriu o papel, ja antevendo o que estava ali. Irritando- cromossomo 21. Em 1958- o pai le, avido, o material que o se com a consolac;ao tranquila e medieval que o irmao ofe- professor lhe empresta - Lejeune vai a Dinamarca para re- recia, releu 0 proprio texto, de rna vontade: 48 49
  • 27. Nada do que nao foi t. 1 tt.tda do que nao foi" e urn eco longfnquo e inepto do Qua- poderia ter sido. {,rlt/tUlrletos, que por sua vez repete o Eclesiastes; mas ami- Nao ha outro tempo '"'" rdcrencia e posti9a. Nunca assisti a uma missa inteira na sobre esse tempo. rlillllt,l vida. Nao sei latim nem sou leitor da Bfblia. Nao gosto i11 • p.tdres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de Amanha e amanha lltticlcricalismo atavico. Nao tenho absolutamente nada aver e uma escada curva. '"'" cssa causalidade mftica que querem inventar na cultura Ninguem abre a porta '''' Ocidente, esses brasoes de isopor, pintados de ouro, que ainda em modelo. !11 .tvcssam OS tempos; nunca li Virgilio inteiro; tudo isso e Hoje ouvimos os ratos .dwdoria de urn almanaque sofisticado - T. S. Eliot e al- roendo o outro lado. f:llt''m incompreensfvel para mim. E continua, quase em voz Ninguem chegou l.i, .dt,t : "Nada do que nao foi poderia ter sido" e urn prosafsmo porque hoje e aqui. ltnnfvel herdado das teses do velho guru, para quem haveria 11111.1 misteriosa "propon;ao correta" entre todas as coisas - Mas o sonho insiste dt• novo, a magica explicac;ao medieval do mundo, tudo esta o sonho transporta '·' "' tudo, esse delfrio capaz de atrair (e tranquilizar) tantos o sonho desenha 111ilh6es de pessoas todos os dias. Ha uma causae uma culpa uma escada reta. ('Ill tudo - e preciso que haja, e absolutamente indispensa- Vl'l que haja urn sentido para as coisas, ou cafmos no abismo. Quando cortas o pao Elc sente que a ideia do acaso e insuportavel - pois e exata- o depois-de-amanha mente af que ele quer estar, naquilo que nao pode ser supor- nao te interessa. t.ldo, ele sonha, como quem se afasta do corpo e se transfor- Mesmo que sabes: ma em abstra9ao. A escada curva do amanha, a porta ainda todas as fon;as em modelo, sao ecos de algum verso de Carlos Drummond estao reunidas de Andrade, que ele leu, repetiu e decorou tantos milhares para que o dia amanhe9a. de vezes desde a infancia que ja fazem parte de sua sintaxe. "Mesmo que sabes" e urn enigma oco. A estrofe final, que pa- Ele estava demasiadamente destrufdo, no momento, para rece uma marcha militar, vern de algum ideario marxista di- contra-argumentar, mas come9ou a moer e remoer o seu pro- fuso, linguagem do tempo, estilo revolu9ao cubana, compa- prio poema assim que ficou sozinho. Nada aqui sou eu, disse nheiros, avante!, determinismo dialetico, a ideia de que a ele, em voz alta. Isso e urn simulacra de poesia; cada ver- causalidade absoluta da natureza se confunde com a causa- so deixa o seu rastro a vista, num amadorismo elementar. lidade contingente dos fatos da cultura e da hist6ria; "realis- so 51
  • 28. mo" socialista. As "fon;:as reunidas" descem pela escada de tl .'I mago das coisas, nesse momento, e a descoberta de algum verso retumbante em berc,:o esplendido, talvez. 0 de- lt•tttH.', tao simples na sua metodologia prosaica de labora- sejo de que o dia amanhec,:a, quem sabe num sabado, tern urn tlll ill, na completa ausencia de pathos da melhor ciencia, o que de Vinicius de Moraes, outro tanto de Geraldo Vandre, lt . d ~o tlil o de formiga diante de plaquinhas de vidro, anos a fio. para nao dizer que nao falei de flores. E lembrou que o poe- llttllt ,tbalho realmente nao espetacular. Uma coisa mediocre. rna foi escrito em Portugal, em plena Revoluc;ao dos Cravos I f'V.t tll a-se uma hipotese e testa-sea hipotese: repita-se a ope- - cinco governos provisorios em urn ano. Ele absorvia aqui- ' t, to ate se chegar a "verdade dos fatos". Sim, a mac;a cai na lo pelos poros - e urn pouco por preguic,:a. 0 parafso estava ' dn•<,·a e pode-se ter urn estalo de criac,:ao- a lei da gravida- proximo, faltava so acertar os detalhes. tit •, mas isso nao elimina a hipotese nem a sua repetic,:ao sis- Problema mesmo, de verdade, era o dele, agora. A auto- lt•tn , tica. E urn terreno pantanoso, ele sabe, e sabe que esse demolic;ao poetica deixa-o sem chao, ainda no corrector do 11.1o co terreno dele. Qual e mesmo o terreno dele? 0 orgulho hospital. Mas ele sabe exatamente o que nao quer, ao reagir dt"K'o munal, teirnoso como urn campones, a consciencia lu- ao conforto poetico: nao quer uma muleta. Quer o fato em si. tt tl nosa do proprio destino, grande como o dos gregos, a soli- 0 amago das coisas, sonha ele, nao resistindo ao prazer da d.to como urn valor etico. Eo que ele tern? Nada. Vive ascus- bravata. E quer manter intacto o orgulho, o sentimento da l.t H da mulher, jamais escreveu urn texto verdadeiramente propria superioridade, que custou tanto a alimentar, que foi hom, sofre de uma inseguranc;a doentia e, agora, tern urn fi- sempre a direc;ao cega de sua vida - ou nao teria feito nada, lilo que, se sobreviver, o que e pouco provavel, sera uma pe- ou teria sido igual a todo mundo, carimbando formulario em dra inutil que ele tera de arrastar todas as manhas para reco- algum balcao, puxando o saco de alguem, dependendo da tn cc;ar no dia seguinte e assim ate o fim dos dias, pequeno propria gentileza e da gentileza alheia, pedindo favor, sendo Sfsifo do vilarejo. Porque nao tera sequer a coragem de mata- aquila que todos os outros sao, no seu olhar incompleto. Essa lo , oferece-lo em sacriffcio aos deuses, o que nos daria a di- porcariada toda, esse lixo que ele ve em volta. Eu nao quero mensao epica dos tempos sagrados, ele divaga. A saudade da isso. Eu nunca quis isso. Nao, ele tern outro destino (vem-lhe pureza primordial; a brutalidade do mundo dionisfaco; o va- a mente outro desfile de fantasias, os arquetipos, as figuras lor da tribo. Se alguem grande como Heidegger entregou de mfticas de uma Grecia retumbante e kitsch, com seus deuses t:io boa vontade a alma numa bandeja a tribo, por que ele seminus, contra os quais, parcas do destino, nao ha desgrac,:a- nao poderia fazer o mesmo? Mas ele, o pai, ri- e a sua uni- damente 0 que fazer, estamos escritos para todo 0 sempre; e 0 ca boa dimensao, nesse momento. Oculta-se na sombra do nascimento da tragedia, de Nietzsche, cujos trechos mais humor. 0 riso desmonta- nenhuma tragectia sobrevive a ele. impactantes ele copiava laboriosamente no silencio sinistro da E oculta: o homem que ri nao e visfvel. 0 riso nao tern forma Biblioteca de Coimbra). 0 amago das coisas. Repita varias ve- - ele da a ilusao da igualdade universal de todas as coisas. zes essa expressao, ele se diz, em voz alta, e veja se ela man- 0 amago. Repita: 0 amago das coisas. Ele avanc;a com a tern algum sentido. 0 amago das coisas. 0 amago das coisas. mulher e o filho para o predio da genetica, na universidade. 52 53
  • 29. ,.--- - Ja esteve aqui, anos antes, tentando avaliar a probabilidade li' tmmossomo aqui, o 21, e o dedo aponta - veio com de repetir;ao hereditaria de uma provavel retinose da mulher, 1 ,1 1.11nflia maior; sao tres, em vez de dais. Se for esse o 111 de caracteristicas indecifraveis. Newton Freire-Maia classifi- ltllt, (• clara, embora ... embora o fen6tipo , o conjunto das cou-a como gene dominante - a possibilidade de que acon- l 'ltt tl•dsticas fisicas, nao desminta. Mas . tecesse o mesmo com os filhos seria de 50% . Ouvindo Freire- IJn1,1 gota de sangue. A crianr;a mal se move, mergulhada Maia, ele lembrou das leis de Mendel, nos tempos de colE~gio . ~~ ~ 1•sr uridao do sono. Depois sera o sangue dos pais, mas dai Gostava daquilo - era uma arvore perfeita, geometricamen- jtC'II.IS em nome da ciencia, para abastecer o banco geneti- te delimitando olhos azuis (dependendo dos pais, 25%) e ut Algum pesquisador, diante dos cari6tipos de centenas de olhos castanhos (os outros 75%); ele via, graficamente, o p.tl'l de crianr;as Down, podera quem sabe ter urn momenta poder da possibilidade, tirando linhas daqui e dali, genes d•• n iar;ao e descobrir alguma nova lei de recorrencia geneti- recessivos, genes dominantes. Uma cH~ncia exata. (Alguem 1,1 Mas nao e nisso que ele pensa agora - e SO no resultado , lhe disse, anos depois, que Mendel muito provavelmente frau- IIIH' vira. Ja esta~a perfeitamente integrado ao destino, nesse dou o calculo de suas ervilhas, para que o resultado fosse tao tttllllciro momenta : tenho urn filho com mongolismo (nao miraculosamente exato. Nao importa: ele extraiu a lei, que llliiScguia mais pronunciar a palavra "mongoloide"), ele di- continua viva, em cada nascimento dos bilh6es do mundo .) 1.1, e e com isso que tenho de lidar. Esse eo problema; nao Cinquenta par cento? - era uma aposta razoavel contra o lnvente outros; nao agora. 0 impacto inicial de dias antes destino; o poder da paixao, e ele abrar;ou a mulher. Que sao l'omer;ava a amortecer. Mesmo porque ele reservava urn so- 50%? Uma pura ideia. Sim, vamos colo car nossas fichas em ll tl'destino sabre o primeiro: a fragilidade da crianr;a (de urn nos mesmos, no vermelho, e se beijaram e se amaram. Mas 1110mento em diante, evitava pensar nisso , sacudindo a ca- a roleta perdeu o rumo, deu preto, a bolinha saltou para hl't;a, mas a ideia estava la) faria o resto. Simulando conster- outra mesa do cassino e agora eles tinham nos brar;os uma llilt;ao, ele ouvia a estatistica dos professores: cerca de 80 % trissomia 21. das crianr;as mongoloides nao sobrevivem muito tempo. Mas Era ainda preciso classificar o tipo de trissomia. Se sim- hoje, eles ressaltavam, isso tende rapidamente a mudar. (Nao ples, a possibilidade de repetir;ao da sindrome era minima. no meu caso, ele sonhava, e sacudia a caber;a.) Quem sabe Se de outro tipo, nem tanto. Os professores, gentis, explicam haja mesmo, de fato, uma proporr;ao correta entre todas as sorridentes a maquina dos cromossomos - ele ve aquela fo- coisas? Mas agora entrava outra variavel, como urn jogador tografia ampliada em preto e branco, uma sequencia nume- descartado que, subitamente, ve a chance de voltar ao jogo rada de duplas irregulares que parecem dentes com raiz, fora - e se o cari6tipo indicasse de fato que se trata de uma crian- de foco. Estamos inteiros ali, ele imagina. Pensando bern, sao r;a normal? Apenas esse fiapo ridiculo de esperanr;a dava-lhe poucas variaveis para tantos resultados disparatados. A den- alguns dias de normalidade, ate que o exame ficasse pronto. cia organiza - o que vern embaralhado na natureza, a cien- • Talvez, ele pensava, ao voltar a ceu aberto, urn dia bonito - cia abstrai e dispoe em fila, par tamanho e caracteristicas. eu deva continuar meu livro e me esquecer urn pouco. 54 ~ 55 .. I
  • 30. r·: preciso ainda consul tar urn especialista em genetica me- dlt 1, para conferir uma eventual cardiopatia- todos os me- dhos disseram que nao ha nada de errado com a saude do nH•nino, mas a incidencia de problemas de corac;ao em crian- '•"s com trissomia 21 e muito alta. Urn especialista saberia lo- t ,liizar o problema, se houver, com precisao. Ao cruzar o pa- llo dos milagres do Hospital das Clinicas, aquela pobreza ttja, estropiada, crista, os molambentos em fila, a desgrac;a ttt cmorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulancias de ptdeituras do interior trazendo votos potenciais que se arras- 1.1111 em muletas, o gada balanc;ando a cabec;a e contemplan- do no balcao uma cerca incompreensfvel e intransponfvel, t'tlidada por outra especie de gada que carimba papeis e en- lrcga senhas; o setimo ceu e algum corrector que cte em outra ala onde urn ap6stolo de branco estendera a mao limpa e clara sabre as cabec;as para promover a cura milagrosa- ele pcnsa em Nietzsche e no horror da misericordia, a humilha- ~10 como valor, a humildade como causa, a miseria como grandeza. Pais o seu filho, confirmada a tragedia, nem mes- mo a esse ponto (ele olha em torno) chegara, porque nao tera cerebra suficiente para inventar urn deus que 0 ampare e nao tera linguagem para pedir urn favor. 0 que o ampara agora, no vaivem desses dias medonhos, e a perspectiva justamente 57
  • 31. da cardiopatia do seu filho, que acabara logo com o pesade- tli Vitg.t, cles poderao passear como filho sem ter de dar ne- lo, ele sonha, e mais uma vez se anteve recebendo abrac;os e lillltttt.l cxplicac;ao adicional. condolencias sentidas. Pensa vagamente na imagem de urn N.t outra sala, esta o medico - urn velho senhor cansado i1 ut'lll humor que mostra urn sorriso contrariado ao pegar a filme ingles, urn enterro sob uma arvore, num fim de tarde melanc6lico, todos de preto. Ma~ nao havera servic;o religio- u lttt~'<l e coloca-la no pequeno balcao protegido por uma so. Uma cerim6nia limpa e tranquila. Urn recomec;o: o mun- lit ,tttl .l c lcnc;6is. Enquanto tira a roupa do bebe, o que ele faz •Piol 'il' com alguma rispidez, o homem vai dando informac;6es do comec;a com urn suspiro de alfvio. 0 desejo estupido de morte nao o deixa - hJ. urn esforc;o de derrota-lo (primeiro a Wllb;,ts sobre a sfndrome com uma voz mon6tona- eo pai pi' tn•he, agulhadas silenciosas na alma, que hJ. uma brutali- miragem de urn engano genetico, que faria desse nascimento tlttll' medida em cada palavra. Cada palavra e rigorosamente s6 urn pequeno trote do destino), depois a vergonha do pro- l'td.tdcira, com certeza- e no entanto, ele sente, uma gran- prio sentimento, a estupidez de sua frieza oculta - ele nao ilt• tlll'ntira esta. em curso, cuja fonte ele nao consegue loca- consegue oculta-lo; em lapsos, esse desejo volta irresistfvel, li ~ .tL "A mentira sou eu, talvez." Agora senta-se diante da e e como urn sonho. itll'S,l, os olhos atrafdos por urn livro de que ele vislumbra as A porta se abre e uma jovem medica residente, gentil, os p.tl.tvras "mongolismo" e "estimulac;ao", e estende imedia- recebe com urn sorriso - olha com urn carinho maternal para l,tttll'nte a mao para pega-lo, mas 0 medico e mais rapido a crianc;a, que dorme suave no colo da mae. Epreciso preen- • como quem apenas limpa o terreno, tira dali o volume, que J. cher alguns papeis, ela diz, em tom amigavel. Ele se sente urn dt•s,tparece numa gaveta. No mesmo instante surgem lapis e animal chucro, puxando o pescoc;o para se livrar do freio na p.tpl'l - e o homem comec;a a fazer alguns trac;os e escrever boca, aquela prisao inc6moda que o arrasta para tras: respon- tlguns numeros, como quem ensaia a demonstrac;ao de urn der a perguntas idiotas diante de uma mesa, hJ. sempre uma lt•orcma. invasao de intimidade - 0 que voce faz, do que voce vive, - A crianc;a, com urn born estfmulo, podera chegar a quem voce pensa que e -, e aquela irritante compreensao nnquenta, sessenta por cento da inteligencia de uma crian- humanista dos que tern poder mas o usam com moderac;ao. ~· .t normal. E, bern cuidada, pode ate ter uma vida quase nor- Aceite a regra do jogo, e o que eles dizem. Euma mulher bo- lila!, com relativa autonomia. Vejamos agora como esta o nita e realmente tranquila, ele vai descobrindo, e se angustia corac;ao. com a ideia de ser urn homem tao transparente - todos des- Uma especie de aula para alunos estupidos. Coloca o este- cobrem de imediato o que se passa na sua cabec;a, ele imagi- tosc6pio nos ouvidos e, como quem investiga uma mensagem na. No colo da mae, a crianc;a move a cabec;a e boceja, olhos do alem, os olhos quase fechados, aquela rede de rugas no fechados. Sera que, assim, ninguem percebe que esta nao e rosto envelhecido, urn paje na tribo, ausculta o corac;ao du- uma crianc;a normal? Os bebes - mesmo o dele - sao todos rante alguns minutos, movendo milimetricamente a pec;a so- parecidos. Por urn born tempo, ate que a crianc;a cresc;a, ele bre o peito da crianc;a (que deve sentir o frio do metal, ele 58 59