Este artigo descreve o desenvolvimento histórico da epidemiologia e do conceito de risco em 3 fases:
1) Epidemiologia da Constituição focada em identificar fatores externos de doenças
2) Epidemiologia da Exposição que delimitou relações causais probabilísticas
3) Epidemiologia do Risco onde o conceito de risco epidemiológico tornou-se central nas práticas de saúde
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Desenvolvimento histórico-epistemológico da Epidemiologia e do conceito de risco
1. ARTIGO ARTICLE 1301
Desenvolvimento histórico-epistemológico da
Epidemiologia e do conceito de risco
The historical and epistemological development
of epidemiology and the concept of risk
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres 1
Abstract Introdução
1Faculdade de Medicina, Statistical reasoning in health practice was dis- É sabido que o interesse no reconhecimento, em
Universidade de São Paulo,
São Paulo, Brasil.
seminated by epidemiology and is widely used escala populacional, das desigualdades no ado-
in various health fields. This paper revisits the ecer humano emergiu no final do século XVIII e
Correspondência historical development of epidemiology and the início do XIX, tornando-se potente instrumento
J. R. C. M. Ayres
Departamento de Medicina concept of risk, responsible for the use of statis- da construção das sociedades modernas 1. Em
Preventiva, Faculdade de tical chance as part of causal thinking in health conformidade com todo o amplo movimento
Medicina, Universidade de
sciences. The study covered the period from 1872 iluminista, passou-se, desde então, a buscar as
São Paulo.
Av. Dr. Arnaldo 455, sala to 1965, and the documental base consisted of “leis” socionaturais do adoecimento, objetivan-
2213, São Paulo, SP scientific articles related to the development of do conhecer e dominar, por meios racionais, as
01246-903, Brasil.
epidemiology as a field, particularly in the Amer- condições de vida e saúde das populações hu-
jrcayres@usp.br
ican Journal of Hygiene, as well as scientific manas e construir a utopia da sociedade plena-
books. Three phases were identified in the devel- mente saudável 2.
opment of epidemiology: constitution, exposure, Foi com base nesses saberes, ainda identifi-
and risk. The article proceeds to discuss episte- cados como Higiene Social ou Pública, que a Epi-
mological and social and health aspects required demiologia iniciou seu processo de conforma-
for the historical understanding of each phase. ção científica. Na segunda metade do século XIX,
It concludes by stressing the relevance of critical desenvolveram-se procedimentos sistemáticos
reflection on epidemiological science and its re- para conhecer a mecânica de interdição ou fa-
lationship to health practice, especially in public cilitação que o meio 3 produzia sobre os eventos
health, in order to optimize its current use and fisiopatológicos, progressivamente identificados
foster its on-going creative reconstruction. pelas ciências médicas da época. Este processo
permitiu à incipiente ciência epidemiológica re-
Risk; Epistemology; Social Medicine lacionar causalmente os fenômenos do organis-
mo humano às condições de vida das populações
nos termos das ciências positivas modernas 4.
Ao longo do século XX, observa-se importan-
te inflexão nessa trajetória. A Epidemiologia, que
buscava identificar exaustivamente os determi-
nantes externos do adoecimento, integrando-os
nas totalidades sintéticas designadas como meio
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2. 1302 Ayres JRCM
externo, passou a delimitar relações causais ana- toricamente, requer, por sua vez, a explicitação
líticas e abstratas, na forma de associações de ca- das pretensões de validade do próprio discurso
ráter probabilístico. Traduzidas no conceito de histórico-epistemológico que se debruça sobre
risco epidemiológico, este construto torna-se ele- ele. Por isso, será sempre desde uma perspectiva
mento central para as práticas de saúde atuais 5. crítica que essa epistemologia histórica se reali-
O objetivo do presente artigo é recuperar as prin- za, isto é, dependerá sempre do livre e público
cipais etapas históricas desse processo, demons- exame de seus próprios critérios de interpretação
trando como, pela formalização do conceito de da validade do discurso científico estudado.
risco, o caráter probabilístico passou a instruir o Assim, o desenvolvimento da Epidemiologia
raciocínio causal em epidemiologia, com reper- será narrado aqui como a história da construção
cussões nas ciências biomédicas em geral. do discurso conceitual do risco, tomando-se sem-
pre como contraponto uma análise crítica dos
personagens, contextos sociais e institucionais,
Método recursos teóricos e técnicos, valores e aspirações
que foram conformando, e sendo conformados
Trata-se de um estudo de caráter transdiscipli- também, por esse discurso. Os aspectos “inter-
nar, situado nas fronteiras entre a Saúde Pública, nos” e “externos” 11 na conformação da ciência
a Medicina Social, a História e a Epistemologia. epidemiológica são aqui articulados em uma tota-
Seu desenho está apoiado em uma metodologia lidade de sentido que confere significado aos con-
que pode ser genericamente descrita como uma ceitos estudados, em um movimento de mútua
epistemologia histórico-crítica 6. referência entre parte e todo, chamado de “círcu-
Com tal denominação quer-se apontar, em lo da compreensão” ou “círculo hermenêutico” 12.
primeiro lugar, a escolha do desenvolvimento dos O período trabalhado situa-se entre 1872 e
conceitos como o fio condutor da narrativa histó- 1965, por considerar-se que esse período abran-
rica que sustenta o estudo. Sob essa perspectiva, ge os principais movimentos de constituição da
os conceitos atuais de uma ciência são entendi- Epidemiologia como ciência moderna.
dos como ponto de maior desenvolvimento de A base documental do estudo foi constituída
uma racionalidade aplicada 7, cuja construção de fontes primárias e secundárias. As fontes pri-
busca-se recuperar desde suas primeiras mani- márias foram os artigos de periódicos científicos
festações específicas – no chamado método da pelos quais a produção epidemiológica foi sendo
recorrência 8. Não se trata, portanto, de um exa- organizada e difundida, em particular o Ameri-
me estritamente lógico-formal da construção do can Journal of Hygiene, atual American Journal of
conceito, mas da sua significação no âmbito da ra- Epidemiology (96 documentos), artigos de outros
cionalidade da prática científica à qual pertence. periódicos de relevância – The Lancet, Proceedin-
Em segundo lugar, quer-se assinalar uma gs of the Royal Society of Medicine, American Jour-
concepção de racionalidade que a toma como nal of Public Health, The Journal of Experimental
expressão de uma ação comunicativa 9. A cons- Medicine, The Journal of Hygiene, Journal of Pre-
trução dos conceitos é entendida, nesse sentido, ventive Medicine, Annals of the American Acade-
como uma prática discursiva 10, isto é, como a my of Political and Social Science, British Medical
produção de proferimentos que aspiram à ex- Journal, Human Biology, The New England Jour-
pressão de juízos intersubjetivamente válidos nal of Medicine, Journal of Chronic Diseases, Jour-
sobre determinada esfera da realidade. Tal pre- nal of Public Health – e publicações científicas
tensão – e seu sucesso ou insucesso – tem por da época, como livros, brochuras e boletins (85
base a capacidade de esses discursos produzirem documentos). Esse material constituiu o corpus
comunicação e entendimento sobre algo entre que permitiu mapear a construção do discurso
os sujeitos de uma comunidade de prática – no epidemiológico, especialmente por conta de sua
caso, a dos cientistas entre si e deles com a so- “internalidade”. As fontes secundárias foram ar-
ciedade de modo mais geral. Esta validade se tigos e livros de diferentes épocas e áreas, sobre-
apoia na coerência lógica e verificação empíri- tudo de História da Medicina, da Saúde Pública
ca dos proferimentos (validade proposicional), e da Epidemiologia, História Geral, Ciências So-
mas também, e inextricavelmente, no reconhe- ciais e biografias, as quais permitiram compreen-
cimento do interesse prático e correção moral der as relações entre os movimentos internos da
desses proferimentos (validade normativa) e na Epidemiologia e sua “externalidade”, vale dizer,
autenticidade e legitimidade de sua formulação as personagens, instituições, práticas e contex-
(validade expressiva). tos sociais envolvidos em sua história. Em razão
Em terceiro lugar, quer-se também apontar dos limites de espaço do artigo, só serão referidos
que o exame de um discurso científico, ao julgar aqui os textos mais centrais para a narrativa. Para
as condições de validade a que respondeu his- maior aprofundamento e listagem completa das
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3. DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE RISCO 1303
referências, pode-se consultar o estudo em que O período, ambiente e personagens cobertos
se baseia este artigo 13. por este estudo, no trajeto da Epidemiologia da
Constituição à Epidemiologia do Risco, serão, em
última análise, a história das diversas conforma-
Da constituição ao risco: um novo ções experimentadas por essa tríade discursiva:
discurso entre as ciências biomédicas “controle técnico – comportamento coletivo –
variação quantitativa”.
Se fosse preciso resumir em uma única expres- Embora os primeiros movimentos de apli-
são a ideia mais centralmente representativa cação de métodos quantitativos em saúde re-
do processo de construção da linguagem epi- montem ao século XVII, na Inglaterra, marcado
demiológica e da formalização do conceito de pelo trabalho de John Graunt 14, a conformação
risco, essa expressão seria tecnopragmatismo. discursiva característica da Epidemiologia só irá
Por tecnopragmatismo quer-se aqui referir à ten-
dência de organização do saber epidemiológico
em torno de objetos eminentemente práticos e
métodos substantivamente aplicados, isto é, por
Figura 1
sua positividade e produtividade quanto à iden-
tificação e transformação de fenômenos direta- Representação esquemática das fases de desenvolvimento histórico-epistemológico
mente relacionados a necessidades de proteção da epidemiologia, relacionando tipo de estudo, natureza do objeto e pesquisadores
ou recuperação da saúde de indivíduos e grupos paradigmáticos.
populacionais.
Esse tecnopragmatismo correspondeu a um
duplo e articulado movimento epistemológico.
De um lado, transitou-se das concepções onto-
lógicas da Higiene do século XIX a concepções
processuais dos fenômenos epidêmicos, isto é,
abandonou-se a pretensão de tomar como ob-
jeto de conhecimento o fenômeno epidêmico,
em si mesmo, em favor do conhecimento de as-
pectos parciais do comportamento epidemioló-
gico das doenças. De outro lado, o interesse do
conhecimento transitou de pretensões teóricas
a pragmáticas, quer dizer, da ambição de formu-
lar “leis gerais” de determinação dos fenômenos
epidêmicos, passou-se à pretensão de desenvol-
ver investigações epidemiológicas na justa medi-
da de sua relevância para a apreensão e manejo
técnico dos problemas de interesse para o cam-
po da saúde. Na apreensão e interpretação desse
movimento, foram delimitadas três etapas de de-
senvolvimento da Epidemiologia: Epidemiologia
da Constituição, Epidemiologia da Exposição e
Epidemiologia do Risco (Figura 1).
Pode-se entender as etapas acima aponta-
das, e o tecnopragmatismo que as subjaz, como
a crônica do desenvolvimento de um discurso
sobre os fenômenos de saúde e doença carac-
terizados por três traços fundamentais: controle
técnico dos processos saúde-doença como inte-
resse prático (horizonte de validação normativa
do discurso epidemiológico), comportamento
coletivo dos fenômenos de saúde e doença co-
mo seu campo específico de objetividade (esfera
de validação proposicional de seu campo cientí-
fico) e variação quantitativa como forma de tra-
duzir esse comportamento em linguagem cien-
tífica (modo de validação expressiva dos sujei-
tos participantes de sua comunidade científica).
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4. 1304 Ayres JRCM
emergir no cenário acadêmico no final do sécu- pela Fundação Rockfeller 16, a reforma visava
lo XIX e início do século XX, especialmente no substituir o perfil elitista e filosófico-humanista
contexto da moderna Saúde Pública norte-ame- predominante nas universidades norte-america-
ricana. A chamada Epidemiologia Moderna foi nas por um ensino pragmático, voltado para o
capitaneada por Wade Hapton Frost 15 (Figura desenvolvimento tecnológico exigido pela radi-
2) desde o pioneiro Departamento de Epidemio- cal guinada industrial do país, particularmente
logia da Johns Hopkins School of Hygiene and desde o final da Guerra de Secessão 17.
Public Health (SHPH). De onde vem o impulso Quando William Welch montou a estrutura
histórico para isso? A que projeto social e sanitá- e o corpo docente da SHPH, tinha como projeto
rio está vinculado tal tipo de interesse? A resposta produzir um conjunto de conhecimentos e téc-
não é simples, mas talvez possamos sintetizá-la nicas que superassem o sentido que considerava
na afirmação de que é do projeto de um refor- excessivamente ideológico da então chamada
mismo social cientificamente fundado que nasce “velha saúde pública”. Na Alemanha, no Ins-
o impulso central desse movimento. tituto de Higiene, criado em 1872 por Max Von
Pettenkofer (Figura 3) em Munique, Welch en-
controu o modelo de investigação científica que
buscava para sua escola 17.
Figura 2 O Instituto de Higiene de Munique oferecia
um poderoso apelo para o projeto de moderniza-
Wade Hampton Frost (1880-1938). ção científica da Saúde Pública que Welch procu-
rava: a combinação de rigorosas observações de
fenômenos populacionais com pesquisa labora-
torial de base fisiológica. Pettenkofer, como uma
espécie de Claude Bernard da Saúde Pública,
propôs tratar as questões sociossanitárias como
uma “macrofisiologia”, buscando identificar em-
piricamente os mecanismos favoráveis e desfa-
voráveis à saúde dos indivíduos e comunidades,
apoiando-se nos cânones e procedimentos da
ciência experimental. Dava, assim, uma contri-
buição decisiva para que se conformasse a base
discursiva da Saúde Pública e da Epidemiologia
modernas.
Riqueza material, industrialização, o purita-
nismo, o pragmatismo de James e Dewey, a am-
pla penetração do darwinismo, todos esses as-
pectos articulados fizeram do ambiente cultural,
político e científico-filosófico dos Estados Uni-
dos do início do século XX 18 o solo ideal para que
prosperasse lá, como talvez em nenhuma outra
parte do mundo, o moderno discurso científico
da Higiene, tal como praticado no Instituto de
Higiene de Munique.
Crédito: Virginia University (domínio público). Epidemiologia da Constituição
Na Epidemiologia que começa a se organizar
desde a Higiene de Pettenkofer, o comportamen-
A criação da SHPH foi uma acabada expres- to coletivo das doenças é entendido como ex-
são desse processo. Tomemo-la, assim, por sua pressão das condições insalubres resultantes das
situação emblemática e por sua decisiva influên- interações em um dado meio de organismos hu-
cia político-institucional, como eixo condutor de manos entre si e com organismos não humanos,
nossa narrativa. Criada em 1916, em Baltimore, assim como elementos externos não orgânicos. O
Estados Unidos, a SHPH representou, no campo comportamento epidêmico revelava não apenas
da saúde, uma ampla onda de reformas que so- o encontro entre um germe e populações huma-
freu o ensino universitário norte-americano com nas, como postulava a visão bacteriológica, mas
vistas à modernização e desenvolvimento social a resultante desse encontro na economia das
dos Estados Unidos. Financiado especialmente funções vitais de indivíduos e grupos humanos.
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5. DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE RISCO 1305
Figura 3 minantes da distribuição populacional dos fe-
nômenos de saúde e doença deu visibilidade à
Max Joseph von Pettenkofer (1818-1901).
particularidade do objeto epidemiológico. Essa
particularidade permitiu à Epidemiologia dis-
tinguir-se da Bacteriologia e construir sua iden-
tidade científica, alcançando uma mais clara e
nova importância no início do século XX, parti-
cularmente relevante no contexto da Nova Saúde
Pública dos Estados Unidos.
Os trabalhos epidemiológicos apresentam,
no início do século XX, uma abertura ainda gran-
de de motivos e metodologias, o que era espera-
do num campo científico no estágio de desen-
volvimento da Epidemiologia de então. Há, no
entanto, um denominador comum a todos eles:
a identidade que buscam estabelecer entre a va-
riação quantitativa de fenômenos coletivos e uma
constituição ambiental desfavorável à saúde.
A primeira fase da produção epidemiológica
capitaneada pela Johns Hopkins pode ser resu-
mida, com efeito, como um conjunto de estudos
populacionais. Esta designação busca diferen-
ciar o estudo epidemiológico daqueles de outras
áreas científicas da saúde, seja no que se refere
ao seu substrato empírico (seres humanos, não
cobaias; coletivos, não indivíduos), seja aos seus
desenhos de estudo (eventos espontâneos, não
experimentais; estudos de campo, não laborato-
Crédito: Franz Hanfstaengl (domínio público). riais), seja às suas problemáticas (sanitárias, não
clínicas ou fisiopatológicas).
Predominava nesses estudos populacionais
um caráter descritivo. Esse caráter eminente-
As características objetivas do fenômeno epidê- mente descritivo tinha como escopo fundamen-
mico passaram a ser constatadas com o intermé- tal expor à apreciação pública, ao menos à co-
dio da distribuição dos casos, descrita segundo munidade acadêmica, determinados aspectos
critérios analíticos de lugar e tempo. Descrever ou condições relativas à constituição sanitária de
os casos conforme esses critérios era, imedia- um local, população ou grupo, não acessível ao
tamente, atestar o caráter das interações entre senso comum.
meio e organismos, resultantes de características As descrições desses estudos não dependiam
constitucionais de ambos e explicativos das “dis- de procedimentos quantitativos sofisticados, e
funções” sociossanitárias resultantes 19. nem havia ainda facilidades técnicas e teóricas
A busca de equações de lugar e tempo que que estimulassem a produção nessa direção. Os
conferissem identidade objetiva aos movimentos procedimentos descritores se resumiam em sua
de favorecimento ou perturbação da economia quase totalidade a taxas e coeficientes de mor-
funcional de populações foi, assim, conforman- talidade, morbidade, dados demográficos ou
do a primeira objetividade propriamente “epide- dados biométricos. As aplicações matemáticas
mio-lógica”. A resultante das diversas influências requeridas para a construção desses indicado-
que favoreciam ou obstaculizavam a saúde era res eram de uma natureza predominantemente
sintetizada, na terminologia pettenkoferiana, aritmética. As inferências objetivas passavam ao
pelo chamado “fator y”, ou seja, as condições do largo da análise matemática, a qual só ocorre, e
meio que tornavam as populações efetivamente num sentido fraco da expressão, no momento do
suscetíveis aos agravos à saúde, uma espécie de despretensioso e rudimentar tratamento estatís-
tradução científica positiva da antiga noção me- tico que recebiam. A validação do conhecimento
tafísica de miasma 20. Ainda que grande parte das epidemiológico mantinha ainda o instrumental
proposições teóricas de Pettenkofer tenha sido matemático em posição subordinada às teorias
superada já no final do século XIX, sua obstina- já consagradas na Higiene Social, sintetizadas
da defesa da síntese que uma Higiene científica na noção hipocrática de constituição epidêmica
devia buscar na apreensão dos diversos deter- – termo utilizado pelo clínico inglês Sydenham,
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6. 1306 Ayres JRCM
no século XIX, mas reutilizado e ressignificado conceitos e métodos das ciências que se ocupa-
nesse período, especialmente pelos ingleses, no vam da saúde no plano fisiopatológico, especial-
sentido genérico de um meio propício às mani- mente com as relações entre agente infeccioso
festações mórbidas de um tempo e lugar deter- e resposta imunológica. O sucesso na resposta
minados 21,22. a esse desafio vem particularmente do trabalho
Na Epidemiologia da Constituição, o con- de Frost, nos Estados Unidos, e de Greenwood e
ceito central do raciocínio causal e a busca de Topley, na Inglaterra.
evidências empíricas para sustentá-lo era, como Topley, bacteriologista e imunologista, e Gre-
apontado acima, o conceito de meio externo. Vi- enwood, estatístico e epidemiologista, professo-
mos que esse conceito traduziu os determinan- res da London School of Higyene and Tropical
tes extraorgânicos da saúde em função de uma Medicine, inspirados por uma longa tradição
mecânica de interdição/facilitação de processos quantitativista que remonta a nomes como Farr,
favoráveis ou desfavoráveis para a economia vi- Brownlee, Hamer e Ross, realizaram um fecundo
tal. Porém, conforme a Epidemiologia foi se for- casamento entre a análise matemática de even-
malizando cientificamente, o conceito de meio tos populacionais e a pesquisa experimental de
externo foi gradualmente substituído pelo con- eventos imunológicos, gerando uma verdadeira
ceito de risco. revolução dentro da Epidemiologia e fora dela, fa-
vorecendo o progresso da própria Imunologia 24.
Epidemiologia da Exposição A noção de constituição epidêmica foi sendo
substituída por formulações mais pragmáticas e
Os anos 20 do século XX foram repletos de acon- estreitamente relacionadas com o conhecimento
tecimentos de enorme significação para a com- biomédico, como o conceito de “potencial epi-
preensão do modo como evoluiu o discurso dêmico” 25. Os estudos epidemiológicos passam,
epidemiológico. Naturalmente não se pode aqui desde aqui, a procurar a relação entre os casos de
fazer mais que indicá-los de forma genérica e uma doença e as populações expostas, entendida
superficial, mas cabe destacar, de todo modo, a como função matemática das chances de con-
Grande Depressão do final da década, de um la- tacto entre infectados e suscetíveis, como opor-
do, e, de outro lado, o espantoso progresso cientí- tunidade de exposição ao agente causal. Eis aqui
fico e tecnológico das ciências de um modo geral o discurso da Epidemiologia da Exposição, base
e das ciências biomédicas em particular. para a formalização do conceito de risco.
Destaca-se o primeiro aspecto porque ele foi Valendo-se dessa lógica das oportunidades
um poderoso fator de tensão para o ambiente de exposição, duas alternativas se abriram para
cultural e político da época, com forte influência a construção de enunciados objetivos na Epide-
no desenvolvimento da Epidemiologia. A crise miologia. Uma, de perfil mais teórico, buscou es-
econômica e social do pós-I Guerra abriu espa- tabelecer qual conjunto de condições deveria es-
ços importantes para uma consciência social tar presente para expor os membros de uma po-
mais forte e um maior intervencionismo do Es- pulação à infecção por um determinado agente,
tado, inclusive nos Estados Unidos, na regulação traduzindo matematicamente a mesma orienta-
das relações de produção e organização social, ção epistemológica genérica da etapa anterior. A
de modo geral. Foi nesse ambiente que os Es- outra, no mesmo sentido, mas na direção inver-
tados Unidos elegeram o democrata Roosevelt sa, buscava reconhecer o que a ocorrência de ca-
e sua plataforma do New Deal, que priorizava sos de uma doença em uma população permitia
ações voltadas para a saúde pública 23. Foi assim inferir sobre a influência de uma dada condição a
que o epidemiologista Frost assumiu, em 1931, a que esta população esteve submetida. A primei-
direção da SHPH, demonstrando o prestígio da ra buscava apreender e representar, por funções
Epidemiologia no projeto da saúde pública nesse matemáticas, um conjunto de aspectos que ex-
contexto 17. punha as populações a determinadas infecções.
Mas o segundo aspecto acima levantado é A segunda buscava indicadores matemáticos de
também fundamental para entender as trans- aspectos estratégicos para apreender e transfor-
formações experimentadas pela Epidemiologia: mar a conformação dessas situações. A primei-
os enormes progressos tecnocientíficos da área ra partia dos antecedentes para tentar prever as
biomédica, sobretudo os progressos da Imuno- consequências. A segunda partia das consequên-
logia, pressionaram de forma impressionante cias para identificar antecedentes que pudessem
toda a busca de conhecimento das forças favo- explicá-las. Na primeira, risco expressava o efeito
ráveis ou desfavoráveis à saúde. Abre-se um es- negativo configurado pelo conjunto dos determi-
paço sem precedentes para a Saúde Pública e a nantes da exposição. Na segunda, risco passou a
Epidemiologia, mas ao mesmo tempo espera- indicar a relevância de um dado fator de exposi-
se delas, mais do que nunca, o diálogo com os ção na ocorrência de um problema.
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7. DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE RISCO 1307
Um passo fundamental para que esta segun- ventivismo e securitarismo passam a dominar o
da tendência, mais pragmática e tecnicamente cenário das práticas de saúde, especialmente nos
operacional, se tornasse hegemônica, foi o uso Estados Unidos.
da lógica probabilística para mensurar e analisar Preventivismo e securitarismo são duas
a chance de associação entre um determinado ideias tão inter-relacionadas quanto repletas de
evento e um antecedente causal, ou fator de ex- contradições, com as quais lidamos ainda ho-
posição. Stocks 25 e Greenwood 26, na Inglaterra, je. O preventivismo pode ser sintetizado como
e Frost 27, nos Estados Unidos, foram os princi- a doutrina que retraduz a concepção ampliada
pais responsáveis por esse passo. Incorporado à de determinação do processo saúde-doença, tal
Epidemiologia, a lógica da probabilidade e seu como desenvolvida pelas disciplinas ligadas ao
manejo estatístico possibilitaram uma extraor- campo da Higiene e da Saúde Pública desde o sé-
dinária e diversificada capacidade de analisar e culo XIX, em práticas de caráter eminentemente
testar a participação de fatores socioambientais técnico, essencialmente dirigidas ao âmbito dos
e comportamentais na ocorrência e distribuição cuidados individuais e apoiadas em ações assis-
das doenças, especialmente das infecciosas, do- tenciais e educativas simplificadas, com baixa
minantes na época. densidade de tecnologia especializada e equipa-
Desse modo, a problemática epidemiológica mentos materiais 29. O securitarismo consiste,
foi conduzida à definitiva ultrapassagem da fron- basicamente, na assunção da responsabilidade
teira entre o teórico e o pragmático. De um lado, privada pela conquista do bem estar e da saú-
o controle estatístico das incertezas, de que a de, a qual se apoia num sistema assistencial de
complexidade e as lacunas dos dados populacio- níveis de elevada e progressiva sofisticação tec-
nais nunca poderiam estar absolutamente livres, nológica e especialização, com acesso organi-
e, de outro lado, a plausibilidade biológica como zado segundo sistemas meritocráticos de base
balizadora dos limites da validade científica dos atuarial – quanto mais recursos investidos pe-
enunciados produzidos, permitiram à Epide- los indivíduos, melhores e mais completos os
miologia delimitar e quantificar uma variedade serviços de assistência provisionados por suas
potencialmente ilimitada de relações de exposi- seguradoras públicas ou privadas 30. Ambas as
ção de interesse. Essa suscetibilidade ao contacto tendências “capturaram” o desenvolvimento da
infectante estatisticamente inferida passou a ser Epidemiologia, interpelando-a para fornecer
o conteúdo fundamental das primeiras formu- subsídios para o controle e monitoramento das
lações matematicamente formalizadas do risco chances de adoecimento dos indivíduos, confor-
epidemiológico. me suas diversas situações sociodemográficas e
Com a maior precisão na formulação de suas comportamentais.
questões e no controle da credibilidade de suas Nos Estados Unidos do pós-guerra a situação
respostas, a utilização e o prestígio científico do era de pujança material, vitalidade econômica e
conhecimento epidemiológico avançaram rapi- hegemonia política internacional, dando mar-
damente. Vários outros aspectos técnicos con- gem a uma onda de liberalização da economia e
correram para consolidar esse processo, entre enfraquecimento das posições pró-intervencio-
eles destacam-se, de um lado, o estudo epidemio- nismo estatal e controles públicos na vida social.
lógico de coletivos humanos mais restritos, como De outro lado, a guerra fria gerava uma verda-
núcleos familiares, escolas, creches, ambientes deira histeria “anticomunista” que identificava
de trabalho, conferindo aos desenhos uma agi- em toda e qualquer referência à “socialização
lidade operacional inédita e contribuindo para da medicina”, ou intervenção do Estado sobre a
um rápido e diversificado acúmulo de informa- saúde da população, uma ameaça ao valor das
ções teóricas e metodológicas, e, de outro lado, liberdades individuais. Há, consequentemente,
o progresso dos métodos estatísticos, que des- um enfraquecimento das políticas de saúde pú-
de as publicações de Fisher, a partir da segunda blica, preteridas em favor do estímulo ao consu-
metade dos anos vinte do século passado, difun- mo individual e privado de assistência médica,
diam-se amplamente entre os epidemiologistas e em si mesma uma emergente área de produção
permitiam relacionar os fenômenos apreendidos capitalista 31.
naqueles coletivos restritos a comportamentos Semelhante enfraquecimento da saúde pú-
epidemiológicos de dimensão populacional 28. blica deu-se justamente no momento da cha-
mada segunda revolução epidemiológica, com a
Epidemiologia do Risco emergência das doenças crônicas como a maior
preocupação com saúde nas sociedades indus-
Em meados do século XX, ao término da II Gran- trializadas. Na SHPH a adaptação a esse novo
de Guerra Mundial, uma série de transformações cenário foi lenta e traumática. Uma eloquente
ocorreu nas práticas médicas e sanitárias. Pre- expressão das dificuldades enfrentadas encon-
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 27(7):1301-1311, jul, 2011
8. 1308 Ayres JRCM
tra-se na experiência vivida por seu periódico, o estratificada e de teste de hipótese que permiti-
American Journal of Hygiene. Com efeito, este pe- ram adensar fortemente a validade proposicional
riódico viveu, entre 1950 e 1960, a mais séria cri- dos estudos retrospectivos 37. De modo análogo
se de sua história, desde a fundação, em 1921 32. ao que acontecia com os estudos experimentais,
A própria American Epidemiological Society, o pesquisador podia agora escolher o tempo e os
uma das principais instâncias de organização eventos que lhe interessavam, manuseando ana-
e direcionamento tecnopolítico da moderna liticamente suas implicações quanto à segurança
Epidemiologia norte-americana, e de estreitas das inferências estabelecidas. Não era mais pre-
relações com a SHPH e com seu periódico (Ame- ciso aguardar o correr do tempo dos laboratórios
rican Journal of Hygiene), passou a pressionar no ou dos fatos para confirmar ou não uma hipóte-
sentido do abandono do velho perfil “sanitário” se causal. Assim como o médico, com base nos
da revista, o que se reflete na mudança de seu controles fornecidos pelo conjunto de evidências
nome para American Journal of Epidemiology, fornecidas pela história clínica, chegava a diag-
em 1965 33. nósticos, prognósticos e intervenções plausíveis
Nesse contexto, transforma-se também a para determinado caso, também o epidemiolo-
geografia tecnopolítica da Epidemiologia, deslo- gista, com os crescentes controles estatísticos e
cando-se de Baltimore para Boston o “centro de a versatilidade analítica fornecida pela análise
gravidade” acadêmica da disciplina. Membro da estratificada, ficava então autorizado a enunciar
Harvard School of Public Health (HSPH) desde o diagnósticos, prognósticos e intervenções plau-
início de seu funcionamento, em 1922, Edwin B. síveis com base na história epidemiológica de
Wilson já vinha trazendo para esta escola o que determinados grupos de casos.
de mais avançado havia em termos de métodos Jerome Cornfield, do National Cancer Insti-
quantitativos, levando-a progressivamente a so- tute, foi outro nome de peso na consolidação da
brepujar, a partir dos anos 40, o prestígio que a Epidemiologia do Risco. Entre as suas maiores
Johns Hopkins tinha conquistado com Frost. Wil- contribuições figuram a introdução, em 1951, da
son, trabalhando em estreita parceria com Jane odds ratio, uma aproximação matemática ao risco
Worcester, deu ao trabalho de análise matemá- relativo com base em taxas “não verdadeiras” dos
tica dos fenômenos epidêmicos, amadurecido estudos tipo caso-controle, e o aperfeiçoamento
nos Estados Unidos por Frost, uma continuidade da análise multivariada no estudo da interação
que a própria escola de origem do fundador da entre fatores de riscos diversos, fundamental no
Epidemiologia norte-americana não consegui- caso das doenças crônico-degenerativas 37. O do-
ria. Além disso, foram inúmeras as contribuições mínio do tempo, isto é, a “sincronicidade” analiti-
teóricas e metodológicas de Wilson ao campo, de camente produzida para o estudo dos eventos de
modo que, quando ele se afastou de suas ativida- interesse epidemiológico, foi enormemente ex-
des, em 1945, Harvard já tinha uma sólida escola pandido pela “virtualização” dos próprios even-
quantitativista, a de maior prestígio entre as suas tos quando, pelas contribuições de Cornfield, a
similares norte-americanas 34. análise estatística passou a oferecer um razoável
Na London School, o principal sucessor de controle do grau de credibilidade das hipóteses
Greenwood foi Austin Bradford Hill, um econo- causais estudadas por amostragens estatísticas.
mista que se dedicou à estatística médica e que Os estudos que passaram, desde então, a do-
junto a um expressivo grupo de estudiosos do minar a produção acadêmica da Epidemiologia
assunto, teve na Inglaterra um papel equivalen- caracterizaram-se não mais necessariamente
te ao de Wilson no desenvolvimento das bases como estudos populacionais, tampouco como
quantitativas da Epidemiologia moderna 35. E foi estudos sobre exposição aos contactos infectan-
dessa tradição inglesa que Harvard importou o tes. Os estudos epidemiológicos passaram a se
mais relevante nome para a consolidação de sua configurar como estudos de associação (entre va-
nova Epidemiologia: Brian MacMahon, conduzi- riáveis de exposição e variáveis de desfecho), seja
do à chefia do Departamento de Epidemiologia de doenças infecciosas ou não, seja de exposição
da HSPH, em 1958 36. a fatores causais conhecidos ou não. Essa liber-
Contribuições metodológicas importantes dade de objetos de estudo permitiu, por sua vez,
para a consolidação desta nova fase do desen- que os estudos ganhassem um marcado caráter
volvimento da ciência epidemiológica foram especulativo: a Epidemiologia já podia levantar
também trazidas por outros estudiosos de méto- e testar hipóteses causais para os mais diversos
dos estatísticos aplicados ao estudo das doenças agravos, ou pelo menos inventariar fatores que
crônico-degenerativas. Um dos mais relevantes é aumentam a chance da ocorrência de um agravo
o trabalho de Nathan Mantel e William Haenszel, ou que, ao contrário, protegem dele. Consolida-
pesquisadores do National Institute of Health. va-se, assim, como uma ciência altamente for-
Esses autores desenvolveram métodos de análise malizada, na qual a inferência passa a ser de base
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substantivamente matemática. O risco, seu con- e os correspondentes alcances e limites de seus
ceito central, já possuía seus critérios próprios e horizontes normativos (Tabela 1).
autônomos para construir e validar enunciados,
ganhando plena cidadania científica entre os
saberes do campo da saúde. Falar de risco des- Considerações finais
de então é, imediata e rigorosamente, falar de
grandezas matemáticas e elas são estimativas da Esta breve recuperação do desenvolvimento
chance de que a exposição a um fator (genético, histórico-epistemológico do conceito de risco
ambiental, comportamental) possa estar causal- epidemiológico buscou contribuir para a com-
mente associada a um determinado estado ou preensão sobre a formação desse discurso tão
condição de saúde, dado um certo grau de incer- poderoso nas práticas de saúde da atualidade.
teza da inferência, considerada pragmaticamen- Tal compreensão é fundamental para que pos-
te aceitável. samos melhor dimensionar seu sentido prático.
Em síntese, esta revisita histórico-episte- No caso da Epidemiologia do Risco, a presente
mológica mostra que o risco era, no discurso da recuperação histórica nos permitiu valorizar o
Epidemiologia da Constituição, um elemento de grande esforço e o precioso legado representado
significado quase indistinto da linguagem ordi- pelo uso da lógica probabilística e das ferramen-
nária, sendo um adjetivo para designar a condi- tas estatísticas no raciocínio causal em saúde.
ção de populações que viviam sob constituições Vimos como sua capacidade de aumentar nosso
epidêmicas, ou meios insalubres. No discurso da conhecimento, testando a associação de fatores
Epidemiologia da Exposição o risco começa a das mais diversas naturezas com quaisquer fe-
assumir um estatuto conceitual, passando a de- nômenos relevantes para a saúde, e seu poder
signar um processo sistemático de busca de vali- de relacionar eventos passados com eventuais
dação de proposições sobre uma esfera determi- desfechos futuros, com crescente controle dos
nada de aplicação. Não por acaso vai assumindo graus de incerteza dessa operação, expandiu os
centralidade no discurso dessa ciência, a ponto potenciais preventivos e curativos das práticas de
de assumir-se que o objeto mesmo de inferência saúde contemporâneas.
epidemiológica é o risco – nesse momento ainda Por outro lado, percebe-se que a Epidemio-
entendido como chance de contacto entre agen- logia alcançou seu elevado grau de formalização
tes infecciosos e populações suscetíveis. Todavia, e rigor com base em um estreito diálogo com
é na Epidemiologia do Risco que a linguagem as ciências biomédicas e os métodos analítico-
do risco alcança sua formalização discursiva, quantitativos, relegando a um plano secundário
tornando-se uma grandeza matemática. O risco a interação teórica e metodológica com outros
não adjetiva, apenas, uma condição insalubre, saberes e métodos também relevantes para a
tampouco se limita a designar inferências cons- saúde, como as Humanidades e os procedimen-
truídas mediante comportamentos estatísticos. tos compreensivo-interpretativos. Com isso, os
Agora ele próprio é a expressão matemática da conhecimentos epidemiológicos experimentam
inferência epidemiológica. Risco passa a ex- dificuldades para lidar concretamente com os
pressar, então, a racionalidade aplicada que é a processos de saúde e doença. Em que pese o in-
Epidemiologia e, simultaneamente, a identidade vestimento da disciplina na construção de mo-
discursiva da comunidade de epidemiologistas delos de análise e inferência causal não lineares
Tabela 1
Síntese das características dos estudos epidemiológicos nas diversas fases de desenvolvimento histórico-epistemológico da Epidemiologia.
Perfil dos estudos Epidemiologia da Constituição Epidemiologia da Exposição Epidemiologia do Risco
Período 1872-1929 1930-1945 1946-1965 *
Definição Populacional Suscetibilidade Associação
Caráter Descritivo Analítico Especulativo
Matemática Auxiliar Estruturante Validadora
Meio Conceitual Lógico Residual
Risco Adjetivo Substantivo Formal
* Limite do período estudado, embora, em seus traços substantivos, julga-se ainda predominar este perfil na produção epidemiológica atual.
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10. 1310 Ayres JRCM
e mecanicistas 38, há na leitura biomédico-quan- A Epidemiologia, como de resto qualquer dis-
titativa limites epistemológicos estruturais para curso científico, é produzida por homens e mu-
apreender fenômenos cuja expressão objetiva re- lheres em seus contextos históricos. São, portan-
clama reflexão e crítica baseadas na experiência to, respostas sociais aos desafios e possibilidades
vivida; na atribuição de sentidos e significados abertos em cada época e local, segundo conflu-
dependentes de aspectos subjetivos, relacionais, ências e conflitos de valores e necessidades. As-
simbólicos e valorativos imediatamente envolvi- sim, cabe-nos aprender com a reflexão históri-
dos. As implicações desses limites para as práti- ca, potencializar os sucessos já alcançados, mas
cas de saúde vêm sendo amplamente debatidas, também construir novas formas para responder
sendo apontadas repercussões que vão desde di- aos seus desafios 41. Como destinatários e herdei-
ficuldades da Epidemiologia sustentar seu rigor ros dessa tradição discursiva, cumpre-nos buscar
lógico frente à plurivocidade e contingência de nos recursos existentes os meios para superar as
suas categorias analíticas 39 até o paroxismo da limitações e necessidades percebidas a cada mo-
responsabilização individual sobre o estado de mento histórico, interna e externamente à nossa
saúde e doença de cada um 40. praxis científica.
Resumo Agradecimentos
O raciocínio estatístico nas práticas de saúde foi disse- Ao Prof. Euclides Ayres de Castilho por sua atenta leitura
minado pela Epidemiologia e é amplamente utilizado e sugestões para a redação final do artigo.
em todas as suas áreas de conhecimento. O objetivo
deste artigo é revisitar o desenvolvimento histórico da
Epidemiologia e a formalização do conceito de risco,
responsável pelo uso da chance estatística como parte
do raciocínio causal nas ciências da saúde. O período
de estudo abrange os anos de 1872 a 1965 e sua base
documental é constituída por trabalhos de periódicos
científicos relacionados à construção do campo epide-
miológico e outras publicações científicas. Foram iden-
tificadas três etapas de desenvolvimento da Epidemio-
logia: Epidemiologia da Constituição, Epidemiologia
da Exposição e Epidemiologia do Risco, discutindo-se
aspectos epistemológicos e sociossanitários que per-
mitem compreender cada uma delas sob um ponto de
vista histórico. Destaca-se a importância da reflexão
crítica sobre a ciência epidemiológica e as suas rela-
ções com as práticas de saúde, de saúde pública em
particular, para aperfeiçoar seu uso atual e propiciar
sua constante e criativa reconstrução.
Risco; Epistemologia; Medicina Social
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11. DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE RISCO 1311
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Recebido em 17/Out/2010
Versão final reapresentada em 09/Abr/2011
Aprovado em 06/Mai/2011
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