Este documento discute fatores que podem influenciar a transição para a agroecologia. A consciência pública sobre os impactos ambientais da agricultura atual e a organização de mercados alternativos podem pressionar por mudanças. Reformas no ensino, pesquisa e extensão rural também são necessárias para apoiar a transição para modelos sustentáveis. Políticas públicas alinhadas com a agroecologia em áreas como legislação, mercados e reforma agrária também são cruciais para promover a mudança social rumo à sustentabilidade.
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
Transição agroecológica externa e mudança social
1. 56
CLAUDINO, Livio Sergio Dias 1
,
LEMOS, Walkymário de Paulo 2
,
DARNET-FERREIRA, Laura Angélica 3
Resumo
Apesar do significativo avanço tecnológico
para o aumento da produção e produtividade
de alimentos, a fome e a degradação ambien-
tal ainda persistem em diferentes regiões do
planeta. Por tais motivos, e contrariando o
modelo atual de desenvolvimento agrícola, a
1
Eng. Agrônomo, MSc. em Agriculturas Familiares e
Desenvolvimento Sustentável (UFPA) e Doutorando
em Desenvolvimento Rural, Pós-graduação em De-
senvolvimento Rural, na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Bolsista doutorado FAPER-
GS/CAPES, E-mail: livioclaudino@hotmail.com
2
Eng. Agrônomo, DSc. em Entomologia (UFV), pesqui-
sador A da Embrapa Amazônia Oriental e professor
permanente do Programa de Pós-Graduação em Agri-
culturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável
(UFPA). E-mail: wplemos@cpatu.embrapa.br
3
Zootecnista, DSc em Sistema de Criação e Desenvol-
vimento Rural (INA-PG, França), Docente do Núcleo
de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Uni-
versidade Federal do Pará. E-mail: laurange@ufpa.br
Agroecologia surge como uma proposta cien-
tífico–metodológica em busca de diretrizes
para a transição rumo à sustentabilidade em
suas múltiplas dimensões. Este artigo anali-
sa como a consciência pública; os mercados e
as infra-estruturas; as mudanças no ensino,
pesquisa e extensão rural; a legislação; e a re-
forma agrária, podem se constituir em fatores
relevantes no processo de transição agroeco-
lógica externa, por serem tanto consequên-
cias como alavancas do processo de mudança
social, estando relacionados às (re)formula-
ções de políticas públicas no país.
Palavras-chave: Agroecologia. Transição
Agroecológica Externa. Políticas Públicas.
Abstract
Although the technological progresses for
the increase of production and productivity
of foods have been significant, the hunger
and environmental degradation still persist
in different regions of the planet. For such
reasons and contradicting the current model
Fatores capazes de interferir na transição
agroecológica externa e mudança social
Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 56-62, jan./abr. 2012
2. 57
of agricultural development, the Agroecology
appears as a scientific-methodological propo-
sal aiming to provide guidelines for the tran-
sition in direction for the sustainability in
its multiple dimensions. This manuscript ai-
med to analyze as the public conscience, the
markets and its infrastructures; the changes
in the teaching, researches and rural exten-
sion; the legislation; and the agricultural
reform can be constituted in relevant fac-
tors in the external agroecological transition
process, due they can be consequences and/
or effects of the processes of social change,
being related to the (re)formulations of pu-
blic politics in Brazil.
Keywords: Agroecology. External Agroecolo-
gical Transition. Public Politics.
1 INTRODUÇÃO
Os avanços alcançados na produção agríco-
la após a modernização da agricultura, como
o aumento na produtividade de diversas es-
pécies da base alimentar humana, alimentos
geneticamente modificados, super fertilizan-
tes e agrotóxicos, mapeamento de genomas
(animal e vegetal), entre outros, são deveras
notáveis (GLIESSMAN, 2001). Porém, ape-
sar de todo aparato tecnológico, das altas pro-
duções alcançadas, os problemas relacionados
com a fome crônica ainda são persistentes em
diferentes regiões do planeta (FAO, 2005).
Somando-se a isso, deflagrou-se um processo
de degradação ambiental em curtos espaços
de tempo, como nunca antes verificado na
história da humanidade. Esse paradoxo de
alimentos em abundância e tecnologias mo-
dernas resultando em fome e destruição dos
recursos naturais, tem se caracterizado como
um evidente processo de “crise socioambien-
tal” (CHONCHOL, 2005).
Diversas publicações sugerem que o proble-
ma consiste nas bases paradigmáticas norte-
adoras do modelo de desenvolvimento global,
pela forte dependência e degradação dos re-
cursos naturais renováveis e não renováveis
que esse modelo se baseia, às vezes consumin-
do mais energia do que produz (REDCLIFT,
2001) 4
. No caso da produção de alimentos na
agricultura industrial, cada prática, como fer-
tilização química, irrigação e/ou emprego de
pesticidas químicos levam à necessidade de
utilização de outras, criando uma cadeia de
dependência catastrófica no longo prazo.
Partindo-se de princípios e lógicas distin-
tos, a Agroecologia surge como ciência pro-
pondo a adoção de princípios que forneçam as
bases científico-metodológicas rumo à tran-
sição do modelo de desenvolvimento agrícola
atual para modelos de desenvolvimento rural
sustentáveis (MATTOS et. al., 2006; TETRE-
AULT, 2008; HAVERROTH, 2011). A Agroe-
cologia, busca dentre outras coisas, a transi-
ção no sentido de mudança, passagem de uma
fase para outra, ou, alteração nas caracterís-
ticas culturais, estruturais e/ou ecológicas em
sistemas já estabelecidos. Quando essa tran-
sição acontece fora das unidades de produção
agrícola é chamada de transição agroecológica
externa (CAPORAL; COSTABEBER, 2004).
Esse artigo caracteriza e analisa diferentes
fatores capazes de contribuir para a transição
agroecológica externa, sua capacidade de pro-
mover mudanças sociais, constituindo-se tan-
to em conseqüências como em alavancas de
políticas voltadas para a re-estruturação e re-
-configuração dos modelos de produção agríco-
la, de consumo e do próprio desenvolvimento
rural. Será ainda apresentada a importância
das ligações em diversos níveis (da consciên-
cia pública, mercados e infra-estruturas; mu-
danças no ensino, pesquisa e extensão rural;
legislação; e reforma agrária) no processo de
transição agroecológica externa. Os gargalos
para a sua implementação vão além da produ-
ção de alimentos, por abranger um conjunto
amplo de políticas ambientais, educacionais,
4
RedClift (2001, p.234), criticando modelo atual de ex-
ploração dos recursos naturais e produção de alimentos,
afirma que o desenvolvimento econômico “gerado pela
dependência de combustíveis fósseis conduziu a socieda-
de ao longo de um caminho que ignora os limites impos-
tos pela energia solar (em todas as suas formas). Em vez
disto, canalizou a riqueza material que os hidrocarbonos
fósseis ajudaram a produzir em direção à criação de bens
de capital, eles mesmos dependentes de maior explora-
ção de combustíveis fósseis”.
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3. 58
constitucionais, econômicas e sociais, que es-
tão no cerne da crise socioambiental,mas com
os quais é possível superá-la.
2 FATORES CAPAZES DE
INTERFERIREM NA TRANSIÇÃO
AGROECOLÓGICA EXTERNA
2.1 Consciência Pública, Organização,
Mercados e Infra-Estrutura
A ação pública do ato de comprar alimentos
pode ser capaz de modificar, pela pressão de
consumo e criação de demandas, a produção de
alimentos atual buscando-se alimentos mais
saudáveis, cuja produção seja consciente e ali-
cerçada na conservação dos recursos naturais
(GLIESSMAN, 2001; MATTOS et al., 2006).
Nos últimos anos, os meios de comunicação têm
publicado matérias incentivando o consumo de
produtos e alimentos produzidos com tecnolo-
gias e práticas de bases ecológicas 5
, com des-
taque para os orgânicos, os biodegradáveis e
com certificação sócio-ambiental. Este movi-
mento tem formado uma “consciência públi-
ca” sobre os prejuízos ambientais e na saú-
de humana, contribuindo para o processo de
transição agroecológica externa.
A conscientização da sociedade constitui-
-se, portanto, em um passo inicial a ser dado,
com as ressalvas de que: i) o processo de cons-
ciência pública não pode (como está sendo fei-
to atualmente) constituir-se em dinâmicas de
diferenciação e exclusão social, pela formação
de nichos de produção e de consumo, a exem-
plo do mercado de produtos orgânicos; ii) se
objetivarmos produção com os preceitos da
agroecologia, os valores éticos, sociais, políti-
cos e culturais devem ser levados em conta
no processo de conscientização, e não apenas
os fatores econômicos e ambientais (BLOCH,
2008, CAPORAL; COSTABEBER, 2004).
Problematizando esta questão, Gliessman
(2001, p. 596), diz que “as forças em ação na
economia de mercado (...) freqüentemente es-
tão em discordância com os objetivos da sus-
tentabilidade (...) [já que] os produtores são
forçados a tomar decisões baseados na reali-
dade econômica presente e não em princípios
ecológicos”. Almeida (2009), por sua vez, suge-
re que reflitamos sobre “circuitos de mercado”
pensados em suas especificidades, fugindo da
armadilha de substantivação de estudos de
viabilidade econômica dos produtos oficial-
mente orientados.
Experiências atuais têm alcançado êxito
no enfrentamento do grande desafio de fazer
parte do mercado capitalista sem se tornar
dependente dele. Algumas comunidades têm
fortalecido a organização e cooperação, obten-
do diferenciação e maior valorização nos pro-
dutos pela certificação solidária, feiras de pro-
dutos de bases ecológicas, conhecidas como
“feiras verdes”, e os mercados institucionais
ou comercialização para o governo (KARAM,
2002; MATTOS et al., 2006; BLOCH, 2008).
Bloch (2008) apresenta três experiências re-
alizadas na região do nordeste brasileiro, nas
quais a inserção dos produtores no mercado
de produtos de base agroecológica vem ocor-
rendo de maneira diferenciada, através de
princípios de economia solidária, na qual o
objetivo são os ganhos coletivos com ênfase
no comércio justo, associativismo, coopera-
tivismo. Os principais desafios a serem en-
frentados são a escassez de políticas públicas
voltadas para este tipo de economia e as difi-
culdades na capacitação e gestão de empreen-
dimentos coletivos.
2.2 Mudanças no Ensino, Pesquisa e
Extensão Rural
Para que a transição agroecológica externa
possa ocorrer de maneira consistente é neces-
sário que mudanças profundas, no nível para-
digmático 6
, ocorram nas bases do processo de
5
A publicação de imagens de famílias “felizes e sau-
dáveis” exibindo produtos orgânicos, tem se tornado cena
comum (p. ex. Revista Época nº 575, 25 de maio 2009,
p.118-119).
6
Para Kuhn (1995 apud Kasper, 2000, p.255) a defini-
ção de ‘paradigma’ pode assumir dois significados: “uma
constelação de crenças, valores, técnicas, etc., partilha-
das pelos membros de uma comunidade”; ou a noção do
desenvolvimento de “soluções concretas de quebra-cabe-
ças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem
substituir regras explícitas como base para a solução dos
restantes quebra-cabeças da Ciência normal”.
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4. 59
ensino, pesquisa e extensão do país (CAPO-
RAL, 2011). A introdução, nos últimos anos,
do enfoque sistêmico em alguns currículos de
ensino superior e em projetos de pesquisas e
extensão rural são indicadores que esse pro-
cesso já foi iniciado (SILVA, 2011). O enfoque
sistêmico da realidade é importante por per-
mitir perceber as inter-relações e fluxos re-
gulatórios dos fenômenos complexos naturais
ou sociais (KASPER, 2000), possibilitando a
criação de quadros institucionais formados
para a compreensão de sistemas sociocultu-
rais e ecológicos complexos.
Os papéis dos mediadores sociais, incluin-
do educadores, técnicos de instituições de pes-
quisa e extensão, lideranças de movimentos
sociais e comunidades, enquanto atores em-
penhados no exercício de contraposição entre
os universos de significação, são bastante re-
levantes. A esses caberão exercitar e facilitar
a constituição, consagração e divulgação de
novos ideais; metas e modos de organização;
se constituindo militantes fundamentais no
processo de transição para agriculturas sus-
tentáveis, pois são responsáveis pela inter-
venção e mediação entre esferas políticas e
sociais (NEVES, 2006).
O ensino em Agroecologia, pela necessi-
dade de posicionamento frente ao modelo
atual de desenvolvimento rural e de agri-
cultura, tem exigido uma abordagem cien-
tífica que considere aspectos não discipli-
nares (OLIVEIRA, 2006). A não linearidade
da produção e socialização dos conhecimen-
tos implica priorizar o reconhecimento dos
diferentes processos sociais, técnicos, ecoló-
gicos, históricos e culturais, que constituem
as relações entre homem/homem/meio am-
biente. Isso se aplica de maneira mais sig-
nificativa ao ensino já que os indivíduos
socializados agora serão os educadores, os
agricultores, as lideranças políticas e os co-
ordenadores de equipes técnicas do futuro.
Além do ensino, a pesquisa científica cons-
titui-se importante etapa no processo de tran-
sição agroecológica. O Marco Referencial em
Agroecologia da Embrapa (MATTOS et al.,
2006) é emblemático dessa possibilidade de
transição nas pesquisas em sistemas de pro-
dução agrícola brasileira. A perspectiva dos
envolvidos na elaboração desse documento
permeia a mudança paradigmática, em nível
institucional (nacional), das noções acerca
de desenvolvimento rural, com ênfase na in-
terdisciplinaridade e pesquisa participativa,
para construção e sistematização dos conhe-
cimentos em agroecossistemas (MATTOS et
al., 2006). Um evidente avanço nesse aspecto
foi a aprovação, no ano de 2009, do projeto em
rede “Transição agroecológica - construção
participativa do conhecimento para a sus-
tentabilidade”, liderado pela Embrapa Clima
Temperado (RS), que conta com a participa-
ção de outras 25 Unidades da Embrapa e 26
instituições parceiras do Brasil, que traba-
lham com o tema Agroecologia 7
.
As recentes mudanças nos “sujeitos da ação
ambiental 8
” traduziram algumas problemá-
ticas recentes que carecem de novas respos-
tas. Por exemplo, a valorização e construção
das territorialidades, surgimento de novas
identidades coletivas e os novos temas rela-
cionados aos direitos de propriedade intelec-
tual e imaterial como os conhecimentos tradi-
cionais, são exemplos de ações que põem em
xeque algumas das “boas intenções” relativas
à apropriação e valorização do conhecimento
tradicional por parte de pesquisadores. Emer-
ge, assim, a necessidade de se planejar o pro-
cesso de pesquisa redemocratizada, para que
esta não redunde em “usurpação” de formas
de conhecimento tradicional a serem paten-
teadas pela ciência (ALMEIDA, 2008; 2009).
No mesmo sentido que o ensino e a pesqui-
sa, e por meio destes, a Extensão Rural com
enfoque agroecológico passa a ser peça fun-
damental no processo de transição. Por meio
dos extensionistas, enquanto protagonistas
chaves da transmissão dos conhecimentos em
agroecologia, boa parte das técnicas e inova-
7
ver http://transicaoagroecologica.wordpress.com
8
ALMEIDA (2009) afirma que a ação ambiental até
antes de 1985 era concebida como sem sujeitos e após
esse período passa a ser percebida a partir de sujeitos
específicos heterogêneos em suas formas de relação com
a natureza.
Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 56-62, jan./abr. 2012
5. 60
ções tecnológicas chegam, são experimen-
tadas, reformuladas e propagadas para e
pelos agentes sociais no meio rural. Trata-
-se, portanto, de um processo em curso,
iniciado em 2003, quando o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) passou a
liderar as atividades de ATER (MATTOS et
al., 2006). No entanto, para Caporal (2011)
atualmente observa-se um retrocesso meto-
dológico para a implementação da transi-
ção agroecológica com a nova Lei de ATER
de 2010. Para o autor, houve perda do mais
preciso e vigoroso conteúdo da Lei, que se-
ria o direcionamento do desenvolvimento
rural a partir de enfoques multidisciplina-
res englobando princípios agroecológicos
com maior participação social.
2.3 Legislação
As mudanças ocorridas no Brasil após a
abertura democrática são emblemáticas da
“emergência de inúmeros movimentos sociais
e populares, que trouxeram à cena política
não apenas a questão das liberdades demo-
cráticas, mas também um conjunto de ban-
deiras e reivindicações setoriais [...], passan-
do pela reforma agrária, até a demarcação de
terras indígenas” (Santilli, 2005, p. 56). Os
novos direitos incluem a proteção ao patrimô-
nio social, cultural e ambiental, sendo chama-
dos de “direitos socioambientais”, dotados de
titularidade coletiva e não individual. O arti-
go 215 da Constituição Federal, por meio dos
direitos coletivos, representa um “movimen-
to”, que mesmo tênue, caminha no sentido de
mudanças no modelo universalista, por pos-
sibilitarem a consideração das diversidades
territoriais, sociais e culturais.
Mudanças promovidas pela sociedade e
Estado na legislação ainda são necessárias
neste longo caminho rumo à sustentabilida-
de (MATTOS et al., 2006), e a legitimação
dos direitos coletivos, incluindo um meio
ambiente equilibrado, ainda estão em am-
pla discussão e busca de indicadores. Em-
bora limitada, a legislação ambiental bra-
sileira tem sido considerada uma das mais
avançadas do mundo 9
e, o fato das prerro-
gativas legais apregoarem a noção de sus-
tentabilidade socioambiental indicam uma
brecha que pode favorecer os processos de
transição agroecológica externa no Brasil.
2.4 Reforma Agrária
A luta por reforma agrária, enquanto mo-
vimento contestatório ao modelo dominante
de constituição do mundo rural não é rei-
vindicação recente dos movimentos sociais
ligados aos agricultores. Gomes e Silveira
(2002, p. 5-6) mostraram que as primeiras
lutas pela terra no Brasil surgiram ainda no
início do século XX, e já naquele tempo se
reconhecia a necessidade da redistribuição
do recurso terra, pois é principalmente deste
que dependem e se assentam as mais diver-
sas formas de produção no país. No entanto,
os recentes exemplos ainda observados no
Brasil indicam que além de distribuir terra,
muito mais se faz necessário. Se no início,
a luta pela terra foi pilar quase exclusivo e
central dos movimentos sociais, atualmente
as pautas de reivindicações foram reformu-
ladas, apropriando-se de noções de sustenta-
bilidade ambiental e social.
Os próprios movimentos sociais que se le-
gitimaram como representantes dos agricul-
tores, a exemplo do Movimento dos Traba-
lhadores Sem-Terra (MST), vêm passando
por reformulações ao colocarem o paradigma
agroecológico como ponto central nas estra-
tégias de lutas e reivindicações (BORGES,
2009; VALADÃO; MOREIRA, 2009). Gomes
e Silveira (2002) apontaram que, embora a
conquista da terra seja objetivo central do
MST, é um projeto de reforma agrária mais
abrangente que se busca, o qual requer uma
modificação no próprio modelo de produção
agropecuária do país, e das visões de relação
entre a sociedade e a natureza. Tais reivin-
dicações são coerentes e aderentes às discus-
sões propostas pela Agroecologia, fato que
poderá contribuir sobremaneira para avanços
na transição agroecológica externa no Brasil.
9
Conferir <http://portal.abes-rs.org.br/?p=1952> (aces-
so em: 12 fev. 2012)
Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 56-62, jan./abr. 2012
6. 61
Atualmente, as propostas teóricas dos
principais movimentos sociais são bastante
similares àquelas que sustentam o conceito
de Agroecologia, indicando a importância
da proposta de reforma agrária, que, res-
significada pelos movimentos sociais, toma
corpo mais abrangente. As próprias ban-
deiras levantadas sobre as formas alter-
nativas de produzir, como a produção para
subsistência, não plantar transgênicos, não
usar venenos químicos sintéticos, diversifi-
car a produção, conservar o solo, etc. (GO-
MES; SILVEIRA, 2002), coadunam com o
processo de transição agroecológica, já que
se opõem à forma atual predominante de
produção, controle e consumo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo com avanços nos setores produ-
tivos e tecnológicos, o modelo atual de de-
senvolvimento agrícola não tem sido capaz
de sanar problemas relacionados à fome e
à pobreza, além de se constituírem cata-
lisadores da “crise socioambiental” atual
representada pela grande desigualdade
socioeconômica e degradação dos recursos
naturais. Nesse contexto de crise, a Agroe-
cologia surge como uma proposta capaz de
propiciar as bases científico-metodológicas
para alcançar a transição para modelos de
desenvolvimento rural sustentáveis. No
entanto, além de modificações internas nas
“formas de produzir”, a mudança no modelo
de desenvolvimento requer transformações
nas configurações e estruturas externas da
sociedade, o que vem sendo denominada de
transição agroecológica externa.
Esta publicação apresentou e discutiu os
fatores relevantes para se implantar o pro-
cesso de transição agroecológica externa no
Brasil, destacando-se entre eles: i) as mu-
danças na consciência pública, mercados e
infra-estruturas; ii) as mudanças no ensi-
no, pesquisa e extensão rural; iii) a legisla-
ção; e iv) a reforma agrária. Tais fatores se
relacionam com políticas públicas por evi-
denciarem a geração, organização, distri-
buição e uso de algum tipo de poder coletivo
com intermediação do Estado. O entrelaça-
mento desses fatores em relações comple-
xas, onde a interdependência dos fatores
não pode ser desconsiderada, faz desses
conseqüências e ao mesmo tempo alavanca
de mudanças rumo à transição agroecoló-
gica. Uma feira, um mercado, uma escola,
um centro de pesquisa, por exemplo, podem
se constituir em mecanismos gerados pela
negociação entre organismos públicos e re-
presentações sociais, servindo como centros
geradores da mudança social necessária
(SEVILLA GUZMÁN, 2006).
Os investimentos demandados para a
conquista de qualquer uma das etapas re-
levantes para o processo de transição agro-
ecológica externa são inúmeros, e, sem
dúvida, não podem ser conquistados indivi-
dualmente. Como um dos grandes objetivos
da Agroecologia é a mudança de paradig-
ma de desenvolvimento, faz-se necessário
rever as as bases que constituem as dire-
trizes orientadoras das políticas públicas,
a começar pelos fatores abordados nesta
publicação, visto que, os acertos e desacer-
tos serão considerados por todos os sujeitos
da ação (agricultores, lideranças políticas e
sindicais, representantes de ONGs, gover-
nantes, pesquisadores, etc.) no momento da
implantação ou não das propostas de de-
senvolvimento rural.
Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 56-62, jan./abr. 2012
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