1) O documento discute a relação entre ética e religião, analisando as posições de Martinho Lutero, Immanuel Kant e Søren Kierkegaard;
2) Lutero acreditava que as ações morais não tinham consequências na salvação, enquanto Kant via a moral como independente da religião e baseada na razão;
3) Kierkegaard, por meio de Johannes de Silentio, levantou a questão do conflito entre dever ético e obediência religiosa no sacrifício de Isaac.
3. Desde o Eutífron, de Platão, que, nesta relação de ética e religião, se
coloca o famoso dilema: os mandamentos são bons porque Deus os
prescreve ou Deus prescreve-os porque são bons? Na segunda hipótese,
Deus não seria absoluto, já que subordinado a normas e valores
independentes dele. Na primeira, poderia mandar o arbitrário, como
afirmou o voluntarismo medieval: segundo Ockam, "Deus pode ordenar
que a vontade criada o odeie".
Mas o dilema tem solução. O Homem é um animal ético e a moral é
autónoma. Ao contrário dos outros animais, o Homem vem ao mundo por
fazer e tem de fazer-se, realizar-se a si mesmo. E qual é o critério da
ação humana boa senão precisamente a adequada e plena realização do
ser humano? A exigência moral não surge do facto de se ser crente ou
ateu, mas da condição humana de querer ser pessoa humana autêntica e
cabal, plenamente realizada, de tal modo que o teólogo Andrés Torres
Queiruga pode escrever, com razão: se se pensar fundo, "não existe nada
que no nível moral deva fazer um crente e não um ateu, contanto que
tanto um como o outro queiram ser honestos". Se dissentirem em muitas
opções, isso não acontecerá propriamente por motivos religiosos, mas
morais, devido à dificuldade em saber qual é muitas vezes a decisão
correta. Em 05 de setembro de 2009
4. Então, por paradoxal que pareça, autonomia e teosofia coincidem.
De facto, se se aceitar, como é o caso da perspectiva cristã, que Deus
cria por amor, o que é que Deus pode querer e mandar senão
precisamente a adequada e plena realização da pessoa humana? Na
criação por amor, o único interesse de Deus só pode ser o Homem vivo,
realizado e feliz.
Mesmo que não possam ser separadas, moral e religião distinguem-se. A
prova está em que se pode ser não religioso e moral: não é verdade
que, "se Deus não existir, tudo é permitido". Por outro lado, o crente
também sabe que a religião, embora a implique, não se reduz à moral.
De qualquer modo, a religião pode contribuir para a moral, de múltiplos
modos. A religião autêntica deverá constituir mais um impulso para a
ação ética. Quando se pergunta pelo fundamento último da moral na
sua incondicionalidade, é difícil não ser confrontado com a religião e o
absoluto de Deus. Depois, a religião dá horizonte de futuro, mesmo
quando se falhou e se precisa de perdão e novo alento - há uma
personagem de Hemingway que, a um dado momento, pergunta,
perplexa: agora que não há Deus, quem nos perdoará? -, e abre à
esperança de sentido último
5. A relação entre religião e moral tem grande importância na vida do
homem, mas a história do pensamento mostra que ela pode ser alvo de
sérias confusões. Este artigo tentará esclarecer algumas delas.
Martinho Lutero negava qualquer importância à moral no que tange ao
destino eterno do ser humano. É a consequência lógica da sua tese de
que sola fiel [“apenas pela fé”] o homem chega à salvação: “Assim, a
alma é justificada somente pela fé e não por obra alguma...” O
ensinamento de que as ações morais têm consequências na vida terrena
do homem, mas não na sua salvação, tende a produzir graves efeitos na
sua religiosidade. Lutero escreve o seguinte: “Portanto, é cega e
perigosa a doutrina que ensina que os mandamentos devem ser
cumpridos por meio de obras”. É uma tese tão crucial aos olhos do
Reformador que ele se vê forçado a rejeitar a afirmação de São Tiago de
que a fé sem obras é morta (Tg 2, 26). Rejeitar a Epístola de um dos
Apóstolos (ele a considerava uma Epístola de pouco valor) é uma atitude
bastante ousada por parte de Lutero, mas coerente com a convicção de
que a sua doutrina não poderia ser julgada por ninguém, nem mesmo
pelos anjos. Tal declaração é praticamente uma autocondenação. Porque
é uma glória para o homem submeter os seus juízos pessoais a Deus e
àquelas pessoas a quem Deus concedeu autoridade nesta terra. Pobre do
homem que se autoproclama a autoridade suprema.
6. Esse divórcio entre a ética e a religião ganhou mais e mais atualidade com
o passar do tempo. Há sociedades contemporâneas que afirmam possuir
uma ética sem religião. Há “sociedades ético-culturais” que se orgulham de
ensinar uma bondade moral sem qualquer referência a Deus. O discurso da
moda é de que religião e moral são duas esferas totalmente independentes
que devem ser escrupulosamente mantidas separadas. Um argumento
popular a favor disso é o fato de muitos ateus se destacarem pela sua
moralidade, ao passo que muitas pessoas religiosas frequentemente
quebram as leis morais. Esse raciocínio pede uma explicação: é verdade
(como Santo Agostinho menciona na sua Cidade de Deus) que algumas
virtudes naturais podem ser encontradas entre os pagãos e os descrentes.
Um pagão pode ser corajoso e justo. Infelizmente, também é verdade que
há muitos cristãos que pecam contra os Dez Mandamentos todos os dias.
Obviamente, não pecam por serem crentes, mas por fraqueza ou rebelião;
falham em seguir as leis de Deus, mesmo acreditando na existência dele.
Hoje, também está na moda raciocinar da seguinte maneira: injetar
religião na ética é abrir a porta a uma série de conflitos e discordâncias.
Todos os homens sensatos concordam com a validade das virtudes naturais,
como a justiça, a coragem, a temperança e a prudência. A religião é algo
pessoal e, portanto, essencialmente subjetivo; a sua validade depende das
“necessidades psicológicas” do individuo e ela não pode arrogar para si
consenso e validade universais.
7. As sociedades éticas contemporâneas, porém, ainda não conseguiram
provar a existência de um consenso universal acerca das virtudes naturais.
Suponhamos que todos os homens concordem que deve haver justiça e
lealdade no mundo. Isso não significa que eles concordarão sobre o que é
justo e leal.
Ao passo que Lutero “vilipendiou” a moral, a vítima de Jean-Jacques
Rousseau e Immanuel Kant foi a religião. A posição de Kant está claramente
marcada no seu livro A religião dentro dos limites da razão pura. Já o título
é bastante revelador. Kant escreve: “A moral não se fundamenta nem na
ideia de um outro Ser acima do homem, do qual ele apreenderia o seu
dever, nem em qualquer outro incentivo para o cumprimento do dever que
não seja a lei em si”. Trocando em miúdos: podemos conhecer o nosso
dever sem a religião, porque a lei moral pode ser claramente percebida
pela razão humana sem o auxilio da revelação. Por conseguinte, a moral
não precisa da religião para nada. Não precisa de nenhum outro fim senão
ela própria para demandar a nossa obediência. Na verdade, segundo Kant,
o homem dá-se a si próprio uma lei moral. Esta ideia inspirou um vivo
sarcasmo a Søren Kierkegaard: “Kant dizia que o homem era a sua própria
lei, i.e., prendia-se à lei que ele deu a si próprio. Isso é tão penoso quanto
os golpes que Sancho Pança desferia no próprio traseiro”. Todavia, Kant
diz-nos que “objetivamente há uma ligação entre a moral e a religião”.
Toda a questão aí está pendente da definição que Kant fornece de religião
8. Ele a vê como a base metafísica da moral, mas apressa-se a dizer que se
está referindo à “religião puramente moral da razão”. O seu racionalismo
rejeita todas as formas de revelação. Não é de surpreender que haja uma
ligação entre a moral e a religião, pois esta última está exclusivamente
baseada na razão. Kant chega a usar a palavra “fé” e a falar da fé do culto
divino, mas imediatamente nos recorda que só a “fé moral da religião”
aprimora a alma. Adoração, oração – qualquer ato sobrenatural deve ser
descartado como insignificante.
Não podemos deixar de ter a impressão de que, no século XVIII, o século
do racionalismo, era considerado “adequado” mencionar a religião,
embora essa “religião” estivesse despojada de qualquer o seu conteúdo
propriamente religioso. Pelo mesmo motivo, ateus radicais – tanto na
Alemanha como mais tarde no México – batizavam os seus filhos! Hitler
nunca hesitou em mencionar Deus quando julgava necessário. Mais de um
alemão ingênuo foi levado a crer que, no fim das contas, o Führer era um
bom cristão, embora a palavra “Deus” não passasse de uma ferramenta de
propaganda na boca do ditador.
Por viver numa sociedade cristã, Kant (oficialmente protestante) estava
bem familiarizado com o vocabulário religioso: é por isso que encontramos
sob a sua pena palavras como “fé”, “revelação” e “milagres”. Mas uma
leitura cuidadosa dos seus textos deixa claríssimo que, para ele, os dois
assuntos-chave são a moral e a razão. É a razão que diz ao homem qual é o
seu dever, e é a obediência ao dever que o torna religioso.
9. Somente a religião da razão seria digna da nossa fidelidade, porque seria a
única religião que poderia dizer-se universal e convencer todos os homens,
evitando assim discussões inúteis que jamais conduziriam a qualquer
certeza. Em princípio, Lutero e Kant parecem adotar posições contrárias.
Para o Reformador, a moralidade do homem não possui consequência na
sua salvação. Para Kant, é a única coisa que realmente importa. Contudo,
um exame mais aprofundado da questão leva-nos à conclusão
surpreendente de que eles representam duas facetas de um mesmo erro –
um fenômeno que frequentemente se dá na história da filosofia. Em
ambos os casos, tanto a essência da moral como a da religião estão
distorcidas e mal-entendidas.
Nesse contexto, vale a pena referir uma observação feita por Johannes de
Silentio (um pseudônimo de Kierkegaard que, como o filósofo dirá mais
tarde, não reflete o seu ponto de vista). Em Temor e Tremor, discute a
passagem bíblica em que Deus ordena a Abraão que sacrifique o seu único
filho, Isaac, o filho da promessa. O autor descreve essa situação dramática
admiravelmente. Abraão obedece com o coração partido; ele “crê”, mas
esse ato de obediência crucifica a sua razão, que lhe diz: “Não matarás”.
Isaac, sem suspeitar do destino que o aguarda, pergunta ingenuamente ao
pai onde está a vítima que será sacrificada, e o pai diz-lhe que Deus
proverá a vítima. Todos lemos esta história da Bíblia sabendo que ela
acaba bem. Mas essa era precisamente a prova de Abraão. Ele realmente
acreditava que ia ter de tirar a vida do seu filho amado.
10. A proibição do assassinato é um dos mandamentos morais mais elementares
e é (ou costumava ser) universalmente aceito. Ao obedecer a Deus, Abraão
não se tornaria nesse caso um assassino, alguém que, conhecendo a lei
moral, a quebra porque assim lhe é pedido? De Silentio descreveu com
palavras pungentes o drama em que se encontrava o pai da fé. Isaac é a sua
alegria e ele sabe que o homem está proibido de assassinar. É um dilema de
rasgar o coração. Por um lado, quer obedecer a uma ordem de Deus; por
outro, sabe que o assassinato é um crime abominável. Com o coração
despedaçado, Abraão escolhe obedecer. Todos conhecemos o final feliz da
história, mas segundo de Silentio, a experiência foi tão devastadora para
Abraão que desse dia em diante o Patriarca “não soube mais o que era
alegria”. De Silencio incita-nos a examinar uma questão crucial: há um
conflito inevitável entre o caráter absoluto da lei moral e uma ordem
pessoal de Deus a um individuo, isto é, um conflito inevitável entre ética e
religião? Abraão sabe que não deve desobedecer a Deus e sabe que não deve
cometer um assassinato. Está dividido entre dois deveres: uma obrigação
ética e outra religiosa. Aqueles que conhecem o pensamento de Kierkegaard
sabem que ele adora desafiar-nos a aprofundar na nossa fé; força-nos a
atingir um nível de profundidade verdadeiramente religioso. A posição
sustentada por De Silentio põe-nos a seguinte questão: a obediência a Deus
é uma “suspensão da ética” em favor da religião? Em outras palavras: há
uma dicotomia total entre o ético e o religioso? Não estariam separados por
um abismo que pode ser superado unicamente com um “salto da fé”? O que
para a moral constitui um crime tornar-se-ia para a religião um ato heroico
de fé?
11. Voltando a De Silentio, fica claro agora que a lei moral não foi suspensa
quando Abraão se dispôs a cumprir a ordem de Deus. Embora esse
mandamento tenha sido dirigido pessoalmente a Abraão, todos os homens
deveriam estar dispostos a sacrificar aquilo que mais amam se assim Deus
lho pedir. O caso de Abraão é único, mas todos os homens – encontrando-se
numa situação idêntica – deveriam responder da mesma maneira. A história
de Abraão é claramente uma figura de Deus que sacrifica o seu Filho para
nos salvar. Há muitos modos de cometer um erro intelectual – alguns muitas
vezes “bem intencionados”. Um exemplo disto são as pessoas que afirmam
corretamente haver uma relação entre moral e religião, mas que não
atinam com o tipo de relação que é. Guilherme de Ockham, um frade
franciscano que viveu no século XIV, diz que o bem moral significa
simplesmente “ordenado por Deus”, ao passo que seria moralmente mau
tudo aquilo que Deus proíbe. Em outras palavras: a justiça seria moralmente
boa porque Deus nos manda ser justos. Mas a vontade divina não pode
sofrer nenhuma limitação, porque Deus é onipotente – uma perfeição à qual
Ockham dá um lugar de honra entre todos os atributos divinos. Ele poderia
muito bem ter-nos mandado ser injustos, e então a injustiça seria uma
obrigação do homem. “Se Deus tivesse ordenado a todos que fornicassem,
isso seria não apenas lícito, mas meritório”. É evidente que semelhante
raciocínio está fora dos eixos. As intenções de Ockham são até “piedosas”:
esse franciscano convenceu-se de que, enfatizando a onipotência de Deus
(Deus pode fazer o que quiser), aumenta em nós a admiração por essa
perfeição divina.
12. Na realidade, a ideia não apenas falhou, como acabou por criar a imagem
de um Deus déspota e tirano cuja vontade toma decisões arbitrárias a que o
homem deve obedecer cegamente. O aspecto luminoso da lei natural é
secamente negado. Não compreendemos – não podemos compreender – os
mandamentos de Deus; temos somente que lhes obedecer. Ockham parece
cego para o fato de que as perfeições morais pertencem à própria essência
de Deus. Deus não é apenas bom, mas é a própria Bondade; não é apenas
justo, mas a própria Justiça. Ockham ignora o fato de que os valores morais
estão enraizados na própria natureza de Deus; não são, portanto,
“decisões” do arbítrio divino. É crucial para a ética fazer distinguir entre
valores morais e mandamentos positivos. A própria essência dos primeiros
revela a sua bondade intrínseca; já os segundos são ordens emitidas por
uma autoridade legítima. Assim, qualquer mandamento positivo que
contradiga a lei moral não deve ser obedecido. Evidentemente, um
mandamento positivo vindo de Deus jamais estará em conflito com a lei
moral arraigada na própria natureza divina. O problema aparece quando é
uma autoridade humana que emite uma ordem que se choca com a lei
moral. É doloroso pensar que um frade católico tenha sido vítima de
tamanhas confusões. Há ainda outras maneiras de compreender
erradamente a relação entre religião e ética. Uma delas é afirmar que a
mente humana – obscurecida pelo pecado original – seria incapaz de
distinguir entre o bem e o mal morais se a religião não lhe abrisse os olhos.
Como então poderia Sócrates ter afirmado (como escreve Platão em Górgias
13. Que é melhor para o homem padecer uma injustiça que cometê-la? Esse
nobre pagão não gozava da luz da revelação, mas mesmo assim compreendeu
que o mal moral é o pior de todos os males e preferiu aceitar a morte a
comprometer os seus princípios éticos fundamentais. Também São Paulo nos
diz que a existência de Deus pode ser claramente percebida por meio das
coisas que Ele criou, o que implica que o homem é capaz de distinguir o bem
do mal, a verdade do erro. A natureza humana foi obscurecida pelo pecado
original, mas obscurecida não significa corrompida como afirmam os
calvinistas. Homens de boa vontade conseguem perceber que algumas coisas
são essencialmente más e que devem ser sempre rejeitadas. Chamamos a isso
lei natural, constantemente desafiada na nossa sociedade por um relativismo
que rejeita explicitamente a objetividade da verdade e dos valores morais. O
homem moderno é gravemente alérgico a eles, porque exigem a sua
submissão, porque supõem deveres que são vistos como uma limitação do
“direito de escolha”. Mandamentos não são apenas indesejados, mas
rejeitados. Outros dirão que sem a religião a ética estaria necessariamente
aleijada, dada a relutância do homem em seguir a lei moral. O conceito de
um legislador divino faz-se necessário por causa da fraqueza humana; caso
contrário, seria improvável que ele seguisse os ditames da lei moral. Platão –
esse nobre e ilustre pagão – escreveu no seu último diálogo, As leis, que o ser
humano não está particularmente preocupado em aprimorar-se moralmente e
que prefere a si mesmo à verdade. A tese defendida é que o homem vai
inevitavelmente quebrar os princípios da lei moral se não souber que uma
vida imoral conduz ao castigo eterno, se o medo do castigo não sobrepujar a
sua repugnância pelas ações corretas.
14. As crenças religiosas são indispensáveis para convencer o homem a agir
moralmente. Mas agir moralmente só por medo do castigo com certeza não é uma
motivação verdadeiramente ética. Vamos examinar agora qual é realmente a
ligação entre religião e ética. Tanto Kierkegaard e Dietrich von Hildebrand
afirmam enfaticamente que a ética cristã é a única ética verdadeira, válida para
todas as pessoas em todos os tempos, mesmo que, sem culpa da sua parte, essas
pessoas nunca a tenham conhecido. Para tornar mais claro o ponto de vista desses
dois pensadores, é necessário fazer uma distinção entre moral natural e moral
sobrenatural. A primeira, perceptível para pagão de boa vontade, como Sócrates,
diz ao homem clara e inequivocamente que ele deve ser justo, por causa da
bondade intrínseca dessa virtude; diz que deve respeitar a vida e os bens alheios.
Essa ética (frequentemente referida como lei natural) é válida e deve ser seguida.
Além do mais, a necessidade de segui-la pode ser percebida sem o auxílio de
qualquer revelação religiosa. Isto não quer dizer, contudo, que a ética natural não
tenha nenhuma conexão com a religião: pois todas as coisas boas vêm de Deus e
estão fundamentadas nele. Mas bons pagãos – como Sócrates, cujo conhecimento
de Deus era vago – podem perceber os valores morais e levar uma vida moral.
Sócrates certamente não negava a existência de uma conexão entre a ética e a
religião, mas não via essa conexão com clareza. É verdade que alguns ateus
respeitam muitos dos valores morais fundamentais: eu tive um aluno, ateu
declarado, que condenava o aborto como um crime abominável. A ética natural,
todavia, é uma ética bastante incompleta. Há toda uma dimensão da moralidade
que não pode ser percebida a partir de um plano puramente natural. A caridade e
a humildade, como disse Santo Agostinho, eram virtudes totalmente desconhecidas
para os pagãos.
15. Mesmo um bom pagão não podia conceber a ideia de amar os inimigos e
fazer o bem aos que o perseguiam. Confúcio considerava semelhante
mandamento como algo ilógico: amar as pessoas más contraria a razão
humana. Para um cristão, trata-se de um dever, como sublinha Kierkegaard
no seu livro Obras de Amor. Não é somente um conselho, é um
mandamento. Cristo não disse: “Amai os vossos inimigos se eles forem
amáveis”, mas: Amai os vossos inimigos(Mt 5, 44). Como convencer um
pagão de que deve amar um homem que matou a sua mulher e filhos, um
homem que é brutal, inclemente e preocupado apenas com satisfazer os
seus caprichos? Apenas quando temos acesso à revelação cristã, e
praticamos um ato de fé, é que vemos o próximo como um filho de Deus
feito à sua imagem e semelhança, um ser pelo qual Cristo quis padecer e
morrer; só assim esse mandamento “ilógico” revelará a sua beleza e
sublimidade. Além disso, a boa vontade sozinha não basta: o homem
precisa da ajuda de Deus, que se chama graça. Embora um bom pagão seja
capaz de possuir a virtude da modéstia – i.e. uma consciência das suas
limitações –, dificilmente será humilde. Isso porque a humildade só pode
florescer no coração de homem que está diante da infinita santidade de
Deus e das suas fraquezas e iniquidades pessoais. É por isso que, ao falar
com Deus, Abraão diz: Não leveis a mal, se ainda ouso falar ao meu Senhor,
embora seja eu pó e cinza (Gn 18, 27). Apenas a revelação judaico-cristã,
particularmente o Novo Testamento, abriu completamente os olhos do
homem para a verdade da sua condição metafísica: uma criatura
desprotegida, um pecador cuja alma precisa constantemente ser limpa.
16. A obra-prima de Dietrich von Hildebrand, A nossa transformação em Cristo,
é inteiramente dedicada a estudar as virtudes que só podem florescer na
alma humana sobre o terreno da revelação. É, porém, crucial compreender
que essa “nova” moral, a que chamamos “moral sobrenatural”, de forma
alguma revoga a moral natural. Longe disso. A revelação não só lhe dá o seu
fundamento metafísico, como a completa, aperfeiçoa e conduz à sua plena
realização. A moral natural não é apenas um tipo “inferior” de moral, mas
uma ética que carrega marcas de imperfeição e incompletude. A justiça sem
a caridade pode ser dura e, em última análise, injusta. No entanto, quando
um homem que sofre de ignorância invencível segue o melhor que pode os
ditames da ética natural, sem sequer suspeitar da existência de uma ética
superior baseada na revelação, pode ser considerado uma pessoa
moralmente boa num sentido limitado do termo. Por outro lado, uma ética
natural que se proclamasse a ética perfeita e absoluta seria, de acordo com
Santo Agostinho, uma ética que cultiva “vícios brilhantes”. Que diferença
entre a atitude de Sócrates, que estava aberto ao sobrenatural, mesmo sem
o conhecer, e as organizações éticas atuais que protestam orgulhosamente
que a ética deve ser separada da religião e que o homem não precisa de
Deus para ser bom! Um outro exemplo está na ordem do dia. Em As Leis,
Platão condena o homossexualismo nos piores termos possíveis; Aristóteles
rejeita-o como um “comportamento bestial”, mas nenhum dos dois estava
em condições de compreender a sublime virtude da pureza –uma resposta
reverente a uma esfera que pertence a Deus, uma esfera em que o homem
é convidado a colaborar com Deus na procriação.
17. Deus está necessariamente envolvido sempre que a palavra criação aparece,
porque somente Ele pode criar. Quando a ética natural opta por rejeitar
qualquer ligação com Deus, acaba por deixar à mostra as suas fraquezas e
imperfeições. A moral natural exige um complemento. Quando afirma ser a
chave da perfeição moral, estará inevitavelmente aberta ao farisaísmo, ao
risco da auto complacência (“Cumpri com o meu dever; fiz o que precisava
fazer. Posso orgulhar-me de mim mesmo; ninguém pode censurar-me em
nada. Posso andar de cabeça erguida”). Como essa atitude está distante do
que o Evangelho nos ensina: mesmo depois de ter cumprido com os seus
deveres, um homem continua a ser um servo inútil (cfr. Lc 17, 10).
Aristóteles foi sem dúvida um homem moral. A sua Ética a Nicômaco contém
inúmeras intuições valiosas. Mas qualquer pensador que erija a felicidade
como o maior dos bens – por mais profunda que seja essa ideia, pois percebe
que o homem foi criado para a felicidade e que é legítimo desejar ser feliz –
inevitavelmente cairá no mesmo erro cometido pelo Estagiaria e assumirá
que tudo o que fazemos é, portanto, um meio para alcançar esse fim.
Que longe está esse raciocínio daquela afirmação do Evangelho: Buscai
primeiro o reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será acrescentado
(Mt 6, 33). A metafísica aristotélica exclui qualquer tipo de relação entre
Deus e o homem, porque a Causa Primeira não saberia da nossa existência, e
nega, portanto, qualquer relação entre a religião e a ética. Isso coloca-o
bem distante de Santo Agostinho, que escreveu logo no começo das suas
Confissões: “Criaste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração está inquieto
enquanto não descansar em ti”
18. A felicidade tão almejada por Aristóteles, e que ele erroneamente definiu
como o maior dos bens, só pode ser encontrada pelos que amam a Deus e o
seguem antes de qualquer outra coisa. Ele é a nossa felicidade e bem-
aventurança. Quando a ética prescinde de qualquer contato com a religião
– como é moda na nossa sociedade decadente –, torna-se um caricatura de
qualquer ética verdadeira. Aliás, quantos são os cristãos que apreciam
verdadeiramente o dom da revelação, que ordena que todos sejam
perfeitos como o Pai celestial é perfeito (cfr. Mt 5, 48)? É esta e somente
esta a ética perfeita, que só pode ser alcançada se colaborarmos com a
graça. É o que nos diz São Paulo: Tudo posso naquele que me dá forças (Fl
4, 13).