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Patentes como Instrumento de Guerra aos Rivais e o Caso do
Software
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Instrumentos legais de garantia de exclusividade de exploração comercial por um período fixo
concedido pelo poder público ao seu inventor em troca da disponibilização pública das
características da invenção, patentes têm sido utilizadas sobretudo como instrumento de
guerra em setores de alta competitividade como o mercado de software para smartphones.
Veja-se, por exemplo, a disputa recente entre a Apple e a Google, bem como entre a Apple e a
Nokia. Preocupada com o avanço do sistema operacional Android da Google para
smartphones, que, segundo alguns analistas, deverá crescer mais que qualquer outro nos
próximos cinco anos e chegar à segunda posição no mercado, a Apple entrou com uma queixa
de violação de patentes contra a HTC, fabricante de modelos do chamado Google Phone.
Paralelamente, Apple e Nokia se acusam mutuamente de violação de patentes, dando início a
uma guerra judicial cujo objetivo principal parece muito menos a busca por receita de
indenização e muito mais a mera disputa por um mercado ainda em franca expansão.

Com efeito, tal qual escreveu Larry Downes em seu livro “The Laws of Disruption” (Basic Books,
Out 2009), o litígio por patente tem “evoluído” de ser um ultimo recurso na proteção de
tecnologia proprietária para se constituir no primeiro passo nas difíceis e prolongadas
negociações entre competidores industriais sobre como dividir um bolo de mercado que
cresce de forma galopante. O processo funciona da seguinte forma: cada um dos protagonistas
inunda o órgão de concessão de patentes com solicitações formuladas de modo o mais amplo
possível, fazendo com que os sobrecarregados avaliadores – já pressionados para responder
rapidamente – acabem concedendo uma grande quantidade de patentes altamente generosas
e que não atendem aos requisitos legais para proteção. A julgar pela história recente, em
muitos desses casos as patentes acabam sendo de fato demasiado abrangentes e raramente
sobrevivem aos tribunais. Não raro, o objetivo dos litigantes não é ir até as últimas
conseqüências, mas sim obter as chamadas licenças cruzadas que, no final das contas, acabam
impedindo que novos competidores entrem no mercado. Em artigo recente no New York
Times (“An Explosion of Mobile Patent Lawsuits”, 04/03/10), Nick Bilton mostra que
praticamente todos os grandes protagonistas da indústria da telefonia celular — com exceção
de Microsoft, Palm e, até então, Google — têm se envolvido recentemente com algum tipo de
disputa de patente relativa a tecnologias da telefonia móvel.

Curiosamente, o conceito de patente (etimologicamente originado da palavra “patere” que em
latim significa “abrir ao escrutínio público”) que surge exatamente para incentivar a revelação
pública de invenções ao garantir exclusividade de exploração ao inventor, parece estar se
tornando uma ferramenta de impedimento da inovação. A rigor, seriam quatro os incentivos
econômicos inerentes a um sistema de patentes: inventar primeiramente; revelar a invenção;
investir os montantes necessários à experimentação, à produção e a comercialização da
invenção; repensar e melhorar patentes anteriores. Não obstante, o sistema de patentes tem
sido alvo de críticas por conferir uma espécie de direito negativo a um detentor de uma
patente na medida em que lhe dá o poder de excluir competidores do uso e da exploração da
invenção, ainda que o competidor posteriormente venha a desenvolver a mesma invenção
independentemente. E isso pode acontecer após a data da invenção, ou depois da data de
prioridade, dependendo da lei específica.

Com vistas a investigar as possíveis razões para o uso do sistema de patentes por parte de
empresas do setor de tecnologia fundadas a partir de 1998, um grupo de pesquisadores da
Universidade da Califórnia em Berkeley analisou um levantamento de grande alcance
intitulado “2008 Berkeley Patent Survey” contabilizando as respostas de 1.332 startups.
Reportados no artigo científico “High Technology Entrepreneurs and the Patent System:
Results of the 2008 Berkeley Patent Survey” (por S.J.H. Graham, R.P. Merges, P. Samuelson, e
T.M. Sichelman), publicado no Berkeley Technology Law Journal (Vol. 24:4, pp. 1255-1327), os
resultados mostraram que os empreendedores têm razões as mais variadas e sutis para usar o
sistema de patentes, muitas das quais divergem da teoria tradicional que diz que patentes
propiciam um “incentivo a inventar”. Surpreendentemente, segundo os autores, os executivos
de startups declaram que as patentes geralmente propiciam incentivos relativamente frágeis
para se conduzir atividades inovadoras. Por outro lado, enquanto que uma parcela substancial
de empresas jovens não detêm patentes, o levantamento constatou que a posse de patentes é
mais generalizada do que se tem noticiado, com padrões e motivos de patenteamento sendo
altamente específicos do contexto, da tecnologia e do setor da indústria. “Quando empresas
no estágio inicial patenteiam algo, elas frequentemente estão buscando vantagem competitiva
e os objetivos associados de evitar a cópia da tecnologia, assegurar financiamento, e melhorar
a reputação,” afirmam os autores.

Diferenças significativas foram encontradas entre os setores relacionados à saúde
(biotecnologia e dispositivos médicos), nos quais as patentes são mais comumente utilizadas e
consideradas importantes, e os setores de software e de internet, nos quais as patentes foram
declaradas menos úteis. As startups com financiamento do chamado “venture capital” detêm
mais patentes independentemente do setor, embora, ao contrário do que ocorre com
empresas de software, as empresas de hardware financiadas com capital de ventura
demonstram um padrão de patenteamento mais semelhante ao das empresas do setor de
saúde. Ainda segundo os autores do relatório, ao escolher não patentear as principais
inovações, as startups alegam considerações de custo, e relatam custos bem mais altos de
obtenção de patentes do que se tem noticiado na literatura.

É de se destacar o fato de que para empresas de software e de internet, as patentes têm uma
função muito menos importante dentre quase todas as atividades empreendedoras
pesquisadas no relatório de Berkeley. Por exemplo, cerca de 75% das startups de software e
de internet declararam que não detêm patentes e sequer submeteram solicitações de registro
de patentes, enquanto que apenas 25% das startups do setor de biotecnologia e de
dispositivos médicos disseram a mesma coisa. Além do mais, startups de software e de
internet disseram ter buscado obter patentes cinco vezes menos frequentemente que startups
de hardware.

A atitude predominante perante o sistema de patentes é bem diferente no setor de software e
de internet, algo confirmado, por exemplo em relatório recente da PriceWaterhouseCoopers
(“2009 Patent Litigation Study. A closer look: Patent litigation trends and the increasing impact
of nonpracticing entities”, Ago 2009): empresas de software e de telecomunicações
consideram bemvindas as mudanças na lei atual de patentes, diferentemente das empresas do
setor farmacêutico que preferem o status quo.

Em tom bem mais radical, há os que questionam a própria adequação do conceito de patente
ao software. Segundo Brad Feld, co-fundador da Mobius Venture Capital, patentes de software
são: (a) construtos inválidos, (b) totalmente desnecessárias, e (c) um enorme imposto e um
grande retardador sobre a inovação. Em artigo em seu blog (“Software Patent Absurdity”,
06/05/10), Feld recomenda um documentário dirigido por Luca Lucarini, lançado em 10/04/10,
com apoio da Free Software Foundation, intitulado “Patent Absurdity”. O filme explora o caso
das patentes de software e a história do ativismo judicial que levou ao seu surgimento, assim
como os prejuízos trazidos aos desenvolvedores de software e à economia como um todo.
Associada ao filme há uma wiki que justifica: “Software é diferente sob vários aspectos dos
campos tradicionalmente patenteáveis da engenharia tais como a fabricação de carros ou de
farmacêuticos. Por outro lado, é semelhante aos campos inovadores tais como literatura, filme
e moda.”

Embora controverso, não parece facilmente refutável o argumento de que software não é
patenteável porque trata-se essencialmente de um artefato matemático, i.e. um algoritmo, daí
resultante de uma “descoberta” e não de uma “invenção”.

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  • 1. Patentes como Instrumento de Guerra aos Rivais e o Caso do Software Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE Instrumentos legais de garantia de exclusividade de exploração comercial por um período fixo concedido pelo poder público ao seu inventor em troca da disponibilização pública das características da invenção, patentes têm sido utilizadas sobretudo como instrumento de guerra em setores de alta competitividade como o mercado de software para smartphones. Veja-se, por exemplo, a disputa recente entre a Apple e a Google, bem como entre a Apple e a Nokia. Preocupada com o avanço do sistema operacional Android da Google para smartphones, que, segundo alguns analistas, deverá crescer mais que qualquer outro nos próximos cinco anos e chegar à segunda posição no mercado, a Apple entrou com uma queixa de violação de patentes contra a HTC, fabricante de modelos do chamado Google Phone. Paralelamente, Apple e Nokia se acusam mutuamente de violação de patentes, dando início a uma guerra judicial cujo objetivo principal parece muito menos a busca por receita de indenização e muito mais a mera disputa por um mercado ainda em franca expansão. Com efeito, tal qual escreveu Larry Downes em seu livro “The Laws of Disruption” (Basic Books, Out 2009), o litígio por patente tem “evoluído” de ser um ultimo recurso na proteção de tecnologia proprietária para se constituir no primeiro passo nas difíceis e prolongadas negociações entre competidores industriais sobre como dividir um bolo de mercado que cresce de forma galopante. O processo funciona da seguinte forma: cada um dos protagonistas inunda o órgão de concessão de patentes com solicitações formuladas de modo o mais amplo possível, fazendo com que os sobrecarregados avaliadores – já pressionados para responder rapidamente – acabem concedendo uma grande quantidade de patentes altamente generosas e que não atendem aos requisitos legais para proteção. A julgar pela história recente, em muitos desses casos as patentes acabam sendo de fato demasiado abrangentes e raramente sobrevivem aos tribunais. Não raro, o objetivo dos litigantes não é ir até as últimas conseqüências, mas sim obter as chamadas licenças cruzadas que, no final das contas, acabam impedindo que novos competidores entrem no mercado. Em artigo recente no New York Times (“An Explosion of Mobile Patent Lawsuits”, 04/03/10), Nick Bilton mostra que praticamente todos os grandes protagonistas da indústria da telefonia celular — com exceção de Microsoft, Palm e, até então, Google — têm se envolvido recentemente com algum tipo de disputa de patente relativa a tecnologias da telefonia móvel. Curiosamente, o conceito de patente (etimologicamente originado da palavra “patere” que em latim significa “abrir ao escrutínio público”) que surge exatamente para incentivar a revelação pública de invenções ao garantir exclusividade de exploração ao inventor, parece estar se tornando uma ferramenta de impedimento da inovação. A rigor, seriam quatro os incentivos econômicos inerentes a um sistema de patentes: inventar primeiramente; revelar a invenção; investir os montantes necessários à experimentação, à produção e a comercialização da invenção; repensar e melhorar patentes anteriores. Não obstante, o sistema de patentes tem sido alvo de críticas por conferir uma espécie de direito negativo a um detentor de uma
  • 2. patente na medida em que lhe dá o poder de excluir competidores do uso e da exploração da invenção, ainda que o competidor posteriormente venha a desenvolver a mesma invenção independentemente. E isso pode acontecer após a data da invenção, ou depois da data de prioridade, dependendo da lei específica. Com vistas a investigar as possíveis razões para o uso do sistema de patentes por parte de empresas do setor de tecnologia fundadas a partir de 1998, um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley analisou um levantamento de grande alcance intitulado “2008 Berkeley Patent Survey” contabilizando as respostas de 1.332 startups. Reportados no artigo científico “High Technology Entrepreneurs and the Patent System: Results of the 2008 Berkeley Patent Survey” (por S.J.H. Graham, R.P. Merges, P. Samuelson, e T.M. Sichelman), publicado no Berkeley Technology Law Journal (Vol. 24:4, pp. 1255-1327), os resultados mostraram que os empreendedores têm razões as mais variadas e sutis para usar o sistema de patentes, muitas das quais divergem da teoria tradicional que diz que patentes propiciam um “incentivo a inventar”. Surpreendentemente, segundo os autores, os executivos de startups declaram que as patentes geralmente propiciam incentivos relativamente frágeis para se conduzir atividades inovadoras. Por outro lado, enquanto que uma parcela substancial de empresas jovens não detêm patentes, o levantamento constatou que a posse de patentes é mais generalizada do que se tem noticiado, com padrões e motivos de patenteamento sendo altamente específicos do contexto, da tecnologia e do setor da indústria. “Quando empresas no estágio inicial patenteiam algo, elas frequentemente estão buscando vantagem competitiva e os objetivos associados de evitar a cópia da tecnologia, assegurar financiamento, e melhorar a reputação,” afirmam os autores. Diferenças significativas foram encontradas entre os setores relacionados à saúde (biotecnologia e dispositivos médicos), nos quais as patentes são mais comumente utilizadas e consideradas importantes, e os setores de software e de internet, nos quais as patentes foram declaradas menos úteis. As startups com financiamento do chamado “venture capital” detêm mais patentes independentemente do setor, embora, ao contrário do que ocorre com empresas de software, as empresas de hardware financiadas com capital de ventura demonstram um padrão de patenteamento mais semelhante ao das empresas do setor de saúde. Ainda segundo os autores do relatório, ao escolher não patentear as principais inovações, as startups alegam considerações de custo, e relatam custos bem mais altos de obtenção de patentes do que se tem noticiado na literatura. É de se destacar o fato de que para empresas de software e de internet, as patentes têm uma função muito menos importante dentre quase todas as atividades empreendedoras pesquisadas no relatório de Berkeley. Por exemplo, cerca de 75% das startups de software e de internet declararam que não detêm patentes e sequer submeteram solicitações de registro de patentes, enquanto que apenas 25% das startups do setor de biotecnologia e de dispositivos médicos disseram a mesma coisa. Além do mais, startups de software e de internet disseram ter buscado obter patentes cinco vezes menos frequentemente que startups de hardware. A atitude predominante perante o sistema de patentes é bem diferente no setor de software e de internet, algo confirmado, por exemplo em relatório recente da PriceWaterhouseCoopers
  • 3. (“2009 Patent Litigation Study. A closer look: Patent litigation trends and the increasing impact of nonpracticing entities”, Ago 2009): empresas de software e de telecomunicações consideram bemvindas as mudanças na lei atual de patentes, diferentemente das empresas do setor farmacêutico que preferem o status quo. Em tom bem mais radical, há os que questionam a própria adequação do conceito de patente ao software. Segundo Brad Feld, co-fundador da Mobius Venture Capital, patentes de software são: (a) construtos inválidos, (b) totalmente desnecessárias, e (c) um enorme imposto e um grande retardador sobre a inovação. Em artigo em seu blog (“Software Patent Absurdity”, 06/05/10), Feld recomenda um documentário dirigido por Luca Lucarini, lançado em 10/04/10, com apoio da Free Software Foundation, intitulado “Patent Absurdity”. O filme explora o caso das patentes de software e a história do ativismo judicial que levou ao seu surgimento, assim como os prejuízos trazidos aos desenvolvedores de software e à economia como um todo. Associada ao filme há uma wiki que justifica: “Software é diferente sob vários aspectos dos campos tradicionalmente patenteáveis da engenharia tais como a fabricação de carros ou de farmacêuticos. Por outro lado, é semelhante aos campos inovadores tais como literatura, filme e moda.” Embora controverso, não parece facilmente refutável o argumento de que software não é patenteável porque trata-se essencialmente de um artefato matemático, i.e. um algoritmo, daí resultante de uma “descoberta” e não de uma “invenção”.