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H U B E R T O R O H D E N
P A S C A L
O HOMEM QUE APELOU DA
RAZÃO PARA O CORAÇÃO
E DE ROMA PARA DEUS
SEGUNDA EDIÇÃO
UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA.
S. PAULO
1956
Terceira Edição
Alvorada Editora e Livraria Ltda
1981
MEMÓRIA ROHDEN
3
"Minhas Cartas foram condenadas
em Roma, mas o que nelas condenei
está condenado no céu —
apelo para o teu tribunal, Senhor
Jesus!"
Pascal
4
Índice
Advertência 05
Vida e Obra de Huberto Rohden 06
Prefácio para a Terceira Edição 08
Tomando Perspectiva 10
Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18
Lampejos de Gênio 19
Os Eremitas de Port-Royal 21
Encontro Pessoal com Deus 23
Conflito Entre Duas Humanidades 28
Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32
Em Torno das "Lettres Provinciales" 34
Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37
Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40
Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49
A Casuística em Nossos Dias 52
"Meu Reino não é Deste Mundo" 55
Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58
As Razões do Coração que a Razão Ignora 63
Tragédia Metafísica do Homem 65
Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70
Diluindo-se em Deus 74
Texto da orelha da 2ª edição 80
Relação das Obras de Huberto Rohden 81
5
Advertência
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno
criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque
deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a
transição de uma existência para outra existência.
O poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de
gado.
Há entre os homens gênios creadores embora não sejam talvez criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas
se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
6
Huberto Rohden, Vida e Obra
Nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Fez estudos no Rio Grande do
Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em Universidades da Europa —
Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália).
De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.
Publicou mais de 60 (sessenta) obras sobre ciência, filosofia e religião, editadas pela
Editora Vozes (Petrópolis), União Cultural (São Paulo), Editora Globo (Porto Alegre),
Livraria Freitas Bastos (Rio de Janeiro), Fundação Alvorada e outras editoras. Vários
livros de Huberto Rohden foram traduzidos em outras línguas, inclusive o Esperanto;
alguns existem em Braille, para institutos de cegos.
Um registro de suas brilhantes palestras foi preservado por alguns de seus
alunos em forma de gravações – muitas delas estão à disposição na internet.
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.
De 1945 a 1946 teve uma Bolsa de estudos para Pesquisas Científicas, na
Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert
Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia
Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do
próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística.
Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de
Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.
Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American
Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para português. Ainda na American University, de Washington,
fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio
cultural entre o Brasil e os Estados Unidos, sendo então, seu presidente honorário, o
senhor Nereu Ramos.
Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o
Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda,
diretor hindu desse ashram.
Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi
convidado para fazer parte do corpo docente da nova Universidade Internacional
Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia
Universal e Religiões Comparadas; mas, devido à guerra na Coreia, a Universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.
Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,
com a finalidade de manter cursos permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro e
Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de Retiro
Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil.
Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual
pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de
yoguis na Índia.
Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre
autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.
7
Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, onde
permanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nos
textos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato
com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.
Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação
regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente,
a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração
e orientação cultural.
Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se
em quatro grandes segmentos:
1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em São
Paulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;
2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados,
periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos;
3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros e
cassetes, a Filosofia Univérsica;
4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham
na consolidação e continuação da sua obra educacional.
A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma
clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu
deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em
estado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”.
Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de
fé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.
8
Prefácio para a Terceira Edição
Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-se
mesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico
que parece superado em nosso tempo.
Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve
contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17.
Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um
católico de pura catolicidade, como poucos.
E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa
ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - para
não dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus?
Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confunde
catolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical
com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católico-
clerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando na
realidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê a
continuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 de
novembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defende
o seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desse
ideal pela teologia clerical.
Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida na
austeridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madre
superiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento da
mensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamente
ascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidade
contra o catolicismo liberal que dominava a época.
Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a
pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica venerava
Pascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer que
ele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavam
repletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro.
Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viu
nos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelho
do Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e a
sátira da sua luta...
Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continua
desde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da
Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O Mestre disse a Pilatos que o
reino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que são
discípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhuma
espécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencial
entre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer
outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela
política financeira de certa teologia.
9
De maneira que a polêmica de Pascal não é uma atitude anacrônica fora de
época. Hoje, mais do que nunca, a mensagem do Cristo está ameaçada pela
deturpação dos homens, na política, no cinema, na literatura, na arte, em toda a vida
social da cristandade. Pode a maneira dessa deturpação ser mudada, mas a
deturpação continua a ser a mesma e é cada vez mais perversa e sorrateira.
Hoje o Cristo é mais atraiçoado pelo beijo de Judas do que pela violência das
palavras — “Aquele a quem eu beijar, esse é o tal, prendei-o!”
Tornamos, pois, a reeditar este livro, na intenção de alertar os leitores sinceros
contra o perigo perene de falsificações da mensagem do Cristo — seja por Judas
Iscariotes, seja por Caifás ou Pilatos. Todos os nossos livros, algumas dezenas, têm a
mesma finalidade, reconhecida ou combatida.
Neste ocaso do século 20, em que vivemos, é de imperiosa necessidade distinguir o
trigo do joio, por mais que eles se pareçam, externa-mente; a cinza de Babel da camuflagem
se discrimina cada vez mais nitidamente, em puros brancos ou puros pretos.
Se for necessário apelar do intelecto para a razão, ou de Roma para Deus, façamo-lo
com a coragem e honestidade de Pascal.
10
Tomando Perspectiva
O racionalismo agnóstico nunca perdoará a um dos maiores vultos da ciência o
"crime" de ter apelado da razão para a fé; de ter declarado em público e raso a
falência da filosofia intelectualista em face dos problemas centrais da vida humana.
Se um espírito medíocre tivesse assumido semelhante atitude, lançá-la-iam os
agnósticos à conta de "fraqueza intelectual"; mas, quando essa atitude é a de um
espírito que assombrou o mundo com a potência do seu gênio, é enorme a
perplexidade dos que não crêem na existência de realidades espirituais.
Na impossibilidade de negar a grandeza intelectual do autor dos "Pensées",
resolveram muitos dos seus inimigos tachá-lo de "anormal c patológico". É possível
que eles tenham razão; resta apenas saber o que é que se entende por "homem
normal". Mais ou menos todos os grandes gênios da humanidade foram considerados
loucos pelos "homens normais" do seu tempo; e o maior de todos foi por seus
contemporâneos chamado "louco", "aliado de Belzebu", "possesso do demônio"...
Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por
elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de outras terras
onde não reinavam esses costumes, andando normalmente com as duas pernas.
Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse "homem anormal". E,
quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o modo de andar dele era
natural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a vaia, porque, além de não
saber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem anormal" deu-se pressa em
abandonar a ilha dos "homens normais", porque tinha amor à sua vida...
Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal:
aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único — ou
aquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual?
(1) Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos
"inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé.
***
"Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente.
É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em
que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico
e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrou
Pascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro
pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidade
de Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grande
descrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição
profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosa
da época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um
paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardente
discípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja —
vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele,
sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua a
amar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem o
Cristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse
11
Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens que
casualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele uma
realidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Ele
sabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementos
humanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e
subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidade
divina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, para
além das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis e
organizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedade
eclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja.
É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascal
escreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o que
nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!"
O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios de
Pascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1).
(1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual da
humanidade".
***
Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual
da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor
do que nós.
Ele é, a bem dizer um crente descrente...
Um dogmático cético...
Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o
procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade...
Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões do
coração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece...
Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma perene
agonia metafísica...
Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do
Infinito...
Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o
intelecto e a liberdade na ara da graça divina...
Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça.
Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior,
porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitem
a entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza e
humildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, no
entanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, mas
uma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... As
belezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser as
longínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade
profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna,
muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?
12
Discípulo devotado de Agostinho, herdou Pascal toda a inquietude metafísica
do grande pensador e místico africano, mas não lhe herdou, na mesma medida, a paz
de espírito que o filho de Mônica gozou depois da sua conversão.
Tão intensa era a sua fé que pediu a Deus dez anos de saúde para poder
escrever uma grande apologia do Cristianismo; mas Deus como ele diz
resignadamente, só lhe deu quatro anos de enfermidade; e, assim, só temos da
planejada obra um esboço, que, mesmo nessa forma fragmentária, é um dos maiores
monumentos da literatura cristã de todos os séculos.
***
Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que
andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que não
chegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade?
Não o sabemos — nem ele o sabia...
Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades do
mundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de uma
certeza espiritual?
"Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardente
desejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio,
Senhor - ajuda a minha incredulidade!"
Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal de
contas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma
partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer do
que não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns
poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no
"descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é
preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perda
eterna.
Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter
plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito
pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coração
adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menos
razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ou
suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do
coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eterno
litígio em torno dos problemas centrais da vida humana.
(1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vive
como se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea que
não pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é
pagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Esse
totalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres
Provinciales".
O intelecto é um aspecto parcial do ser humano - o coração é a totalidade
panorâmica do nosso ser. Como poderia Deus, a plenitude infinita, ser objeto de uma
faculdade tão finita como é a nossa inteligência?
13
Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva do
coração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deus
incompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata
propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coração
e Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode
romper e revelar Deus face a face.
Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilha
estradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Natureza
externa e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário,
escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrás
do misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade...
A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que a
inteligência não entende, e, não raro, entende às avessas...
Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem,
porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a
outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências,
os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumes
se perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios o
caráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para o
coração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia -
delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa deste
véu...
A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chega
invariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não consegue
transpor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu
caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de
pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão para
atravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é um
movimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elos
concatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha;
chegou a um "ponto morto".
O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe
precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está do outro lado, não
se sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo de
chegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele
realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como...
A inteligência é analítica — o coração é intuitivo...
Aquela marcha — este voa...
A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima no
mundo da mística...
***
Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões do
coração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a
14
ciência das matemáticas e um apuradíssimo senso da objetividade imediata, não podia
deixar de sofrer acerbamente a sua fé, preciosamente porque a vivia profundamente.
Uma grande realidade espiritual vivida é por força um grande sofrimento.
Quem não sofre a sua fé não a vive.
Só uma fé dolorosamente sofrida é uma fé realmente vivida.
A fé não é um teorema matemático que possa ser integralmente demonstrado,
sem deixar margem para o contrário. Se das coisas espirituais tivéssemos evidência
matemática — que mérito haveria em crer? Por que teria Jesus dito: "Quem crer será
salvo — quem não crer será condenado"? Se do crer ao não crer vai um abismo tão
profundo como a distância entre o céu e o inferno, não é isto prova de que a fé não
pode ser um simples ato da inteligência, como as verdades da física ou matemática?
Para que haja fé é necessário que haja margem para o contrário. O crer supõe
a possibilidade do não-crer.
Eu não creio que duas vezes dois é igual a quatro - isto eu sei.
O que, em última análise, leva o homem a crer, ou a não crer é a sua vontade, e
não a inteligência. Esta prepara apenas o caminho, mas não dá o passo último e
decisivo para a fé.
Em última análise, o homem crê porque quer crer.
Este seu querer não é ulteriormente analisável. O querer é, por assim dizer, um
ato hermeticamente fechado em si mesmo, indevassável, inescrutável. Não tem
explicação fora de si mesmo. Gira sobre seu próprio eixo. É independente, autônomo.
Quero — porque quero! É certo que há motivos externos para esse querer, motivos
que atuam sobre a minha decisão e escolha; mas não há motivos rigorosamente
determinantes. Sejam quais e quantos forem os motivos externos que sobre mim
atuem, em última análise, nenhum deles, nem a soma de todos eles determina o
caráter do meu ato volitivo. E, em face de todos os motivos pró e contra, tenho a
consciência nítida de poder responder com um sim ou com um não a toda essa
ofensiva dos motivos externos. Eu é que sou o dono e árbitro único do meu ato
volitivo. Sou o único possuidor da chave para abrir e fechar a porta da minha
vontade.
E isto não é ilusão da minha parte, como querem os deterministas. Se a
consciência me ilude — quem me pode desiludir? A consciência é a última instância,
o Supremo Tribunal; mia sentença é inapelável! Se não posso confiar na minha
consciência — em quem é que hei de confiar? Se quisermos viver e pensar, temos de
pensar, temos de admitir necessariamente que a nossa consciência seja condutora, e
não sedutora — a não ser que queiramos arvorar a desordem, o caos e a mentira, em
supremos fatores do Universo e fazer de Deus o rei dos tira-nos e impostores!
A minha consciência me diz que sou livre nos atos volitivos do Eu — logo, sou
livre! Falou a suprema instância! Sentença inapelável!
O livre-arbítrio é a quintessência do ser humano. É o homem mesmo no mais
profundo quê da sua natureza. A liberdade do querer nos faz propriamente homens;
exime-nos, liberta-nos dessa mesma cadeia de casualidades férreas que entretece
todos os fenômenos do Universo, sem excetuar a nossa própria inteligência. No livre-
arbítrio está a Carta-Magna da minha nobreza humana, a minha maior semelhança
com Deus.
15
Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O ato
livre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe.
Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele o
autor responsável por sua fé.
É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer!
Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa
vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismo
bastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que nele
existe.
Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) do
Cristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando
podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau.
Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é
livre.
Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que
o crer é bom, e o descrer é mau?
É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela
parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coração
que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que o
descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar o
todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem e
retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade,
caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça,
violência, crueldade, exploração, desassossego.
***
Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ou
santo. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingir-
lhe apenas as faculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo,
apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central do
seu Eu, do íntimo quê do seu espírito.
O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é.
A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial.
O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna —
o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não se
distrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escura
as cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente:
viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada mais
o interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como ele
sabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus são
o culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista e
anti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos do
intelecto pela mística.
16
Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornava
ele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa
"cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes
profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem que
empreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu...
A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tido
vida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi do
mundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxo
das coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas correm
ao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elas
nos abandonam, porque não creem em nós. .
Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam os
espíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - o
heliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer
obstáculo...
***
Tão pouco interessava a Pascal a celebridade, que nem mesmo sistematizou,
nem deu nome à estupenda obra que os pósteros, depois de sua morte, compilaram de
mais de um miIheiro de farrapos de papel, a que puseram o nome de "Pensées".
Essa obra fragmentária é um alimento e uma medicina para os incrédulos e
cépticos do nome espiritual. No fundo, tanto os "Pensées" como as "Lettres
Providenciales" são uma tremenda ofensiva do homem-cristal contra o homem-argila,
possivelmente uma ofensiva do "Pascal convertido" contra o "Pascal não convertido".
Nada combatemos tanto nos outros como aquilo que nós mesmos fomos um dia e cuja
infelicidade sentimos dolorosamente. Nos casuístas e nos incrédulos vê Pascal o seu
próprio Eu antigo, profano, amorfo, sua falta de forma de atitude espiritual definida -
e vibrou tremendos golpes contra seu pseudo-Eu, que, nesse tempo, felizmente, já era
um ex-Eu...
Pascal não tolera em si nem nos outros o homem-argila, o homem-molusco, o
homem-mingau, o homem-furtacor, penumbrista, acomodatício, político, esses seres
neutros e incolores que Dante descreveu no 3º cântico do "Inferno" e dos quais diz o
seu mentor Virgílio: "Não são anjos nem demônios esses homens; não os acolheu o
céu, para que não lhe empanassem o brilho, e não os engoliu o inferno, por que não
eram dignos dele"...
Por esta mesma razão também se revoltou Pascal contra toda e qualquer
espécie de autorredenção pelagiana, por mais bem camuflada que ela se apresentasse
e por mais poderosos que fossem os seus "piedosos" defensores... Para Pascal só
existe uma teorredenção, uma Cristo-redenção.
***
Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra
que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada,
sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de
17
Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras
pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luz
divina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência,
não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a que
se acham e fraquíssima a luz que os atinge...
Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra...
Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão
todas as sombras...
Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua
proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, a
descrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e último
tormento dos santos...
Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um doloroso
cepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é
para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração que
a razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente.
Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum
Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, só
se conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirme
que o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde o
intelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição do
coração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto,
a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer.
Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência.
Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para os
melhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismo
deprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta,
profunda e panorâmica espiritualidade cristã.
A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho.
A espiritualidade do próprio Cristo.
18
Tabela Cronológica dos
Principais Fatos da Vida
de Pascal
1623 - 19 de junho — Nascimento de Blaise Pascal.
1633 — Pascal, aos 10 anos, estuda geometria por conta própria e escreve "Traité des sons" (tratado sobre os sons).
1638/39 — Aos 15 e 16 anos, Pascal elabora o "Traité dês sections coniques" (tratado sobre as secções cênicas) e publica,
com espanto do mundo científico, os "Essais pour lês coniques" (ensaios para os cones).
1640/42 — Pascal trabalha na construção da sua máquina aritmética. Primeiro abalo grave de sua saúde.
1644 — Pascal faz presente de um exemplar da sua máquina aritmética ao "Grande Conde" (Luiz II).
1646 — Primeira "conversão" de Pascal pelos jansenistas, La Bouteillerie e Deslandes. Pascal "converte" sua genial irmã
Jacqueline.
1647- 23 de setembro — Pascal tem, em Paris, uma entrevista com o célebre filósofo Descartes.
1647 - 4 de outubro — Pascal publica o seu tratado sobre o vácuo "Nouvelles éxperiences touchant lê vide".
1647 — Polêmica com o Jesuíta Noel sobre a teoria do vácuo.
1647/51 — Pascal elabora o "Tratado sobre o vácuo".
1648 - janeiro - Primeiras relações diretas de Pascal com Port-Royal.
1648 - setembro — Pascal publica o célebre esboço sobre o equilíbrio dos líquidos "Récit de Ia grande éxperience de
1'équilibre dês liqueurs".
1649 - 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética.
1651 — Princípio das relações de amizade de Pascal com o duque Roannez.
1651 - 24 de setembro — Morte do pai de Pascal.
1651 - 17 de setembro — Pascal escreve a célebre "Lettre sur Ia mort".
1652 - 14 de março — Pascal oferece à rainha Cristina da Suécia um exemplar da sua máquina de somar, acompanhado de
uma carta dedicatória.
1652, - 8 de julho — Pascal fabrica o modelo definitivo da sua máquina aritmética, que se acha atualmente no Conservatório
de Artes e Ofícios, de Paris.
1652 ou 1653 — Pascal escreve os célebres pensamentos sobre o amor "Discours sur les passions de 1'amour".
1653 - 6 de junho — Pascal escreve os tratados sobre os líquidos e sobre o peso da massa atmosférica, "Traité dês liqueurs",
"Traité de Ia pesanteur de Ia masse de l'air".
1654 — Pascal escreve os tratados sobre o triângulo aritmético e sobre a ordem numérica, "Traité du triangle arithmetique",
"Traité dês ordres numériques". Escreveu ao mesmo tempo uma série de pequenos trabalhos matemáticos e geométricos, em
latim.
1654 - junho-outubro — Correspondência de Pascal com o célebre físico Fermat.
1654 — Acidente na ponte de Neuilly.
1654 - 23 a 24 de novembro — Profunda experiência religiosa de Pascal, início da sua "conversão" definitiva à vida
espiritual.
1654/55 — Pascal escreve um tratado sobre o espírito da geometria, "Traité de 1'esprit géometrique".
1655 — Pascal associa-se aos eremitas de Port-Royal dês Champs.
1655 - 19 de janeiro — Carta de Jacqueline a seu irmão Blaise sobre a conversão dele.
1655 - dezembro — Pascal em Paris.
1655 — Pascal entretém-se com o grande M. de Sacy sobre a vida cristã 22 de maio — É concedida a Pascal patente de
invenção para sua máquina aritmética.
1656 - 23 de janeiro — Pascal publica a primeira das suas famosas "lettres Provinciales".
1656 — Correspondência de Pascal com Mlle. Roannez, irmã do duque Roannez, sobre a vida espiritual.
1657 - 24 de março — Pascal publica a sua última (18ª) "Lettre Provinciale".
1657 - 6 de setembro — A Congregação Romana do Index condena as "Lettres Provinciales".
1657/62 — Pascal trabalha na sua Apologia da Religião, intitulada, mais tarde, pelos editores, "Pensées".
1658 - 11 de junho — Pascal institui o concurso sobre a "roulette" ou a ciclóide (1).
1658 - 25 de novembro — Apuração do concurso sobre a ciclóide.
1658/59 — Diversos trabalhos de Pascal sobre matemática e geometria. '
1658 ou 1659 — Pascal expõe, numa conferência, o plano da sua Apologia da Religião ("Pensées").
1656, fevereiro — Expulsão das monjas e dos eremitas de Port-Royal.
1661 - 6 de outubro — Morte de Jaqueline, irmã e conselheira espiritual de Pascal.
1662 - janeiro — Pascal estabelece a primeira empresa de omnibus em Paris e obtém para a mesma carta patente da
autoridade pública.
1662 - 3 de agosto — Testamento espiritual de Pascal.
1662 - 19 de agosto — Morte piedosa de Blaise Pascal, com 39 anos de idade.
(1) Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de
carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avanço
progressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A solução
final do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.
19
Lampejos de Gênio
Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colher
num prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar,
cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato.
Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas só
este, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — e
escreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons".
_________
(1) Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão)
Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline,
em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não me
desampare, Senhor!"
Certo dia, encontrou o pai ao pequeno Blaise sentado no soalho do quarto a
riscar com um pedaço do giz "rodas e barras" (ronds et barres),como ele chamava, lá
na sua linguagem infantil, os círculos e as linhas retas da geometria; e passou a
explicar ao pai estupefato as relações que descobrira entre essas "rodas" e as
respectivas "barras".
Estranho divertimento para uma criança!...
Por esse mesmo tempo, provou Blaise que a soma dos ângulos de um triângulo
perfaz dois retos, solvendo assim, por passatempo, o 32º teorema de Euclides, cujo
nome ignorava.
Adolescente de 16 anos, escreveu um tratado sobre as secções dos cones, "Traté
des sections coniques", problema de alta geometria, que assombrou o mundo
profissional da época. Descartes, o grande filósofo, recusou-se por muito tempo a crer
que semelhante trabalho fosse feito por um jovem dessa idade.
***
De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinha
Jacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a
capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assunto
que ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana da
Áustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a sua
capacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talento
precoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica da
família Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro de
Estado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amour
tyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que se
conduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e a
família da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as
boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e,
para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa
20
filhinha, foi chamado a Paris, onde Richelieu o nomeou Prefeito de Rouen,
prometendo, outrossim, interessar-se pela carreira dos jovens Pascal. Não foi
necessária esta proteção do Ministro. Os jovens Pascal, sobretudo Blaise, fizeram a sua
grandeza, independente de favores públicos, graças aos extraordinários cabedais que a
Divina Providência lhes outorgara.
***
Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, uma
máquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com as
finanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerosos
exemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios da
aritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuas
logarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre
Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França. Na
carta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genial
matemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístola
não refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramos
nas "Pensées".
De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos de
Física, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiences
touchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo não
resistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais se
restabeleceu completamente.
Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, por
nome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candente
sátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maiores
sensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logo
depois, traduzidas em todas as línguas.
Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nos
meandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ou
inconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundos
ignotos...
Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamente
belos...
21
Os Eremitas de Port-Royal
Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que por
largo tempo o reteve de cama.
Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo de
Ypres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea que
restituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para as
alturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas da
graça divina.
Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio
intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade de
Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo.
Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas
cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os
silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismo
tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo,
em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispo
de Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmente
depauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares de
almas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante,
suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral
dentro do seio da Igreja.
Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassem
diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade
cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias de
Jansênio.
O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um
verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistente
brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seu
tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábil
Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. No
intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cinco
Bispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez,
continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.
Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono
Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e
ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. Saint-
Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vasta
correspondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidade
cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, no
velho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royal
dês Champs".
Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebre
Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores das
ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como que
cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que,
em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à
simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana.
Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia e
as tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,
22
mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles
mesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade e
prolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam.
O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o
laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas".
Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da Companhia de
Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus.
Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa
"casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma do
povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprio
espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitor
depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de alguns
desses livros impugnados.
Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno
propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do
que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de
princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece
com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que,
na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Mais
amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual Aristóteles-
Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um
"condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte da
liberdade humana.
Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempre
insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdade
humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmonia
entre dois fatores aparentemente antagônicos.
***
Enquanto os dois piedosos samaritanos pensavam os ferimentos de Etienne
Pascal, escutava o jovem Blaise com grande atenção o que eles diziam do
misterioso poder da graça de Deus. E a mensagem divina calou fundo na alma do
cientista, cuja sede espiritual era muito maior que sua fome de ciência.
Terminada a cura do acidentado, despediram-se os dois Jansenistas, deixando
toda a família Pascal profundamente impressionada com o ideal religioso.
Na alma do jovem Blaise estava lançada a semente, que, todavia, só mais tarde,
ia brotar, Não estava ainda preparado o terreno. Pascal cria ainda por demais no
poder da vontade humana. Teria de passar primeiro por uma série de dolorosas
experiências e derrotas íntimas para descrer de sua amiga "vontade" e capitular
incondicionalmente ante a graça de Deus...
Que um homem como Pascal, de extraordinária potência intelectiva e volitiva,
acabasse, dentro de poucos anos, por apelar da razão para a f é — isto é um dos mais
impressionantes mistérios do poder de Deus, que derrota a vontade, sem lhe ofender
a liberdade. A mesma força divina que dum Saulo fariseu fez um Paulo apóstolo,
e do estudante pagão de Cartago fez o grande místico cristão de Hipona, faria
também do exímio cultor da ciência um devotado discípulo da "loucura da
cruz"...
23
Encontro Pessoal com Deus
A impressão que as doutrinas dos dois enfermeiros Jansenistas causaram na
alma de Blaise Pascal levou-o ao que ele chama a sua "primeira conversão".
Começou a se ocupar seriamente com assuntos religiosos, quando, até essa data, se
interessava, de preferência, pelas ciências naturais. Não se compara, todavia, esta
primeira conversão com a segunda e definitiva, que ocorreu anos mais tarde e fez
do grande matemático um ardente discípulo do Cristo e apóstolo do Evangelho.
Mudança mais radical que no espírito de Blaise havia as doutrinas dos dois
enfermeiros produzido na alma de Jacqueline, mudança que lhe cortou cerce a
brilhante carreira literária iniciada — com grande pesar de seu amigo e admirador,
o célebre poeta Corneille, que vivia em Rouen. A jovem poetisa, que teria sido
provavelmente, uma das maiores glórias literárias da França, resolveu renunciar a
tudo que o mundo lhe prometia e entregar-se inteiramente às humildes grandezas
da vida espiritual. E com isto começou o seu longo Calvário, como acontece
sempre àqueles que entram numa zona de intensa espiritualidade. Existe
indissolúvel vínculo, ou talvez uma misteriosa afinidade e interdependência
entre o amor e o sofrimento, como, aliás, prova a vida do próprio Cristo e de todos
os seus verdadeiros discípulos. E este sofrimento nos é causado, em geral, por
aqueles que mais de perto deviam acompanhar o nosso caminho ascensional.
Numa viagem a Paris, entrou Jacqueline em contato com as religiosas de
Port-Royal — e convenceu-se de que só na solidão do mosteiro é que poderia
realizar o seu grande desejo de vida intensamente espiritual. O pai, todavia, se
opôs terminantemente aos planos da talentosa filha. Também Blaise procurou
dissuadi-la do seu intento, e isto por uma espécie de egoísmo espiritual.
Jacqueline era, nesse tempo, a única alma que compreendia os anseios íntimos
do irmão. Com ela se abria Pascal e dela recebia grandes luzes. A ideia de ter
de separar-se da irmã afigurava-se-lhe como que um eclipse religioso em plena
alvorada.
Entrementes, casara Gilbert, a irmã mais velha, com um senhor por nome
Périer. Em 1649 visitaram os três Pascal, Etienne, Blaise e Jacqueline, a Madame
Gilbert Périer, em cuja casa se demoraram algum tempo. Querem alguns biógrafos
que Blaise se tenha, nesta ocasião, enamorado de uma jovem da Auvergne
apelidada "Safo". Parece, todavia, tratar-se de outro cavalheiro com o sobrenome
Pascal. O certo é que o nosso matemático, que contava então 26 anos, frequentou
sociedade e se tornou grande amigo de alguns homens de destaque, entre eles o
duque de Roannez, como também de um cavalheiro elegante por nome Jorge
Méré. Este, apesar de espírito medíocre e apaixonado jogador, veio a ter notável
influência sobre Pascal, não tanto sobre o seu caráter como sobre sua vida externa e
seu traque j o social. Pascal vivera até então para a sua querida matemática e física e
sabia melhor como resolver cálculos infinitesimais do que como portar-se em um
salão elegante no meio de damas e cavalheiros. Méré julgou de seu dever fazer do
solitário pensador um autêntico homem da sociedade, um "honnête homme", como
se dizia naquele tempo. E, por alguns anos, pareceu ter sorte com a sua tentativa
civilizadora.
24
Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em torno
de uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa".
O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da sua
atitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamento
remonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo
da haute-volée contemporânea.
Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline no
mosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queria
ver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua.
Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida da
dileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubrações
científicas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levou
vida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nem
abismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade.
Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do
jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o
que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado por
Cousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentido
profundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sen-
sação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente —
isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso e
enigmático.
Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã do
duque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntos
essencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica.
Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal era
homem não menos afetivo que intelectivo.
***
Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, na
carruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava
quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois
deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros
com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do
cientista.
Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos
atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,
madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,
com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.
Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,
um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela
um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar
inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-
mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o
convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa
noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande
acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o
agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!
Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,
25
confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo
da graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela ponte
de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram
rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte
abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo,
salvando assim a vida do cientista.
Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos
atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,
madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,
com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.
Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,
um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor
revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar
inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-
mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o
convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria,
nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande
acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o
agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!
Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,
confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lam-
pejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é uma
realidade muito superior a todas as chamadas visões.
Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre a
vida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintes
palavras, do punho do agraciado:
"L'an de grâce 1654.
Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres au
martyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres.
Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie.
Feu.
Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu
de Jacob, non dês philosophes et dês
savants.
Certitude. Certitude. Sentiment. Joie.
Paix.
Deum meum et Deum vestrum.
Ton Dieu será mon Dieu."
Tradução:
"Ano da graça de 1654.
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de
São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de São
Crisógono, mártir, e outros.
Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia.
Fogo.
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus
De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria.
Paz.
26
Deum meum et Deum vestrum.
Teu Deus será meu Deus."
Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das
10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande
pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã de
Pascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora da
morte.
Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão
pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas lá
estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebre
Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugirá
de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele por
todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas:
quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor de
Deus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas
de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas.
A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando
absoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a
Deus a natureza.
Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua
cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos
fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram o
nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto e
Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos,
um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza do
homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está o
Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas
soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ou
seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelo
despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo.
Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os mais
luminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda?
Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção?
M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos que
são as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com o
espírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, como
também os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana.
Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dado
ocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebre
filho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuito
de fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontra
abundantíssimo material para seu jardim ou seu museu espiritual — tão
panorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hipona
podem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; basta
colecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outros
coloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde,
vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta ou
daquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens,
porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só um
espírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender e
interpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de
27
Jesus Cristo é o que há de mais inclusivista e panorâmico que se possa
imaginar — e dele precisamente têm os espíritos estreitos e exclusivistas feito
a mais horripilante caricatura que já apareceu na face da terra. Todas as po-
lêmicas teológicas e todas as guerras de religião nasceram desse
exclusivismo, destruindo a harmonia espiritual da humanidade que o vasto
inclusivismo de Jesus estabeleceu entre os homens.
Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino,
conquistou Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidade
panorâmica e integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Rei
imortal dos séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãos
dos nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conosco
todos os dias até a consumação dos séculos.
Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus
"Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado pela
tempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As perseguições de que a
Igreja é alvo oferecem esta satisfação."
A exemplo de sua grande patrícia, Joana d'Arc, tão cristã quão analfabeta,
não identifica o genial filósofo a Igreja de Cristo com esta ou aquela organização
eclesiástica, menos ainda com os homens que, neste ou naquele período, representam
casualmente a Igreja. Se assim fosse, seria tão mal-segura a sua fé como falíveis são
os homens. Daí a pouco, teria ele ensejo para ver a enorme diferença que vai
entre a alma divina da Igreja, que ele amava apaixonadamente, e o corpo humano
dessa mesma Igreja, que nem sempre espelha a pureza e perfeição da alma.
Católicos menos esclarecidos em sua fé se têm escandalizado com a atitude de
Pascal no meio do conflito religioso do seu tempo — e esquecem-se de que ele foi
obrigado a essa atitude precisamente pela fé firme e pelo ardente amor que votava
à Igreja de Cristo. Outra atitude não podia Pascal assumir, depois da sua grande
experiência espiritual de 23 a 24 de novembro de 1654, em que ele se encontrou,
como diz, não com o "deus dos cientistas e dos filósofos, mas com o Deus de Abraão,
Isaac e Jacó".
28
Conflito Entre Duas Humanidades
Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos
problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim, pelas
direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a humanidade
de todos os tempos. Se solveram algum problema ou definiram algum pensamento,
é isto precisamente o limite da sua grandeza e o princípio da sua pequenez. A sua
verdadeira grandeza está nas orientações que deram, porque essas orientações vão
para o Infinito.
Quanto menos diferenciado é um ser tanto mais susceptível de evolução, tanto
mais fecundo de direções várias, de possibilidades vitais e evolutivas. Um ser
altamente diferenciado tem poucas possibilidades evolutivas: está colocado sobre
trilhos fixos, rigorosamente determinados, e daí não pode sair; só pode correr na
direção desses trilhos, e não enveredar pelas mil e uma estradas do ser não
diferenciado.
É o que se dá também no mundo dos pensamentos e das ideias. Poderosa
matéria-prima repleta de energias vitais são as ideias dos grandes homens.
Matéria-prima cósmica — e não artefato humano! Milhares e milhões de
pensamentos podem ser plasmados dessa enorme idéia cósmica, fundamental,
prenhe de ilimitada fecundidade. Lançar ao mundo dos homens essas ideias
fundamentais é obra do gênio, não do simples talento, menos ainda do homem
erudito. Destacar desse gigantesco bloco partículas maiores ou menores, modelá-las
em pensamentos, fazer desse minério geral pequenas moedas correntes para o
comércio espiritual da humanidade — é tarefa dos pequenos operários da
inteligência.
O gênio não fabrica pensamentos — crea ideias. Arranca das profundezas do
cosmos enormes blocos amorfos, verdadeiras montanhas de minério bruto — e segue
o seu caminho. O gênio é um estranho emissário do cosmos superconsciente. Causa
terror, estupefação. É geralmente combatido pelos pequenos mercadores da
inteligência e da moral, como algo de absurdo e monstruoso, como um ser de outros
mundos que venha perturbar o tépido sossego do nosso planeta. E têm razão esses
mercadores — lá do seu ponto de vista. Tempestades e terremotos são fenômenos
que incutem pavor...
Segundo a concepção do citado filósofo germânico não parece Pascal
pertencer aos grandes gênios da humanidade. A sua obra imortal, "Pensées",
são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros
pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem acrescentar uma só palavra a esses
aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de
um cristal, sem o adulterar e desvalorizar.
E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito
genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é
necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É
necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-
mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses
maravilhosos imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana
clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem
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acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se
pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar.
E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito
genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é
necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É
necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-
mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses
maravilhosos cristais de pensamentos rigorosamente delineados.
Quem lê Pascal, longe de ver solvidos os eternos problemas da humanidade,
mais inebriado se sente desses problemas. Sente-se por eles empolgado e já não
pode viver sem eles. Não é possível continuar a vegetar no marasmo habitual da
sua indiferença... Entra-lhe no sangue uma febre metafísica, um fogo sagrado que
não o deixa em paz. Pois, o que forma o fundo, o background, de toda a atividade
literária, polêmica e espiritual do eremita de Port-Royal é o que há de mais vasto,
antigo e obscuro no seio da humanidade.
Pascal não vale pelos problemas que, porventura, tenha solvido - vale pela
inquietude metafísica que lançou nos espíritos estagnados e pela sede de
espiritualidade que acendeu.
E isto vale também das "Lettres Provinciales" do grande pensador.
Em Pascal e nos "casuístas" que ele impugna, defrontam-se dois mundos tão
antigos como a própria humanidade. Entram em conflito duas humanidades — a
humanidade da superconsciência intuitiva e a humanidade da consciência
intelectiva.
Que é o homem? É o homem apenas aquilo que ele faz intelectual, livre e
conscientemente — ou também aquilo que ele é no vasto subsolo da sua
individualidade inconsciente e involuntária? É o homem apenas o seu ser
consciente - ou é ele também o seu ser superconsciente?
Em torno desse tremendo dilema gira, em última análise, toda a luta de Pascal
e dos seus adversários. Pascal entende o homem na sua totalidade, consciente e
superconsciente — ao passo que seus impugnadores consideram o homem apenas
segundo a sua zona consciente e livre.
A França tem sido, desde tempos remotos, a terra clássica dessas duas
ideologias contrárias e insolúveis, ideologias que se concretizam em dois dos seus
maiores poetas: Racine e Corneille. Racine pinta o homem assim como ele é, de
fato, em sua generalidade, com todos os seus claros e escuros, e não assim como
poderia ou deveria ser. Corneille descreve os seus heróis assim como deviam ser à
luz da consciência cristã, mas como os homens não são geralmente.
Para os moralistas intelectualistas que Pascal combate, só é moralmente
imputável ao homem o que ele pensa, diz e faz na zona diurna da sua consciência
vígil, e não o que acontece na zona noturna da sua sub ou superconsciência
incontrolável.
Para Pascal e seus amigos de Port-Royal, de orientação platôníca-
intuitiva, é o homem responsável, não só pela parte diurna, mas, até certo
ponto, também pela parte noturna do seu ser e agir. O homem é um indivíduo,
sim, mas é também uma síntese da humanidade, e os pecados da humanidade
são, em certo sentido, os pecados do homem. Há um "pecado original" que é
da humanidade e é do homem, porque houve uma "queda" do homem na
"queda" da humanidade. Como poderia a célula ficar indene da contaminação
do organismo? Como poderia o indivíduo ser puro, quando impura é a
30
espécie? Do homem é a culpa consciente que ele contraiu, do homem é também a
culpa inconsciente que a humanidade nele contraiu. Se da culpa consciente
houvesse ego-redenção, para a culpa inconsciente só basta unia teo-redenção.
Só a Divindade é que pode cancelar a culpa da humanidade (1)
.
É certo que a teologia dá razão aos moralistas, e não a Pascal — mas resta
saber se a nossa teologia intelectualista é a expressão da verdade integral. Pascal é
um grande visionário que adivinha ou pressente o que nenhum silogismo pode
provar; ele não reconhece a inteligência como suprema instância da vida
humana.
(1) Sobre a natureza dessa "queda", ver "Metafísica do Cristianismo" do autor.
Em última análise, os dois mundos que nesta luta se defrontam são a filosofia
individualista e a intuição universalista. Aqueles apregoam uma ântropo-redenção
- - estes ensinam uma teo-redenção. Aqueles crêem na potência redentora da
inteligência humana -- estes descreem da impotência do pequeno Eu humano e
clamam pela onipotência do grande Tu divino.
Inteligência humana - - ou sapiência divina?
É este o sentido último dessa tremenda conflagração de espíritos, no século 17.
Os séculos subseqüentes tentaram uma conciliação desses paradoxos. Em Deus
deve ser possível harmonizá-los; mas os homens não o conseguiram — e a questão
continua aberta sem solução...
***
Se seguirmos, rumo acima, o fio da corrente e investigarmos a última origem
desse dualismo de concepção, toparemos com as primeiras páginas do Gênesis, onde
se fala de uma "queda" do homem e da promessa de um "redentor".
Em que consiste essa "queda"? Discordam os homens.
Jesus Cristo, que poderia dar solução plena do enigma secular, nunca se
referiu a uma "queda" da humanidade. Parece supor a bondade natural do homem,
não só do homem do Éden, mas do homem de hoje. Mais de uma vez propõe ele
uma criança - isto é, um homem plenamente natural - como modelo de pureza e
de retitude espiritual, alvo da complacência divina; exige de seus discípulos que
sejam puros e bons como as crianças; diz que os anjos do céu são protetores
desses pequenos; identifica-se com as crianças, considerando feito a ele o que a
elas fizermos; comina terrível castigo ao homem que, pelo pecado, destruir, na
alma da criança a natural bondade e pureza. Nem uma palavra sobre "pecado
original", sobre uma "culpa hereditária" saiu dos lábios do Nazareno. Nenhuma
referência à necessidade de redenção para essas almas naturalmente puras e boas
encontramos nos ensinos de Jesus. A redenção de que o Nazareno fala parece
ser necessária unicamente para os que, pessoal e livremente, abandonaram os
caminhos de Deus.
Do outro lado, porém, temos o apóstolo Paulo, que é o grande confessor do
pecado original, e afirma ter recebido diretamente de Jesus o seu Evangelho.
Ensina ele, com grande insistência, que por um só homem, Adão, entrou o
pecado no mundo e passou a todos os homens - e por um só homem, Cristo,
entrou no mundo a redenção do pecado. Num só chefe humano pecaram todos os
homens, e nenhum só chefe divino são justificados todos os homens.
Mais tarde, Agostinho, calcando os vestígios de Paulo de Tarso, constituiu-se
estrênuo defensor da culpa original da humanidade. Desde então, é a teologia cristã
31
essencialmente paulino-agostiniana. O homem, em consequência da queda, se
tornou tão fraco que não se pode levantar, só pode ser levantado, como aquele
malferido viajor à beira da estrada Jerusalém-Jericó.
Em todos os tempos houve, no seio da humanidade cristã, adeptos da ideologia
paulino-agostiniana em sua forma mais rígida, e houve adeptos de uma concepção
mais suave, mais evangélica que teológica, mais de Jesus que de Paulo, se assim se
pode dizer. Os Jansenistas de Port-Royal e seu grande porta-voz, Pascal,
professam uma ideologia nitidamente paulino-agostiniana — ao passo que seus
adversários dizem advogar a mentalidade de Jesus Cristo, assim como aparece nas
páginas lapidares do Evangelho. É inegável que tanto uns como outros tenham
levado ao extremo as suas idéias, uns em defesa da graça divina, outros a favor da
liberdade humana. Resta saber em que extremo está o maior dos males, para o
homem cristão - e quem o poderia dizer?
A única atitude razoável é a da humildade e da caridade. Ninguém, se arvore
em único sábio entre ignorantes, em único ortodoxo entre heterodoxos.
Praticamente, faça cada um da sua liberdade um uso tal que a graça de Deus
possa nele trabalhar com toda a plenitude.
E siga cada qual a esplêndida máxima de Agostinho: “In dubüs libertas, in
necessariis unitas - in omnibus charitas”- “Haja nas coisas duvidosas
liberdade, nas necessárias, unidade — e em todas, caridade!"
32
Defendendo Jesus Contra os Jesuítas
As famosas "Lettres Provinciales" fazem, hoje em dia, parte da literatura
mundial, tanto pelo espírito que as ditou como pela forma literária que revestem.
Raras vezes terá um homem defendido, com tamanho ardor, com tão arrasadora
sátira e com tão ofuscante brilho intelectual, as suas convicções religiosas como o
autor dessas 18 cartas.
Ao lê-las, é necessário ter sempre presente que, por detrás de tudo aquilo, está
a vastíssima zona noturna do subconsciente (1)
pascalino. Não é, em última análise,
contra os Jesuítas que Pascal se revolta, mas, sim, contra um elemento
visceralmente contrário às profundas experiências religiosas do solitário eremita
de Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas da
Companhia de Jesus. Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em
diversos casuístas da Companhia de Jesus. As "Lettres Provinciales" são, na sua
essência, o brado de uma ingente paixão religiosa. Pascal luta pela suprema
razão-de-ser da sua existência, luta pela sua fé cristã, luta por seu Deus e pela
Eternidade. Pascal luta, a bem dizer contra um pseudo — ou ex-Pascal, isto é,
contra aquilo que ele mesmo fora, contra uma ideologia, que ele mesmo, em tempos
idos, já professara, em parte, e da qual se libertara definitivamente, na memorável
noite do seu encontro pessoal com Deus.
(1) O que, por via de regra, se chama subconsciente espiritual é, na realidade, um superconsciente.
Nunca luta o homem com maior convicção e veemência do que quando toma a
ofensiva de um Eu contra um ex-Eu.
Os adversários de Pascal, percebendo o fraco da sua defensiva, passaram
também à ofensiva, cobrindo-o seu agressor de impropérios, atribuindo-lhe as
intenções mais infames, acusando-o de falsário, ridicularizando-o como palhaço,
tachando-o de herege, mas sem conseguirem destruir o ponto central da controvér-
sia. Pascal servia-se de armas forjadas pelos seus próprios adversários, de livros
deles estampados em dezenas de edições, e ainda que, na tradução do latim para o
francês, incorresse em uma ou outra inexatidão insignificante, qualquer pessoa
sincera poderá verificar, à luz dos próprios originais latinos, que o verdadeiro alvo
das acusações não é afetado por nenhuma dessas pequenas divergências de tradução
e citação. Mesmo que coássemos os "mosquitos", sempre ficariam os "camelos"...
Pode um homem mudar de ideias puramente intelectuais, mas não pode
discordar da sua íntima experiência. Essa experiência íntima é, para ele, o
Supremo Tribunal, a última instância, da qual não há apelação. O que o homem
viveu e sofreu nas mais profundas profundezas do seu Eu espiritual, isto a tal
ponto se consubstanciou e identificou com ele que chega a ser ele mesmo, o seu
próprio Ser personal. E, como ninguém pode divorciar-se de si mesmo, assim
também não pode o homem renunciar à sua íntima experiência espiritual. Um
homem desses está disposto a sacrificar tudo - forças, tempo, mocidade, carreira,
amigos, saúde, seu bom nome, a própria vida - em defesa do seu supremo ideal.
Tudo o mais lhe parece secundário; a própria morte se lhe afigura sem im-
portância em face da estupenda realidade interior que domina a sua vida.
33
Pascal, como foi dito, passou por essa grande experiência interior. Viveu
a Deus. Teve o seu Damasco, o seu encontro pessoal com Cristo. Viu a malícia do
pecado. Viveu a grandeza da redenção. Sentiu o terremoto da santidade de Deus.
Viu-se colocado na linha divisória entre a grande treva e a grande luz. Por isto
lhe parecia horripilante blasfêmia e sacrilégio qualquer compromisso covarde
entre a luz e as trevas, entre a santidade de Deus e a miséria do pecador, como
tentavam fazer os moralistas contra os quais ele vibrou o flamejante gládio do seu
grande espírito e da sua arrasadora dialética.
Nas "Lettres Provinciales" revela Pascal uma face do seu caráter que
ninguém lhe conhecia e que também não aparece nos "Pensées": serve-se de um
estilo irônico, esfuziante de chiste e genialidade, que, por vezes, faz lembrar o
deslumbrante chispar de uma esguia chama de oxigênio a derreter duros metais.
O seu gênio era antes melancólico do que colérico ou sanguíneo. O seu estilo é, por
via de regra, calmo, ponderado, algumas vezes épico e trágico.
Por que, pois, se serve Pascal, em sua polêmica, de um modo de escrever que
parece não condizer com o seu caráter?
Estamos aqui diante de um fenômeno psíquico dos mais notáveis. Por vezes é
uma sonora risada a manifestação de uma profunda tristeza. Pode a maior
comicidade revelar a mais sangrenta tragicidade de uma alma. Pessoas há que
trazem a alma em chaga viva, dia e noite, mas que são tidas na sociedade por
creaturas felizes e despreocupadas; o público ignora que essa aparente
serenidade é a única defesa e válvula de segurança para conter e disfarçar o
candente vulcão que estua nas ignotas profundezas dessas almas torturadas. Se
um desses mártires é interrogado a respeito do seu bem-estar, afirma
invariavelmente que vai às mil maravilhas, porque essa afirmação categórica é
necessária para manter o status quo e impedir o impetuoso transbordamento da lava
ígnea que arde nas profundezas dessa alma... Pois a sociedade, em geral, não
permite ao homem ser o que é...
Foi o que se deu com Pascal. O fundo melancólico e trágico de sua alma
explodiu numa verdadeira tempestade de ironia e sátira, quando viu que homens
tidos por muito religiosos desacreditavam o que para ele havia de mais querido e
sagrado: o seu Cristianismo. E Pascal, o grande asceta que, apesar de fraco e
doentio, cingia duro cilício sobre as carnes nuas; ele, o grande amigo da pobreza
que se privava de tudo para acudir aos indigentes; ele, o solitário eremita que
amava o silêncio e detestava o ruído — Pascal desce a mais ruidosa liça da época
e desfere a seus adversários golpes tais que até ao presente dia não lhes
cicatrizaram as chagas.
Se se tratasse de uma ofensa pessoal, não teria o grande asceta escrito uma só
palavra contra seus ofensores. Mas aqui estava em jogo a pureza da doutrina do
Cristo, o Evangelho de seu divino Senhor e Mestre, pelo qual havia o eremita
renunciado a todas as grandezas do mundo e escolhido a vida de solicitude e me-
ditação.
Quando, pouco antes da sua morte, perguntaram a Pascal se se arrependia de
haver escrito as "Lettres Provinciales", respondeu que não, e que, se mais uma
vez tivesse de escrevê-las, escrevê-las-ia com maior rigor ainda. Prova isto que as
escreveu por convicção íntima, e não por algum sentimento de rancor ou inimizade.
Escreveu-as com os lábios transbordantes de sátira - e com o coração afogado
em lágrimas. Irrompeu o vulcão da sua grande dor em uma tempestade de
risadas irônicas...
Tão enigmático é esse homem secular...
34
Em Torno das "Lettres Provinciales"
Tão árido e de tão limitado interesse para o grande público é o tema dessa
polêmica entre Pascal e os Jesuítas, que é deveras para admirar levantasse
tamanha celeuma na França, e muito além das suas fronteiras. Não fosse o grande
talento do solitário eremita, provavelmente morreria o caso, circunscrito à esfera
puramente escolástica e teológica da época.
Conforme foi dito, agitava-se então entre os teólogos católicos a questão
obscura, como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Nenhum
dos contendores negava a ação da graça divina nem a existência da liberdade
humana, mas discutiam a maneira como harmonizavam entre si esses dois fatores
aparentemente inconciliáveis.
Formaram-se dois partidos, aliás, já existentes, frisando um, com grande
energia a atividade da graça, realçando o outro, com fervor, o papel da liberdade
humana. Dessas concepções diversas nasceram, naturalmente, dois modos
diferentes de encarar a vida humana e, sobretudo, a questão central da nossa
salvação; numa palavra, duas modalidades de moral cristã.
No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuos
advogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a liberdade.
E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a questão a seu favor, a
tal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas que podiam andar de
mãos dadas.
Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" — eram
adeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do mundo, dando a
toda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência, abnegação. E não
paravam em simples palavras e bons conselhos para os outros; eles mesmos davam
com a pureza e austeridade da sua vida exemplo concreto da possibilidade de sua
doutrina. Mère Angélique; a abadessa do mosteiro de Port-Royal, conseguira
restabelecer entre as monjas cistercienses o antigo rigor do espírito do grande
místico Bernardo de Clairvaux. E os eremitas que viviam a certa distância do
convento, levavam a mesma vida de oração e austeridade. Neste ponto mostraram-se
os Jansenistas irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de não
levarem a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrina
sobre a graça e a predestinação.
Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie de
Cristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da Judeia,
do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e igualando-se aos
outros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam eles que o Cristianismo
não era apenas para um grupo de homens piedosos segregados do mundo, mas
para toda e qualquer pessoa da sociedade que quisesse seguir a Cristo. E, na
intenção paulina de "ganhar a todos para Cristo", reduziam ao mínimo as exi-
gências da moral cristã, porque só assim lhes parecia possível a cristianização do
mundo, pela qual trabalhavam incessantemente. Não queriam criar mosteiros
cheios de ascetas, mas, sim, um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal e
outros tenham dito contra os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de
35
reta consciência, negará que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!),
estivessem animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo,
muito dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciência
intensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo do
espírito de Jesus Cristo.
Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do
Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral que
veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de
casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e dire-
tores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes e as
almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e circunstâncias da
vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados que os homens
cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou diretor de almas de ter
uma norma que salvaguarde os princípios eternos da moral cristã, por um lado, e,
por outro, respeite a liberdade do penitente e não o repila da igreja. Navegar
entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa para o piloto espiritual...
Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas. Cravam-se as balizas ou muito
para a direita, ou muito para a esquerda, provocando colisão com uma de duas coisas
que devem ser, ambas, intangíveis...
Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo dos
cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos deles,
praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião dos
adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os pecadores,
negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios de um dos amigos
de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens que tiram os pecados do
mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando conhecido texto evangélico,
reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora não sejam da sua descoberta.
Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores
intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada cristãs.
***
O mundo católico da época não conhecia, geralmente, os livros de casuística
escritos em latim; eram uma literatura quase privativa do clero; mas, como por
estes princípios dirigia o clero os seus penitentes, compreende-se a indignação
de Pascal, ao ter conhecimento de semelhantes normas de vida cristã. E, para
prevenir do perigo o mundo leigo católico, resolveu divulgar em vernáculo o que
havia de mais "escandaloso" nessa casuística. E com tanta eficiência se
desincumbiu da tarefa que as "Lettres Provinciales" provocaram inaudita sensação
em todas as camadas sociais, o que prova que a sociedade leiga não estava alheia
aos princípios exarados nesses livros.
Para que os nossos leitores possam julgar por si mesmos o caráter desses
livros, passaremos a dar um resumo de alguns dos mais conhecidos. É fora de
dúvida que os casuístas forjaram contra si mesmos armas terríveis, e não admira
que um homem da tempera ética de Pascal, tomado de profunda indignação,
levasse ao pelourinho do desprezo público certos moralistas do seu tempo.
Acresce a agravante que não se tratava de opiniões pessoais e particulares
deste ou daquele religioso, uma vez que todos esses livros vinham com permissão
do Superior Provincial dos Jesuítas e de outras autoridades, recaindo, assim, esse
36
laxismo moral não apenas sobre o autor do livro, mas sobre o próprio espírito da
Ordem que tais coisas aprovava como sendo expressão do espírito do Cristo — ou
melhor, esse laxismo ético afetava a própria igreja de que essa Ordem era parte
integrante e que se mostrava solidária com essa orientação. Pascal, pois,
combate, indiretamente, o espírito da própria hierarquia da igreja de Roma.
37
Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas
Em 1649 extraiu a Faculdade Teológica da Universidade de Paris, do livro
"Augustinus", de Cornélio Jansênio, falecido Bispo de Ypres, cinco proposições
que estariam em contradição com a doutrina da Igreja e enviou as mesmas à
Roma. Os jansenistas reconheceram o caráter herético dessas sentenças,
condenadas, em 1653, pelo Papa Inocêncio X, reconhecendo também à Santa Sé
o direito de as reprovar, mas negaram que as ditas sentenças se encontrassem
no livro"Augustinus".
Pelo que, em 1654, o Papa declarou expressamente que essas proposições se
encontravam no dito livro.
Em consequência, Antônio Arnauld, lente da Faculdade e destemido
Jansenista, foi demitido da sua cadeira. Estava assim o Jansenismo condenado em
Roma e pelos Teólogos da Sorbonne.
Arnauld, porém, não se conformou com a decisão pontifícia e teológica, e
apelou para o bom senso do povo católico, para a "anima naturaliter christiana",
como diria Tertuliano. Era necessário que alguém explicasse ao público, em
língua vernácula e estilo acessível ao público, o ponto de controvérsia, para que
todo o mundo visse até que ponto os teólogos adulteravam a doutrina do Cristo.
Arnauld tinha certeza de que a alma cristã do povo não faria causa comum com os
teólogos e jesuítas, mas defenderia a causa do Evangelho que os Jansenistas diziam
ensinar em toda a pureza.
É característico, nessa polêmica, o apelo do tribunal da aristocracia
teológica para o da democracia popular, apelo esse que inclui a suposição tácita de
que o catolicismo se encontra mais puro e incontaminado entre o simples povo
cristão do que entre os eruditos profissionais da teologia. Mais tarde, Pascal foi
além e "apelou de Roma para Deus", na certeza de que Roma, dando razão aos
Jesuítas, não representava, nesse particular, o verdadeiro catolicismo, do qual não
queria ele separar-se de forma alguma, nem jamais se separou.
Tem-se dito que Pascal estava imbuído de ideias protestantes, tanto pelo fato
de não ver nessa decisão do Papa a expressão pura do Cristianismo, como também
por dar excessiva importância à Sagrada Escritura. Mais exato seria, talvez,
compará-lo com um católico ortodoxo, como os da igreja grega, que não querem
saber nem Romanismo nem Protestantismo, mas tão somente de Catolicismo, com
todos os Sacramentos e todos os esplendores litúrgicos. Já dissemos em outra
parte que Pascal, apesar de ser um homem inteligente e intelectual, é contudo, o tipo
clássico do homem intuitivo — e a intuição das supremas realidades ultrapassa tudo
que a filosofia ou teologia especulativa possam descobrir e ensinar. O apelo de
Arnauld, da inteligência dos teólogos para a alma do povo, e o apelo que Pascal faz,
da inteligência dos teólogos e do Papa para "o Senhor Jesus", simbolizam, em
última linha, um apelo do intelecto para a intuição, do consciente intelectual para o
superconsciente intuitivo. Por detrás dessa aparente rebeldia está a grande idéia
cósmica — não o pensamento individual - de que o espírito da doutrina do Cristo
é algo infinitamente além de tudo que a humana teologia possa atingir.
***
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  • 1. 1
  • 2. 2 H U B E R T O R O H D E N P A S C A L O HOMEM QUE APELOU DA RAZÃO PARA O CORAÇÃO E DE ROMA PARA DEUS SEGUNDA EDIÇÃO UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA. S. PAULO 1956 Terceira Edição Alvorada Editora e Livraria Ltda 1981 MEMÓRIA ROHDEN
  • 3. 3 "Minhas Cartas foram condenadas em Roma, mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" Pascal
  • 4. 4 Índice Advertência 05 Vida e Obra de Huberto Rohden 06 Prefácio para a Terceira Edição 08 Tomando Perspectiva 10 Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18 Lampejos de Gênio 19 Os Eremitas de Port-Royal 21 Encontro Pessoal com Deus 23 Conflito Entre Duas Humanidades 28 Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32 Em Torno das "Lettres Provinciales" 34 Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37 Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40 Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49 A Casuística em Nossos Dias 52 "Meu Reino não é Deste Mundo" 55 Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58 As Razões do Coração que a Razão Ignora 63 Tragédia Metafísica do Homem 65 Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70 Diluindo-se em Deus 74 Texto da orelha da 2ª edição 80 Relação das Obras de Huberto Rohden 81
  • 5. 5 Advertência A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição de uma existência para outra existência. O poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
  • 6. 6 Huberto Rohden, Vida e Obra Nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em Universidades da Europa — Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 60 (sessenta) obras sobre ciência, filosofia e religião, editadas pela Editora Vozes (Petrópolis), União Cultural (São Paulo), Editora Globo (Porto Alegre), Livraria Freitas Bastos (Rio de Janeiro), Fundação Alvorada e outras editoras. Vários livros de Huberto Rohden foram traduzidos em outras línguas, inclusive o Esperanto; alguns existem em Braille, para institutos de cegos. Um registro de suas brilhantes palestras foi preservado por alguns de seus alunos em forma de gravações – muitas delas estão à disposição na internet. Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo. De 1945 a 1946 teve uma Bolsa de estudos para Pesquisas Científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística. Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos. Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos, sendo então, seu presidente honorário, o senhor Nereu Ramos. Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram. Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova Universidade Internacional Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, devido à guerra na Coreia, a Universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse. Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, com a finalidade de manter cursos permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil. Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia. Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de Autorrealização Alvorada.
  • 7. 7 Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo. Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente, a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração e orientação cultural. Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se em quatro grandes segmentos: 1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em São Paulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação; 2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados, periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos; 3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros e cassetes, a Filosofia Univérsica; 4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham na consolidação e continuação da sua obra educacional. A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em estado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”. Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.
  • 8. 8 Prefácio para a Terceira Edição Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-se mesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico que parece superado em nosso tempo. Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17. Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um católico de pura catolicidade, como poucos. E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - para não dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus? Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confunde catolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católico- clerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando na realidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê a continuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 de novembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defende o seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desse ideal pela teologia clerical. Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida na austeridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madre superiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento da mensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamente ascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidade contra o catolicismo liberal que dominava a época. Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica venerava Pascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer que ele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavam repletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro. Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viu nos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelho do Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e a sátira da sua luta... Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continua desde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O Mestre disse a Pilatos que o reino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que são discípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhuma espécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencial entre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela política financeira de certa teologia.
  • 9. 9 De maneira que a polêmica de Pascal não é uma atitude anacrônica fora de época. Hoje, mais do que nunca, a mensagem do Cristo está ameaçada pela deturpação dos homens, na política, no cinema, na literatura, na arte, em toda a vida social da cristandade. Pode a maneira dessa deturpação ser mudada, mas a deturpação continua a ser a mesma e é cada vez mais perversa e sorrateira. Hoje o Cristo é mais atraiçoado pelo beijo de Judas do que pela violência das palavras — “Aquele a quem eu beijar, esse é o tal, prendei-o!” Tornamos, pois, a reeditar este livro, na intenção de alertar os leitores sinceros contra o perigo perene de falsificações da mensagem do Cristo — seja por Judas Iscariotes, seja por Caifás ou Pilatos. Todos os nossos livros, algumas dezenas, têm a mesma finalidade, reconhecida ou combatida. Neste ocaso do século 20, em que vivemos, é de imperiosa necessidade distinguir o trigo do joio, por mais que eles se pareçam, externa-mente; a cinza de Babel da camuflagem se discrimina cada vez mais nitidamente, em puros brancos ou puros pretos. Se for necessário apelar do intelecto para a razão, ou de Roma para Deus, façamo-lo com a coragem e honestidade de Pascal.
  • 10. 10 Tomando Perspectiva O racionalismo agnóstico nunca perdoará a um dos maiores vultos da ciência o "crime" de ter apelado da razão para a fé; de ter declarado em público e raso a falência da filosofia intelectualista em face dos problemas centrais da vida humana. Se um espírito medíocre tivesse assumido semelhante atitude, lançá-la-iam os agnósticos à conta de "fraqueza intelectual"; mas, quando essa atitude é a de um espírito que assombrou o mundo com a potência do seu gênio, é enorme a perplexidade dos que não crêem na existência de realidades espirituais. Na impossibilidade de negar a grandeza intelectual do autor dos "Pensées", resolveram muitos dos seus inimigos tachá-lo de "anormal c patológico". É possível que eles tenham razão; resta apenas saber o que é que se entende por "homem normal". Mais ou menos todos os grandes gênios da humanidade foram considerados loucos pelos "homens normais" do seu tempo; e o maior de todos foi por seus contemporâneos chamado "louco", "aliado de Belzebu", "possesso do demônio"... Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de outras terras onde não reinavam esses costumes, andando normalmente com as duas pernas. Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse "homem anormal". E, quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o modo de andar dele era natural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a vaia, porque, além de não saber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem anormal" deu-se pressa em abandonar a ilha dos "homens normais", porque tinha amor à sua vida... Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal: aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único — ou aquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual? (1) Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos "inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé. *** "Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente. É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrou Pascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidade de Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grande descrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosa da época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardente discípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja — vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele, sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua a amar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem o Cristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse
  • 11. 11 Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens que casualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele uma realidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Ele sabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementos humanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidade divina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, para além das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis e organizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedade eclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja. É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascal escreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios de Pascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1). (1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual da humanidade". *** Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor do que nós. Ele é, a bem dizer um crente descrente... Um dogmático cético... Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade... Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões do coração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece... Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma perene agonia metafísica... Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do Infinito... Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o intelecto e a liberdade na ara da graça divina... Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça. Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior, porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitem a entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza e humildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, no entanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, mas uma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... As belezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser as longínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna, muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?
  • 12. 12 Discípulo devotado de Agostinho, herdou Pascal toda a inquietude metafísica do grande pensador e místico africano, mas não lhe herdou, na mesma medida, a paz de espírito que o filho de Mônica gozou depois da sua conversão. Tão intensa era a sua fé que pediu a Deus dez anos de saúde para poder escrever uma grande apologia do Cristianismo; mas Deus como ele diz resignadamente, só lhe deu quatro anos de enfermidade; e, assim, só temos da planejada obra um esboço, que, mesmo nessa forma fragmentária, é um dos maiores monumentos da literatura cristã de todos os séculos. *** Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que não chegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade? Não o sabemos — nem ele o sabia... Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades do mundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de uma certeza espiritual? "Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardente desejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio, Senhor - ajuda a minha incredulidade!" Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal de contas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer do que não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no "descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perda eterna. Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coração adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menos razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ou suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eterno litígio em torno dos problemas centrais da vida humana. (1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vive como se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea que não pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é pagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Esse totalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres Provinciales". O intelecto é um aspecto parcial do ser humano - o coração é a totalidade panorâmica do nosso ser. Como poderia Deus, a plenitude infinita, ser objeto de uma faculdade tão finita como é a nossa inteligência?
  • 13. 13 Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva do coração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deus incompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coração e Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode romper e revelar Deus face a face. Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilha estradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Natureza externa e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário, escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrás do misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade... A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que a inteligência não entende, e, não raro, entende às avessas... Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem, porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências, os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumes se perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios o caráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para o coração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia - delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa deste véu... A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chega invariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não consegue transpor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão para atravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é um movimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elos concatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha; chegou a um "ponto morto". O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está do outro lado, não se sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo de chegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como... A inteligência é analítica — o coração é intuitivo... Aquela marcha — este voa... A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima no mundo da mística... *** Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões do coração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a
  • 14. 14 ciência das matemáticas e um apuradíssimo senso da objetividade imediata, não podia deixar de sofrer acerbamente a sua fé, preciosamente porque a vivia profundamente. Uma grande realidade espiritual vivida é por força um grande sofrimento. Quem não sofre a sua fé não a vive. Só uma fé dolorosamente sofrida é uma fé realmente vivida. A fé não é um teorema matemático que possa ser integralmente demonstrado, sem deixar margem para o contrário. Se das coisas espirituais tivéssemos evidência matemática — que mérito haveria em crer? Por que teria Jesus dito: "Quem crer será salvo — quem não crer será condenado"? Se do crer ao não crer vai um abismo tão profundo como a distância entre o céu e o inferno, não é isto prova de que a fé não pode ser um simples ato da inteligência, como as verdades da física ou matemática? Para que haja fé é necessário que haja margem para o contrário. O crer supõe a possibilidade do não-crer. Eu não creio que duas vezes dois é igual a quatro - isto eu sei. O que, em última análise, leva o homem a crer, ou a não crer é a sua vontade, e não a inteligência. Esta prepara apenas o caminho, mas não dá o passo último e decisivo para a fé. Em última análise, o homem crê porque quer crer. Este seu querer não é ulteriormente analisável. O querer é, por assim dizer, um ato hermeticamente fechado em si mesmo, indevassável, inescrutável. Não tem explicação fora de si mesmo. Gira sobre seu próprio eixo. É independente, autônomo. Quero — porque quero! É certo que há motivos externos para esse querer, motivos que atuam sobre a minha decisão e escolha; mas não há motivos rigorosamente determinantes. Sejam quais e quantos forem os motivos externos que sobre mim atuem, em última análise, nenhum deles, nem a soma de todos eles determina o caráter do meu ato volitivo. E, em face de todos os motivos pró e contra, tenho a consciência nítida de poder responder com um sim ou com um não a toda essa ofensiva dos motivos externos. Eu é que sou o dono e árbitro único do meu ato volitivo. Sou o único possuidor da chave para abrir e fechar a porta da minha vontade. E isto não é ilusão da minha parte, como querem os deterministas. Se a consciência me ilude — quem me pode desiludir? A consciência é a última instância, o Supremo Tribunal; mia sentença é inapelável! Se não posso confiar na minha consciência — em quem é que hei de confiar? Se quisermos viver e pensar, temos de pensar, temos de admitir necessariamente que a nossa consciência seja condutora, e não sedutora — a não ser que queiramos arvorar a desordem, o caos e a mentira, em supremos fatores do Universo e fazer de Deus o rei dos tira-nos e impostores! A minha consciência me diz que sou livre nos atos volitivos do Eu — logo, sou livre! Falou a suprema instância! Sentença inapelável! O livre-arbítrio é a quintessência do ser humano. É o homem mesmo no mais profundo quê da sua natureza. A liberdade do querer nos faz propriamente homens; exime-nos, liberta-nos dessa mesma cadeia de casualidades férreas que entretece todos os fenômenos do Universo, sem excetuar a nossa própria inteligência. No livre- arbítrio está a Carta-Magna da minha nobreza humana, a minha maior semelhança com Deus.
  • 15. 15 Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O ato livre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe. Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele o autor responsável por sua fé. É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer! Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismo bastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que nele existe. Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) do Cristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau. Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é livre. Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que o crer é bom, e o descrer é mau? É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coração que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que o descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar o todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem e retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade, caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça, violência, crueldade, exploração, desassossego. *** Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ou santo. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingir- lhe apenas as faculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo, apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central do seu Eu, do íntimo quê do seu espírito. O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é. A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial. O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna — o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não se distrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escura as cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente: viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada mais o interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como ele sabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus são o culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista e anti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos do intelecto pela mística.
  • 16. 16 Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornava ele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa "cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem que empreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu... A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tido vida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi do mundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxo das coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas correm ao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elas nos abandonam, porque não creem em nós. . Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam os espíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - o heliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer obstáculo... *** Tão pouco interessava a Pascal a celebridade, que nem mesmo sistematizou, nem deu nome à estupenda obra que os pósteros, depois de sua morte, compilaram de mais de um miIheiro de farrapos de papel, a que puseram o nome de "Pensées". Essa obra fragmentária é um alimento e uma medicina para os incrédulos e cépticos do nome espiritual. No fundo, tanto os "Pensées" como as "Lettres Providenciales" são uma tremenda ofensiva do homem-cristal contra o homem-argila, possivelmente uma ofensiva do "Pascal convertido" contra o "Pascal não convertido". Nada combatemos tanto nos outros como aquilo que nós mesmos fomos um dia e cuja infelicidade sentimos dolorosamente. Nos casuístas e nos incrédulos vê Pascal o seu próprio Eu antigo, profano, amorfo, sua falta de forma de atitude espiritual definida - e vibrou tremendos golpes contra seu pseudo-Eu, que, nesse tempo, felizmente, já era um ex-Eu... Pascal não tolera em si nem nos outros o homem-argila, o homem-molusco, o homem-mingau, o homem-furtacor, penumbrista, acomodatício, político, esses seres neutros e incolores que Dante descreveu no 3º cântico do "Inferno" e dos quais diz o seu mentor Virgílio: "Não são anjos nem demônios esses homens; não os acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho, e não os engoliu o inferno, por que não eram dignos dele"... Por esta mesma razão também se revoltou Pascal contra toda e qualquer espécie de autorredenção pelagiana, por mais bem camuflada que ela se apresentasse e por mais poderosos que fossem os seus "piedosos" defensores... Para Pascal só existe uma teorredenção, uma Cristo-redenção. *** Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada, sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de
  • 17. 17 Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luz divina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência, não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a que se acham e fraquíssima a luz que os atinge... Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra... Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão todas as sombras... Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, a descrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e último tormento dos santos... Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um doloroso cepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração que a razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente. Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, só se conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirme que o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde o intelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição do coração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto, a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer. Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência. Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para os melhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismo deprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta, profunda e panorâmica espiritualidade cristã. A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho. A espiritualidade do próprio Cristo.
  • 18. 18 Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 1623 - 19 de junho — Nascimento de Blaise Pascal. 1633 — Pascal, aos 10 anos, estuda geometria por conta própria e escreve "Traité des sons" (tratado sobre os sons). 1638/39 — Aos 15 e 16 anos, Pascal elabora o "Traité dês sections coniques" (tratado sobre as secções cênicas) e publica, com espanto do mundo científico, os "Essais pour lês coniques" (ensaios para os cones). 1640/42 — Pascal trabalha na construção da sua máquina aritmética. Primeiro abalo grave de sua saúde. 1644 — Pascal faz presente de um exemplar da sua máquina aritmética ao "Grande Conde" (Luiz II). 1646 — Primeira "conversão" de Pascal pelos jansenistas, La Bouteillerie e Deslandes. Pascal "converte" sua genial irmã Jacqueline. 1647- 23 de setembro — Pascal tem, em Paris, uma entrevista com o célebre filósofo Descartes. 1647 - 4 de outubro — Pascal publica o seu tratado sobre o vácuo "Nouvelles éxperiences touchant lê vide". 1647 — Polêmica com o Jesuíta Noel sobre a teoria do vácuo. 1647/51 — Pascal elabora o "Tratado sobre o vácuo". 1648 - janeiro - Primeiras relações diretas de Pascal com Port-Royal. 1648 - setembro — Pascal publica o célebre esboço sobre o equilíbrio dos líquidos "Récit de Ia grande éxperience de 1'équilibre dês liqueurs". 1649 - 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética. 1651 — Princípio das relações de amizade de Pascal com o duque Roannez. 1651 - 24 de setembro — Morte do pai de Pascal. 1651 - 17 de setembro — Pascal escreve a célebre "Lettre sur Ia mort". 1652 - 14 de março — Pascal oferece à rainha Cristina da Suécia um exemplar da sua máquina de somar, acompanhado de uma carta dedicatória. 1652, - 8 de julho — Pascal fabrica o modelo definitivo da sua máquina aritmética, que se acha atualmente no Conservatório de Artes e Ofícios, de Paris. 1652 ou 1653 — Pascal escreve os célebres pensamentos sobre o amor "Discours sur les passions de 1'amour". 1653 - 6 de junho — Pascal escreve os tratados sobre os líquidos e sobre o peso da massa atmosférica, "Traité dês liqueurs", "Traité de Ia pesanteur de Ia masse de l'air". 1654 — Pascal escreve os tratados sobre o triângulo aritmético e sobre a ordem numérica, "Traité du triangle arithmetique", "Traité dês ordres numériques". Escreveu ao mesmo tempo uma série de pequenos trabalhos matemáticos e geométricos, em latim. 1654 - junho-outubro — Correspondência de Pascal com o célebre físico Fermat. 1654 — Acidente na ponte de Neuilly. 1654 - 23 a 24 de novembro — Profunda experiência religiosa de Pascal, início da sua "conversão" definitiva à vida espiritual. 1654/55 — Pascal escreve um tratado sobre o espírito da geometria, "Traité de 1'esprit géometrique". 1655 — Pascal associa-se aos eremitas de Port-Royal dês Champs. 1655 - 19 de janeiro — Carta de Jacqueline a seu irmão Blaise sobre a conversão dele. 1655 - dezembro — Pascal em Paris. 1655 — Pascal entretém-se com o grande M. de Sacy sobre a vida cristã 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética. 1656 - 23 de janeiro — Pascal publica a primeira das suas famosas "lettres Provinciales". 1656 — Correspondência de Pascal com Mlle. Roannez, irmã do duque Roannez, sobre a vida espiritual. 1657 - 24 de março — Pascal publica a sua última (18ª) "Lettre Provinciale". 1657 - 6 de setembro — A Congregação Romana do Index condena as "Lettres Provinciales". 1657/62 — Pascal trabalha na sua Apologia da Religião, intitulada, mais tarde, pelos editores, "Pensées". 1658 - 11 de junho — Pascal institui o concurso sobre a "roulette" ou a ciclóide (1). 1658 - 25 de novembro — Apuração do concurso sobre a ciclóide. 1658/59 — Diversos trabalhos de Pascal sobre matemática e geometria. ' 1658 ou 1659 — Pascal expõe, numa conferência, o plano da sua Apologia da Religião ("Pensées"). 1656, fevereiro — Expulsão das monjas e dos eremitas de Port-Royal. 1661 - 6 de outubro — Morte de Jaqueline, irmã e conselheira espiritual de Pascal. 1662 - janeiro — Pascal estabelece a primeira empresa de omnibus em Paris e obtém para a mesma carta patente da autoridade pública. 1662 - 3 de agosto — Testamento espiritual de Pascal. 1662 - 19 de agosto — Morte piedosa de Blaise Pascal, com 39 anos de idade. (1) Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avanço progressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A solução final do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.
  • 19. 19 Lampejos de Gênio Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colher num prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar, cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato. Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas só este, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — e escreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons". _________ (1) Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão) Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline, em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não me desampare, Senhor!" Certo dia, encontrou o pai ao pequeno Blaise sentado no soalho do quarto a riscar com um pedaço do giz "rodas e barras" (ronds et barres),como ele chamava, lá na sua linguagem infantil, os círculos e as linhas retas da geometria; e passou a explicar ao pai estupefato as relações que descobrira entre essas "rodas" e as respectivas "barras". Estranho divertimento para uma criança!... Por esse mesmo tempo, provou Blaise que a soma dos ângulos de um triângulo perfaz dois retos, solvendo assim, por passatempo, o 32º teorema de Euclides, cujo nome ignorava. Adolescente de 16 anos, escreveu um tratado sobre as secções dos cones, "Traté des sections coniques", problema de alta geometria, que assombrou o mundo profissional da época. Descartes, o grande filósofo, recusou-se por muito tempo a crer que semelhante trabalho fosse feito por um jovem dessa idade. *** De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinha Jacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assunto que ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana da Áustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a sua capacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talento precoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica da família Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro de Estado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amour tyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que se conduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e a família da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e, para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa
  • 20. 20 filhinha, foi chamado a Paris, onde Richelieu o nomeou Prefeito de Rouen, prometendo, outrossim, interessar-se pela carreira dos jovens Pascal. Não foi necessária esta proteção do Ministro. Os jovens Pascal, sobretudo Blaise, fizeram a sua grandeza, independente de favores públicos, graças aos extraordinários cabedais que a Divina Providência lhes outorgara. *** Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, uma máquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com as finanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerosos exemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios da aritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuas logarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França. Na carta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genial matemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístola não refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramos nas "Pensées". De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos de Física, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiences touchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo não resistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais se restabeleceu completamente. Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, por nome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candente sátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maiores sensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logo depois, traduzidas em todas as línguas. Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nos meandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ou inconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundos ignotos... Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamente belos...
  • 21. 21 Os Eremitas de Port-Royal Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que por largo tempo o reteve de cama. Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo de Ypres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea que restituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para as alturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas da graça divina. Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade de Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo. Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismo tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo, em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispo de Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmente depauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares de almas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante, suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral dentro do seio da Igreja. Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassem diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias de Jansênio. O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistente brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seu tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábil Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. No intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cinco Bispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez, continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero. Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. Saint- Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vasta correspondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidade cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, no velho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royal dês Champs". Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebre Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores das ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como que cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que, em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana. Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia e as tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,
  • 22. 22 mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles mesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade e prolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam. O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas". Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da Companhia de Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus. Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa "casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma do povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprio espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitor depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de alguns desses livros impugnados. Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que, na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Mais amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual Aristóteles- Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um "condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte da liberdade humana. Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempre insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdade humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmonia entre dois fatores aparentemente antagônicos. *** Enquanto os dois piedosos samaritanos pensavam os ferimentos de Etienne Pascal, escutava o jovem Blaise com grande atenção o que eles diziam do misterioso poder da graça de Deus. E a mensagem divina calou fundo na alma do cientista, cuja sede espiritual era muito maior que sua fome de ciência. Terminada a cura do acidentado, despediram-se os dois Jansenistas, deixando toda a família Pascal profundamente impressionada com o ideal religioso. Na alma do jovem Blaise estava lançada a semente, que, todavia, só mais tarde, ia brotar, Não estava ainda preparado o terreno. Pascal cria ainda por demais no poder da vontade humana. Teria de passar primeiro por uma série de dolorosas experiências e derrotas íntimas para descrer de sua amiga "vontade" e capitular incondicionalmente ante a graça de Deus... Que um homem como Pascal, de extraordinária potência intelectiva e volitiva, acabasse, dentro de poucos anos, por apelar da razão para a f é — isto é um dos mais impressionantes mistérios do poder de Deus, que derrota a vontade, sem lhe ofender a liberdade. A mesma força divina que dum Saulo fariseu fez um Paulo apóstolo, e do estudante pagão de Cartago fez o grande místico cristão de Hipona, faria também do exímio cultor da ciência um devotado discípulo da "loucura da cruz"...
  • 23. 23 Encontro Pessoal com Deus A impressão que as doutrinas dos dois enfermeiros Jansenistas causaram na alma de Blaise Pascal levou-o ao que ele chama a sua "primeira conversão". Começou a se ocupar seriamente com assuntos religiosos, quando, até essa data, se interessava, de preferência, pelas ciências naturais. Não se compara, todavia, esta primeira conversão com a segunda e definitiva, que ocorreu anos mais tarde e fez do grande matemático um ardente discípulo do Cristo e apóstolo do Evangelho. Mudança mais radical que no espírito de Blaise havia as doutrinas dos dois enfermeiros produzido na alma de Jacqueline, mudança que lhe cortou cerce a brilhante carreira literária iniciada — com grande pesar de seu amigo e admirador, o célebre poeta Corneille, que vivia em Rouen. A jovem poetisa, que teria sido provavelmente, uma das maiores glórias literárias da França, resolveu renunciar a tudo que o mundo lhe prometia e entregar-se inteiramente às humildes grandezas da vida espiritual. E com isto começou o seu longo Calvário, como acontece sempre àqueles que entram numa zona de intensa espiritualidade. Existe indissolúvel vínculo, ou talvez uma misteriosa afinidade e interdependência entre o amor e o sofrimento, como, aliás, prova a vida do próprio Cristo e de todos os seus verdadeiros discípulos. E este sofrimento nos é causado, em geral, por aqueles que mais de perto deviam acompanhar o nosso caminho ascensional. Numa viagem a Paris, entrou Jacqueline em contato com as religiosas de Port-Royal — e convenceu-se de que só na solidão do mosteiro é que poderia realizar o seu grande desejo de vida intensamente espiritual. O pai, todavia, se opôs terminantemente aos planos da talentosa filha. Também Blaise procurou dissuadi-la do seu intento, e isto por uma espécie de egoísmo espiritual. Jacqueline era, nesse tempo, a única alma que compreendia os anseios íntimos do irmão. Com ela se abria Pascal e dela recebia grandes luzes. A ideia de ter de separar-se da irmã afigurava-se-lhe como que um eclipse religioso em plena alvorada. Entrementes, casara Gilbert, a irmã mais velha, com um senhor por nome Périer. Em 1649 visitaram os três Pascal, Etienne, Blaise e Jacqueline, a Madame Gilbert Périer, em cuja casa se demoraram algum tempo. Querem alguns biógrafos que Blaise se tenha, nesta ocasião, enamorado de uma jovem da Auvergne apelidada "Safo". Parece, todavia, tratar-se de outro cavalheiro com o sobrenome Pascal. O certo é que o nosso matemático, que contava então 26 anos, frequentou sociedade e se tornou grande amigo de alguns homens de destaque, entre eles o duque de Roannez, como também de um cavalheiro elegante por nome Jorge Méré. Este, apesar de espírito medíocre e apaixonado jogador, veio a ter notável influência sobre Pascal, não tanto sobre o seu caráter como sobre sua vida externa e seu traque j o social. Pascal vivera até então para a sua querida matemática e física e sabia melhor como resolver cálculos infinitesimais do que como portar-se em um salão elegante no meio de damas e cavalheiros. Méré julgou de seu dever fazer do solitário pensador um autêntico homem da sociedade, um "honnête homme", como se dizia naquele tempo. E, por alguns anos, pareceu ter sorte com a sua tentativa civilizadora.
  • 24. 24 Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em torno de uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa". O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da sua atitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamento remonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo da haute-volée contemporânea. Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline no mosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queria ver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua. Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida da dileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubrações científicas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levou vida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nem abismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade. Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado por Cousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentido profundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sen- sação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente — isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso e enigmático. Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã do duque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntos essencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica. Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal era homem não menos afetivo que intelectivo. *** Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, na carruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista. Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha- mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,
  • 25. 25 confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo da graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista. Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha- mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline, confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lam- pejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é uma realidade muito superior a todas as chamadas visões. Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre a vida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintes palavras, do punho do agraciado: "L'an de grâce 1654. Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres au martyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres. Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie. Feu. Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu de Jacob, non dês philosophes et dês savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix. Deum meum et Deum vestrum. Ton Dieu será mon Dieu." Tradução: "Ano da graça de 1654. Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de São Crisógono, mártir, e outros. Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia. Fogo. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.
  • 26. 26 Deum meum et Deum vestrum. Teu Deus será meu Deus." Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das 10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã de Pascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora da morte. Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas lá estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebre Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele por todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas: quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor de Deus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas. A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando absoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a Deus a natureza. Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram o nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto e Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos, um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza do homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está o Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ou seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelo despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo. Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os mais luminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda? Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção? M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos que são as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com o espírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, como também os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana. Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dado ocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebre filho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuito de fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontra abundantíssimo material para seu jardim ou seu museu espiritual — tão panorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hipona podem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; basta colecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outros coloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde, vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta ou daquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens, porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só um espírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender e interpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de
  • 27. 27 Jesus Cristo é o que há de mais inclusivista e panorâmico que se possa imaginar — e dele precisamente têm os espíritos estreitos e exclusivistas feito a mais horripilante caricatura que já apareceu na face da terra. Todas as po- lêmicas teológicas e todas as guerras de religião nasceram desse exclusivismo, destruindo a harmonia espiritual da humanidade que o vasto inclusivismo de Jesus estabeleceu entre os homens. Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino, conquistou Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidade panorâmica e integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Rei imortal dos séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãos dos nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus "Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado pela tempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As perseguições de que a Igreja é alvo oferecem esta satisfação." A exemplo de sua grande patrícia, Joana d'Arc, tão cristã quão analfabeta, não identifica o genial filósofo a Igreja de Cristo com esta ou aquela organização eclesiástica, menos ainda com os homens que, neste ou naquele período, representam casualmente a Igreja. Se assim fosse, seria tão mal-segura a sua fé como falíveis são os homens. Daí a pouco, teria ele ensejo para ver a enorme diferença que vai entre a alma divina da Igreja, que ele amava apaixonadamente, e o corpo humano dessa mesma Igreja, que nem sempre espelha a pureza e perfeição da alma. Católicos menos esclarecidos em sua fé se têm escandalizado com a atitude de Pascal no meio do conflito religioso do seu tempo — e esquecem-se de que ele foi obrigado a essa atitude precisamente pela fé firme e pelo ardente amor que votava à Igreja de Cristo. Outra atitude não podia Pascal assumir, depois da sua grande experiência espiritual de 23 a 24 de novembro de 1654, em que ele se encontrou, como diz, não com o "deus dos cientistas e dos filósofos, mas com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó".
  • 28. 28 Conflito Entre Duas Humanidades Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim, pelas direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a humanidade de todos os tempos. Se solveram algum problema ou definiram algum pensamento, é isto precisamente o limite da sua grandeza e o princípio da sua pequenez. A sua verdadeira grandeza está nas orientações que deram, porque essas orientações vão para o Infinito. Quanto menos diferenciado é um ser tanto mais susceptível de evolução, tanto mais fecundo de direções várias, de possibilidades vitais e evolutivas. Um ser altamente diferenciado tem poucas possibilidades evolutivas: está colocado sobre trilhos fixos, rigorosamente determinados, e daí não pode sair; só pode correr na direção desses trilhos, e não enveredar pelas mil e uma estradas do ser não diferenciado. É o que se dá também no mundo dos pensamentos e das ideias. Poderosa matéria-prima repleta de energias vitais são as ideias dos grandes homens. Matéria-prima cósmica — e não artefato humano! Milhares e milhões de pensamentos podem ser plasmados dessa enorme idéia cósmica, fundamental, prenhe de ilimitada fecundidade. Lançar ao mundo dos homens essas ideias fundamentais é obra do gênio, não do simples talento, menos ainda do homem erudito. Destacar desse gigantesco bloco partículas maiores ou menores, modelá-las em pensamentos, fazer desse minério geral pequenas moedas correntes para o comércio espiritual da humanidade — é tarefa dos pequenos operários da inteligência. O gênio não fabrica pensamentos — crea ideias. Arranca das profundezas do cosmos enormes blocos amorfos, verdadeiras montanhas de minério bruto — e segue o seu caminho. O gênio é um estranho emissário do cosmos superconsciente. Causa terror, estupefação. É geralmente combatido pelos pequenos mercadores da inteligência e da moral, como algo de absurdo e monstruoso, como um ser de outros mundos que venha perturbar o tépido sossego do nosso planeta. E têm razão esses mercadores — lá do seu ponto de vista. Tempestades e terremotos são fenômenos que incutem pavor... Segundo a concepção do citado filósofo germânico não parece Pascal pertencer aos grandes gênios da humanidade. A sua obra imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar. E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós- mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses maravilhosos imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem
  • 29. 29 acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar. E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós- mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses maravilhosos cristais de pensamentos rigorosamente delineados. Quem lê Pascal, longe de ver solvidos os eternos problemas da humanidade, mais inebriado se sente desses problemas. Sente-se por eles empolgado e já não pode viver sem eles. Não é possível continuar a vegetar no marasmo habitual da sua indiferença... Entra-lhe no sangue uma febre metafísica, um fogo sagrado que não o deixa em paz. Pois, o que forma o fundo, o background, de toda a atividade literária, polêmica e espiritual do eremita de Port-Royal é o que há de mais vasto, antigo e obscuro no seio da humanidade. Pascal não vale pelos problemas que, porventura, tenha solvido - vale pela inquietude metafísica que lançou nos espíritos estagnados e pela sede de espiritualidade que acendeu. E isto vale também das "Lettres Provinciales" do grande pensador. Em Pascal e nos "casuístas" que ele impugna, defrontam-se dois mundos tão antigos como a própria humanidade. Entram em conflito duas humanidades — a humanidade da superconsciência intuitiva e a humanidade da consciência intelectiva. Que é o homem? É o homem apenas aquilo que ele faz intelectual, livre e conscientemente — ou também aquilo que ele é no vasto subsolo da sua individualidade inconsciente e involuntária? É o homem apenas o seu ser consciente - ou é ele também o seu ser superconsciente? Em torno desse tremendo dilema gira, em última análise, toda a luta de Pascal e dos seus adversários. Pascal entende o homem na sua totalidade, consciente e superconsciente — ao passo que seus impugnadores consideram o homem apenas segundo a sua zona consciente e livre. A França tem sido, desde tempos remotos, a terra clássica dessas duas ideologias contrárias e insolúveis, ideologias que se concretizam em dois dos seus maiores poetas: Racine e Corneille. Racine pinta o homem assim como ele é, de fato, em sua generalidade, com todos os seus claros e escuros, e não assim como poderia ou deveria ser. Corneille descreve os seus heróis assim como deviam ser à luz da consciência cristã, mas como os homens não são geralmente. Para os moralistas intelectualistas que Pascal combate, só é moralmente imputável ao homem o que ele pensa, diz e faz na zona diurna da sua consciência vígil, e não o que acontece na zona noturna da sua sub ou superconsciência incontrolável. Para Pascal e seus amigos de Port-Royal, de orientação platôníca- intuitiva, é o homem responsável, não só pela parte diurna, mas, até certo ponto, também pela parte noturna do seu ser e agir. O homem é um indivíduo, sim, mas é também uma síntese da humanidade, e os pecados da humanidade são, em certo sentido, os pecados do homem. Há um "pecado original" que é da humanidade e é do homem, porque houve uma "queda" do homem na "queda" da humanidade. Como poderia a célula ficar indene da contaminação do organismo? Como poderia o indivíduo ser puro, quando impura é a
  • 30. 30 espécie? Do homem é a culpa consciente que ele contraiu, do homem é também a culpa inconsciente que a humanidade nele contraiu. Se da culpa consciente houvesse ego-redenção, para a culpa inconsciente só basta unia teo-redenção. Só a Divindade é que pode cancelar a culpa da humanidade (1) . É certo que a teologia dá razão aos moralistas, e não a Pascal — mas resta saber se a nossa teologia intelectualista é a expressão da verdade integral. Pascal é um grande visionário que adivinha ou pressente o que nenhum silogismo pode provar; ele não reconhece a inteligência como suprema instância da vida humana. (1) Sobre a natureza dessa "queda", ver "Metafísica do Cristianismo" do autor. Em última análise, os dois mundos que nesta luta se defrontam são a filosofia individualista e a intuição universalista. Aqueles apregoam uma ântropo-redenção - - estes ensinam uma teo-redenção. Aqueles crêem na potência redentora da inteligência humana -- estes descreem da impotência do pequeno Eu humano e clamam pela onipotência do grande Tu divino. Inteligência humana - - ou sapiência divina? É este o sentido último dessa tremenda conflagração de espíritos, no século 17. Os séculos subseqüentes tentaram uma conciliação desses paradoxos. Em Deus deve ser possível harmonizá-los; mas os homens não o conseguiram — e a questão continua aberta sem solução... *** Se seguirmos, rumo acima, o fio da corrente e investigarmos a última origem desse dualismo de concepção, toparemos com as primeiras páginas do Gênesis, onde se fala de uma "queda" do homem e da promessa de um "redentor". Em que consiste essa "queda"? Discordam os homens. Jesus Cristo, que poderia dar solução plena do enigma secular, nunca se referiu a uma "queda" da humanidade. Parece supor a bondade natural do homem, não só do homem do Éden, mas do homem de hoje. Mais de uma vez propõe ele uma criança - isto é, um homem plenamente natural - como modelo de pureza e de retitude espiritual, alvo da complacência divina; exige de seus discípulos que sejam puros e bons como as crianças; diz que os anjos do céu são protetores desses pequenos; identifica-se com as crianças, considerando feito a ele o que a elas fizermos; comina terrível castigo ao homem que, pelo pecado, destruir, na alma da criança a natural bondade e pureza. Nem uma palavra sobre "pecado original", sobre uma "culpa hereditária" saiu dos lábios do Nazareno. Nenhuma referência à necessidade de redenção para essas almas naturalmente puras e boas encontramos nos ensinos de Jesus. A redenção de que o Nazareno fala parece ser necessária unicamente para os que, pessoal e livremente, abandonaram os caminhos de Deus. Do outro lado, porém, temos o apóstolo Paulo, que é o grande confessor do pecado original, e afirma ter recebido diretamente de Jesus o seu Evangelho. Ensina ele, com grande insistência, que por um só homem, Adão, entrou o pecado no mundo e passou a todos os homens - e por um só homem, Cristo, entrou no mundo a redenção do pecado. Num só chefe humano pecaram todos os homens, e nenhum só chefe divino são justificados todos os homens. Mais tarde, Agostinho, calcando os vestígios de Paulo de Tarso, constituiu-se estrênuo defensor da culpa original da humanidade. Desde então, é a teologia cristã
  • 31. 31 essencialmente paulino-agostiniana. O homem, em consequência da queda, se tornou tão fraco que não se pode levantar, só pode ser levantado, como aquele malferido viajor à beira da estrada Jerusalém-Jericó. Em todos os tempos houve, no seio da humanidade cristã, adeptos da ideologia paulino-agostiniana em sua forma mais rígida, e houve adeptos de uma concepção mais suave, mais evangélica que teológica, mais de Jesus que de Paulo, se assim se pode dizer. Os Jansenistas de Port-Royal e seu grande porta-voz, Pascal, professam uma ideologia nitidamente paulino-agostiniana — ao passo que seus adversários dizem advogar a mentalidade de Jesus Cristo, assim como aparece nas páginas lapidares do Evangelho. É inegável que tanto uns como outros tenham levado ao extremo as suas idéias, uns em defesa da graça divina, outros a favor da liberdade humana. Resta saber em que extremo está o maior dos males, para o homem cristão - e quem o poderia dizer? A única atitude razoável é a da humildade e da caridade. Ninguém, se arvore em único sábio entre ignorantes, em único ortodoxo entre heterodoxos. Praticamente, faça cada um da sua liberdade um uso tal que a graça de Deus possa nele trabalhar com toda a plenitude. E siga cada qual a esplêndida máxima de Agostinho: “In dubüs libertas, in necessariis unitas - in omnibus charitas”- “Haja nas coisas duvidosas liberdade, nas necessárias, unidade — e em todas, caridade!"
  • 32. 32 Defendendo Jesus Contra os Jesuítas As famosas "Lettres Provinciales" fazem, hoje em dia, parte da literatura mundial, tanto pelo espírito que as ditou como pela forma literária que revestem. Raras vezes terá um homem defendido, com tamanho ardor, com tão arrasadora sátira e com tão ofuscante brilho intelectual, as suas convicções religiosas como o autor dessas 18 cartas. Ao lê-las, é necessário ter sempre presente que, por detrás de tudo aquilo, está a vastíssima zona noturna do subconsciente (1) pascalino. Não é, em última análise, contra os Jesuítas que Pascal se revolta, mas, sim, contra um elemento visceralmente contrário às profundas experiências religiosas do solitário eremita de Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas da Companhia de Jesus. Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas da Companhia de Jesus. As "Lettres Provinciales" são, na sua essência, o brado de uma ingente paixão religiosa. Pascal luta pela suprema razão-de-ser da sua existência, luta pela sua fé cristã, luta por seu Deus e pela Eternidade. Pascal luta, a bem dizer contra um pseudo — ou ex-Pascal, isto é, contra aquilo que ele mesmo fora, contra uma ideologia, que ele mesmo, em tempos idos, já professara, em parte, e da qual se libertara definitivamente, na memorável noite do seu encontro pessoal com Deus. (1) O que, por via de regra, se chama subconsciente espiritual é, na realidade, um superconsciente. Nunca luta o homem com maior convicção e veemência do que quando toma a ofensiva de um Eu contra um ex-Eu. Os adversários de Pascal, percebendo o fraco da sua defensiva, passaram também à ofensiva, cobrindo-o seu agressor de impropérios, atribuindo-lhe as intenções mais infames, acusando-o de falsário, ridicularizando-o como palhaço, tachando-o de herege, mas sem conseguirem destruir o ponto central da controvér- sia. Pascal servia-se de armas forjadas pelos seus próprios adversários, de livros deles estampados em dezenas de edições, e ainda que, na tradução do latim para o francês, incorresse em uma ou outra inexatidão insignificante, qualquer pessoa sincera poderá verificar, à luz dos próprios originais latinos, que o verdadeiro alvo das acusações não é afetado por nenhuma dessas pequenas divergências de tradução e citação. Mesmo que coássemos os "mosquitos", sempre ficariam os "camelos"... Pode um homem mudar de ideias puramente intelectuais, mas não pode discordar da sua íntima experiência. Essa experiência íntima é, para ele, o Supremo Tribunal, a última instância, da qual não há apelação. O que o homem viveu e sofreu nas mais profundas profundezas do seu Eu espiritual, isto a tal ponto se consubstanciou e identificou com ele que chega a ser ele mesmo, o seu próprio Ser personal. E, como ninguém pode divorciar-se de si mesmo, assim também não pode o homem renunciar à sua íntima experiência espiritual. Um homem desses está disposto a sacrificar tudo - forças, tempo, mocidade, carreira, amigos, saúde, seu bom nome, a própria vida - em defesa do seu supremo ideal. Tudo o mais lhe parece secundário; a própria morte se lhe afigura sem im- portância em face da estupenda realidade interior que domina a sua vida.
  • 33. 33 Pascal, como foi dito, passou por essa grande experiência interior. Viveu a Deus. Teve o seu Damasco, o seu encontro pessoal com Cristo. Viu a malícia do pecado. Viveu a grandeza da redenção. Sentiu o terremoto da santidade de Deus. Viu-se colocado na linha divisória entre a grande treva e a grande luz. Por isto lhe parecia horripilante blasfêmia e sacrilégio qualquer compromisso covarde entre a luz e as trevas, entre a santidade de Deus e a miséria do pecador, como tentavam fazer os moralistas contra os quais ele vibrou o flamejante gládio do seu grande espírito e da sua arrasadora dialética. Nas "Lettres Provinciales" revela Pascal uma face do seu caráter que ninguém lhe conhecia e que também não aparece nos "Pensées": serve-se de um estilo irônico, esfuziante de chiste e genialidade, que, por vezes, faz lembrar o deslumbrante chispar de uma esguia chama de oxigênio a derreter duros metais. O seu gênio era antes melancólico do que colérico ou sanguíneo. O seu estilo é, por via de regra, calmo, ponderado, algumas vezes épico e trágico. Por que, pois, se serve Pascal, em sua polêmica, de um modo de escrever que parece não condizer com o seu caráter? Estamos aqui diante de um fenômeno psíquico dos mais notáveis. Por vezes é uma sonora risada a manifestação de uma profunda tristeza. Pode a maior comicidade revelar a mais sangrenta tragicidade de uma alma. Pessoas há que trazem a alma em chaga viva, dia e noite, mas que são tidas na sociedade por creaturas felizes e despreocupadas; o público ignora que essa aparente serenidade é a única defesa e válvula de segurança para conter e disfarçar o candente vulcão que estua nas ignotas profundezas dessas almas torturadas. Se um desses mártires é interrogado a respeito do seu bem-estar, afirma invariavelmente que vai às mil maravilhas, porque essa afirmação categórica é necessária para manter o status quo e impedir o impetuoso transbordamento da lava ígnea que arde nas profundezas dessa alma... Pois a sociedade, em geral, não permite ao homem ser o que é... Foi o que se deu com Pascal. O fundo melancólico e trágico de sua alma explodiu numa verdadeira tempestade de ironia e sátira, quando viu que homens tidos por muito religiosos desacreditavam o que para ele havia de mais querido e sagrado: o seu Cristianismo. E Pascal, o grande asceta que, apesar de fraco e doentio, cingia duro cilício sobre as carnes nuas; ele, o grande amigo da pobreza que se privava de tudo para acudir aos indigentes; ele, o solitário eremita que amava o silêncio e detestava o ruído — Pascal desce a mais ruidosa liça da época e desfere a seus adversários golpes tais que até ao presente dia não lhes cicatrizaram as chagas. Se se tratasse de uma ofensa pessoal, não teria o grande asceta escrito uma só palavra contra seus ofensores. Mas aqui estava em jogo a pureza da doutrina do Cristo, o Evangelho de seu divino Senhor e Mestre, pelo qual havia o eremita renunciado a todas as grandezas do mundo e escolhido a vida de solicitude e me- ditação. Quando, pouco antes da sua morte, perguntaram a Pascal se se arrependia de haver escrito as "Lettres Provinciales", respondeu que não, e que, se mais uma vez tivesse de escrevê-las, escrevê-las-ia com maior rigor ainda. Prova isto que as escreveu por convicção íntima, e não por algum sentimento de rancor ou inimizade. Escreveu-as com os lábios transbordantes de sátira - e com o coração afogado em lágrimas. Irrompeu o vulcão da sua grande dor em uma tempestade de risadas irônicas... Tão enigmático é esse homem secular...
  • 34. 34 Em Torno das "Lettres Provinciales" Tão árido e de tão limitado interesse para o grande público é o tema dessa polêmica entre Pascal e os Jesuítas, que é deveras para admirar levantasse tamanha celeuma na França, e muito além das suas fronteiras. Não fosse o grande talento do solitário eremita, provavelmente morreria o caso, circunscrito à esfera puramente escolástica e teológica da época. Conforme foi dito, agitava-se então entre os teólogos católicos a questão obscura, como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Nenhum dos contendores negava a ação da graça divina nem a existência da liberdade humana, mas discutiam a maneira como harmonizavam entre si esses dois fatores aparentemente inconciliáveis. Formaram-se dois partidos, aliás, já existentes, frisando um, com grande energia a atividade da graça, realçando o outro, com fervor, o papel da liberdade humana. Dessas concepções diversas nasceram, naturalmente, dois modos diferentes de encarar a vida humana e, sobretudo, a questão central da nossa salvação; numa palavra, duas modalidades de moral cristã. No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuos advogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a liberdade. E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a questão a seu favor, a tal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas que podiam andar de mãos dadas. Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" — eram adeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do mundo, dando a toda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência, abnegação. E não paravam em simples palavras e bons conselhos para os outros; eles mesmos davam com a pureza e austeridade da sua vida exemplo concreto da possibilidade de sua doutrina. Mère Angélique; a abadessa do mosteiro de Port-Royal, conseguira restabelecer entre as monjas cistercienses o antigo rigor do espírito do grande místico Bernardo de Clairvaux. E os eremitas que viviam a certa distância do convento, levavam a mesma vida de oração e austeridade. Neste ponto mostraram-se os Jansenistas irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de não levarem a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrina sobre a graça e a predestinação. Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie de Cristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da Judeia, do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e igualando-se aos outros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam eles que o Cristianismo não era apenas para um grupo de homens piedosos segregados do mundo, mas para toda e qualquer pessoa da sociedade que quisesse seguir a Cristo. E, na intenção paulina de "ganhar a todos para Cristo", reduziam ao mínimo as exi- gências da moral cristã, porque só assim lhes parecia possível a cristianização do mundo, pela qual trabalhavam incessantemente. Não queriam criar mosteiros cheios de ascetas, mas, sim, um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal e outros tenham dito contra os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de
  • 35. 35 reta consciência, negará que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!), estivessem animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo, muito dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciência intensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo do espírito de Jesus Cristo. Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral que veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e dire- tores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes e as almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e circunstâncias da vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados que os homens cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou diretor de almas de ter uma norma que salvaguarde os princípios eternos da moral cristã, por um lado, e, por outro, respeite a liberdade do penitente e não o repila da igreja. Navegar entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa para o piloto espiritual... Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas. Cravam-se as balizas ou muito para a direita, ou muito para a esquerda, provocando colisão com uma de duas coisas que devem ser, ambas, intangíveis... Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo dos cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos deles, praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião dos adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os pecadores, negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios de um dos amigos de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens que tiram os pecados do mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando conhecido texto evangélico, reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora não sejam da sua descoberta. Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada cristãs. *** O mundo católico da época não conhecia, geralmente, os livros de casuística escritos em latim; eram uma literatura quase privativa do clero; mas, como por estes princípios dirigia o clero os seus penitentes, compreende-se a indignação de Pascal, ao ter conhecimento de semelhantes normas de vida cristã. E, para prevenir do perigo o mundo leigo católico, resolveu divulgar em vernáculo o que havia de mais "escandaloso" nessa casuística. E com tanta eficiência se desincumbiu da tarefa que as "Lettres Provinciales" provocaram inaudita sensação em todas as camadas sociais, o que prova que a sociedade leiga não estava alheia aos princípios exarados nesses livros. Para que os nossos leitores possam julgar por si mesmos o caráter desses livros, passaremos a dar um resumo de alguns dos mais conhecidos. É fora de dúvida que os casuístas forjaram contra si mesmos armas terríveis, e não admira que um homem da tempera ética de Pascal, tomado de profunda indignação, levasse ao pelourinho do desprezo público certos moralistas do seu tempo. Acresce a agravante que não se tratava de opiniões pessoais e particulares deste ou daquele religioso, uma vez que todos esses livros vinham com permissão do Superior Provincial dos Jesuítas e de outras autoridades, recaindo, assim, esse
  • 36. 36 laxismo moral não apenas sobre o autor do livro, mas sobre o próprio espírito da Ordem que tais coisas aprovava como sendo expressão do espírito do Cristo — ou melhor, esse laxismo ético afetava a própria igreja de que essa Ordem era parte integrante e que se mostrava solidária com essa orientação. Pascal, pois, combate, indiretamente, o espírito da própria hierarquia da igreja de Roma.
  • 37. 37 Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas Em 1649 extraiu a Faculdade Teológica da Universidade de Paris, do livro "Augustinus", de Cornélio Jansênio, falecido Bispo de Ypres, cinco proposições que estariam em contradição com a doutrina da Igreja e enviou as mesmas à Roma. Os jansenistas reconheceram o caráter herético dessas sentenças, condenadas, em 1653, pelo Papa Inocêncio X, reconhecendo também à Santa Sé o direito de as reprovar, mas negaram que as ditas sentenças se encontrassem no livro"Augustinus". Pelo que, em 1654, o Papa declarou expressamente que essas proposições se encontravam no dito livro. Em consequência, Antônio Arnauld, lente da Faculdade e destemido Jansenista, foi demitido da sua cadeira. Estava assim o Jansenismo condenado em Roma e pelos Teólogos da Sorbonne. Arnauld, porém, não se conformou com a decisão pontifícia e teológica, e apelou para o bom senso do povo católico, para a "anima naturaliter christiana", como diria Tertuliano. Era necessário que alguém explicasse ao público, em língua vernácula e estilo acessível ao público, o ponto de controvérsia, para que todo o mundo visse até que ponto os teólogos adulteravam a doutrina do Cristo. Arnauld tinha certeza de que a alma cristã do povo não faria causa comum com os teólogos e jesuítas, mas defenderia a causa do Evangelho que os Jansenistas diziam ensinar em toda a pureza. É característico, nessa polêmica, o apelo do tribunal da aristocracia teológica para o da democracia popular, apelo esse que inclui a suposição tácita de que o catolicismo se encontra mais puro e incontaminado entre o simples povo cristão do que entre os eruditos profissionais da teologia. Mais tarde, Pascal foi além e "apelou de Roma para Deus", na certeza de que Roma, dando razão aos Jesuítas, não representava, nesse particular, o verdadeiro catolicismo, do qual não queria ele separar-se de forma alguma, nem jamais se separou. Tem-se dito que Pascal estava imbuído de ideias protestantes, tanto pelo fato de não ver nessa decisão do Papa a expressão pura do Cristianismo, como também por dar excessiva importância à Sagrada Escritura. Mais exato seria, talvez, compará-lo com um católico ortodoxo, como os da igreja grega, que não querem saber nem Romanismo nem Protestantismo, mas tão somente de Catolicismo, com todos os Sacramentos e todos os esplendores litúrgicos. Já dissemos em outra parte que Pascal, apesar de ser um homem inteligente e intelectual, é contudo, o tipo clássico do homem intuitivo — e a intuição das supremas realidades ultrapassa tudo que a filosofia ou teologia especulativa possam descobrir e ensinar. O apelo de Arnauld, da inteligência dos teólogos para a alma do povo, e o apelo que Pascal faz, da inteligência dos teólogos e do Papa para "o Senhor Jesus", simbolizam, em última linha, um apelo do intelecto para a intuição, do consciente intelectual para o superconsciente intuitivo. Por detrás dessa aparente rebeldia está a grande idéia cósmica — não o pensamento individual - de que o espírito da doutrina do Cristo é algo infinitamente além de tudo que a humana teologia possa atingir. ***