Este documento discute a importância da transparência e da gestão democrática para diferenciar as ONGs de outras organizações sociais. Ele propõe um modelo de balanço social para demonstrar de onde vêm os recursos, como são aplicados e como a instituição se relaciona com funcionários e participantes. O objetivo é fortalecer as práticas das ONGs e diferenciar aquelas verdadeiramente comprometidas com a cidadania por meio de maior transparência.
1. Regulamentação, transparência e gestão das ONGs
Ciro Torres*
O seminário Marco Legal das ONGs em debate no Congresso Nacional
recolocou algumas organizações da sociedade civil em complexa e urgente
discussão sobre “o que somos?”, “que tipo de lei nos regulamenta” e,
principalmente, “o que nos diferencia das outras organizações sociais?”. O
evento foi realizado em Brasília pela Associação Brasileira de Organizações
Não-Governamentais (Abong), pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos
Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS), pelo Grupo de
Trabalho Amazônico (GTA) e pela Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA).
No complexo emaranhado de organizações sociais existentes, o debate,
inicialmente, teve como foco a questão da denominação dessas entidades.
As duas principais nomenclaturas utilizadas têm como característica a
negação ou a exclusão: não-governamental, ou seja, o que não é governo; e
terceiro setor, o que não faz parte do primeiro setor, o Estado, nem está no
segundo, o setor econômico. Isso sem contar as múltiplas implicações
políticas e as relações de poder com as quais estas denominações estão
imbricadas. Algumas pessoas têm sugerido o termo organizações de
cidadania ativa, mas isso ainda está em debate.
Todavia, focar, neste artigo, a discussão sobre a legislação existente, quais
leis devemos buscar ou aquelas que desejamos quando falamos das ONGs
poderia nos colocar em um emaranhado jurídico difícil e complexo. Até
mesmo, poderia jogar uma nuvem de fumaça sobre uma questão que nos
parece fundamental: discutir a diferenciação por meio da gestão,
destacando-se a origem dos recursos, a democracia interna e a
transparência das organizações.
Contudo, torna-se interessante salientar que, até mesmo se tomarmos por
base somente a legislação existente – a Lei dos Registros Públicos (1973) e
o Novo Código Civil Brasileiro (2003) –, o mais importante e o que se torna
determinante para classificar uma associação (até em termos jurídicos e
tributários) não é como esta foi registrada, sua denominação ou seu
estatuto, mas a sua forma de atuação. No fim das contas, somos todas
associações sem fins de lucro, ou seja, pessoas jurídicas de direito privado,
formadas “pela união de pessoas que se organizam para fins não-
econômicos” (artigo 53 do Novo Código Civil Brasileiro).
Nesse sentido, a origem e o destino dos recursos, a gestão da organização e
os(as) reais beneficiados(as) por ações internas e externas nas instituições e
movimentos sociais podem nos dizer muito e revelar uma boa forma de
diferenciação entre as milhares de organizações sociais, ONGs e movimentos
existentes. Até mesmo, as relações de poder e interesses que permeiam,
mantêm e motivaram estas associações.
O grande desafio no qual nos encontramos é o de criar ferramentas e
parâmetros para balizar as formas de demonstrar publicamente nossas
2. ações, permitir verificações externas independentes, possibilitar
comparações e avaliações, bem como nos diferenciar pela prática. Isso de
forma ética, transparente e participativa, sobretudo respeitando e
valorizando a atuação dos movimentos e organizações que contam com
pequenas estruturas, incluindo as mais informais.
Neste caminho – a partir de um longo e ainda inacabado processo que
começou em 2003, desenvolvido a partir de reuniões presenciais e diversos
debates eletrônicos com a participação de 27 diferentes pessoas,
representando 12 instituições –, chegamos ao que pode ser chamada uma
primeira versão do modelo de balanço social
http://www.balancosocial.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=9 (BS)
para organizações sociais, fundações e associações, focado, principalmente,
em organizações e associações formais.
A idéia principal é divulgar e aprimorar as práticas de transparência e
responsabilidade dentro do vasto e complexo campo das organizações
sociais, fortalecendo e buscando dar maior visibilidade às nossas práticas,
condutas e imagem; contribuindo, em muitos momentos, para diferenciar o
joio do trigo nesse nosso tão vasto universo do social.
O objetivo fundamental deste modelo é demonstrar de onde vêm os
recursos da associação, onde os mesmos são aplicados, quais as atividades
desenvolvidas e como a instituição se relaciona com seus funcionários e suas
funcionárias. Além disso, existe a possibilidade da instituição demonstrar a
preocupação e as metas para promover a diversidade internamente em seus
quadros, apresentar em que patamar está a participação interna e como
anda a democracia e a alternância de poder no dia-a-dia institucional.
Porém, este modelo, que já vem sendo utilizado por organizações como o
Ibase, o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), a
Osid e outras que ainda não o tornaram público, precisa ser aprimorado. É
fundamental que cada uma dessas organizações contribua com críticas e
sugestões para aperfeiçoarmos essa ferramenta e criarmos novos
parâmetros e indicadores.
Outro ponto fundamental é a necessidade de cada associação planejar,
anualmente, a execução do balanço (que abrange sempre dois exercícios
anuais) em estreita sintonia com planos, relatórios e prestações de contas
financeiras e contábeis da instituição, obviamente, quando couber. A partir
disso, certamente os resultados serão novos indicadores e o
aperfeiçoamento contínuo desses instrumentos pelo uso.
Esperamos que, em breve, dezenas de instituições sociais realizem seus
balanços e relatórios anuais, tomando por base os indicadores quantitativos
e qualitativos desse modelo sugerido pela Abong, Conselho de Reitores das
Universidades Brasileiras (Crub) e Ibase, bem como outros possíveis
modelos que venham a ser construídos de forma coletiva e democrática.
Além disso, essa prática pode nos ajudar a diferenciar as verdadeiras ONGs
3. envolvidas com as lutas pelos direitos de cidadania, evitar o acúmulo de leis
e regulamentações restritivas em relação à Constituição de 1988 e construir
uma legislação que fortaleça as organizações autônomas e de cidadania
ativa em nossa sociedade.
Assim, com o tempo, poderemos descobrir quem é quem neste mundo das
organizações sociais e quem, de fato, tem medo da transparência baseada
numa gestão verdadeiramente democrática e participativa.
*Ciro Torres, mestre em ciência política, professor e pesquisador, é
responsável pelo tema da Responsabilidade Social e Ética nas Organizações
no Ibase.