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                                 Música, identidade e memória:
                             musicólogos e folcloristas no brasil
                                                        Maria Amélia Garcia de Alencar*




                                        Resumo                                                 Abstract
O artigo analisa caminhos seguidos por musicólo-         This paper analyses the work of musicologists
gos e folcloristas no Brasil que valorizaram os te-      and folklorists in Brazil that valued folklore the-
mas do folclore enquanto depositário da identida-        mes as a depository of national identity. A
de nacional. Um grupo de intelectuais ligado ao          group of intellectual people who were connec-
movimento modernista empenhou-se na instituci-           ted to the modernist movement gave their best
onalização das pesquisas sobre folclore, particular-     efforts to institutionalize researchers about fo-
mente de seus aspectos musicais, tanto através da        lklore, particularly its musical aspects through
criação de órgãos ligados à estrutura do Estado          the creation of organs related to the structure
como enquanto disciplina no interior das Universi-       of the State and as a discipline in Universities
dades, que então surgiam. Se houve um relativo           that were being opened. The first goal was
sucesso quanto à primeira meta, constituindo-se          relatively successful as “memory places” for
“lugares de memória” para o folclore nacional, a         the national folklore; however, the second goal
segunda jamais se afirmou. Os estudos de folclore        was never a reality. Folklore studies remained
permaneceram como marginais dentro das ciências          as being marginal within social sciences in Bra-
sociais no Brasil. A identidade musical do brasileiro    zil. Brazilians’ musical identity was not linked
não se ligou a essa tradição, mas sim ao samba, que      to this tradition, but to samba, that developed
se desenvolvia no Rio de Janeiro, paralelamente a        in Rio de Janeiro, parallel to other musical gen-
outros gêneros musicais. O folclore permanece como       res. Folklore remains as a shared memory, indi-
memória partilhada, individual, entre os brasileir.      vidual among Brazilians.

                             Palavras-chave:                                               Key-words:
Musicologia – Folclore – Memória                         Musicology – Folklore – Memory




*   Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília – UNB, professora
    dos Departamentos de História da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Católica de Goiás.



REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V. 2 – N.2 – JUL./DEZ. 2001
62

        Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, trata-
        dos, processos verbais, monumentos, santuários, associações, esses
        são marcos testemunhas de uma outra era, ilusões de eternidade.
                                    (Pierre Nora. Entre Memória e História)

                                                                1. Musicologia no Brasil
      Assim como história e folclore, o termo musicologia tem sido definido
de diversas maneiras, mas geralmente é entendido como disciplina ou como
o objeto dessa disciplina. As duas definições não são excludentes, uma defi-
nindo o método e outra o fenômeno a ser estudado. O enfoque na disciplina,
forma de conhecimento acadêmico, deve ser caracterizado por procedimen-
tos de pesquisa, com atenção para o rigor do método. O enfoque que prio-
riza o objeto freqüentemente se ocupa de aspectos que a musicologia disci-
plina desconsiderou ou subvalorizou. Em 1955, o Comitê da Association of
Musical Studies a definiu como um campo de conhecimento tendo por ob-
jeto a investigação da arte da música como um fenômeno físico, psicológi-
co, estético e cultural 1. Fazem parte, portanto, da musicologia a pesquisa
histórica, a análise técnica das obras musicais e a determinação dos estilos
individuais e de época. Uma de suas tarefas tem sido a divulgação de obras
musicais antigas, muitas delas sendo editadas pela primeira vez.
      Nos anos recentes, um terceiro enfoque tem tomado corpo. Acredita-se
que o estudo avançado da música deve estar centrado não na música em si,
mas no homem que a produz, o músico, que atua num determinado contex-
to social e cultural. Essa mudança do enfoque do “produto” para o “produtor”
implica numa mudança metodológica – a interdisciplinaridade se impõe. Vá-
rias disciplinas devem contribuir para essa forma de conhecimento, como a
antropologia, a etnologia, a lingüística, a economia e a sociologia – assim,
como disciplina, a musicologia se inclui entre as ciências sociais. Este é o tipo
de pesquisa associado à etnomusicologia, particularmente relevante quando
há pouca ou nenhuma informação sobre o objeto pesquisado e inexiste um
corpo de teoria musical. A causalidade é traçada não em termos de eventos
no tempo, mas através da ação das forças sociais. Por essa razão, com fre-
qüência, a etnomusicologia tem se voltado para a música não-européia, nas
áreas desprovidas de informação histórica e corpo teórico2.

1    The new grove dictionary of music and musicians. Stanley Sadie Ed. London, New York, Hong Kong:
     Mcmillan Publishers, 1980, vol. 12, p. 836.
2    Alguns etnomusicologistas afirmam a sua disciplina não como um ramo da musicologia, mas como o
     tronco principal. Ou seja, toda musicologia deve ser etnomusicologia, no sentido de que a pesquisa não
     pode prescindir do material sociológico.
63

       A musicologia iniciou-se na Europa, no século XVIII, ligada aos ideais
iluministas, principalmente com biografias de compositores e histórias gerais
da música. No século XIX surgiram vários estudos importantes na França,
Inglaterra, Alemanha e Áustria, entre outros países europeus. O fundador da
musicologia moderna é o austríaco Guido Adler (1855-1941), professor cate-
drático da disciplina na Universidade de Viena. Adler, em artigo de 1885,
codificou os campos históricos e sistemáticos do estudo da música e classifi-
cou seu objeto e método3. Os exemplos europeus foram seguidos, em di-
mensões menores, por outros países que viviam sob sua influência.
       No Brasil, entre os primeiros musicólogos está Guilherme de Melo4, que
escreveu A música no Brasil: desde os tempos coloniais até o primeiro decê-
nio da República, cuja primeira edição data de 1908. Sua obra serviu de base
para os autores que o sucederam. Os anos 20, com o impulso ao nacionalismo
dado pelo movimento modernista, foram particularmente importantes para os
estudos sobre a música brasileira. Em 1926, Renato Almeida publicou a primei-
ra edição da História da música brasileira, por ele mesmo considerado um
livro impressionista. No mesmo ano, Vicenzo Cernicchiaro publicava Storia
della musica nel Brasile (Milão: Fratelli Riccioni, 1926). Estes três autores po-
dem ser considerados os precursores da musicologia brasileira.
       Entra, então, a nossa musicologia em fase que podemos considerar clás-
sica. São bastante conhecidos os estudos sobre a música brasileira de Mário de
Andrade5, catedrático de história da música no Conservatório Dramático de São
Paulo. Ensaio sobre música brasileira, de 1928, pode ser considerado uma
das primeiras obras que deram ao estudo de folclore musical uma orientação
verdadeiramente científica, numa perspectiva da etnomusicologia. Sobre este
trabalho, escreveu Vasco Mariz: Até hoje não se pode pensar em música bra-
sileira sem o Ensaio... Sua Introdução é o grande manifesto da música nacio-
nalista brasileira 6. No campo musical, entre as obras mais importantes de
Mário de Andrade temos, em 1930 Modinhas Imperiais, em 1933 Música,

3   Grove, op.cit., p. 838. No século XIX o centro da musicologia na Europa era a Alemanha. sendo que a
    escola vienense exerceu profunda influência nos países de língua alemã.
4   Guilherme Teodoro Pereira de Melo nasceu na Bahia em 1867 e faleceu o Rio de Janeiro em 1932. Foi
    bibliotecário no Instituto Nacional de Música entre 1929 e 1932. A 1ª edição de Música no Brasil foi feita na Bahia,
    Tipografia de São Joaquim. Há uma segunda edição desta obra, de 1947 (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional).
5   Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, a 9 de outubro de 1893 e faleceu na mesma cidade em 1945.
6   Mariz, Vasco. (a). Três musicólogos brasileiros: Mário de Andrade, /Renato Almeida, Luiz Heitor Correa
    de Azevedo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983.
    Considerando-se a afirmação de Pierre Nora (Les lieux de mémoire, Paris: Galllimard, Quarto, 1997, p. 40)
    de que os livros de história que se fundam num remanejamento efetivo da memória são “lugares de
    memória”, esta obra de Mário de Andrade poderia ser assim analisada.
64

doce música, em 1941 Música do Brasil e Danças dramáticas do Brasil e em
1942, Pequena história da música7. Musicólogo, professor e pesquisador, Má-
rio raramente compôs música. Dele conhece-se apenas Viola quebrada, que
o próprio autor considerava apenas uma brincadeira. Entretanto, exerceu gran-
de influência sobre compositores seus contemporâneos, como Luciano Gallet,
Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone8.
       Em 1942, Renato Almeida9 publica uma 2ª edição, revista e ampliada –
na verdade um novo livro – da História da música brasileira (Rio de Janei-
ro, F. Briguiet). Nesta edição, metade da obra é dedicada à música folclórica
e até hoje é referência obrigatória em qualquer estudo sobre a música brasi-
leira. Em 1948, Renato Almeida escreveu o Compêndio de História da mú-
sica brasileira, (Rio de Janeiro: F. Briguiet), com segunda edição em 1958.
Trata-se de versão resumida e atualizada de sua obra principal. Renato Al-
meida exerceu papel fundamental no movimento folclórico brasileiro ao lon-
go de toda a sua vida, como veremos adiante.
       Segue-se, na construção de uma musicologia brasileira, a obra de Luiz
Heitor10, de 1956, intitulada 150 anos de música no Brasil (Rio de Janeiro:
José Olympio). Tendo vivido grande parte de sua vida como diplomata no
exterior, a obra de Luiz Heitor está voltada para leitores estrangeiros, pouco
familiarizados com a música nacional. Segundo Mariz11, o livro de Luiz Heitor
contém algumas das melhores páginas de avaliação e crítica de nossos com-
positores, sobretudo de autores do século XIX e início do XX. Em fins dos
anos 30, junto com Luciano Gallet e Renato Almeida, Luiz Heitor buscou
reagir contra o marasmo musical do Rio de Janeiro. Fundou a Associação
Brasileira de Música e criou a Revista Brasileira de Música, considerada por
Vasco Mariz a mais importante das publicações musicais já editadas no Brasil.
Luiz Heitor chegou a compor obras musicais para piano solo e para canto e
piano, mas a auto-crítica fê-lo optar pela composição de letras musicais e
pelo trabalho de musicologia.
       O último de nossos musicólogos deste período clássico é Vasco Mariz,


7    As obras completas de Mário de Andrade foram publicas pela Livraria Martins Editora, São Paulo, 1965. Ao
     todo, escreveu 76 trabalhos sobre música e 18 sobre folclore, o que constitui mais de 50% da sua produção.
8    A atuação de Mário de Andrade no campo musical estendeu-se da crítica musical à etnomusicologia.
9    Renato Costa Almeida, nasceu na Bahia, em 1895 e faleceu no Rio de Janeiro em 1981, pertencendo,
     portanto, à mesma geração de Mário de Andrade, mas sobrevivendo a esse em muitos anos.
10 Luiz Heitor Correa de Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1905. Foi professor de folclore no
   Instituto Nacional de Música, tendo ali fundado o Centro de Pesquisas Folclóricas. Desde 1942, como
   diplomata de carreira, serviu na UNESCO, em Paris.
11 Mariz, op. cit.
65

que publicou a História da música no Brasil em 1981, obra também funda-
mental para a compreensão da produção musical no país. Sua ênfase está
nos compositores modernos e contemporâneos12. No entanto, o primeiro
livro de musicologia deste autor foi A Canção de câmara no Brasil (Portugal,
Porto, 1948)13. Em 1949, Vasco Mariz publicou o Dicionário bio-bibliográfi-
co musical (Rio de Janeiro: Livraria Kosmos) e, no mesmo ano, a biografia
Heitor Villa-Lobos: compositor brasileiro (Rio de Janeiro: Ministério das Re-
lações Exteriores). Em 1983 o autor publicou Três musicólogos brasileiros:
Mário de Andrade, Renato Almeida, Luiz Heitor Correa de Azevedo (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira). Em comemoração ao 90º aniversário de Mário
de Andrade, o livro contém uma biografia dos três musicólogos e serviu de
base, em grande parte, para esta parte do trabalho.
      Esses autores constituem uma linhagem de musicólogos que o Brasil
produziu na primeira metade do século XX , tendo, cada um deles se
apoiado nos trabalhos de seus predecessores, desenvolvendo-os. Foram
trabalhos, na maioria das vezes, realizados fora do mundo acadêmico. A
crítica feita a essas obras aponta para a falta de atenção aos contextos
sócio-econômico e político que envolvem a produção musical, ou seja, um
viés positivista, comprometido com a idéia da superioridade da música
ocidental. Ressalte-se, porém, que uma perspectiva mais crítica na musico-
logia só se desenvolveu na Europa bem recentemente. Uma nova dimen-
são foi acrescentada por Theodor W. Adorno (1903-1969), com estudos
sobre as relações entre a evolução da música e a estrutura da sociedade.
Em 1962, Adorno publicou Introdução à sociologia da música.
      Nos últimos anos, os trabalhos de musicologia têm sido desenvolvidos
por temas/compositores, sob a forma de monografias, em grande parte liga-
dos às Universidades. Por outro lado, diversas outras áreas das ciências huma-
nas – antropologia, sociologia, história – têm também tomado a produção
musical como objeto de estudos, desenvolvendo-se as sub-áreas da Etnomu-
sicologia (de característica antropológica) e da Sociologia da Música ou Socio-
musicologia. Esses trabalhos revelam um olhar sobre o campo musical como
um todo, sem isolar objetos de análise segundo uma tipologia da música pré-


12 Vasco Mariz nasceu no Rio de Janeiro em 1921, tendo, desde 1945, exercido a carreira diplomática. Em
   1981 tornou-se membro titular da Academia Brasileira de Música. Uma 2ª edição, revista e ampliada, da
   História das Música ... foi publicada em 1983 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). A última edição desta
   obra, (4ª, revista e ampliada) data de 1994 e tem prefácio de Luiz Heitor.
13 Depois revista e ampliada e publicada em 2ª edição com o título de A canção brasileira (Rio de Janeiro:
   MEC, 1959). Uma 3ª edição intitulou-se A canção brasileira: erudita, folclórica, popular (Rio de Janeiro:
   Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1977).
66

estabelecida. Entretanto, como um fio condutor atravessando toda a musico-
logia brasileira, nos lembra Travassos:

       Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil
       e projetam-se nos livros que contam sua história: a alternância entre
       reprodução dos modelos europeus e descoberta de um caminho pró-
       prio, de um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, de outro14.



                                                  2. Música e identidade nacional

      Muito significativos são os estudos do folclore nacional realizados por
alguns dos autores mencionados acima, em particular Mário de Andrade e
Renato Almeida, como veremos adiante. Ligados a uma tradição romântica
que vinha do final do século XIX, de afirmação da identidade nacional pela
cultura popular, particularmente das tradições do interior do país, esses estu-
diosos buscaram registrar e valorizar essas manifestações, estimulando seu
aproveitamento pela cultura erudita15.
      Até fins do século XIX (último quarto) a música brasileira editada era pro-
fundamente influenciada pelos modelos europeus. Parte de um movimento
mais amplo de explicação da nação, a “geração de 1870” buscou no folclore do
interior do país suas raízes mais puras, suas características identitárias mais
autênticas16. Esta busca não tinha caráter meramente especulativo; traindo suas
origens românticas, a maioria dos folcloristas buscava no “povo” as raízes
autênticas e genuínas que permitiriam definir sua cultura nacional17.
      Em 1882 foi publicada, em Portugal, a primeira edição de Cantos popu-
lares do Brasil, de Silvio Romero18, com o registro das letras das músicas reco-
lhidas pelo autor entre os habitantes das praias e grandes rios (geralmente

14 Travassos, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.7.
15 Para Mário de Andrade, tratava-se de um novo estado de consciência coletiva que se formava na
   evolução de nossa música – o nacionalista (1941).
16 A emergência das preocupações eruditas sobre a “cultura popular” e a sua associação ao tema da
   “identidade nacional” são examinadas em Burke, Peter (a). Cultura popular na Idade Média. São Paulo:
   Cia. das Letras, 1989 e por Ortiz, Renato, Românticos e folcloristas, São Paulo: Olho d’Água, 1992.
17 Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964) Rio de Janeiro:
   FUNARTE, Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 25.
18 Esta primeira edição (Lisboa: Nova Livraria Int.) com apresentação do folclorista português Teófilo Braga,
   foi alterada sem o consentimento do autor, como se revela na segunda edição, publicada no Rio de
   Janeiro, Alves Ed., 1897. Existe uma edição de 1954, Rio de Janeiro, José Olympio, anotada por Luís da
   Câmara Cascudo e ilustrada por Santa Rosa. A tradição de recolha de músicas folclóricas disseminou-se
   por todo o país até a década de 1950, quando declinou juntamente com o movimento folclórico.
67

pescadores), entre os habitantes das matas (o caipira, dedicado à lavoura), os
do sertão (criadores, vaqueiros) e os das cidades – a classificação é do autor.
Trata-se da primeira coletânea de registros de músicas do nosso folclore.
       Por essa época, começa a surgir, também, a consciência de um forte
sabor nacionalizante de algumas fórmulas musicais, que passam a ser procu-
radas, observadas e empregadas com freqüência por compositores popula-
res. O divórcio entre a música de escola e a música do povo torna-se claro.
Nas camadas altas, acentua-se a imitação do estrangeiro, desdenhando-se
motivos nacionais (até os títulos dessas composições eram em língua es-
trangeira), enquanto que a música popular tornava-se cada vez mais nacio-
nal, particularmente a música para dança, teatro ou serenatas boêmias. São
desse período as polcas célebres intituladas Como isso desenferruja a gente,
Nhonhô em sarrilho e Quebra-quebra minha gente, de L. Horta, Cantalice e
H. Alves de Mesquita. Entre as danças e canções urbanas, nesse período de
afirmação nacional, destacam-se as composições do flautista Joaquim Antô-
nio da Silva Calado (1848-1880), Ernesto Nazareth (1863-1934) e de Chiqui-
nha Gonzaga (1847-1935), todos músicos profissionais.
       Entretanto, a circularidade entre as culturas erudita e popular já se mani-
festava na música brasileira19. Ernesto Nazareth e Brasílio Itiberê (1846-1913 -
considerado o precursor oficial da música brasileira que tem no folclore sua
fonte de inspiração)20, tem uma peça para piano intitulada Sertaneja (1869),
aproveitando o tema de Balaio, meu bem, balaio, que foi usado posterior-
mente por Alexandre Levy, Francisco Braga e Luciano Gallet. Na música popu-
lar, o lundu saía das ruas para os salões de baile. No sentido inverso, a modinha
passa dos salões da Corte para os violões das ruas, juntando-se ao maxixe, ao
samba, aos conjuntos de choros e à evolução da toada e das danças rurais.
Esses gêneros se encontravam e influíam-se reciprocamente. A música popu-
lar cresce e se define com uma rapidez incrível, tornando-se violentamente
a criação mais forte e a caracterização mais bela da nossa raça21.
       A busca do nacional na música erudita, ainda em fins do século XIX,
deveu-se a Alexandre Levy (1864-1892), a Alberto Nepomuceno (1864-


19 Como apontaram M. Baktin, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la
   Renaissance. Paris: Gallimard, 1970; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um
   moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987 e Peter Burke, (b). Cultura popular
   na Idade Moderna; Europa: 1500-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, há uma relativa circularidade entre
   esses dois níveis de cultura, ou seja, um conjunto de trocas que nunca é unidirecional.
20 O nome Itiberê, do rio que corta sua cidade natal, Paranaguá, foi incorporado pelo compositor a seu
   nome de família.
21 Andrade, Mário. Música do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1941, p. 29.
68

1920) e a Francisco Braga (1868-1945). Mário de Andrade, ao elaborar o
programa modernista de construção de uma música nacional, criticou o tra-
balho desses compositores porque limitavam-se a fazer “citações” de frases
musicais do folclore, sem realmente modificar a estrutura da obra, que conti-
nuava marcada por traços europeus. Para Mário, era preciso ir mais longe,
fazendo coincidir a subjetividade individual do artista com a cultura nacional.
Embeber-se dos ritmos brasileiros era o caminho para a produção da música
nacional – a expressão individual tornar-se-ia, então, expressão nacional, pro-
jetando-se o ingresso do país na ordem universal.
       Em lugar de recortar itens isolados da tradição brasileira, era preciso
       um entendimento global dos processos criativos e regularidades es-
       truturantes da música popular, como escalas, movimentação rítmi-
       ca, arabescos, formas e combinações instrumentais22.

      Para Mário de Andrade, a música nacional, surgida da mescla das contribui-
ções dos povos formadores – índios, brancos e negros, não se constituiria em
exotismos originários das três raças, mas algo novo, propriamente brasileiro, en-
contrado nas manifestações do povo. Valorizando o “populário”, Mário propunha
que os compositores se aproveitassem dele para a criação de composições mais
elaboradas. Fica clara a consciência de que o nacional não se encontrava nas gran-
des cidades, mas no interior do país, no mundo rural, no folclore, embora os ritmos
urbanos não tenham sido completamente excluídos do projeto modernista.
      A partir da Primeira Guerra Mundial a consciência nacionalista deixou
de ser uma experiência individual e tornou-se coletiva.
       A cultura brasileira foi então repensada em sua particularidade e em
       suas relações com outras culturas, ao mesmo tempo em que artistas
       oriundos das elites e da burguesia procuravam estabelecer um novo
       modo de relacionamento com as culturas do povo23.

      Villa-Lobos, por muitos considerado a maior expressão do nacionalismo
musical erudito, teve sua educação musical junto aos “chorões” do Rio de
Janeiro. Antecipando os modernistas, empreendeu, a partir de 1905, viagens
por cidades e campos do Brasil, recolhendo impressões musicais e compon-
do. Após sua participação na Semana de Arte Moderna, em 1922, a música de


22 Travassos, op. cit., p. 48.
23 Ibidem, p. 8
69

Villa-Lobos assumiu caráter essencialmente brasileiro, o que, segundo Renato
Almeida, se revela na substância profundamente nacional, que não está
somente no aproveitamento ou deformação da temática ou de certas formas
e modalidades do nosso populário, mas sobretudo no ambiente que
cria...24. Suas peças são choros, serestas, cirandas etc., nomenclatura essencial-
mente brasileira, mas não correspondem às modalidades populares invocadas.
Sua grande realização são as Bachianas brasileiras, que se constituíram numa
das mais significativas afirmações da nossa música erudita.
       A personalidade controvertida do maestro e compositor revela-se nas
avaliações de seus historiógrafos e críticos. Se para Renato Almeida, Villa
explorou, (em sua obra) em profundidade e extensão todo o populário mu-
sical, seja nos processos, seja na utilização dos instrumentos ou no emprego
da voz, Mário de Andrade escreveu sobre ele: ... ignorante até a miséria do
que é criticamente o Brasil músico, a obra dele se tornou um repositório
incomparavelmente rico dos fatos, das constâncias, das originalidades
musicais do Brasil....Coisas que ele absolutamente ignora...25 Em outra
oportunidade, Mário criticou Villa por seu individualismo e por sucumbir ao
exotismo nas Danças africanas, o que não fazia parte do programa moder-
nista de construção de uma música genuinamente nacional.
       Nesse mesmo momento, a música popular assimilava o imaginário ur-
bano e suburbano. O contato entre artistas eruditos e populares se dava em
ocasiões informais, em redutos boêmios do Rio de Janeiro, particularmente
nos bares da Lapa. Artistas, intelectuais e poetas exercitam uma escuta an-
tropofágica da música popular que ali se executa26. O processo de transfor-
mação do samba - música maldita – em música nacional e quase oficial é
objeto do livro de Vianna27.

                                               3. A pesquisa do folclore e a
                                   institucionalização da música brasileira

     A participação de músicos e musicólogos brasileiros nas diversas insti-
tuições, em nível estadual ou federal, que se dedicaram à fixação da música


24 Almeida, Renato. História da música brasileira. (2ª ed. correta e aumentada). Rio de Janeiro: F. Briguiet,
   1942, p. 454.
25 Carta a Prudente de Moraes, neto, jan. 1933, citada por Travassos, op. cit., p. 49).
26 Naves, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
   Vargas, 1998.
27 Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. UFRJ, 1995.
70

nacional e à pesquisa do folclore foi intensa. Entre eles, destacamos Alberto
Nepomuceno, Luciano Gallet, Mário de Andrade, Renato Almeida e Villa-
Lobos. Em busca de uma identidade genuinamente nacional que acreditaram
encontrar na cultura popular, para além de propostas e posturas políticas
divergentes, estes autores, imbuídos de uma missão, esforçaram-se por criar
lugares de memória, em cooperação com o Estado ou em entidades priva-
das, onde o que consideravam legítima expressão do povo brasileiro pudes-
se ser registrado e preservado28.
      Para Rosa Fuks a contradição do modernismo brasileiro expressou-se na
defesa de uma estética que rompia com o passado romântico, mas, ao apro-
veitar e transformar o folclore, inaugurou uma espécie de segunda fase do
romantismo - composições musicais de conteúdo romântico eram trabalha-
das de forma modernista29.
      A República viu nascer, no Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Músi-
ca (Escola Nacional de Música a partir de 1941, originado do antigo Conser-
vatório de Música). Nos primeiros tempos, o Instituto manteve-se apegado
ao internacionalismo que caracterizava o período. Teve, entretanto, papel
importante no desenvolvimento técnico de seus alunos, aspecto negligencia-
do até então na formação dos músicos brasileiros. Muitos receberam bolsas de
estudos na Europa. Entre os diretores do Instituto, Alberto Nepomuceno ten-
tou uma campanha em prol do canto em português, por muitos considerado
uma língua imprópria para esta arte.
      Luciano Gallet, em contato com Mário de Andrade, iniciou a pesquisa
do nosso folclore musical. Entre 1924 e 1926 escreveu cinco cadernos con-
tendo séries de canções populares brasileiras. Recolheu, junto a velhos ne-
gros na fazenda São José da Boa Vista, no Estado do Rio, cantigas e danças
para extrair referências musicais. Nhô Chico, composição de 1927, foi consi-
derada por Mário seu melhor trabalho. Em 1928 escreveu O índio na música
brasileira e O negro na música brasileira, para o Congresso Internacional
de Artes Populares em Praga, Tchecoslováquia. Em 1924, Luciano Gallet fun-
dou a Pro-Arte, sociedade coral para a execução de obras eruditas, sendo seu
diretor artístico. Gallet teve morte prematura, deixando sua obra incompleta.


28 Para os modernistas, ‘cultura popular’ não se confunde com o que veio a ser chamado mais tarde de
   ‘cultura de massa’. Exalta-se a potência criadora do povo portador da tradição brasileira – o homem do
   campo – em oposição ao “popularesco”, “semiculto”, “popularizado”, ou seja, a música urbana mais sujeita
   às influências externas. A idealização da noção de “povo” para os folcloristas europeus, que se estendeu
   ao Brasil, é apresentada por Ortiz, op. cit., p. 26.
29 Fuks, Rosa. O discurso do silêncio. Rio de Janeiro: Enelivros, 1991, p. 110.
71

       Mário de Andrade foi, entre 1935 e 1938, diretor do Departamento
Municipal de Cultura de São Paulo, onde fundou a Discoteca Pública Munici-
pal, um instituto para pesquisas folclóricas sistemáticas. Na função de diretor,
Mário teve intensa atuação na política cultural do Estado, organizando diver-
sas expedições ao nordeste, “a maior mina conservadora de nossas tradições
populares”30, e criando um curso de Etnografia e Folclore, ministrado pela
etnógrafa francesa Dina Lévy-Strauss. Fundou ainda a Sociedade de Etnogra-
fia e Folclore, de curta duração. Na área estritamente musical, criou a Orques-
tra Sinfônica Municipal, o Quarteto Haydn, o Trio São Paulo e o Coral Paulis-
tano, que confiou a Camargo Guarnieri, um compositor nacionalista da ter-
ceira geração. Sob responsabilidade do Departamento, foram encenadas danças
dramáticas e folclóricas, organizados corais operários e o Congresso Nacional
da Língua Nacional Cantada.
       Em 1938, com a decretação do Estado Novo, sendo prefeito de São
Paulo Prestes Maia, Mário de Andrade foi destituído do cargo que ocupava e
mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1941. Dirigiu o Insti-
tuto de Artes da Universidade do Distrito Federal, sendo catedrático de histó-
ria e filosofia da arte. Mário orientou ainda os primeiros trabalhos do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do qual foi um dos criadores.
       Renato Almeida foi outro musicólogo com intensa atuação nas institui-
ções voltadas para a preservação do folclore nacional. Em 1947 fundou a
Comissão Nacional do Folclore, uma instituição para-estatal, ligada ao Institu-
to Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), organizada no Ministé-
rio das Relações Exteriores para ser a representante brasileira na UNESCO,
com a ajuda de Luiz Heitor Correa de Azevedo, primeiro catedrático de fol-
clore na Escola Nacional de Música. A criação do Instituto Nacional de Folclo-
re (1974) foi sua última atuação de relevo31.
       A Comissão, em pouco tempo, se firmou como a instituição mais im-
portante nessa área, congregando a maioria dos folcloristas brasileiros. A dé-
cada de 1950 marcou o auge do movimento folclorista no Brasil, tendo sido
realizados quatro Semanas Nacionais do Folclore e cinco congressos nacio-
nais em diversas capitais, além de um congresso internacional em São Paulo,
em 54, com vários convidados estrangeiros. O objetivo era criar uma entida-


30 Oneyda Alvarenga, aluna de Mário no Conservatório de São Paulo, aproveitou o material folclórico
   colhido por Mário no Nordeste entre 1928 e 1929 e publicou o livro intitulado Na pancada do ganzá.
   Depois da morte do mestre, Oneida Alvarenga foi a grande responsável pela publicação de suas obras.
31 Em 1947, Renato de Almeida publicou Inteligência do folclore. Lisboa: Livros de Portugal, que tem uma
   2ª edição do Rio de Janeiro, Cia. Editora Nacional, 1974.
72

de governamental preocupada com políticas de preservação e de incentivo
à pesquisa, além de um lugar próprio no ensino universitário, através da
criação de uma cátedra específica no interior das ciências sociais32. A agência
governamental foi finalmente criada em 1958 com o nome de Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro, sendo seu primeiro diretor Mozart Araújo, sem
ligação anterior com o movimento folclórico. O grande diretor da CDFB foi
Édison Carneiro, que permaneceu à frente do órgão até 1964, quando foi
destituído do cargo por questões políticas.
      A segunda meta do movimento folclórico – sua inserção no meio aca-
dêmico como disciplina das ciências sociais - jamais foi atingida. Como nos
lembra Vilhena:

       Pelo contrário, no plano dos estereótipos, o folclorista se tornou o
       paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação
       romântica ao seu objeto, que estudaria a partir de um colecionismo
       descontrolado e de uma postura empiricista33.



                                       3.1. A Era Vargas: euforia nacionalista

      É consenso entre os historiadores que os anos 30 constituem um marco,
não só na história política e econômica, mas também na história da música no
Brasil. Ao lado do desenvolvimento técnico das gravações de discos, do rádio
e do microfone, que favoreciam a difusão da música popular, o governo
Vargas empreendeu um grande projeto cívico-musical, objetivando a coop-
tação das massas.
      Mais uma vez, a atuação de Villa-Lobos junto aos órgãos públicos foi
intensa. Entre 1923 e 1930, Villa permaneceu na Europa e, ao retornar, inte-
grou-se ao movimento nacionalista iniciado pelo Governo Vargas. Em São
Paulo, o compositor encontrou apoio incondicional do interventor João Al-
berto, e apresentou-se em inúmeras cidades do interior, muitas das quais
nunca tinham assistido a um concerto de música erudita. Seu objetivo era
promover a música nacionalista e entrar em contato com o povo brasileiro,
distanciando-se das elites freqüentadoras dos teatros municipais do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Os concertos tinham caráter didático e freqüente-

32 Vilhena, op.cit.
33 Vilhena, ibidem, p. 22. Sobre a crítica ao folclore como disciplina acadêmica na Europa em fins do século
   XIX, ver Ortiz, op. cit.
73

mente eram acompanhados de conferências. No dia 3 de maio de 1931,
Villa-Lobos realizou uma grande concentração cívico-artística em São Paulo,
que reuniu mais de 60.000 pessoas. O programa musical constituiu-se de
quatro hinos – Nacional, Meu País, Brasil Novo e P’ra Frente, Ó Brasil! O
compositor conseguia reverter o pessimismo dos paulistas após a derrota
política de 30, anunciando o nascimento de um novo país.34

       Na verdade, a propaganda dirigida às massas no sentido de atraí-las
       para as figuras de Villa-Lobos ou de Getúlio Vargas acabou se tornan-
       do um novo recurso bastante eficaz para a sacralização do conceito
       de brasilidade nos campos da música e da política. ... Durante toda a
       década de 30, esse novo marketing ou estratégia intimamente associa-
       da à propaganda ... viraram notícia praticamente em todos os jornais
       e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais35.

     O sucesso desse e de outros eventos semelhantes aproximava Villa das
massas urbanas e dava-lhe um reconhecimento que não tinha conseguido na
década anterior.
     Villa-Lobos, assim como Mário de Andrade e Fabiano Lozano, foi grande
incentivador do canto orfeônico, que via como elemento disciplinador dos
escolares, além da possibilidade de divulgação da música e do folclore naci-
onais. Para Villa-Lobos, a identificação entre a vanguarda nacionalista e os
pressupostos revolucionários de 30 eram fatores de modernização da socie-
dade brasileira. Seu projeto para o canto orfeônico, baseado nos exemplos
alemães, foi sendo concretizado ao longo dos anos 30. Em 24 de outubro de
1932, aniversário da revolução, Villa-Lobos organizou, no estádio do Flumi-
nense, no Rio de Janeiro, um coral de 15.000 crianças, que apresentou can-
ções cívicas e folclóricas.

       A relação música nacionalista-Estado não pode ser caracterizada con-
       forme uma visão simplista que imagine o Estado interferindo direta-
       mente no campo cultural, em face de interesses político-ideológicos
       que o levariam até à tentativa de estruturação de um projeto hegemô-
       nico nessa área. Na verdade, no caso da música, a prática política de


34 Contier, Arnaldo D. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru, SP: EDUSC,
   1998, p. 19.
35 Ibidem, p. 20-21.
74

       alguns intelectuais envolvidos sentimentalmente pela proposta de
       nacionalização da música brasileira voltou-se para o Estado como o
       único agente capaz de interferir no seio da sociedade, sem nenhum
       interesse partidário ou de classe, tão-somente como unificador cultu-
       ral da nação...36

      Assim, vários intelectuais enviaram propostas ao governo, como Villa-
Lobos, que tentava levar avante seu projeto de canto orfeônico. Vargas apro-
vou então a criação da Superintendência de Educação Musical e Artística
(SEMA), que passou a ser dirigida pelo compositor. Órgãos semelhantes fo-
ram criados em diversos estados brasileiros. Por decreto de 1932, o ensino de
canto orfeônico tornou-se obrigatório nas escolas municipais do Distrito Fe-
deral, estendendo-se a orientação aos demais estados.
      Em 1939 Villa criou o Orfeão dos Professores do Distrito Federal, for-
mado por profissionais do magistério municipal do Rio de Janeiro e das or-
questras. As apresentações públicas do Orfeão dos Professores e os espetá-
culos públicos congregando milhares de pessoas caracterizavam-se pela gran-
diloqüência e pomposidade – a estética da monumentalidade, que, no dizer
de Naves caracterizava a obra do compositor37.
      Outro projeto modernista no ensino da música foi desenvolvido pelos
professores Sá Pereira e Liddy Chiaffarelli Mignone, que criaram, em 1936, o
Conservatório Brasileiro de Música, onde trabalharam com a iniciação musi-
cal. Para Fuks, enquanto o canto orfeônico desenvolvia um civismo populis-
ta, com seus hinos patrióticos, a iniciação musical, trabalhando com as can-
ções folclóricas, desenvolvia um civismo elitista38.
      A música popular, geralmente satírica, passou a sofrer a ação da censu-
ra, através do DIP, já que veiculava mensagens que ameaçavam o ideal de
disciplina das massas. Em contrapartida, o governo favorecia a gravação de
músicas de autores brasileiros bem vistos pelo regime. Em 1942 foi criado o
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. O folclore era o centro das dis-
cussões sobre a brasilidade. Os espetáculos reunindo milhares de pessoas
eram um exemplo vivo do trabalho fruto de muita disciplina...


36 Ibidem, p. 27-28.
37 Naves, op. cit., Com a saída de Villa-Lobos da SEMA e o fim do Estado Novo, começou a diminuir, no
   Brasil, a intensidade da educação musical. A SEMA tornou-se menos rígida em relação à orientação que
   dava aos professores e a maioria destes, sem uma realimentação diretiva, não soube o que ensinar.
   Pouco a pouco o canto desapareceu das escolas, principalmente as públicas. (Fuks, op. cit., p.124)
38 Fuks, op. cit.
75

                     4. A marginalização do folclore como disciplina

       Como afirmamos anteriormente, a meta de parte da intelligentsia bra-
sileira em transformar os estudos de folclore em disciplina universitária não
se concretizou. O estudo de Vilhena39 nos mostra que no campo das ciências
sociais, onde o folclore pretendeu penetrar, o número de pesquisas e teses
referentes ao tema é muito pequeno40.
       Criada em 1935, a Universidade do Distrito Federal sofreu com a queda
do prefeito Pedro Ernesto e do seu diretor do Departamento de Ensino, Pro-
fessor Anísio Teixeira, e ainda com a repressão ao movimento de 1935. Sua
proposta original foi totalmente desvirtuada sob a gestão centralizadora do
ministro Gustavo Capanema e sob a influência de setores católicos. A UDF
acabou incorporada à Universidade do Brasil, perdendo a autonomia almejada
pelos intelectuais. A pesquisa em ciências sociais, na capital federal, abrigou-se
então em instituições isoladas, carentes de força institucional. Resultado dessa
conjuntura, a produção intelectual carioca voltou-se para perspectivas engaja-
das, generalistas e desprovidas de maior rigor acadêmico41.
       Ao contrário, a Universidade de São Paulo, criada um ano antes da UDF
(1934) e contando com o poderio econômico do estado e com a autonomia
assegurada pela Constituição de 1934, exerceu papel fundamental no desen-
volvimento das ciências sociais no país. Ocupada inicialmente por professores
estrangeiros, a USP logo contará com quadros por ela formados, destacando-se
entre eles Florestan Fernandes, considerado o “herói fundador” das ciências
sociais no Brasil42. Para Micelli, nas escolas paulistas (além da USP havia tam-
bém a Escola Livre de Sociologia e Política - ELSP – instituição particular) surgiu
o pensamento social brasileiro verdadeiramente científico, produzido por pro-
fissionais da academia, rompendo com a tradição ensaística da qual emergira.
       Nas décadas de 1950 e 1960 a preocupação dos intelectuais ligados à
academia voltou-se para a questão da “construção nacional” – nation-building –

39 Vilhena, op. cit. Trata-se do mais recente trabalho sobre o movimento folclórico no Brasil, em meio a
   uma produção muito reduzida. Nele baseamos grande parte das informações contidas nesse tópico.
40 Processo semelhante ocorreu na França, como informa Nora (op. cit., p. 3042): Numa cultura nacional
   de inspiração estatizante e coercitiva, o folclore ... foi por muito tempo marginalizado, reduzido à
   piedosa curiosidade erudita ou militante. Foi necessária a elevação do folclore à dignidade de uma
   etnologia que reapareceu na França, depois a integração dessa etnologia a uma antropologia histórica
   de pleno direito para que as “artes e tradições populares” penetrassem – será que entraram de fato?- no
   círculo reconhecido do interesse nacional e atingissem o status de disciplina legítima. Sobre o folclore
   como disciplina acadêmica na Europa, ver Ortiz, op. cit..
41 Micelli, citado por Vilhena, op. cit., p. 53.
42 Florestan Fernandes negou aos estudos de folclore o estatuto de ciência social, travando polêmica com
   Édison Carneiro. (Vilhena, op. cit., p. 60)
76

passando para segundo plano a produção de trabalhos referentes à questão da
cultura e das sociedades indígenas em si mesmas. A relação entre os diversos
estratos sociais integrantes da nação foi o objeto predominante das ciências
sociais daquele período43.
       Por outro lado, os estudos de folclore, localizados em instituições liga-
das diretamente ao Estado e desenvolvidos por intelectuais sem formação
específica, não se adequavam ao modelo proposto para as Universidades.
Da mesma forma, a ênfase na questão da “construção nacional” também
contribuía para a marginalização dos temas do folclore, ligados à questão da
identidade cultural, buscada nas camadas populares rurais. Esses estudos pa-
reciam mais relacionados ao pensamento social tradicional – do qual Gilberto
Freyre era o paradigma – onde predominavam o ensaísmo, o ecletismo teó-
rico e a indefinição disciplinar.
       A crítica aos trabalhos do movimento folclórico aproxima-se da crítica
feita à musicologia brasileira, indicada na primeira parte deste trabalho. Para
Vilhena, essa crítica trai uma certa dose de anacronismo (ou presentismo),
procedimento que reduz os processos de mediação pelos quais a totalidade
de um passado histórico produz a totalidade de seu conseqüente futuro a
uma busca pelas origens de certos fenômenos presentes 44. Examinar a pro-
dução intelectual do passado a partir de concepções predominantes no pre-
sente impede a percepção da especificidade das problemáticas da época
analisada, submersas em interpretações e valores impostos por um outro
tempo. Objetos são também sujeitos e deve-se inseri-los nos contextos em
que foram produzidos. Se não se pode isolar a perspectiva do pesquisador
do período histórico que elegeu para estudo, é preciso estabelecer uma
distância entre esses dois pólos, sob o risco de tudo negar-se ou tudo aceitar-
se como igualmente válido.
       Por fim, observa-se que o termo “folclore” sofreu uma degradação se-
mântica, sendo hoje usado como adjetivo pejorativo, que indica postura teó-
rica e ideologicamente incorreta, difundido também no senso comum. Os
poucos cientistas sociais que estudaram o folclore no Brasil buscaram, através
de longas explicações, justificar a escolha de seu tema – em geral esquecido
e anacrônico. Entretanto, é preciso lembrar que:

       A compreensão do significado do movimento folclórico hoje exige


43 Peirano, citado por Vilhena, op.cit., p. 62-63.
44 Stocking, citado por Vilhena, op. cit., p. 58.
77

       uma relativização das concepções que o pesquisador possui sobre o
       trabalho intelectual; caso contrário, corre-se o risco de não se com-
       preender como uma produção ‘sem sentido’ tenha sido ‘tão abun-
       dante’ num certo momento da nossa história45.



                                                                   5. Folclore e memória

      Vilhena menciona a realização, em 1992, na cidade de São José dos
Campos, Estado de São Paulo, de um Simpósio de Ensino e Pesquisa em
Folclore, organizado por sucessores do movimento folclórico da década de
1950. A participação de representantes de todos os estados do Sul e do
Sudeste e mais um do Norte (Pará) e do Centro Oeste (Distrito Federal),
além da grande maioria dos estados nordestinos, é a demonstração de que as
comissões estaduais de folclore – ou suas congêneres – continuavam ativas.
Era objetivo dos congressistas fazer um levantamento sobre a situação dos
estudos de folclore no país. O relatório final do encontro reafirmava que a
prática do folclore havia sido institucionalizada em institutos, museus e ór-
gãos dos governos federal, estaduais e municipais.
      A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, criada em 1958, perdeu
força a partir de 1964, com a queda de seu diretor em conseqüência do
golpe militar. Outras agências surgiram na esfera federal, como o Instituto
Nacional do Folclore (1974, sob a direção de Renato Almeida) e a Coordena-
doria de Folclore e Cultura Popular, já no governo Collor. Esses órgãos sofre-
ram com a descontinuidade que caracteriza a política brasileira. Lutando con-
tra a escassez de verbas e as indefinições da política cultural,

       [o movimento folclórico] tem sobrevivido à mudança de siglas e a perío-
       dos de retração e de expansão do investimento federal em cultura que
       se alternam ao longo de sua história... Ao lado das suas iniciativas na
       área de documentação, pesquisa e incentivo à atividade cultural, ...con-
       solidou-se um acervo importante, representado principalmente pelo
       Museu de Folclore Édison Carneiro e pela Biblioteca Amadeu Amaral,
       os mais importantes existentes em nosso país em sua área46.


45 Vilhena, op. cit., p. 67. Não é objeto deste trabalho a análise do movimento folclórico, tema central da
   tese de Vilhena.
46 Ibidem, p. 40-41.
78

      Ao lado das instituições federais, diversos governos estaduais mantive-
ram iniciativas na área do folclore, através de Comissões ou de Departamen-
tos/Divisões ligados a outros órgãos da estrutura burocrática. Em São Paulo,
uma instituição privada – o Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima -
mantém uma “Escola de Folclore”, única no país, com curso de dois anos.
Três cidades paulistas, tinham, em 1992, comissões municipais. O relativo
sucesso da institucionalização dos estudos de folclore, quase sempre ao abri-
go do Estado, aponta para a construção de lugares de memória.
      Na apresentação geral de sua vasta obra sobre os lugares de memória
na França, Pierre Nora informa que foi levado a inventariar os lugares onde
aquela se encarnou e que, pelo trabalho dos homens ou dos séculos, perma-
neceram como seus símbolos mais visíveis: festas, emblemas, monumentos
e comemorações, mas também panegíricos, dicionários e museus. Enfatiza
ainda, entre outras, a dimensão política (entendida como um jogo de forças
que transformam a realidade) da memória que é antes um quadro que um
conteúdo, uma aposta sempre disponível, um conjunto de estratégias, um
estar aqui que vale menos pelo que é do que pelo que se faz dele. Se há,
para esse autor, “altos lugares”, incontestáveis, freqüentemente visitados pela
memória, há também lugares sem glória, pouco freqüentados por pesquisa-
dores e desaparecidos de circulação que mostram melhor o que é, no nosso
entendimento, o lugar de memória. Lugares onde a memória recuperada
está se abrindo para a história. Para Nora, a tarefa prioritária do historiador no
atual momento (da história francesa) é a análise dos objetos mais represen-
tativos de sua tradição, que ainda reconhecemos como nossa, mas que já
não podemos viver como tal 47.
      Lugares de memória e não lugares de identidade, como enfatiza o autor.
Noções vizinhas mas diferentes. Lugares onde a memória nacional preserva res-
tos da tradição, das origens, onde a identidade se ancora. Esta era a preocupação
dos modernistas brasileiros a partir da década de 20, ao articular o movimento
folclórico, uma descoberta voluntária e deliberada de enraizamento 48.
      Tais considerações, aplicadas às instituições dedicadas ao folclore no
Brasil, confirmam-nas como lugares de memória. Ligado a um momento par-
ticular da história brasileira e mundial, caracterizado pelo rápido avanço das
relações capitalistas – o pós-30 – um grupo de intelectuais lutou pela institu-

47 Nora, op. cit., p. 16-19. Para esse autor, tradição é uma memória que se tornou consciente de si mesma.
   (p. 3041).
48 A noção de “enraizamento” é aplicada por Nora na compreensão do processo de construção de
   identidades culturais regionais na França. (Nora, op. cit., p. 3042).
79

cionalização da pesquisa da tradição ameaçada, no seu entendimento, pela
penetração de culturas estrangeiras. O fim de uma “tradição de memória”
inaugurou, para o folclore nacional, o “tempo dos lugares”. Momento de
articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde
com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento
desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema
de sua encarnação 49. Este movimento é particularmente marcante, num
primeiro momento, na música brasileira, como apontamos atrás, enfatizando-
se mais tarde a pesquisa sobre os folguedos ou autos populares, que combi-
nam música e representação.
      Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há
mais memória espontânea, que é necessário criar arquivos (memória arqui-
vística) onde os restos se preservam. Meio oficiais e institucionais, meio afe-
tivos e sentimentais, esses lugares surgem sempre da “vontade” de pessoas,
expressam um “dever de memória” e um sentido de descontinuidade, de
ruptura com um passado ameaçado de desaparecimento. Por isso, lugares de
memória não se confundem com objetos de lembranças, produzidos ao aca-
so, não expressando a intenção de preservar. Ao produzir livros, organizar
instituições, promover congressos e exposições, os intelectuais brasileiros
estavam criando lugares de memória para o folclore nacional, uma das matri-
zes da identidade da nação.
      Se, ao final, o folclore não se incorporou como parte da identidade nacio-
nal, como queriam os seus incentivadores, ele, sem dúvida, é parte da memória
partilhada dos brasileiros. Da mesma forma que na França, no Brasil, canções,
contos e folguedos do folclore são marcas confusas e casuais do mundo mara-
vilhoso da infância,... traços frágeis dos caminhos da memória 50.




49 Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury.
   Projeto História, n. 10, São Paulo, PUC, 1993, p. 7.
50 Fabre, Daniel. Proverbes, contes et chansons. In: Nora, Pierre, op. cit., p. 3577.
80

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  • 1. 61 Música, identidade e memória: musicólogos e folcloristas no brasil Maria Amélia Garcia de Alencar* Resumo Abstract O artigo analisa caminhos seguidos por musicólo- This paper analyses the work of musicologists gos e folcloristas no Brasil que valorizaram os te- and folklorists in Brazil that valued folklore the- mas do folclore enquanto depositário da identida- mes as a depository of national identity. A de nacional. Um grupo de intelectuais ligado ao group of intellectual people who were connec- movimento modernista empenhou-se na instituci- ted to the modernist movement gave their best onalização das pesquisas sobre folclore, particular- efforts to institutionalize researchers about fo- mente de seus aspectos musicais, tanto através da lklore, particularly its musical aspects through criação de órgãos ligados à estrutura do Estado the creation of organs related to the structure como enquanto disciplina no interior das Universi- of the State and as a discipline in Universities dades, que então surgiam. Se houve um relativo that were being opened. The first goal was sucesso quanto à primeira meta, constituindo-se relatively successful as “memory places” for “lugares de memória” para o folclore nacional, a the national folklore; however, the second goal segunda jamais se afirmou. Os estudos de folclore was never a reality. Folklore studies remained permaneceram como marginais dentro das ciências as being marginal within social sciences in Bra- sociais no Brasil. A identidade musical do brasileiro zil. Brazilians’ musical identity was not linked não se ligou a essa tradição, mas sim ao samba, que to this tradition, but to samba, that developed se desenvolvia no Rio de Janeiro, paralelamente a in Rio de Janeiro, parallel to other musical gen- outros gêneros musicais. O folclore permanece como res. Folklore remains as a shared memory, indi- memória partilhada, individual, entre os brasileir. vidual among Brazilians. Palavras-chave: Key-words: Musicologia – Folclore – Memória Musicology – Folklore – Memory * Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília – UNB, professora dos Departamentos de História da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Católica de Goiás. REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V. 2 – N.2 – JUL./DEZ. 2001
  • 2. 62 Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, trata- dos, processos verbais, monumentos, santuários, associações, esses são marcos testemunhas de uma outra era, ilusões de eternidade. (Pierre Nora. Entre Memória e História) 1. Musicologia no Brasil Assim como história e folclore, o termo musicologia tem sido definido de diversas maneiras, mas geralmente é entendido como disciplina ou como o objeto dessa disciplina. As duas definições não são excludentes, uma defi- nindo o método e outra o fenômeno a ser estudado. O enfoque na disciplina, forma de conhecimento acadêmico, deve ser caracterizado por procedimen- tos de pesquisa, com atenção para o rigor do método. O enfoque que prio- riza o objeto freqüentemente se ocupa de aspectos que a musicologia disci- plina desconsiderou ou subvalorizou. Em 1955, o Comitê da Association of Musical Studies a definiu como um campo de conhecimento tendo por ob- jeto a investigação da arte da música como um fenômeno físico, psicológi- co, estético e cultural 1. Fazem parte, portanto, da musicologia a pesquisa histórica, a análise técnica das obras musicais e a determinação dos estilos individuais e de época. Uma de suas tarefas tem sido a divulgação de obras musicais antigas, muitas delas sendo editadas pela primeira vez. Nos anos recentes, um terceiro enfoque tem tomado corpo. Acredita-se que o estudo avançado da música deve estar centrado não na música em si, mas no homem que a produz, o músico, que atua num determinado contex- to social e cultural. Essa mudança do enfoque do “produto” para o “produtor” implica numa mudança metodológica – a interdisciplinaridade se impõe. Vá- rias disciplinas devem contribuir para essa forma de conhecimento, como a antropologia, a etnologia, a lingüística, a economia e a sociologia – assim, como disciplina, a musicologia se inclui entre as ciências sociais. Este é o tipo de pesquisa associado à etnomusicologia, particularmente relevante quando há pouca ou nenhuma informação sobre o objeto pesquisado e inexiste um corpo de teoria musical. A causalidade é traçada não em termos de eventos no tempo, mas através da ação das forças sociais. Por essa razão, com fre- qüência, a etnomusicologia tem se voltado para a música não-européia, nas áreas desprovidas de informação histórica e corpo teórico2. 1 The new grove dictionary of music and musicians. Stanley Sadie Ed. London, New York, Hong Kong: Mcmillan Publishers, 1980, vol. 12, p. 836. 2 Alguns etnomusicologistas afirmam a sua disciplina não como um ramo da musicologia, mas como o tronco principal. Ou seja, toda musicologia deve ser etnomusicologia, no sentido de que a pesquisa não pode prescindir do material sociológico.
  • 3. 63 A musicologia iniciou-se na Europa, no século XVIII, ligada aos ideais iluministas, principalmente com biografias de compositores e histórias gerais da música. No século XIX surgiram vários estudos importantes na França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, entre outros países europeus. O fundador da musicologia moderna é o austríaco Guido Adler (1855-1941), professor cate- drático da disciplina na Universidade de Viena. Adler, em artigo de 1885, codificou os campos históricos e sistemáticos do estudo da música e classifi- cou seu objeto e método3. Os exemplos europeus foram seguidos, em di- mensões menores, por outros países que viviam sob sua influência. No Brasil, entre os primeiros musicólogos está Guilherme de Melo4, que escreveu A música no Brasil: desde os tempos coloniais até o primeiro decê- nio da República, cuja primeira edição data de 1908. Sua obra serviu de base para os autores que o sucederam. Os anos 20, com o impulso ao nacionalismo dado pelo movimento modernista, foram particularmente importantes para os estudos sobre a música brasileira. Em 1926, Renato Almeida publicou a primei- ra edição da História da música brasileira, por ele mesmo considerado um livro impressionista. No mesmo ano, Vicenzo Cernicchiaro publicava Storia della musica nel Brasile (Milão: Fratelli Riccioni, 1926). Estes três autores po- dem ser considerados os precursores da musicologia brasileira. Entra, então, a nossa musicologia em fase que podemos considerar clás- sica. São bastante conhecidos os estudos sobre a música brasileira de Mário de Andrade5, catedrático de história da música no Conservatório Dramático de São Paulo. Ensaio sobre música brasileira, de 1928, pode ser considerado uma das primeiras obras que deram ao estudo de folclore musical uma orientação verdadeiramente científica, numa perspectiva da etnomusicologia. Sobre este trabalho, escreveu Vasco Mariz: Até hoje não se pode pensar em música bra- sileira sem o Ensaio... Sua Introdução é o grande manifesto da música nacio- nalista brasileira 6. No campo musical, entre as obras mais importantes de Mário de Andrade temos, em 1930 Modinhas Imperiais, em 1933 Música, 3 Grove, op.cit., p. 838. No século XIX o centro da musicologia na Europa era a Alemanha. sendo que a escola vienense exerceu profunda influência nos países de língua alemã. 4 Guilherme Teodoro Pereira de Melo nasceu na Bahia em 1867 e faleceu o Rio de Janeiro em 1932. Foi bibliotecário no Instituto Nacional de Música entre 1929 e 1932. A 1ª edição de Música no Brasil foi feita na Bahia, Tipografia de São Joaquim. Há uma segunda edição desta obra, de 1947 (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional). 5 Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, a 9 de outubro de 1893 e faleceu na mesma cidade em 1945. 6 Mariz, Vasco. (a). Três musicólogos brasileiros: Mário de Andrade, /Renato Almeida, Luiz Heitor Correa de Azevedo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983. Considerando-se a afirmação de Pierre Nora (Les lieux de mémoire, Paris: Galllimard, Quarto, 1997, p. 40) de que os livros de história que se fundam num remanejamento efetivo da memória são “lugares de memória”, esta obra de Mário de Andrade poderia ser assim analisada.
  • 4. 64 doce música, em 1941 Música do Brasil e Danças dramáticas do Brasil e em 1942, Pequena história da música7. Musicólogo, professor e pesquisador, Má- rio raramente compôs música. Dele conhece-se apenas Viola quebrada, que o próprio autor considerava apenas uma brincadeira. Entretanto, exerceu gran- de influência sobre compositores seus contemporâneos, como Luciano Gallet, Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone8. Em 1942, Renato Almeida9 publica uma 2ª edição, revista e ampliada – na verdade um novo livro – da História da música brasileira (Rio de Janei- ro, F. Briguiet). Nesta edição, metade da obra é dedicada à música folclórica e até hoje é referência obrigatória em qualquer estudo sobre a música brasi- leira. Em 1948, Renato Almeida escreveu o Compêndio de História da mú- sica brasileira, (Rio de Janeiro: F. Briguiet), com segunda edição em 1958. Trata-se de versão resumida e atualizada de sua obra principal. Renato Al- meida exerceu papel fundamental no movimento folclórico brasileiro ao lon- go de toda a sua vida, como veremos adiante. Segue-se, na construção de uma musicologia brasileira, a obra de Luiz Heitor10, de 1956, intitulada 150 anos de música no Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio). Tendo vivido grande parte de sua vida como diplomata no exterior, a obra de Luiz Heitor está voltada para leitores estrangeiros, pouco familiarizados com a música nacional. Segundo Mariz11, o livro de Luiz Heitor contém algumas das melhores páginas de avaliação e crítica de nossos com- positores, sobretudo de autores do século XIX e início do XX. Em fins dos anos 30, junto com Luciano Gallet e Renato Almeida, Luiz Heitor buscou reagir contra o marasmo musical do Rio de Janeiro. Fundou a Associação Brasileira de Música e criou a Revista Brasileira de Música, considerada por Vasco Mariz a mais importante das publicações musicais já editadas no Brasil. Luiz Heitor chegou a compor obras musicais para piano solo e para canto e piano, mas a auto-crítica fê-lo optar pela composição de letras musicais e pelo trabalho de musicologia. O último de nossos musicólogos deste período clássico é Vasco Mariz, 7 As obras completas de Mário de Andrade foram publicas pela Livraria Martins Editora, São Paulo, 1965. Ao todo, escreveu 76 trabalhos sobre música e 18 sobre folclore, o que constitui mais de 50% da sua produção. 8 A atuação de Mário de Andrade no campo musical estendeu-se da crítica musical à etnomusicologia. 9 Renato Costa Almeida, nasceu na Bahia, em 1895 e faleceu no Rio de Janeiro em 1981, pertencendo, portanto, à mesma geração de Mário de Andrade, mas sobrevivendo a esse em muitos anos. 10 Luiz Heitor Correa de Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1905. Foi professor de folclore no Instituto Nacional de Música, tendo ali fundado o Centro de Pesquisas Folclóricas. Desde 1942, como diplomata de carreira, serviu na UNESCO, em Paris. 11 Mariz, op. cit.
  • 5. 65 que publicou a História da música no Brasil em 1981, obra também funda- mental para a compreensão da produção musical no país. Sua ênfase está nos compositores modernos e contemporâneos12. No entanto, o primeiro livro de musicologia deste autor foi A Canção de câmara no Brasil (Portugal, Porto, 1948)13. Em 1949, Vasco Mariz publicou o Dicionário bio-bibliográfi- co musical (Rio de Janeiro: Livraria Kosmos) e, no mesmo ano, a biografia Heitor Villa-Lobos: compositor brasileiro (Rio de Janeiro: Ministério das Re- lações Exteriores). Em 1983 o autor publicou Três musicólogos brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida, Luiz Heitor Correa de Azevedo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). Em comemoração ao 90º aniversário de Mário de Andrade, o livro contém uma biografia dos três musicólogos e serviu de base, em grande parte, para esta parte do trabalho. Esses autores constituem uma linhagem de musicólogos que o Brasil produziu na primeira metade do século XX , tendo, cada um deles se apoiado nos trabalhos de seus predecessores, desenvolvendo-os. Foram trabalhos, na maioria das vezes, realizados fora do mundo acadêmico. A crítica feita a essas obras aponta para a falta de atenção aos contextos sócio-econômico e político que envolvem a produção musical, ou seja, um viés positivista, comprometido com a idéia da superioridade da música ocidental. Ressalte-se, porém, que uma perspectiva mais crítica na musico- logia só se desenvolveu na Europa bem recentemente. Uma nova dimen- são foi acrescentada por Theodor W. Adorno (1903-1969), com estudos sobre as relações entre a evolução da música e a estrutura da sociedade. Em 1962, Adorno publicou Introdução à sociologia da música. Nos últimos anos, os trabalhos de musicologia têm sido desenvolvidos por temas/compositores, sob a forma de monografias, em grande parte liga- dos às Universidades. Por outro lado, diversas outras áreas das ciências huma- nas – antropologia, sociologia, história – têm também tomado a produção musical como objeto de estudos, desenvolvendo-se as sub-áreas da Etnomu- sicologia (de característica antropológica) e da Sociologia da Música ou Socio- musicologia. Esses trabalhos revelam um olhar sobre o campo musical como um todo, sem isolar objetos de análise segundo uma tipologia da música pré- 12 Vasco Mariz nasceu no Rio de Janeiro em 1921, tendo, desde 1945, exercido a carreira diplomática. Em 1981 tornou-se membro titular da Academia Brasileira de Música. Uma 2ª edição, revista e ampliada, da História das Música ... foi publicada em 1983 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). A última edição desta obra, (4ª, revista e ampliada) data de 1994 e tem prefácio de Luiz Heitor. 13 Depois revista e ampliada e publicada em 2ª edição com o título de A canção brasileira (Rio de Janeiro: MEC, 1959). Uma 3ª edição intitulou-se A canção brasileira: erudita, folclórica, popular (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1977).
  • 6. 66 estabelecida. Entretanto, como um fio condutor atravessando toda a musico- logia brasileira, nos lembra Travassos: Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se nos livros que contam sua história: a alternância entre reprodução dos modelos europeus e descoberta de um caminho pró- prio, de um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, de outro14. 2. Música e identidade nacional Muito significativos são os estudos do folclore nacional realizados por alguns dos autores mencionados acima, em particular Mário de Andrade e Renato Almeida, como veremos adiante. Ligados a uma tradição romântica que vinha do final do século XIX, de afirmação da identidade nacional pela cultura popular, particularmente das tradições do interior do país, esses estu- diosos buscaram registrar e valorizar essas manifestações, estimulando seu aproveitamento pela cultura erudita15. Até fins do século XIX (último quarto) a música brasileira editada era pro- fundamente influenciada pelos modelos europeus. Parte de um movimento mais amplo de explicação da nação, a “geração de 1870” buscou no folclore do interior do país suas raízes mais puras, suas características identitárias mais autênticas16. Esta busca não tinha caráter meramente especulativo; traindo suas origens românticas, a maioria dos folcloristas buscava no “povo” as raízes autênticas e genuínas que permitiriam definir sua cultura nacional17. Em 1882 foi publicada, em Portugal, a primeira edição de Cantos popu- lares do Brasil, de Silvio Romero18, com o registro das letras das músicas reco- lhidas pelo autor entre os habitantes das praias e grandes rios (geralmente 14 Travassos, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.7. 15 Para Mário de Andrade, tratava-se de um novo estado de consciência coletiva que se formava na evolução de nossa música – o nacionalista (1941). 16 A emergência das preocupações eruditas sobre a “cultura popular” e a sua associação ao tema da “identidade nacional” são examinadas em Burke, Peter (a). Cultura popular na Idade Média. São Paulo: Cia. das Letras, 1989 e por Ortiz, Renato, Românticos e folcloristas, São Paulo: Olho d’Água, 1992. 17 Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964) Rio de Janeiro: FUNARTE, Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 25. 18 Esta primeira edição (Lisboa: Nova Livraria Int.) com apresentação do folclorista português Teófilo Braga, foi alterada sem o consentimento do autor, como se revela na segunda edição, publicada no Rio de Janeiro, Alves Ed., 1897. Existe uma edição de 1954, Rio de Janeiro, José Olympio, anotada por Luís da Câmara Cascudo e ilustrada por Santa Rosa. A tradição de recolha de músicas folclóricas disseminou-se por todo o país até a década de 1950, quando declinou juntamente com o movimento folclórico.
  • 7. 67 pescadores), entre os habitantes das matas (o caipira, dedicado à lavoura), os do sertão (criadores, vaqueiros) e os das cidades – a classificação é do autor. Trata-se da primeira coletânea de registros de músicas do nosso folclore. Por essa época, começa a surgir, também, a consciência de um forte sabor nacionalizante de algumas fórmulas musicais, que passam a ser procu- radas, observadas e empregadas com freqüência por compositores popula- res. O divórcio entre a música de escola e a música do povo torna-se claro. Nas camadas altas, acentua-se a imitação do estrangeiro, desdenhando-se motivos nacionais (até os títulos dessas composições eram em língua es- trangeira), enquanto que a música popular tornava-se cada vez mais nacio- nal, particularmente a música para dança, teatro ou serenatas boêmias. São desse período as polcas célebres intituladas Como isso desenferruja a gente, Nhonhô em sarrilho e Quebra-quebra minha gente, de L. Horta, Cantalice e H. Alves de Mesquita. Entre as danças e canções urbanas, nesse período de afirmação nacional, destacam-se as composições do flautista Joaquim Antô- nio da Silva Calado (1848-1880), Ernesto Nazareth (1863-1934) e de Chiqui- nha Gonzaga (1847-1935), todos músicos profissionais. Entretanto, a circularidade entre as culturas erudita e popular já se mani- festava na música brasileira19. Ernesto Nazareth e Brasílio Itiberê (1846-1913 - considerado o precursor oficial da música brasileira que tem no folclore sua fonte de inspiração)20, tem uma peça para piano intitulada Sertaneja (1869), aproveitando o tema de Balaio, meu bem, balaio, que foi usado posterior- mente por Alexandre Levy, Francisco Braga e Luciano Gallet. Na música popu- lar, o lundu saía das ruas para os salões de baile. No sentido inverso, a modinha passa dos salões da Corte para os violões das ruas, juntando-se ao maxixe, ao samba, aos conjuntos de choros e à evolução da toada e das danças rurais. Esses gêneros se encontravam e influíam-se reciprocamente. A música popu- lar cresce e se define com uma rapidez incrível, tornando-se violentamente a criação mais forte e a caracterização mais bela da nossa raça21. A busca do nacional na música erudita, ainda em fins do século XIX, deveu-se a Alexandre Levy (1864-1892), a Alberto Nepomuceno (1864- 19 Como apontaram M. Baktin, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987 e Peter Burke, (b). Cultura popular na Idade Moderna; Europa: 1500-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, há uma relativa circularidade entre esses dois níveis de cultura, ou seja, um conjunto de trocas que nunca é unidirecional. 20 O nome Itiberê, do rio que corta sua cidade natal, Paranaguá, foi incorporado pelo compositor a seu nome de família. 21 Andrade, Mário. Música do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1941, p. 29.
  • 8. 68 1920) e a Francisco Braga (1868-1945). Mário de Andrade, ao elaborar o programa modernista de construção de uma música nacional, criticou o tra- balho desses compositores porque limitavam-se a fazer “citações” de frases musicais do folclore, sem realmente modificar a estrutura da obra, que conti- nuava marcada por traços europeus. Para Mário, era preciso ir mais longe, fazendo coincidir a subjetividade individual do artista com a cultura nacional. Embeber-se dos ritmos brasileiros era o caminho para a produção da música nacional – a expressão individual tornar-se-ia, então, expressão nacional, pro- jetando-se o ingresso do país na ordem universal. Em lugar de recortar itens isolados da tradição brasileira, era preciso um entendimento global dos processos criativos e regularidades es- truturantes da música popular, como escalas, movimentação rítmi- ca, arabescos, formas e combinações instrumentais22. Para Mário de Andrade, a música nacional, surgida da mescla das contribui- ções dos povos formadores – índios, brancos e negros, não se constituiria em exotismos originários das três raças, mas algo novo, propriamente brasileiro, en- contrado nas manifestações do povo. Valorizando o “populário”, Mário propunha que os compositores se aproveitassem dele para a criação de composições mais elaboradas. Fica clara a consciência de que o nacional não se encontrava nas gran- des cidades, mas no interior do país, no mundo rural, no folclore, embora os ritmos urbanos não tenham sido completamente excluídos do projeto modernista. A partir da Primeira Guerra Mundial a consciência nacionalista deixou de ser uma experiência individual e tornou-se coletiva. A cultura brasileira foi então repensada em sua particularidade e em suas relações com outras culturas, ao mesmo tempo em que artistas oriundos das elites e da burguesia procuravam estabelecer um novo modo de relacionamento com as culturas do povo23. Villa-Lobos, por muitos considerado a maior expressão do nacionalismo musical erudito, teve sua educação musical junto aos “chorões” do Rio de Janeiro. Antecipando os modernistas, empreendeu, a partir de 1905, viagens por cidades e campos do Brasil, recolhendo impressões musicais e compon- do. Após sua participação na Semana de Arte Moderna, em 1922, a música de 22 Travassos, op. cit., p. 48. 23 Ibidem, p. 8
  • 9. 69 Villa-Lobos assumiu caráter essencialmente brasileiro, o que, segundo Renato Almeida, se revela na substância profundamente nacional, que não está somente no aproveitamento ou deformação da temática ou de certas formas e modalidades do nosso populário, mas sobretudo no ambiente que cria...24. Suas peças são choros, serestas, cirandas etc., nomenclatura essencial- mente brasileira, mas não correspondem às modalidades populares invocadas. Sua grande realização são as Bachianas brasileiras, que se constituíram numa das mais significativas afirmações da nossa música erudita. A personalidade controvertida do maestro e compositor revela-se nas avaliações de seus historiógrafos e críticos. Se para Renato Almeida, Villa explorou, (em sua obra) em profundidade e extensão todo o populário mu- sical, seja nos processos, seja na utilização dos instrumentos ou no emprego da voz, Mário de Andrade escreveu sobre ele: ... ignorante até a miséria do que é criticamente o Brasil músico, a obra dele se tornou um repositório incomparavelmente rico dos fatos, das constâncias, das originalidades musicais do Brasil....Coisas que ele absolutamente ignora...25 Em outra oportunidade, Mário criticou Villa por seu individualismo e por sucumbir ao exotismo nas Danças africanas, o que não fazia parte do programa moder- nista de construção de uma música genuinamente nacional. Nesse mesmo momento, a música popular assimilava o imaginário ur- bano e suburbano. O contato entre artistas eruditos e populares se dava em ocasiões informais, em redutos boêmios do Rio de Janeiro, particularmente nos bares da Lapa. Artistas, intelectuais e poetas exercitam uma escuta an- tropofágica da música popular que ali se executa26. O processo de transfor- mação do samba - música maldita – em música nacional e quase oficial é objeto do livro de Vianna27. 3. A pesquisa do folclore e a institucionalização da música brasileira A participação de músicos e musicólogos brasileiros nas diversas insti- tuições, em nível estadual ou federal, que se dedicaram à fixação da música 24 Almeida, Renato. História da música brasileira. (2ª ed. correta e aumentada). Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1942, p. 454. 25 Carta a Prudente de Moraes, neto, jan. 1933, citada por Travassos, op. cit., p. 49). 26 Naves, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. 27 Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. UFRJ, 1995.
  • 10. 70 nacional e à pesquisa do folclore foi intensa. Entre eles, destacamos Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet, Mário de Andrade, Renato Almeida e Villa- Lobos. Em busca de uma identidade genuinamente nacional que acreditaram encontrar na cultura popular, para além de propostas e posturas políticas divergentes, estes autores, imbuídos de uma missão, esforçaram-se por criar lugares de memória, em cooperação com o Estado ou em entidades priva- das, onde o que consideravam legítima expressão do povo brasileiro pudes- se ser registrado e preservado28. Para Rosa Fuks a contradição do modernismo brasileiro expressou-se na defesa de uma estética que rompia com o passado romântico, mas, ao apro- veitar e transformar o folclore, inaugurou uma espécie de segunda fase do romantismo - composições musicais de conteúdo romântico eram trabalha- das de forma modernista29. A República viu nascer, no Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Músi- ca (Escola Nacional de Música a partir de 1941, originado do antigo Conser- vatório de Música). Nos primeiros tempos, o Instituto manteve-se apegado ao internacionalismo que caracterizava o período. Teve, entretanto, papel importante no desenvolvimento técnico de seus alunos, aspecto negligencia- do até então na formação dos músicos brasileiros. Muitos receberam bolsas de estudos na Europa. Entre os diretores do Instituto, Alberto Nepomuceno ten- tou uma campanha em prol do canto em português, por muitos considerado uma língua imprópria para esta arte. Luciano Gallet, em contato com Mário de Andrade, iniciou a pesquisa do nosso folclore musical. Entre 1924 e 1926 escreveu cinco cadernos con- tendo séries de canções populares brasileiras. Recolheu, junto a velhos ne- gros na fazenda São José da Boa Vista, no Estado do Rio, cantigas e danças para extrair referências musicais. Nhô Chico, composição de 1927, foi consi- derada por Mário seu melhor trabalho. Em 1928 escreveu O índio na música brasileira e O negro na música brasileira, para o Congresso Internacional de Artes Populares em Praga, Tchecoslováquia. Em 1924, Luciano Gallet fun- dou a Pro-Arte, sociedade coral para a execução de obras eruditas, sendo seu diretor artístico. Gallet teve morte prematura, deixando sua obra incompleta. 28 Para os modernistas, ‘cultura popular’ não se confunde com o que veio a ser chamado mais tarde de ‘cultura de massa’. Exalta-se a potência criadora do povo portador da tradição brasileira – o homem do campo – em oposição ao “popularesco”, “semiculto”, “popularizado”, ou seja, a música urbana mais sujeita às influências externas. A idealização da noção de “povo” para os folcloristas europeus, que se estendeu ao Brasil, é apresentada por Ortiz, op. cit., p. 26. 29 Fuks, Rosa. O discurso do silêncio. Rio de Janeiro: Enelivros, 1991, p. 110.
  • 11. 71 Mário de Andrade foi, entre 1935 e 1938, diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, onde fundou a Discoteca Pública Munici- pal, um instituto para pesquisas folclóricas sistemáticas. Na função de diretor, Mário teve intensa atuação na política cultural do Estado, organizando diver- sas expedições ao nordeste, “a maior mina conservadora de nossas tradições populares”30, e criando um curso de Etnografia e Folclore, ministrado pela etnógrafa francesa Dina Lévy-Strauss. Fundou ainda a Sociedade de Etnogra- fia e Folclore, de curta duração. Na área estritamente musical, criou a Orques- tra Sinfônica Municipal, o Quarteto Haydn, o Trio São Paulo e o Coral Paulis- tano, que confiou a Camargo Guarnieri, um compositor nacionalista da ter- ceira geração. Sob responsabilidade do Departamento, foram encenadas danças dramáticas e folclóricas, organizados corais operários e o Congresso Nacional da Língua Nacional Cantada. Em 1938, com a decretação do Estado Novo, sendo prefeito de São Paulo Prestes Maia, Mário de Andrade foi destituído do cargo que ocupava e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1941. Dirigiu o Insti- tuto de Artes da Universidade do Distrito Federal, sendo catedrático de histó- ria e filosofia da arte. Mário orientou ainda os primeiros trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do qual foi um dos criadores. Renato Almeida foi outro musicólogo com intensa atuação nas institui- ções voltadas para a preservação do folclore nacional. Em 1947 fundou a Comissão Nacional do Folclore, uma instituição para-estatal, ligada ao Institu- to Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), organizada no Ministé- rio das Relações Exteriores para ser a representante brasileira na UNESCO, com a ajuda de Luiz Heitor Correa de Azevedo, primeiro catedrático de fol- clore na Escola Nacional de Música. A criação do Instituto Nacional de Folclo- re (1974) foi sua última atuação de relevo31. A Comissão, em pouco tempo, se firmou como a instituição mais im- portante nessa área, congregando a maioria dos folcloristas brasileiros. A dé- cada de 1950 marcou o auge do movimento folclorista no Brasil, tendo sido realizados quatro Semanas Nacionais do Folclore e cinco congressos nacio- nais em diversas capitais, além de um congresso internacional em São Paulo, em 54, com vários convidados estrangeiros. O objetivo era criar uma entida- 30 Oneyda Alvarenga, aluna de Mário no Conservatório de São Paulo, aproveitou o material folclórico colhido por Mário no Nordeste entre 1928 e 1929 e publicou o livro intitulado Na pancada do ganzá. Depois da morte do mestre, Oneida Alvarenga foi a grande responsável pela publicação de suas obras. 31 Em 1947, Renato de Almeida publicou Inteligência do folclore. Lisboa: Livros de Portugal, que tem uma 2ª edição do Rio de Janeiro, Cia. Editora Nacional, 1974.
  • 12. 72 de governamental preocupada com políticas de preservação e de incentivo à pesquisa, além de um lugar próprio no ensino universitário, através da criação de uma cátedra específica no interior das ciências sociais32. A agência governamental foi finalmente criada em 1958 com o nome de Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, sendo seu primeiro diretor Mozart Araújo, sem ligação anterior com o movimento folclórico. O grande diretor da CDFB foi Édison Carneiro, que permaneceu à frente do órgão até 1964, quando foi destituído do cargo por questões políticas. A segunda meta do movimento folclórico – sua inserção no meio aca- dêmico como disciplina das ciências sociais - jamais foi atingida. Como nos lembra Vilhena: Pelo contrário, no plano dos estereótipos, o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto, que estudaria a partir de um colecionismo descontrolado e de uma postura empiricista33. 3.1. A Era Vargas: euforia nacionalista É consenso entre os historiadores que os anos 30 constituem um marco, não só na história política e econômica, mas também na história da música no Brasil. Ao lado do desenvolvimento técnico das gravações de discos, do rádio e do microfone, que favoreciam a difusão da música popular, o governo Vargas empreendeu um grande projeto cívico-musical, objetivando a coop- tação das massas. Mais uma vez, a atuação de Villa-Lobos junto aos órgãos públicos foi intensa. Entre 1923 e 1930, Villa permaneceu na Europa e, ao retornar, inte- grou-se ao movimento nacionalista iniciado pelo Governo Vargas. Em São Paulo, o compositor encontrou apoio incondicional do interventor João Al- berto, e apresentou-se em inúmeras cidades do interior, muitas das quais nunca tinham assistido a um concerto de música erudita. Seu objetivo era promover a música nacionalista e entrar em contato com o povo brasileiro, distanciando-se das elites freqüentadoras dos teatros municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os concertos tinham caráter didático e freqüente- 32 Vilhena, op.cit. 33 Vilhena, ibidem, p. 22. Sobre a crítica ao folclore como disciplina acadêmica na Europa em fins do século XIX, ver Ortiz, op. cit.
  • 13. 73 mente eram acompanhados de conferências. No dia 3 de maio de 1931, Villa-Lobos realizou uma grande concentração cívico-artística em São Paulo, que reuniu mais de 60.000 pessoas. O programa musical constituiu-se de quatro hinos – Nacional, Meu País, Brasil Novo e P’ra Frente, Ó Brasil! O compositor conseguia reverter o pessimismo dos paulistas após a derrota política de 30, anunciando o nascimento de um novo país.34 Na verdade, a propaganda dirigida às massas no sentido de atraí-las para as figuras de Villa-Lobos ou de Getúlio Vargas acabou se tornan- do um novo recurso bastante eficaz para a sacralização do conceito de brasilidade nos campos da música e da política. ... Durante toda a década de 30, esse novo marketing ou estratégia intimamente associa- da à propaganda ... viraram notícia praticamente em todos os jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais35. O sucesso desse e de outros eventos semelhantes aproximava Villa das massas urbanas e dava-lhe um reconhecimento que não tinha conseguido na década anterior. Villa-Lobos, assim como Mário de Andrade e Fabiano Lozano, foi grande incentivador do canto orfeônico, que via como elemento disciplinador dos escolares, além da possibilidade de divulgação da música e do folclore naci- onais. Para Villa-Lobos, a identificação entre a vanguarda nacionalista e os pressupostos revolucionários de 30 eram fatores de modernização da socie- dade brasileira. Seu projeto para o canto orfeônico, baseado nos exemplos alemães, foi sendo concretizado ao longo dos anos 30. Em 24 de outubro de 1932, aniversário da revolução, Villa-Lobos organizou, no estádio do Flumi- nense, no Rio de Janeiro, um coral de 15.000 crianças, que apresentou can- ções cívicas e folclóricas. A relação música nacionalista-Estado não pode ser caracterizada con- forme uma visão simplista que imagine o Estado interferindo direta- mente no campo cultural, em face de interesses político-ideológicos que o levariam até à tentativa de estruturação de um projeto hegemô- nico nessa área. Na verdade, no caso da música, a prática política de 34 Contier, Arnaldo D. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru, SP: EDUSC, 1998, p. 19. 35 Ibidem, p. 20-21.
  • 14. 74 alguns intelectuais envolvidos sentimentalmente pela proposta de nacionalização da música brasileira voltou-se para o Estado como o único agente capaz de interferir no seio da sociedade, sem nenhum interesse partidário ou de classe, tão-somente como unificador cultu- ral da nação...36 Assim, vários intelectuais enviaram propostas ao governo, como Villa- Lobos, que tentava levar avante seu projeto de canto orfeônico. Vargas apro- vou então a criação da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), que passou a ser dirigida pelo compositor. Órgãos semelhantes fo- ram criados em diversos estados brasileiros. Por decreto de 1932, o ensino de canto orfeônico tornou-se obrigatório nas escolas municipais do Distrito Fe- deral, estendendo-se a orientação aos demais estados. Em 1939 Villa criou o Orfeão dos Professores do Distrito Federal, for- mado por profissionais do magistério municipal do Rio de Janeiro e das or- questras. As apresentações públicas do Orfeão dos Professores e os espetá- culos públicos congregando milhares de pessoas caracterizavam-se pela gran- diloqüência e pomposidade – a estética da monumentalidade, que, no dizer de Naves caracterizava a obra do compositor37. Outro projeto modernista no ensino da música foi desenvolvido pelos professores Sá Pereira e Liddy Chiaffarelli Mignone, que criaram, em 1936, o Conservatório Brasileiro de Música, onde trabalharam com a iniciação musi- cal. Para Fuks, enquanto o canto orfeônico desenvolvia um civismo populis- ta, com seus hinos patrióticos, a iniciação musical, trabalhando com as can- ções folclóricas, desenvolvia um civismo elitista38. A música popular, geralmente satírica, passou a sofrer a ação da censu- ra, através do DIP, já que veiculava mensagens que ameaçavam o ideal de disciplina das massas. Em contrapartida, o governo favorecia a gravação de músicas de autores brasileiros bem vistos pelo regime. Em 1942 foi criado o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. O folclore era o centro das dis- cussões sobre a brasilidade. Os espetáculos reunindo milhares de pessoas eram um exemplo vivo do trabalho fruto de muita disciplina... 36 Ibidem, p. 27-28. 37 Naves, op. cit., Com a saída de Villa-Lobos da SEMA e o fim do Estado Novo, começou a diminuir, no Brasil, a intensidade da educação musical. A SEMA tornou-se menos rígida em relação à orientação que dava aos professores e a maioria destes, sem uma realimentação diretiva, não soube o que ensinar. Pouco a pouco o canto desapareceu das escolas, principalmente as públicas. (Fuks, op. cit., p.124) 38 Fuks, op. cit.
  • 15. 75 4. A marginalização do folclore como disciplina Como afirmamos anteriormente, a meta de parte da intelligentsia bra- sileira em transformar os estudos de folclore em disciplina universitária não se concretizou. O estudo de Vilhena39 nos mostra que no campo das ciências sociais, onde o folclore pretendeu penetrar, o número de pesquisas e teses referentes ao tema é muito pequeno40. Criada em 1935, a Universidade do Distrito Federal sofreu com a queda do prefeito Pedro Ernesto e do seu diretor do Departamento de Ensino, Pro- fessor Anísio Teixeira, e ainda com a repressão ao movimento de 1935. Sua proposta original foi totalmente desvirtuada sob a gestão centralizadora do ministro Gustavo Capanema e sob a influência de setores católicos. A UDF acabou incorporada à Universidade do Brasil, perdendo a autonomia almejada pelos intelectuais. A pesquisa em ciências sociais, na capital federal, abrigou-se então em instituições isoladas, carentes de força institucional. Resultado dessa conjuntura, a produção intelectual carioca voltou-se para perspectivas engaja- das, generalistas e desprovidas de maior rigor acadêmico41. Ao contrário, a Universidade de São Paulo, criada um ano antes da UDF (1934) e contando com o poderio econômico do estado e com a autonomia assegurada pela Constituição de 1934, exerceu papel fundamental no desen- volvimento das ciências sociais no país. Ocupada inicialmente por professores estrangeiros, a USP logo contará com quadros por ela formados, destacando-se entre eles Florestan Fernandes, considerado o “herói fundador” das ciências sociais no Brasil42. Para Micelli, nas escolas paulistas (além da USP havia tam- bém a Escola Livre de Sociologia e Política - ELSP – instituição particular) surgiu o pensamento social brasileiro verdadeiramente científico, produzido por pro- fissionais da academia, rompendo com a tradição ensaística da qual emergira. Nas décadas de 1950 e 1960 a preocupação dos intelectuais ligados à academia voltou-se para a questão da “construção nacional” – nation-building – 39 Vilhena, op. cit. Trata-se do mais recente trabalho sobre o movimento folclórico no Brasil, em meio a uma produção muito reduzida. Nele baseamos grande parte das informações contidas nesse tópico. 40 Processo semelhante ocorreu na França, como informa Nora (op. cit., p. 3042): Numa cultura nacional de inspiração estatizante e coercitiva, o folclore ... foi por muito tempo marginalizado, reduzido à piedosa curiosidade erudita ou militante. Foi necessária a elevação do folclore à dignidade de uma etnologia que reapareceu na França, depois a integração dessa etnologia a uma antropologia histórica de pleno direito para que as “artes e tradições populares” penetrassem – será que entraram de fato?- no círculo reconhecido do interesse nacional e atingissem o status de disciplina legítima. Sobre o folclore como disciplina acadêmica na Europa, ver Ortiz, op. cit.. 41 Micelli, citado por Vilhena, op. cit., p. 53. 42 Florestan Fernandes negou aos estudos de folclore o estatuto de ciência social, travando polêmica com Édison Carneiro. (Vilhena, op. cit., p. 60)
  • 16. 76 passando para segundo plano a produção de trabalhos referentes à questão da cultura e das sociedades indígenas em si mesmas. A relação entre os diversos estratos sociais integrantes da nação foi o objeto predominante das ciências sociais daquele período43. Por outro lado, os estudos de folclore, localizados em instituições liga- das diretamente ao Estado e desenvolvidos por intelectuais sem formação específica, não se adequavam ao modelo proposto para as Universidades. Da mesma forma, a ênfase na questão da “construção nacional” também contribuía para a marginalização dos temas do folclore, ligados à questão da identidade cultural, buscada nas camadas populares rurais. Esses estudos pa- reciam mais relacionados ao pensamento social tradicional – do qual Gilberto Freyre era o paradigma – onde predominavam o ensaísmo, o ecletismo teó- rico e a indefinição disciplinar. A crítica aos trabalhos do movimento folclórico aproxima-se da crítica feita à musicologia brasileira, indicada na primeira parte deste trabalho. Para Vilhena, essa crítica trai uma certa dose de anacronismo (ou presentismo), procedimento que reduz os processos de mediação pelos quais a totalidade de um passado histórico produz a totalidade de seu conseqüente futuro a uma busca pelas origens de certos fenômenos presentes 44. Examinar a pro- dução intelectual do passado a partir de concepções predominantes no pre- sente impede a percepção da especificidade das problemáticas da época analisada, submersas em interpretações e valores impostos por um outro tempo. Objetos são também sujeitos e deve-se inseri-los nos contextos em que foram produzidos. Se não se pode isolar a perspectiva do pesquisador do período histórico que elegeu para estudo, é preciso estabelecer uma distância entre esses dois pólos, sob o risco de tudo negar-se ou tudo aceitar- se como igualmente válido. Por fim, observa-se que o termo “folclore” sofreu uma degradação se- mântica, sendo hoje usado como adjetivo pejorativo, que indica postura teó- rica e ideologicamente incorreta, difundido também no senso comum. Os poucos cientistas sociais que estudaram o folclore no Brasil buscaram, através de longas explicações, justificar a escolha de seu tema – em geral esquecido e anacrônico. Entretanto, é preciso lembrar que: A compreensão do significado do movimento folclórico hoje exige 43 Peirano, citado por Vilhena, op.cit., p. 62-63. 44 Stocking, citado por Vilhena, op. cit., p. 58.
  • 17. 77 uma relativização das concepções que o pesquisador possui sobre o trabalho intelectual; caso contrário, corre-se o risco de não se com- preender como uma produção ‘sem sentido’ tenha sido ‘tão abun- dante’ num certo momento da nossa história45. 5. Folclore e memória Vilhena menciona a realização, em 1992, na cidade de São José dos Campos, Estado de São Paulo, de um Simpósio de Ensino e Pesquisa em Folclore, organizado por sucessores do movimento folclórico da década de 1950. A participação de representantes de todos os estados do Sul e do Sudeste e mais um do Norte (Pará) e do Centro Oeste (Distrito Federal), além da grande maioria dos estados nordestinos, é a demonstração de que as comissões estaduais de folclore – ou suas congêneres – continuavam ativas. Era objetivo dos congressistas fazer um levantamento sobre a situação dos estudos de folclore no país. O relatório final do encontro reafirmava que a prática do folclore havia sido institucionalizada em institutos, museus e ór- gãos dos governos federal, estaduais e municipais. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, criada em 1958, perdeu força a partir de 1964, com a queda de seu diretor em conseqüência do golpe militar. Outras agências surgiram na esfera federal, como o Instituto Nacional do Folclore (1974, sob a direção de Renato Almeida) e a Coordena- doria de Folclore e Cultura Popular, já no governo Collor. Esses órgãos sofre- ram com a descontinuidade que caracteriza a política brasileira. Lutando con- tra a escassez de verbas e as indefinições da política cultural, [o movimento folclórico] tem sobrevivido à mudança de siglas e a perío- dos de retração e de expansão do investimento federal em cultura que se alternam ao longo de sua história... Ao lado das suas iniciativas na área de documentação, pesquisa e incentivo à atividade cultural, ...con- solidou-se um acervo importante, representado principalmente pelo Museu de Folclore Édison Carneiro e pela Biblioteca Amadeu Amaral, os mais importantes existentes em nosso país em sua área46. 45 Vilhena, op. cit., p. 67. Não é objeto deste trabalho a análise do movimento folclórico, tema central da tese de Vilhena. 46 Ibidem, p. 40-41.
  • 18. 78 Ao lado das instituições federais, diversos governos estaduais mantive- ram iniciativas na área do folclore, através de Comissões ou de Departamen- tos/Divisões ligados a outros órgãos da estrutura burocrática. Em São Paulo, uma instituição privada – o Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima - mantém uma “Escola de Folclore”, única no país, com curso de dois anos. Três cidades paulistas, tinham, em 1992, comissões municipais. O relativo sucesso da institucionalização dos estudos de folclore, quase sempre ao abri- go do Estado, aponta para a construção de lugares de memória. Na apresentação geral de sua vasta obra sobre os lugares de memória na França, Pierre Nora informa que foi levado a inventariar os lugares onde aquela se encarnou e que, pelo trabalho dos homens ou dos séculos, perma- neceram como seus símbolos mais visíveis: festas, emblemas, monumentos e comemorações, mas também panegíricos, dicionários e museus. Enfatiza ainda, entre outras, a dimensão política (entendida como um jogo de forças que transformam a realidade) da memória que é antes um quadro que um conteúdo, uma aposta sempre disponível, um conjunto de estratégias, um estar aqui que vale menos pelo que é do que pelo que se faz dele. Se há, para esse autor, “altos lugares”, incontestáveis, freqüentemente visitados pela memória, há também lugares sem glória, pouco freqüentados por pesquisa- dores e desaparecidos de circulação que mostram melhor o que é, no nosso entendimento, o lugar de memória. Lugares onde a memória recuperada está se abrindo para a história. Para Nora, a tarefa prioritária do historiador no atual momento (da história francesa) é a análise dos objetos mais represen- tativos de sua tradição, que ainda reconhecemos como nossa, mas que já não podemos viver como tal 47. Lugares de memória e não lugares de identidade, como enfatiza o autor. Noções vizinhas mas diferentes. Lugares onde a memória nacional preserva res- tos da tradição, das origens, onde a identidade se ancora. Esta era a preocupação dos modernistas brasileiros a partir da década de 20, ao articular o movimento folclórico, uma descoberta voluntária e deliberada de enraizamento 48. Tais considerações, aplicadas às instituições dedicadas ao folclore no Brasil, confirmam-nas como lugares de memória. Ligado a um momento par- ticular da história brasileira e mundial, caracterizado pelo rápido avanço das relações capitalistas – o pós-30 – um grupo de intelectuais lutou pela institu- 47 Nora, op. cit., p. 16-19. Para esse autor, tradição é uma memória que se tornou consciente de si mesma. (p. 3041). 48 A noção de “enraizamento” é aplicada por Nora na compreensão do processo de construção de identidades culturais regionais na França. (Nora, op. cit., p. 3042).
  • 19. 79 cionalização da pesquisa da tradição ameaçada, no seu entendimento, pela penetração de culturas estrangeiras. O fim de uma “tradição de memória” inaugurou, para o folclore nacional, o “tempo dos lugares”. Momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação 49. Este movimento é particularmente marcante, num primeiro momento, na música brasileira, como apontamos atrás, enfatizando- se mais tarde a pesquisa sobre os folguedos ou autos populares, que combi- nam música e representação. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há mais memória espontânea, que é necessário criar arquivos (memória arqui- vística) onde os restos se preservam. Meio oficiais e institucionais, meio afe- tivos e sentimentais, esses lugares surgem sempre da “vontade” de pessoas, expressam um “dever de memória” e um sentido de descontinuidade, de ruptura com um passado ameaçado de desaparecimento. Por isso, lugares de memória não se confundem com objetos de lembranças, produzidos ao aca- so, não expressando a intenção de preservar. Ao produzir livros, organizar instituições, promover congressos e exposições, os intelectuais brasileiros estavam criando lugares de memória para o folclore nacional, uma das matri- zes da identidade da nação. Se, ao final, o folclore não se incorporou como parte da identidade nacio- nal, como queriam os seus incentivadores, ele, sem dúvida, é parte da memória partilhada dos brasileiros. Da mesma forma que na França, no Brasil, canções, contos e folguedos do folclore são marcas confusas e casuais do mundo mara- vilhoso da infância,... traços frágeis dos caminhos da memória 50. 49 Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História, n. 10, São Paulo, PUC, 1993, p. 7. 50 Fabre, Daniel. Proverbes, contes et chansons. In: Nora, Pierre, op. cit., p. 3577.
  • 20. 80