Este texto propõe uma possível interpretação de A Hora da Estrela, considerando
a conversa que Clarice Lispector estabeleceu com o escritor Jorge Amado. Esta conversa está
na reunião de diálogos organizada por Claire Williams em uma obra intitulada “Entrevistas”.
Para a elaboração deste livro, o autor baseou-se em entrevistas publicadas por Clarice na
revista Manchete, entre maio de 1968 a outubro de 1969, na seção “Diálogos possíveis com
Clarice Lispector.
Intencionalidade e significação do discurso literario em "A Hora
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INTENCIONALIDADE E SIGNIFICAÇÃO DO DISCURSO LITERÁRIO EM “A
HORA DA ESTRELA” X OUTROS DISCURSOS EM “ENTREVISTA” DE CLARICE
LISPECTOR1
Ellen dos Santos Oliveira(FSLF)2
Profa. Dra. Vilma Mota Quintela3
Este texto propõe uma possível interpretação de A Hora da Estrela, considerando
a conversa que Clarice Lispector estabeleceu com o escritor Jorge Amado. Esta conversa está
na reunião de diálogos organizada por Claire Williams em uma obra intitulada “Entrevistas”.
Para a elaboração deste livro, o autor baseou-se em entrevistas publicadas por Clarice na
revista Manchete, entre maio de 1968 a outubro de 1969, na seção “Diálogos possíveis com
Clarice Lispector.
Cabe aqui, levantar possíveis interpretativos sobre: intenção de Clarice Lispector
em escrever “A Hora da Estrela”, provavelmente nove anos depois dessa conversa com Jorge;
a intenção da autora em criar o narrador-escritor carioca Rodrigo S.M. para contar a história
da nordestina; o significado da obra. Tendo em vista que tudo isto compõe sua essência, e
constitui o indispensável, o necessário e o fundamental do texto literário.
O crítico e sociólogo Antonio Candido, em sua obra Noções de análise histórico-
literária, enfatiza que o texto literário apresenta dois aspectos básicos, que são: o acessório e
o essencial. “O primeiro é a sua realidade material (aspecto, papel, caligrafia, tipo, estado do
texto, etc.), mais a sua história (por quem , como, onde, quando, em que condições foi
escrito)”, constituindo “o corpo da obra literária e a história desse corpo”. O segundo aspecto
“é a sua realidade íntima e finalidade verdadeira: natureza, significado, alcance artístico e
humano. É, de certo modo, a sua alma” (CANDIDO, 2005, p. 13). Com base nessa explicação
feita por Candido, este trabalho tratará do aspecto básico essencial da obra “A Hora da
1
Esse trabalho é construído a partir de estudos e diálogos durante o projeto de extensão “Ciclo Literatura
Comentada”.
2
É monitora de Teoria Literária do curso de Letras na Faculdade São Luís de França (FSLF). E-mail para
correspondência: ellenletrinhas@hotmail.com
3
É professora das disciplinas Teoria Literária I e II, e orientadora de TCC na FSLF. É graduada em Letras
Vernáculas pela UFS. Mestre em Linguística pela UNICAMP, e Doutora em Teoria e Crítica Literária pela
UFBA. E-mail para correspondência:
1
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Estrela”, a sua alma. Pois captar a essência desta obra é essencial para o que é proposto nessa
interpretação de intenção e de significado.
O livro Entrevista, organizado por Claire Williams, reúne um conjunto de
conversas entre Clarice Lispector e grandes personalidades brasileiras de seu tempo. Totaliza
quarenta e dois amigos entrevistados, desses: dezesseis são da área de Literatura: Lygia
Fagundes Teles, Rubem Braga, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Érico
Verissimo, Nélida Piñon, Ferreira Gullar, Millôr Fernandes, Hélio Pellegrino, Antônio
Callado, Pablo Neruda, Marly de Oliveira, José Carlos Oliveira, Pedro Bloch e Alceu
Amoroso Lima; seis são músicos: Chico Buarque, Vinicius de Morais, Tom Jobim, Elis
Regina, Isaac Karabtchevsky e Jacques Klein; seis são da área das Artes Cênicas: Paulo
Autran, Bibi Ferreira, Tônia Carrero, Tarcísio Meira, Jardel Filho e Jece Valadão;onze são da
área das Artes Plásticas: Oscar Niemeyer, Carlos Sciliar, Maria Bonomi, FaygaOstrower,
Augusto Rodrigues, Maria Martins, Mário Cravo, Djanira, Bruno Giorgi, Iberê Camargo e
Carybé; e três são da área dos Esportes: Zagallo, João Saldanha e Emerson Fittpaldi.
Tais entrevistas, além de dar uma ideia do Panorama Cultural do Brasil em que
Clarice vivia e escrevia, elas também nos revelam muito sobre a entrevistadora, pois esta se
deixa entrever nas perguntas e comentários. Sobre o gênero entrevista Cremilda Medina, em
seu livro Entrevista, o diálogo possível, traz a seguinte abordagem:
A entrevista pode ser apenas uma eficaz técnica para obter respostas prepautadas por
um questionário. Mas certamente não será um braço da comunicação humana, se
encarada como simples técnica. Esta – fria nas relações entrevistado entrevistador –
não atinge os limites possíveis da inter-relação, ou, em outras palavras, do diálogo.
Se quisermos aplacar a consciência profissional do jornalista, discute-se a técnica da
entrevista; se quisermos trabalhar pela comunicação humana, proponha-se o diálogo.
(MEDINA, 1995, p. 5)
Para Clarice as entrevistas não eram encaradas como uma simples técnica, e
devem ser observadas como diálogos entre a entrevistadora e seus entrevistados, no sentido
em que a entrevista, além de ser uma especificidade de texto de cunho jornalístico é uma
modalidade do gênero discursivo que possui um objetivo e uma intencionalidade, e é
constituído por um discurso interativo.
Para a análise em questão, chamou atenção um comentário, feito por Clarice, à
uma resposta dada pelo Escritor Jorge Amado, enquanto este estava sendo entrevistado por
ela. Nesse comentário ela deixa compreender que Rio de Janeiro contribui muito para o
surgimento do escritor, pois deixa este diante das adversidades da grande metrópole. Clarice
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Lispector conta que a entrevista aconteceu no sítio Tapeceiro Genaro de Carvalho, a uns vinte
quilômetros de Salvador, o escritor estava a dois meses nesse sítio em companhia da esposa.
Clarice relata que foi recebida pelo casal com um refresco de mangaba. As entrevistas ou
conversas assumiu um caráter informal, pois não possuíam a objetividade de reportagem,
podendo a qualquer momento tornar-se uma conversa íntima. A data provável em que Clarice
entrevistou Jorge foi em 1968.
Para uma compreensão mais acurada do contexto do ato do discurso estabelecido
nesta entrevista, segue abaixo a transcrição de uma das perguntas feitas por Clarice, da
resposta dada por Jorge Amado a essa pergunta, e do comentário feito por ela neste contexto,
sendo este um dos pontos de discursão e de análise. Segue abaixo a transcrição:
- Qual ou quais são as cidades onde a atmosfera conduz um artista a criar mais e
melhor?
- Penso que existem duas cidades feitas à medida do homem, cidades que não são,
ainda e somente, campos de trabalho: Salvador da Bahia de Todo os Santos e Paris.
- Aqui, em Salvador, eu realmente senti que poderia escrever mais e melhor. Mas o
Rio de Janeiro, com o seu ar poluído, não é nada mau, Jorge. Coloca-nos frente a
frente com condições adversas e também dessa luta nasce o escritor. É verdade que
muitos escritores que moram no Rio são saudosistas de seus estados e têm nostalgia
da província ( LISPECTOR, 2007, p.26).
Parece que nessa conversa com Jorge Amado Clarice demonstrava já as
inquietações que a inspira ou a obriga a compor a sua última obra, “A Hora da Estrela”,
publicada em 1977, conta a história da nordestina Macabéa que, com a morte de sua tia, migra
para o Rio de Janeiro, o inacreditável Rio de Janeiro.
Como afirma Clarice, “esta história acontece em estado de emergência e de
calamidade pública” (Idem, 1998, p.10). Nesta obra, a autora vai retratar as condições
adversas em que nasce seu escritor Rodrigo S.M. que se questiona frequentemente, durante a
narrativa, sobre sua escrita, e é durante esse processo de criação literária que ele depara-se
com uma luta entre o interior, e sua própria condição humana, e o exterior, que a condição
(des)humana de Macabéa, então Clarice irá se inventar toda, em Rodrigo S.M., para contar ou
denunciar a existência ou inexistência dessa nordestina. Para a autora, este livro é uma obra
inacabada, pois, faltam respostas (Idem, p.10).
Clarice Lispector afirma na “Dedicatória do autor” que A Hora da Estrela “Trata-
se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta”, pode-se dizer então que é uma obra
interrogativa, que impõe ao leitor uma busca por respostas.
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INTECIONALIDADE E SIGNIFICAÇÃO: UMA DENÚNCIA
Patrick Charaudeau, em sua obra Linguagem e discurso, afirma que interpretar é
criar hipóteses sobre o saber do sujeito enunciador, sobre seus pontos de vista em relação aos
seus enunciados, e também seus pontos de vista em relação ao sujeito destinatário. Para o
autor toda interpretação é uma suposição de intenção (CHARAUDEAU, 2009, p.31). É nessa
perspectiva que esse trabalho se delineia, pois esboçará possíveis suposições a fim de trazer à
luz a possível intenção profunda da escrita de Clarice Lispector, como escritora, e
especificamente em A Hora da Estrela.
Tanto a obra literária “A Hora da Estrela” como a “Entrevista”, constituem fontes
documentais históricas sociais, no sentido em que são analisadas como fontes documentais
que constatam e explicam, implicitamente, e através de história fictícia baseada na realidade,
a intenção e o significado do processo de criação literária por escritores cariocas, ou por
aqueles exilados na cidade do Rio de Janeiro no século XX. Isso permite uma possível
interpretação sobre o contexto social da cidade Carioca, pois esta é o espaço coletivo da
sociedade em que Clarice viveu, e também o espaço e ambiente social de sua obra A Hora da
Estrela, e como esta contribui para o surgimento de um escritor e para o processo de criação
literária. Neste caso, o texto literário assumi um caráter documental. A esse respeito, Jérôme
Roger, em A crítica Literária, explica que a obra literária como um documento “não pretende
ter como finalidade compreender a individualidade artística, mas, sim, extrair da obra a
verdade social” (ROGER, 2002, p.36).
É fato que a significação de uma obra literária está relacionada à abordagem
temática em que esta se delineia. Nesse sentido, A Hora da Estrela deve ser analisada, aqui,
pelo seu viés temático. Neste contexto, Mikhail Bakhtin, em Marxismo e filosofia da
linguagem, afirma que o “tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura
adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução”, ou seja, é em
torno dessa temática, que é a marginalização da nordestina na cidade do Rio de Janeiro, que
desencadear-se-á um sucessão de acontecimentos que compõe a trajetória dessa nordestina na
narrativa de Rodrigo S.M. É nesse tema que reside o significado de A Hora da Estrela, pois
como afirma Bakhtin “O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir”. Ou
seja, a “significação é um aparato técnico para a realização do tema” (BAKHTIN, 2006,
p.132).
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Para Bakhtin a maneira mais correta de formular a inter-relação do tema eda
significação é a seguinte:
o tema constitui o estágio superiorreal da capacidade lingüística de significar. De
fato, apenas otema significa de maneira determinada. A significação é o
estágioinferior da capacidade de significar. A significação não quer dizernada em si
mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um
tema concreto. A investigação da significação de um ou outro elemento lingüístico
pode, segundo adefinição que demos, orientar-se para duas direções: para o estágio
superior, o tema; nesse caso, tratar-se-ia da investigação da significação contextual
de uma dada palavra nas condições de uma enunciação concreta. Ou então ela pode
tender para o estágio inferior,o da significação: nesse caso, será a investigação da
significação da palavra no sistema da língua, ou em outros termos a investigação da
palavra dicionarizada. ( id.ibid., p.134)
Para absorver a significação de A Hora da Estrela, é preciso direcionar a busca
por seu significado para um estágio superior, pois trata-se de uma investigação da significação
contextual, em que será analisadas as palavras nas condições de sua enunciação concreta. Por
outro lado, a significação pertence a um elemento ou conjunto de elementos na sua relação
com o todo. Pode-se dizer ainda que a significação da obra está na relação e na forma como
esta está relacionada, ou seja, no contexto em que Rodrigo S.M. narra a história de Macabéa,
que estando no Rio de Janeiro seria, ilusoriamente, o sossego para a sua tia, como pensaram
muitos que deixam suas cidades interioranas. Porém a verdade é que o Rio de Janeiro
transforma-se no cenário final e trágico da inexistência de Macabéa.
É possível imaginar (erroneamente) que Macabéa tivesse alcançado o paraíso a
que muitos nordestinos sonhavam. Sonho este, de morar em uma cidade do sudeste do Brasil,
na capital do Rio de Janeiro, conhecida por muitos como “A Cidade Maravilhosa”, que
constitui na verdade o espaço urbano de ciclo de fugas intermináveis de nordestinos como os
personagens de Vidas Secas, por exemplo (SOARES, 2009).
Segundo o pesquisador Norte-Americano Benjamim Moser em sua obra
biográfica Clarice, Macabéa “é uma moça pobre de Alagoas, o estado em que os Lispector se
estabeleceram ao chegar ao Brasil, e que migrou, como os Lispector e tantos milhões de
outros para a Metrópole do Rio de Janeiro” ( MOSER, p.633). O autor, ainda lembra que “o
Rio de Janeiro havia se tornado o destino mais chique do planeta”( id.ibid., p.151). No
romance, Rodrigo S.M. desabafa: “tenho então que falar simples para captar a sua delicada e
vaga existência. Limito-me a humildemente [...] a contar as fracas aventuras de uma moça
numa cidade toda feita contra ela. Ela deveria ter ficado no sertão de Alagoas
[...]”(LISPECTOR, 1998, p.15)
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O Rio é, para Macabéa,o cenário para sua morte, o signo esfíngico das arribações
de todas as dívidas, pagas com fome, emboscada, desespero, dor, indiferença, tédio,
hipocrisia, sonho de cadafalsos, com o seu, enfim, atropelamento, trágico fim, porém, não
mais trágico que a sua inexistência (SOARES, 2009). Herbert Viana, em sua música
Alagados, gravada pelos Paralamas do Sucesso em 1986, faz uma irônica crítica social à
cidade do Rio de Janeiro, neste trecho da música é expressa, melodicamente, uma denúncia de
como Rio de Janeiro tornava-se o mal na realidade de muitos nordestinos ali exilados:
[...]
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
[...]
Nessa música Hebert Viana, expõe a irônia de uma cidade que aparentemente tem
os braços abertos para aqueles que buscam encontrar sentido para sua existência, como por
exemplo o escritor Rodrigo S.M., ou para tantos nordestinos que nela ingressam buscando
oportunidades, como Olímpico de Jesus que queria ser político, ou até mesmo para Macabéa
que só sabia mesmo existir, ou melhor dizendo, estar no mundo, embora não soubesse o
motivo de estar nele.
A intencionalidade em A Hora da Estrela está na retratação da verdade social da
cidade do Rio de Janeiro, e como, ou em que, a cidade contribui para o nascimento do
escritor, como Clarice comenta em “Entrevista”. O que se pode captar da obra, é que a
intenção de Clarice ao inventar o narrador-escritor Rodrigo S.M., é usar a liberdade artística,
que o escritor, enquanto artista das Letras, tem, e denunciar tudo que estava ‘invisível’ para
muitos alienados, mas visível para ela, como também para Rodrigo S.M. durante todo o
tempo que passou no Rio de Janeiro.
A história de Macabéa pode ser comparada à estrutura de um átomo, que como
nas palavras de Clarice, em Dedicatória do Autor, “a estrutura do átomo não é vista, mas,
sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da
existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando”( LISPECTOR,
1998, p.10) Tal passagem, faz refletir, aqui, sobre a intenção de Clarice, como escritora, em
revelar, muita ‘coisa’ que não é vista, ou talvez até vista, mas ignorada. A autora estabelece
uma forma expressiva ou significativa para sua escrita, sentindo-se obrigada a tornar visível
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tudo o que estava oculto e invisível na sociedade. Macabéa, como muitos nordestinos que
chegam às grandes metrópoles, era ‘invisível’, e isso se confirma na própria narrativa, quando
é afirmado: “Ninguém olhava pra ela na rua, ela era o café frio” ( id.ibid., p.27). Sabe-se que,
frequentemente, o café é associado a uma substância que é usada muitas vezes para combater
o sono, porém, frio ele não serve mais, fica claro que Macabéa, em sua invisibilidade, não
tirava o sono de ninguém, pois a moça ao ser tratada metaforicamente, como sendo o café
frio, é posta como um ser desprovido de sua condição de natural de humano, sendo assim,
desprovida de direitos humanos, o que deixa entender que ela não existia, embora existisse, e
isso é motivo de denúncia para Rodrigo, pois até os animais e as plantas têm seus direitos.
Em Entrevista, Clarice não só diz que: “ o Rio de Janeiro, com o seu ar poluído,
[...] Coloca-nos frente a frente com condições adversas e também dessa luta nasce o escrito”
( LISPECTOR, 2007, p.26) como também, faz nascer, em A Hora da Estrela, o escritor
carioca, intelectual e burguês, para extravasar toda a experiência vivenciada pela escritora,
durante sua passagem pelo Rio de Janeiro.
É dessa luta, desse convívio com social, e da experiência desses conflitos
existências que nasce o escritor. E o Rio de Janeiro, com seu ar poluído e com todas suas
adversidades é um espaço favorável para esse nascimento. A Hora da Estrela é o cenário
dessas grandes lutas e contrastes. Nela, é nítido o contraste cultural em que, de um lado,
figura a cultura da elite representada pela rádio Cultura, que contrapõe-se à cultura de massa
que tem, como ícone pop Marilyn Monroe, e a coca-cola, como produto que lidera
comercialmente o período marcado por grandes avanços industriais e muita desigualdade
social e cultural.
Rodrigo S.M., não é apenas narrador, é o escritor que vivencia essa luta a qual
Clarice se referiu, como ele afirma: “Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei
esta história difícil quando eu ficar exausto da luta, não sou um desertor” ( id.ibid.,p.32). Só
que Rodrigo S.M. não aceita apenas saber dessa existência ou inexistência da nordestina, ele
recusa-se a ser cúmplice e sente-se obrigado a escrever, e dar vida ou tornar visível a história
de Macabéa, pois sua intenção, como escritor, não é apenas inventar arte, mas, sim, denunciar
o que estar escondido: “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar
sobre essa moça entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-
lhe a vida” ( id.ibid., p.13)
Jean-Paul Sartre em sua obra, Qu’est-ce que lalittérature?, enfatiza que “A função
do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e ninguém possa se dizer
inocente”(SARTRE, 1985, p.31). Ou seja o escritor ele não deve ser alienado ou afastado das
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mazelas sociais que afetam a sociedade, pois, como afirma Sartre, “Um dos principais
motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em
relação ao mundo (id.ibid., p.34). E para Rodrigo S.M. escrever é necessidade fundamental,
uma forma de não reprimir-se diante das condições adversas que este trava, em A Hora da
Estrela, Rodrigo diz: “preciso falar dessa nordestina senão eu sufoco”( id.ibid., p.17).
O professor Carlos Magno Gomes, em seu artigo Um Fantasma ronda A Hora da
Estrela, publicado no livro Sombras do Mal na Literatura, afirma que há um mal que
atormenta Rodrigo e esse mal “pode ser visto como um mal maior, um problema coletivo” e
articula “a concepção de culpa como parte integrante da narrativa”(MAGNO, 2011, 265).
Magno afirma ainda que:
Rodrigo escreve para se livrar do mal e expurgar sua culpa. Assim, o ato estético da
construção de uma personagem que só fala por meio de um discurso esvaziado da
indústria cultural, projeta problema coletivo. Um mal que está além da boa vontade
do escritor de problematizar sua contemporaneidade.( id.ibid., p.266)
O que só confirma que a intenção de Clarice era denunciar os problemas sociais
tão visíveis para ela, e invisíveis para tantos sujeitos alienados de sua época. A criação de
Rodrigo S.M. demonstra como esta vê o ato de criação literária como uma espécie de
denúncia na representação desses problemas vivenciadas pelo escritor, possuidor de
autonomia e dotado de poder intelectual.
Magno baseado em Foucault diz que essa forma estética de representação dos
problemas sociais faz parte de um artista preocupado com sua sociedade, todavia, consciente
dos limites de seu lugar de fala. Como um intelectual, Lispector se preocupa em não exagerar
ao dar a voz para a sua personagem, talvez, por isso, construa um outro tão esvaziado de
discurso, como Macabéa por exemplo. Assim, pode-se dizer que Rodrigo S.M., como a
própria Clarice, luta contra as formas de poder onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o
instrumento: na ordem do saber, da verdade, da consciência, e do discurso (FOUCAULT
apud. MAGNO, p. 270).
Supõe-se que a intenção de Clarice ao criar Rodrigo S.M. para narrar a trajetória
de Macabéa, é fazer com que sua escrita signifique uma denúncia das problemáticas sociais de
seu tempo. E sirva, também, para torna-las visíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Tanto em sua obra “A Hora da Estrela” como no fragmento analisado da
“Entrevista” a intenção de Clarice Lispector era revelar tudo que estava invisível e era
ignorado pela sociedade alienada em que vivia Rodrigo S.M. e tantos outros escritores
cariocas, assim como a própria Clarice Lispector, porém estes não aceitam tal alienação.
A Hora da Estrela é uma obra interrogativa, pois faltam respostas. Pode-se
concluir então que tanto em Entrevista como em A Hora da Estrela, Clarice estabeleceu
possíveis diálogos, só que na primeira, o diálogo é entre Clarice e os entrevistados, já na
segunda a autora irá dialogar com o leitor, impondo a esses o comportamento ativo para que
esse, talvez, possa dar as respostas que Clarice sempre buscou enquanto uma escritora não
alienada da realidade social que a cerca. Pode-se finalizar dizendo que esta realidade
problemática em que ela vivia era o motivo de sua escrita, era também o significado da
existência de Rodrigo S.M. e também o significado se sua própria existência. E finalmente
concluir que a intenção da autora era tornar visíveis as mazelas sociais de uma sociedade
alienada e cega para aqueles que se encontravam marginalizados e invisíveis.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. 2006 . Marxismo e filosofia da linguagem. 12.ed. UCITEC:
CANDIDO, Antonio. 2005. Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Associação
Editorial Humanitas.
GOMES, Carlos Magno. 2011. Um Fantasma ronda A Hora da Estrela. In. SANTOS, Josalba
Fabiana dos et al. Sombras do Mal na Literatura. Maceió: EDUFAL.
CHARADEAU, Patrkic. 2009. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo:
Contexto.
LISPECTOR, Clarice. 2007. Clarice Lispector Entrevistas. Claire Williams (org.). Rio de
Janeiro: Rocco.
_______. 1998. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco.
MEDINA, Cremilda de Araújo. 1995. Entrevista, o diálogo possível. São Paulo: Ática.
MOSER, Benjamin. Clarice, 2009.Trad.José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify.
ROGER, Jérôme. 2002. A crítica Literária. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL.
SARTRE, Jean-Paul. 1985. Qu’est-ce que lalittérature?Paris,Gallimard,1948, col. “Folio”.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
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10. ANAIS – Filologia, Crítica e Processo de Criação
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SOARES, Luís Eustáquio. 2009.A hora da estrela, de Clarice Lispector: Macabéa, Dom
Quixote da fome. Espéculo. Revista de estúdios literarios. UniversidadComplutense de
Madrid. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero42/macabea.html> Último
acesso em: 17/01/2012.
REFERÊNCIAS DE CD
VIANA, Herbert. 1986. Alagados In. Selvagem? Rio de Janeiro: EMI Records. 1 música
(5:00min)
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