1. A MICRO-FICÇÃO/ESCRITA BREVE COMO ESTRATÉGIA INOVADORA
DE PROMOÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA CRIATIVA
(para públicos jovem e adulto) *
Apresentação realizada no âmbito do Encontro inter-concelhio
de grupos de trabalho das bibliotecas escolares (Faro, Silves e Lagoa)
[versão aumentada]
12 de Julho de 2010
Biblioteca Municipal de Silves
* por Paulo Pires | Técnico Superior da BMS (programador e mediador de leitura)
biblioteca@cm-silves.pt
1
2. MICRO + FICÇÃO
Definição literal | “texto inventado em formato conciso”
Ingredientes centrais | CONCISÃO (engloba os conceitos de brevidade e precisão)
+
INTENSIDADE E EFICÁCIA EXPRESSIVAS
(analogia com regra da Física: maior brevidade = maior intensidade)
Convenço-me agora de que a brevidade é um fim em si mesmo quando leio uma linha e me parece
mais larga do que a vida, e quando, depois, leio uma novela e esta me parece mais breve do que a
morte. (Gabriel Jiménez Emán)
Pluralidade terminológica actual |
Micro-narrativa / escrita breve / ficção súbita
Crônica (Brasil)
Microconto / miniconto / mini-miniconto / nanoconto / conto breve / ultraconto
Short story / short short story / four minute fiction (EUA)
Microrrelato (América Latina)
3. | ANTECEDENTES E INFLUÊNCIAS NA MICRO-FICÇÃO
ESCRITA BREVE – remonta aos inícios da literatura, há 4000 anos (em
textos sumérios e egípcios), surgindo como relatos intercalados
Na literatura grega surgem como digressões imaginárias com uma unidade
de sentido relativamente autónoma (como em Heródoto ou Luciano de
Samotracia, entre outros). Tratam-se de textos inseridos em discursos
maiores (geralmente em diálogos) e têm uma função digressiva,
destinando-se a desviar o ouvinte do discurso central desses diálogos
através da inserção de factos surpreendentes, pouco habituais ou
extraordinários.
Na Idade Média começam a discernir-se nas expressões narrativas formas
diferenciadas de ficção breve, sobretudo na literatura didáctico-religiosa.
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4. A micro-ficção começa a insinuar-se no século XIX, ligada às opções e exigências
editoriais das revistas literárias e jornais, sobretudo na América Latina, os quais criaram
um mercado para a ficção breve, impondo-lhe uma restrição espacial que logo se
confundiu com um traço genérico da mesma: a brevidade.
Ao longo dos inícios do século XX vão surgindo diversas publicações que apresentam
textos/contos em miniatura.
A partir das décadas de 50 e 60 do século XX um número cada vez maior de escritores,
nomeadamente na América Latina, vai-se demarcando das pretensões totalizadoras da
narrativa convencional, deixando-se seduzir pelas possibilidades expressivas e formais da
micro-ficção como registo independente, transgredindo ou alargando as fronteiras
tradicionais dos géneros literários.
Esta escrita tem vindo a desenvolver-se em duas direcções de difícil conciliação: ao
encontro de uma herança canónica entendida como tradição (ultrapassada, mas que
continua exercendo uma forte influência na compreensão do literário; e a busca de uma
expressividade radicalmente nova.
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5. FORMAS DA TRADIÇÃO ORAL E DA CULTURA LIVRESCA
EPIGRAMA
Composição poética breve que expressa, de forma engenhosa, um único
pensamento principal, festivo ou satírico.
Foi criada na Grécia Clássica e usada também por diversos escritores latinos.
[quando inscrita sobre estruturas tumulares recebe o nome de EPITÁFIO]
Exemplo:
epigrama de Catulo [Roma antiga]
Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris.
Nescio, sed fieri sentio, et excrucior.
[Eu odeio-a e amo-a, não me perguntem porquê.
É a maneira que sinto. Isto é tudo e lastimo.]
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6. KOAN
Narrativa, diálogo, questão ou afirmação no zen-budismo que contém aspectos
que são inacessíveis à razão.
Trata-se em regra de um enigma ou charada, que é utilizado pela corrente/escola
Rinzai do zen japonês monástico. .
O objectivo deste texto é propiciar a iluminação do aspirante a zen-budista.
Exemplo:
da tradição oral, atribuída a Hakuin Ekaku (1686-1769) [Japão]
Batendo duas mãos uma na outra temos um som; qual é o som de uma [só] mão?
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7. RUBA’I
Poema de quatro versos (quadras), que segue um esquema rimático de tipo AABA,
cujas origens remontam à poesia sufi persa (séc.VII a.C.).
Exemplo:
de Abu Sa’id Abi ‘l-Khayr [Pérsia]
bingar bi-jahan sirr-i ilahi pinhan
chun ab-ihayat dar siyahi pinhan
payda amad zi bahr mahi anbuh
shud bahr zi anbuhi-yi mahi pinhan
[Olhai para o mundo:
o Divino Segredo está escondido.
Tal como a Fonte da Vida,
está escondido nas trevas.
Milhões de peixes
surgiram no mar –
Por causa do seu número,
o mar fechou-se secretamente.]
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8. FÁBULA
História narrativa, curta, que surgiu no Oriente, particularmente desenvolvido por
Esopo no séc.VI a.C., na Grécia antiga, cujos protagonistas são animais.
O objectivo destas histórias inverosímeis de fundo didáctico é a transmissão de
sabedoria de carácter moral e exemplar aos seres humanos.
[quando, nesta mesma linha temático-ideológica, as personagens são seres
inanimados, objectos, a história designa-se de APÓLOGO]
[a PARÁBOLA, por seu lado, consiste também numa narrativa curta que tem um
fundamento/objectivo moral e é protagonizada por seres humanos, apresentando
habitualmente um cunho religioso]
Exemplo:
“A ovelha negra”, de Augusto Monterroso [Guatemala]
Num país longínquo existiu há muitos anos uma Ovelha Negra. Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido ergueu-lhe uma estátua equestre que ficou muito
bem no parque.
Assim, sucessivamente, de cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente
trespassadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e correntes
pudessem exercitar-se também na escultura.
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9. CONTO ZEN
Existem várias lendas dentro da tradição Zen, transmitidas e renovadas pela
tradição oral e integrantes dos costumes chineses e japoneses, que se entrelaçam
com a história factual.
No Japão existem as narrativas setsuwa, que são histórias breves, contadas “de um
fôlego só”. São transmitidas como reais ou supostamente reais, enquadram-se nos
universos chinês, indiano e japonês (algumas das quais associadas ao budismo), e
resultam sobretudo de uma criação colectiva anónima.
Exemplo:
de autoria anónima, “A estrada enlameada”
Tanzan e Ekido caminhavam juntos numa estrada enlameada. Caía ainda uma chuva forte.
Junto a um cruzamento da estrada, encontraram uma bela moça que não conseguia
atravessar porque não queria sujar o belo kimono de seda que trazia.
– Anda moça – disse Tanzan imediatamente. E, carregando-a nos seus braços, atravessou-a
para o outro lado. A partir daí, Ekido ficou calado todo o caminho que percorreram, até à
noite. Ao chegarem ao templo onde ficariam a pernoitar, Ekido não conseguiu conter-se e disse
a Tanzan:
– Nós, os monges, não nos aproximamos de mulheres. Especialmente se são jovens e bonitas. É
perigoso. Por que fizeste aquilo?
– Eu deixei a moça lá atrás – disse Tanzan. – Tu ainda estás a carregá-la? 9
10. HAIKU
Deriva de uma forma anterior de poesia, a tanka (com 5 versos), em voga no Japão
entre os sécs.IX e XII, a qual versava temas religiosos ou ligados à Corte.
No século XV surge a renga, que assentava numa estrutura de 3 versos (uma
espécie de mote, chamado hokku, sugerido por um poeta), à qual se iam juntando
outras estrofes, num jogo competitivo entre vários poetas.
Essa estrofe inicial de 3 versos foi-se autonomizando, tornando-se uma forma
independente de poesia que só no século XIX recebe o nome de haiku.
Cada poema, composto de uma percepção sensorial e de uma percepção
sugestiva, capta um momento de experiência, um modo de ver o mundo, um
instante em que o simples subitamente revela a sua natureza interior e nos faz
olhar de novo o observado.
Exemplos:
3 poemas, sem título, de Matsuo Bashô (1644-1694) [Japão]
Não esqueças nunca A água é tão fria Através da racha na lareira
o gosto solitário Como pode a gaivota o gato
do orvalho adormecer? vai ter com a amada
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11. AFORISMO
É uma sentença concisa, que geralmente encerra um preceito moral.
Exemplos:
de Hipócrates [Grécia antiga]
A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil.
de Carlos Drummond de Andrade [Brasil]
O amor dinamita a ponte e manda o amante passar.
Seria cómico, se não fosse trágico.
Somos humildes na esperança de um dia sermos poderosos.
O optimismo é um cheque em branco a ser preenchido pelo pessimista.
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12. ANEDOTA
É uma história breve, com um desenlace cómico e, por vezes, surpreendente. Os
objectivos da piada vão desde o simples entretenimento lúdico até à sátira social,
recorrendo também ao humor negro, destinado a um público menos susceptível, o
qual aborda usualmente temas como a morte, a religião, a doença, a orientação
sexual, a violência e as relações/conflitos étnicos.
Exemplo:
de autoria anónima, “A dedução de Watson”
Sherlock Holmes e o doutor Watson vão acampar. Após um bom jantar e uma garrafa de
vinho, entram nos sacos de dormir e caem no sono.
Algumas horas depois, Holmes acorda e sacode o amigo.
– Watson, olhe para o céu estrelado. O que é que você deduz disso?
Depois de ponderar um pouco, Watson diz:
– Bem, astronomicamente, estimo que existam milhões de galáxias e potencialmente
biliões de planetas. Astrologicamente, posso dizer que Saturno está em Câncer.
Teologicamente, eu creio que Deus e o universo são infinitos. Também dá para supor, pela
posição das estrelas, que são cerca de 3h15m da madrugada… O que você me diz,
Holmes?.
Sherlock responde: – Elementar, meu caro Watson. Roubaram-nos a barraca!
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13. CADÁVER-ESQUISITO (cadavre exquis)
É um jogo colectivo surrealista inventado em França cerca de 1925. Procurando subverter
o discurso literário convencional, privilegia-se o automatismo e a actividade colectiva, de
forma a produzir sequências/textos dominados pelo absurdo, pelo acidental/inusitado,
pela ideia de ligação improvável. Numa perspectiva heterodoxa, dominada pelo humor,
poeticidade da linguagem, imaginação e visão onírica, luta-se contra a rotina/hábito
convencionados, e concilia-se a expressão individual com a mensagem colectiva.
Exemplo:
“O vermelho e o verde”, de João Artur Silva e Mário-Henrique Leiria
– De que cor é o vermelho?
– É verde.
– Quem é o teu pai?
– É o revisor do comboio para a lua.
– O que é a loucura?
– É um braço solitário sorrindo para os meninos.
– Quem é Deus?
– É um vendedor de gravatas.
– Como é a cara dele?
– É bicuda, com uma maçaneta na ponta. 13
14. POEMA EM PROSA
“A fronteira entre poesia e prosa, quando a invenção verbal não tem outra
finalidade que não seja ela própria, é puramente formal; em literaturas adultas,
não é raro ambas juntarem as suas águas e o resultado podem ser coisas
esplendorosas, quando assinadas por esses homens ‘que dão corpo à alma da sua
língua’”. (Eugénio de Andrade)
O poema em prosa surge como um meio eficaz de a poesia ensaiar novos
caminhos, adquirindo, através da prosa, uma respiração diferente. O mesmo
Eugénio de Andrade enfatiza, a propósito desta modalidade, o facto de esta lhe
permitir, na escrita, “uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar
materno”.
O texto poético apresenta assim uma dinâmica e um tom de narrativa brevíssima
– traços que, não poucas vezes, podem constituir o gérmen de pequenos contos
(anunciados, em alguns casos, pelos títulos do poemas que prefiguram uma dada
opção genológica – exemplo: poema “Fábula”, de Eugénio de Andrade).
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15. Exemplos: “Ligação”, de Alberto Pimenta “O Poeta”, de Manoel de Barros [Brasil]
a palavra repousa de olhos semicerrados Vão dizer que não existo propriamente dito.
encoberta por um véu deixando entrever Que sou um ente de sílabas.
uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
mar. a palavra estremece abre os olhos. Meu pai costumava me alertar:
o poeta afasta-se de um golpe tropeça Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
cai sentado. a palavra percorre-se com
das palavras
as mãos a ver se está intacta. fica
pensativa os dedos enfiados nas tranças Ou é ninguém ou zoró.
brincando. o poeta aproxima-se então por Eu teria 13 anos.
trás. agarra a palavra pela cinta. ela De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam se perdia nos longes da Bolívia
por terra. a palavra continua a debater E veio uma iluminura em mim.
se. o poeta mete um dedo na vulva da Foi a primeira iluminura.
palavra. a palavra torce-se toda. depois Daí botei meu primeiro verso:
acalma. o poeta mete outro e outro de Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
do ainda, retira um hífen todo molha
Mostrei a obra pra minha mãe.
do. a palavra cai ofegante. o poeta a
fasta-se com um sorriso mete o hífen a A mãe falou:
o bolso e publica-o com uma palavra Agora você vai ter que assumir as suas
sua na capa irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
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16. Exemplo: “Rã”, de Alexandre O’Neill Em Sacavém, uns rapazitos
apanharam, para nós, duas
Propus a Helena, a primeira rãs. Paguei cinco escudos por
vez que a vi, organizarmos, cada uma.
de parceria, um campeonato Dentro da caixa de sapatos,
de saltos de rã. Não sei exac- as rãs latejavam.
tamente como a ideia maluca
me saltou da cabeça, antes A meu lado, Helena segurava
mesmo de eu a ter pensado bem. Helena aderiu na caixa, na qual fizéramos
logo a ela, quase com entusiasmo. dois buracos para os bichos poderem
Helena tentava, por essa altura, respirar.
promover tudo: encontros culturais,
sessões de autógrafos, “happenings”, Já em Lisboa, Helena
reuniões taparwere, musicatas, disse de repente:
recitatas, tudo, tudo! E se experimentássemos
agora mesmo as rãs?
A ideia dos saltos de rã, afinal,
não era assim tão estranha como Em Cabo Ruivo, a dez metros do Tejo, parei o carro.
isso: vinha direitinha do
conto de Mark Twain Saímos. Helena agachou-se, destapou
“A célebre rã saltadora do distrito cuidadosamente a caixa, não sem,
de Calaveras”. primeiro afastar para o lado
a cabeça. Uma das
Então, eu e a Helena pusémo-nos
à procura de rãs. rãs saltou logo para o chão.
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17. *“A rã”, de Alexandre O’Neill (conclusão)+
A outra recusou-se. Tocámos-lhe
com pauzinhos, batemos na caixa – e nada.
Estando a rã que saltara sem
competidora, de que se havia
de lembrar o diabo da Helena?
Simples!
Pôs-se ao lado da rã, segurou
as saias e, com enérgicos
“hop lá! hop lá!”, foi saltando
com ela até que, sem dar
por isso, caiu nas águas do Tejo.
Tive um trabalhão para
pescar a Helena e
trazê-la, para minha casa,
encharcada e a bater o dente.
Ainda hoje lá está…
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18. | ASPECTOS PREPARATÓRIOS SOBRE A MICRO-FICÇÃO
a escrita micro-ficcional resulta de um acto de releitura irónica ou paródica das
convenções textuais, genológicas ou ideológicas (ou ambas), afirmando-se como
uma forma de releitura (conservadora ou inovadora) e de reciclagem dos demais
géneros já estabelecidos na tradição literária;
é um texto experimental de extensão mínima (visando eliminar o supérfluo, o
desnecessário, o excessivo), com elementos literários de carácter moderno e pós-
-moderno, o qual pretende levar até ao limite o espírito de síntese e de depuração
estilística;
é necessário reler o micro-texto para reconhecer as suas múltiplas formas de ironia
(as histórias são artificialmente limitadas); a micro-ficção enriquece-se a cada nova
leitura: “Temos de dar algumas migalhas para o leitor fazer o resto do pão” (Rui
Manuel Amaral) – estamos perante uma nova experiência de leitura;
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19. “a presença da ironia (sob a forma de paródia, texto subentendido ou jogos de
linguagem) funciona como uma espécie de ‘ácido retórico’ que dilui as fronteiras entre
géneros literários, e entre a escrita literária e não literária” (Mariví Alonso);
é também o género mais recente: só no final do século XX é que começou a ser
considerado uma forma literária autónoma (as suas raízes residem nas vanguardas
hispano-americanas do período entre guerras);
é o género mais didáctico, lúdico, irónico e fronteiriço da literatura; Rui Costa realça
a sua “extrema aptidão para a promiscuidade”, enfatizando a ideia de micro-ficção
enquanto não-género: “é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os géneros e
deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição”;
o seu reconhecimento e canonização, nos anos mais recentes, coincidem com a
prática crescente da escrita digital (nomeadamente através da blogosfera);
20. temáticas mais recorrentes na micro-ficção: bestiário, suicídio/morte, relatos do
quotidiano (doméstico, muitas vezes), erotismo, morbidade, religiosidade, etc.;
desconstruir o preconceito: não se trata de preguiça de escrever; escrever pouco
não é necessariamente sinónimo de escrever de forma simplista, fácil ou superficial
(“Não fui breve porque não tive tempo” – disse o poeta romântico alemão Heinrich
Heine). A escrita micro-ficcional apresenta um significativo desafio de imaginação,
criatividade, originalidade e destreza linguística para quem a produz;
instala a confusão entre a prosa e a poesia; ao mesmo tempo, os textos breves e
os poéticos exigem mais ao leitor do que qualquer outro género (note-se que os
poetas são quem melhor lida, nos domínios da literatura, com a ideia de sintético);
não obstante a sua habitual brevidade, o que importa sobretudo é o estatuto
fictício (inventado) das histórias, atendendo ao estrato do universo narrado. Mais
do que uma mera quantificação do número de palavras/caracteres, ou de uma
medição do espaço impresso ocupado pelo texto (em termos de páginas), o que
vale é a intenção de concisão máxima do autor para contar/narrar uma história.
21. | TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA ESCRITA MICRO-FICCIONAL
Segundo Dolores Koch e Lauro Zavala:
a) prosa simples, cuidada e precisa, mas polissémica;
b) humor céptico, que utiliza como recursos o paradoxo, a ironia e a sátira;
c) recuperação de formas literárias antigas e/ou em desuso, como fábulas e
bestiários, e inserção de novos formatos não literários;
d) metaficção (usar como tema ou tópico narrativo o próprio acto de
escrever/identificar explicitamente os mecanismos da ficção).
12 ingredientes essenciais (segundo Dolores Koch)
1. transgressão genológica
2. surpreender o leitor com uma lógica inesperada (as “vueltas de tuerca”/volte-
-faces no final do texto)
3. produzir uma mudança de contexto que rompa as expectativas do leitor
4. contrastar passado e presente
5. concretizar uma metáfora ou um dito/expressão popular
6. escamotear ou desconstruir o significado de uma frase feita
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22. 7. utilizar um formato popular, não literário
8. utilizar uma lógica desviante
9. estabelecer falsas atribuições
10. aplicar a ironia
11. dessacralizar personagens conhecidas
12. apresentar uma perspectiva/quadro infrequente ou único
EM RESUMO:
brevidade extrema;
diversas estratégias de intertextualidade: hibridez genérica, silepse, alusão,
citação e paródia;
diversas modalidades de metaficção (no plano narrativo: a estrutura em abismo
(“mise en abyme”), a metalepse, o diálogo/interpelação do leitor; no plano
linguístico: jogos de linguagem como o lipograma, o tautograma ou as repetições
lúdicas);
várias estratégias de ambiguidade semântica: por exemplo, um final
inesperado/surpreendente ou enigmático;
diversas formas de humor (intertextual) e de ironia (necessariamente instável).
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23. | ALGUMAS TIPOLOGIAS DE TEXTOS MICROFICCIONAIS *
* segundo David Lagmanovich
DISCURSO SUBSTITUÍDO
A essência destes relatos sãos os jogos de linguagem, recorrendo a neologismos e
a jogos gramaticais e de sentido
Exemplo:
“acordo”, de Paulo Condessa
Um dos homens era do campo. O outro era da cidade. Um tinha uma horta. O outro tinha
uma gráfica. Um dia acordaram os dois na mesma página e decidiram fazer um acordo.
E fizeram. Um acordo horta-gráfica.
DISCURSO MIMÉTICO
Textos que tentam imitam o falar quotidiano e que se enquadram no discurso
popular
Exemplo:
“Urdimbre”, de Orlando Enrique Van Bredam
– Tu marido es celoso? – preguntó él.
– Sí. Mi marido es el oso que viene ahí – respondió ella.
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24. REESCRITA E PARÓDIA ↔ noção de intertextualidade
2 modalidades:
– paráfrase de obra de um ou mais autores
– apropriação de elementos relativos à biografia, estilo de escrita ou visão que o
colectivo social tem de um dado autor (ligado ou não ao mundo literário)
O(s) intertexto(s) pode(m) estar oculto(s) devido ao silêncio manifestado pelo texto
ou através de alusões, verdadeiras ou falsas, que pretendem desviar a atenção do
leitor do rumo que vinha tomando; ou o(s) intertexto(s) pode(m) “ler-se debaixo da
letra”, como um palimpsesto
↓
o grau de “ingrediente de impureza” que o microficcionista aplica ao material
reescrito é que marca a diferença ao nível do tratamento textual
ESCRITA EMBLEMÁTICA
Textos que transmitem uma visão transcendente da existência humana e que podem
ser interpretados de um ponto de vista mítico ou religioso (não há casos abundantes)
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25. | ENQUADRAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE
EXPANSÃO E AFIRMAÇÃO DA MICRO-FICÇÃO ↔ CONTEXTO PÓS-MODERNO
PÓS-MODERNIDADE (na literatura)
- privilegia a hibridez e a contaminação de temas, formas e processos
- apresenta uma propensão dominantemente paródica
- combina, cruza e/ou alterna traços e tendências clássicas e modernas
- adopção crescente do formato portátil *
* numa dupla vertente: no tamanho físico do livro/dispositivo digital de leitura (em papel ou
como audio-book ou e-book) e na duração das histórias
*A nível da interpretação textual+ já não é suficiente dizer: “Aqui está o texto para demonstrar o
que digo” *critério moderno+, nem tão pouco “Aqui está a intenção do autor para certificar a
análise” *critério clássico+. Em seu lugar, o que parece estar em jogo é a necessidade de dizer:
“Aqui está esta leitura para desarticular a intenção do autor e a intenção evidente do texto”.
(Lauro Zavala)
PÓS-MODERNIDADE = hiperbolização da polissemia e da experimentação
modernas + reciclagem irónica das convenções da narrativa clássica (Lauro Zavala)
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26. | TRAÇOS PÓS-MODERNOS DA MICRO-FICÇÃO
- CEPTICISMO RADICAL – é o resultado da descrença nas utopias; para demonstrar
a inexistência de verdades absolutas, recorre-se frequentemente ao paradoxo e ao
princípio da contradição.
Exemplos:
[sem título], de Henrique Manuel Bento Fialho
Como ninguém tomava banhos de imersão, a banheira andava deprimida.
Encheu-se de água e deixou-se afogar.
“os meus problemas”, de Rafael Mota Miranda
os taxistas perguntam-me sempre se não tenho mais pequeno.
as mulheres, se não tenho maior.
“De la ubicuidad de las manzanas”, de Ana María Shua [Argentina]
La flecha disparada por la ballesta precisa de Guillermo Tell parte en dos la manzana que está
a punto de caer sobre la cabeza de Newton. Eva toma una mitad y le ofrece la outra a su
consorte para regocijo de la serpiente. Es así como nunca llega a formularse la ley de la
gravedad.
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27. - ABOLIÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNIDADE NARRATIVA – desaparecimento do sujeito
tradicional (ou seja, de um protagonista claramente identificável), que é muitas
vezes substituído por deícticos que permitem ao leitor contextualizar o micro-
relato em qualquer tempo, espaço ou personagem que lhe ocorra.
Nesta linha, algumas das categorias centrais/habituais da narrativa (como a acção,
tempo ou espaço) podem surgir apenas sugeridas, implicitamente.
Exemplos:
“O Dinossauro”, de Augusto Monterroso [Guatemala]
Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí.
[Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.]
“Literatura”, de Rui Manuel Amaral
Uma macieira que dá laranjas.
27
28. - TEXTOS EXCÊNTRICOS – privilegiando zonas marginais relativamente aos centros
canónicos da Modernidade. Esta tendência conduz a experimentações com temas,
personagens, registos linguísticos e formatos literários que haviam sido relegados
para segundo plano. Engloba textos que normalmente não são considerados
literários, nomeadamente formatos retirados do universo dos mass media e outros.
Exemplos:
Os manuais de instruções (veja-se o texto “Instrucciones para subir una escalera”) constantes
da obra Historias de cronopios y de famas, de Julio Cortázar
“Fastos II”, de Alberto Pimenta
artur vilas boas fez um filho na nuno aranha fez dezassete filhos
noite de núpcias. legítimos.
josé galhardo fez um filho na n joão de aguiar fez num só dia
oite de 29 de Fevereiro e a mulh dois filhos, e conta o caso a quem
er disse: isto não acontece todos o quiser ouvir.
os anos.
joão manuel dito o larote fez três
filhos, todos sem querer.
28
29. “Fastos II”, de Alberto Pimenta (continuação) assis conceição em princípio só
faz gémeos.
joão da atouguia não sabe quan
tos filhos fez. josé marreta vai e vem, entra e
sai, faz um filho ou não faz nada.
carlos mendonça fez nove filhas
e à décima tentativa fez um fil brito e cunha educa os filhos à
ho varão como a família exigia. antiga: manda-os calar com o chicote.
luís bastos além de filhos fez t mota lucas educa-os à moderna:
ambém netos. manda-os simplesmente calar.
daniel laranjo fez as contas – 1 f bento themudo faz um filho sem
ilho, 160; 2 filhos, 180 cada; cad pre que pode.
a filho a mais, 240 – e começou reinaldo rosas faz filhos só qua
logo com a produção* ndo quer.
(*muito desactualizado;
ver nova tabela no decreto regulamentar.) tomé de lima antes de fazer filh
os faz jejum.
manuel almeida ainda não casou,
mas quando casar fará os filhos artur campos faz filhos por distr
que quiser. acção.
29
30. “Fastos II”, de Alberto Pimenta (conclusão) [sem título], de Ernest Hemingway
(Prémio Nobel da Literatura em 1954)
brito e cunha educa os filhos à
antiga: manda-os calar com o chicote. For sale: baby shoes, never worn.
mota lucas educa-os à moderna: [Para venda: sapatos de bebé,
manda-os simplesmente calar. nunca usados.]
bento themudo faz um filho sem
pre que pode.
tomé de lima antes de fazer filh
os faz jejum.
artur campos faz filhos por distr
acção.
azevedo filho acha que é gosto
so fazer azevedo neto.
luís pacheco é o que se sabe.
joão pestana estava a fazer um
filho, mas interrompeu a meio.
30
31. - VIRTUOSISMO INTERTEXTUAL – é um reflexo da bagagem cultural do escritor,
através do qual ele recupera a tradição literária, quer renovando obras do passado
mediante a sua reescrita, quer subvertendo-as através do recurso a processos
reinterpretativos como o humor/paródia, a sátira e a ironia.
Exemplos:
“Rapidinhas culturais”, de Carlos Quevedo, Rui Zink e Nuno Miguel Guedes
(resumo a partir da obra Hamlet, de William Shakespeare)
Um príncipe com insónias passeia pela muralha do castelo, quando o fantasma do pai lhe diz
que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada
que entretanto se suicida ao saber que o príncipe matou seu pai para se vingar do tio que tinha
matado o pai do seu namorado e que dormia com a mãe. O príncipe mata o tio que dorme
com a mãe, depois de falar com uma caveira, e morre, assassinado pelo irmão da namorada, a
mesma que era doida e que se tinha suicidado.
“paixão”, de Augusto Mota
(a partir do soneto camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”)
Inscreveu-se no corpo dos bombeiros voluntários. Queria apagar um fogo que ardia sem se ver.
Estava apaixonado. 31
32. - RECURSO FREQUENTE AO HUMOR E À IRONIA – são ingredientes centrais na construção
de um texto microficcional e podem assumir inúmeras variantes e cambiantes, tendo em
conta o estilo do autor, o tema tratado e a tipologia textual, entre outros factores.
Exemplos:
“antivírus”, de Augusto Mota
Apaixonou-se na net. Juraram fidelidade na net. Tiveram relações na net. Como não se protegeu
devidamente, o computador contraiu uma terrível infecção.
“Acidentes”, de Russell Edson [EUA]
Um barbeiro cortou acidentalmente uma orelha. É como uma coisa recém-nascida deitada no chão
num ninho de cabelo.
Ui, diz o barbeiro, não devia ser lá grande orelha. Mal se queixou.
Pois não era, disse o cliente, sempre teve muita cera. Tentei pôr-lhe um pavio e derreter a cera, a ver
se encontrava o meu lado musical. Mas ao acendê-lo fiquei com a cabeça em chamas. O fogo alastrou
até às minhas virilhas e sovacos e chegou a uma floresta próxima. Senti-me um santo. Houve quem
pensasse que eu era um génio!
É reconfortante sabê-lo, diz o barbeiro, mas ainda assim não posso deixá-lo regressar a casa só com
uma orelha. Vou ter de remover a outra. Mas não se preocupe, será um acidente.
Simetria a quanto obrigas! Mas que seja um acidente, não o quero a cortar-me de propósito.
Se calhar corto-lhe a garganta….
Claro, desde que seja um acidente… 32
33. Ainda neste tópico, é de destacar o uso frequente do HUMOR NUM REGISTO NEGRO
OU TERRÍFICO, que não passe apenas pela vertente lúdica ou cómico-anedótica,
como atestam o último texto citado ou, por exemplo, os Crimes exemplares, de Max
Aub.
O recurso ao NONSENSE E À IDEIA DE ABSURDO, através de um humor
(aparentemente) perturbado e sem sentido, constitui igualmente um traço recorrente
da escrita breve, como demonstram os próximos três exemplos:
“Rifão quotidiano”, de Mário-Henrique Leiria
Uma nêspera chegou a Velha é o que acontece
estava na cama e disse às nêsperas
deitada olha uma nêspera que ficam deitadas
muito calada e zás comeu-a caladas
a ver a esperar
o que acontecia o que acontece
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34. Exemplo 2:
“Três sonhos: 1.º sonho de Calvino”, de Gonçalo M. Tavares
Do alto de mais de trinta andares, alguém tira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua
gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como
que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o
esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores.
Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se
vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco
a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá
as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os
atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento:
chega ao chão, impecável.
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35. Exemplo 3:
“O Rapaz Robô”, de Tim Burton Disse o médico docemente:
“Há-de parecer-lhe demente,
Mr. e Mrs. Smith tinham uma boa vida.
mas não é o senhor
Faziam um belo casal, feliz e normal.
o legítimo progenitor
Um dia aconteceu-lhes uma coisa bestial:
deste ser repelente.
Mrs. Smith engravida.
Não conseguimos determinar
Mr. Smith fica ufano.
o sexo deste horror;
Mas algo correu mal com o rebento de amor:
mas não há que enganar:
Não tinha nada de humano,
o pai era um ferro a vapor.”
era um rapaz robô!
Não era quente nem fofo Os Smiths passaram a viver
e, sem pele que se visse, como um casal ressentido.
era, ao invés, de chapa batida Mrs. Smith odiava o marido
com uma série de antenas da cabeça saídas. e este odiava a mulher.
Tinha um ar molengão, Nunca lhe conseguiu perdoar
sem morte nem vida. o seu pecado mortal:
um encontro sexual
Só parecia vivente
com um ferro de engomar.
com uma grande extensão
ligada à corrente. E o Rapaz Robô
Mr. Smith levou a mal: um homem se tornou.
“Sr. Doutor, este não é o meu moço.
Não é de carne e osso, Mas tomavam-no por bicho
é de liga de metal.” ou por caixote do lixo.
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36. - OBRAS ABERTAS – textos em que só o leitor pode apreender o seu sentido último. São
obras que não se conformam com uma leitura qualquer, senão com um leitor culto que
maneja as fontes da tradição literária. Exigem uma participação activa do leitor, visto
que oferecem uma pluralidade de interpretações e apoiam-se em modos oblíquos de
expressão (como a alegoria).
Por exemplo, para interpretar de forma correcta a micro-história (poema em prosa) “Nota para um
conto fantástico”, de Jorge Luis Borges, o leitor tem de possuir conhecimentos sobre a Guerra da
Secessão norte-americana, o poeta John Donne, a obra Dom Quixote de La Mancha, etc.:
No Wisconsin e no Texas ou no Alabama as crianças brincam à guerra e os lados são o Norte e o
Sul. Eu sei (todos sabem) que a derrota possui uma dignidade que a ruidosa vitória não merece,
mas também sei imaginar que esse jogo, que abarca mais de um século e um continente,
descobrirá algum dia a arte divina de destecer o tempo ou, como disse Pietro Damiano, de
modificar o passado.
Se isso acontecesse, se no decurso dos complexos jogos o Sul humilhar o Norte, o hoje gravitará
sobre o ontem e os homens de Lee serão vencedores em Gettysburg nos primeiros dias de Julho de
1863 e a mão de Donne poderá terminar o seu poema sobre as transmigrações de uma alma e o
velho fidalgo Alonso Quijano conhecerá o amor de Dulcineia e os oito mil saxões de Hastings
derrotarão aos normandos como antes derrotaram aos noruegueses, e Pitágoras não reconhecerá
num pórtico de Argos o escudo que usou quando foi Euforbo.
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37. | EFEITOS/VANTAGENS DA LEITURA DE MICRO-FICÇÃO
“corrige” os problemas de leitura dos que estão ligados a um único género, quer
seja a novela, o conto, quer a poesia, o ensaio, etc., funcionando como uma
espécie de “anti-vírus” da literatura;
permite, pelo processo de reescrita lúdica/irónica, a aproximação a obras de
referência (os chamados “clássicos”) a partir da acessibilidade do resumo e/ou do
fragmento;
cria ao leitor a possibilidade de reconhecer as formas mais complexas de escrita,
ou seja: humor, ironia, paródia, alusão, alegoria e indeterminação, permitindo-
-lhe, assim, “treinar” a descodificação dos diversos níveis de interpretação textual
(leitura de superfície/leitura(s) de profundidade);
dissolve a distinção entre leitores de textos e criadores de interpretações;
estimula o leitor mais sistemático a que oriente o seu interesse/pesquisa para
terrenos inexplorados, não necessariamente ligados à micro-ficção
“as características da micro-ficção podem ser uma das soluções para o problema
da iliteracia” (José Mário Silva) Com estilos de vida cada vez mais acelerados, as
pessoas podem ler facilmente duas ou três histórias nos transportes públicos. A
micro-ficção também pode ser facilmente difundida por telemóvel, através de
sms’s, ou pela internet, através de e-mails ou redes sociais. 37