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LOUS

RONDON
As Gêmeas de Narciso

1
As gêmeas de Narciso / Lous Rondon.
Cuiabá, 2013.
Romance brasileiro.

2
Para minha irmã.

3
Ninguém duvida serem muitos os que se cansam sem nada fazer, como os que se
dedicam a inúteis estudos de literatura.
SÊNECA
The rich get richer and the poor get children.
F. SCOOT FITZGERALD
Apenas através da mulher o homem aprendeu a saborear da árvore do conhecimento.
NIETZSCHE
Nada temos a temer.
Exceto as palavras.
RUBEM FONSECA
A linguagem escrita é uma safadeza para enganar a humanidade com mentiras.
GRACILIANO RAMOS
Escrever é uma chatice.
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
Para multiplicar minhas homenagens não faço distinção de idades.
SADE
Antes da refeição sanguinolenta!
AUGUSTO DOS ANJOS
Que a vida para os tristes é desgraça,
BOCAGE
É muito mais seguro ser temido do que amado.
MAQUIAVEL
Cada um de nós comporta-se como um paranóico, corrige alguma faceta do mundo
que lhe é intolerável, mediante a elaboração de um desejo e introduz esse delírio na
realidade.
FREUD
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
CAMÕES
Todo homem mata o que ele ama.
OSCAR WILDE
Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso.
4
MACHADO DE ASSIS
Tenho um tédio enorme da vida.
VINICIUS DE MORAES
Se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria.
ÁLVARES DE AZEVEDO
E quem são aqueles que o desgosto da vida levou a se matar? Não são sobretudo
pessoas devotadas à sabedoria? se a sabedoria se apoderasse de todos os homens.
Logo a terra estaria deserta.
ERASMO

5
NOTA DO AUTOR
MUITÍSSIMO obrigado por estar lendo, a parte mais difícil de escrever é arranjar
os leitores, e com eles tenho todo o zê-lo do mundo; algumas cenas foram retiradas ou
não foram escritas justamente pelo medo que tenho do que vão pensar; e nesta
notinha desejo incliná-los ao meu verdadeiro objetivo; primeiramente não pensem, nem
julguem por verdade qualquer coisa aqui escrita; é tudo ficção e não foi pensado em
ninguém, até pelo motivo de não conhecê-los; como vão ficar sabendo mais para
frente, pero já adiantando, essa estorinha se passa em Cuiabá, Mato Grosso, cidade
onde nasci; quis com isso regionalizar, trazê-la mais próximo da realidade dos leitores,
e para fazê-la compreensível às pessoas de outros lugares tratei de dar algumas
explicações necessárias, haja vista que Cuiabá não é uma capital como São Paulo,
Rio, ou Porto Alegre, que não precisa de nenhuma apresentação; não fui pago para
fazer propaganda de nada, dessa forma não sou obrigado a agradar ninguém ou
esconder certos defeitos, porém nem tudo diz respeito ao que realmente penso e nem
está expresso aqui o que defendo; por último notarão que tenho algumas
particularidades na escrita, erros cometidos propositalmente; estrangeirismo que trato
por língua brasileira; dividi por partes e subdividi por capítulos curtíssimos; rapidez no
relato; todas essas coisas encontradas e inspiradas em diversos autores.
Leitores sempre foram enganados por acharem que o escritor conhece tudo do
texto, totalmente os personagens e toda a verdade; eles são uma porta aberta para
qualquer tipo de criação, não é relatado todos os atos, só relata-se o que se vê, o que
sabe-se, o que se imagina, o que disseram; e interpretações nem sempre são
verdadeiras ou originais; quando o conteúdo entrar no seu cérebro ele vai ser
automaticamente influenciado por sua memória, o que já leu e viveu; parte do que é
ruim ou do que é bom foi feito pela fantasia do leitor; a mim só coube, infelizmente,
anotar o que os personagens fizeram, sem interferir.

6
PRIMEIRA PARTE: VIDA
CAPÍTULO I
ERAM QUATRO HORAS DA MANHÃ quando Joaquim Antônio Casalescchi
tomou o longo caminho para a cidade de Chapada. Cuiabá, graças a Deus, estava num
tempo bom, o orvalho da matina havia deixado o carro, a estrada, as árvores molhadas
e o ar com umidade quase em C por cento. O oxigênio entrava calmamente, deslizando
pelas vias aéreas, refrescando a garganta, as narinas, os pulmões, oxigenando o
sangue e as células, que davam energia ao corpo com a ajuda do copo grande de café
que tomara ao acordar. A estrada encharcada podia representar um possível acidente,
contudo valia a pena. O frio atrasava o aparecimento do sol. Os faróis ligados
acenavam de um carro ao outro, os pneus passavam pelos buracos, o limpador retirava
a água do parabrisa, velocímetro indicava LXX quilômetros por hora e o tanque estava
cheio.
Quanto tempo ainda falta para chegar? olhou o relógio do celular: restava mais
uma hora e meia.
Joaquim havia pego parte da herança que seu avô o deixara com a venda da
fazenda no Paraná, para comprar uma belíssima casa de um andar cercada de árvores
que o custaria mais de meio milhão, no morro da Chapada. Lugar privilegiado, solitário,
sem vizinhos, afastado do centro, da agitação, que usaria para descanso. Lá guardaria
sua biblioteca particular, com clássicos brasileiros e estrangeiros, e até os livros mais
desconhecidos. Teria uma sala ampla que praticaria a arte de carpintaria; em outra um
estúdio para gravação de música, era um excelente violonista; um escritório singelo,
equipado com máquina de escrever, computador, pequeno banheiro e uma cafeteira
para satisfazer seus prazeres de contista. Ao passar na casa feriados e finais de
semana usaria a internet para mandar os textos para o jornal; trabalho de freelancer,
artigos de opinião e poesias para uma revista carioca.
Quanto tempo ainda falta para chegar? olhou o relógio de pulso folheado a ouro
que ganhara de aniversário da namorada: meia hora.
Professor de literatura em uma escola particular no bairro Boa Esperança;
lecionava para o ensino fundamental noções básicas para o bom entendimento da
literatura mundial adaptada a atualidade e a vida cotidiana. Em outros turnos dava aula
de caligrafia e língua inglesa. Reconhecido pelas novas traduções de Kafka que estava
a conduzir por conta própria.
Estacionou, o dia havia nascido. Ao sair do automóvel mirou orgulhoso a enorme
casa que ficava no monte, portões compridos, pretos, uma câmera de segurança a
vigiar a rua vazia. As paredes de tijolinhos envernizados tinham como adorno colunas e
janelas de madeira bruta.
“Bom dia, seu Joaquim! Chegou cedo.", Carlos, o dono da casa o recebia.
“Sim, aproveitei a estrada que estava vazia. Não te fiz esperar, fiz?", sorriu.
“Não, claro que não, eu moro lá em Cuiabá, pero passei o final de semana na
casa da minha mãe que fica há alguns quilômetros daqui.”
7
“Eu vim hoje acertar toda a compra da casa.", Joaquim explicou.
“Vamos falar disso, entra deixa eu te mostrar a casa.", Joaquim já havia visto,
pero Carlos insistiu em mostrá-la mais uma vez, como se exaltasse a beleza do imóvel,
e contente Joaquim aceitou.
Carlos Becker era um homem grande de quarenta anos. Mãos fortes como de
um trabalhador braçal ou visiculturista, pero originava-se da genética alemã e o cabelo
castanho claro indicava que fora loiro na infância.
Subiram o monte escorregadio, e deram de cara com a gigantesca e fortíssima
porta de madeira.
“Entra”, Carlos procurou a chave no bolso esquerdo, não encontrou, pôs a mão
no bolso direito, “cadê?", procurou nos bolsos de trás e foi encontrá-la no bolso da
camisa, abaixo do paletó. Abriu correndo já que tinha desperdiçado tempo procurando,
parecia nervoso, porém apenas confirmava o mito de pessoas altas serem
desastradas.
A grande porta dava luz a uma arejada e espaçosa sala em que caberia dois ou
três jogos de sofá. Assoalho de madeira velho, precisava de outra demão de tinta.
Paredes claras, a lareira no centro da casa de enfeite, à esquerda um corredor que
daria às salas, à direita três portas, a da cozinha, a da garagem e a trancada para o
porão. Após a contemplarem Carlos falou,
“Venha, por aqui, neste corredor está esse quarto pequeno, com banheiro,
poderia ser um quarto de empregada..."
Joaquim interrompeu, “Aqui eu vou deixar para o escritório em que vou
escrever.”
“Ah, sim! Fica realmente excelente para isso, na verdade ele foi feito para ser
escritório de um advogado. Agora aqui, e este grande o que você vai fazer com ele?”
“Neste farei um estúdio para gravação de música.”
“Aé? Você toca?”
“Um pouco, vou tentar gravar uns sambas, umas bossas.”
“Fica bom, só vai ser necessário a espuma para isolar o som.”
“Sim, farei isso.”
“E os equipamentos de gravação, você tem?”
“Não, vou negociar com um amigo, estou guardando o dinheiro para isso.”
“Ficará bom!", Carlos disse alegre. “Agora temos esse, dos três é o maior, seria
uma segunda sala de estar. Aposto que vai montar uma biblioteca, não é?
“Sim.", Joaquim riu. “Vou sim.”
“Dará uma excelente biblioteca! Veja que o teto aqui é mais alto que no resto da
casa! Poderá por estantes enormes, fazer uns cinco ou seis corredores dela e sobrará
espaço para uma escrivaninha. Vai ficar perfeito.”
“Vai mesmo, você leu meus pensamentos.”
“Agora deixa eu te mostrar a cozinha”, disse Carlos indicando caminho.
Atravessaram a casa para o lado direito.
“Aqui a cozinha, pode ver que é bem grande, separada por esta porta de
abertura para a copa. Esta mesa comprida, como eu havia dito, vai ficar incluído no
8
preço do imóvel, pois não tenho lugar para colocá-la, então minha mãe e eu achamos
melhor vendê-la com a casa. Pero não se arrependerá. A madeira é de muito boa
qualidade, bem trabalhada, resistente, durará muitas décadas mais. No máximo o
trabalho que terá vai ser mandá-la envernizar novamente e trocar o plástico protetor. As
cadeiras igualmente.”
“Sim! Dá para ver a qualidade da mesa, caso precisar de reforma eu mesmo a
faço. Mexo com carpintaria”, Joaquim informou com entusiasmo.
“Ah, havia me dito, por isso falou da sala de carpintaria... venha, deixa eu te
mostrar."Andaram um pouco... “aqui... esta seria uma segunda garagem fechada, caso
não tenha mais de um veículo pode usar para carpintaria, pintura, imagino que só forrar
o chão. Tem espaço, não tem?”
“Tem sim! É perfeita, justo o que eu queria.”
“A outra garagem é igual, ambas tem lâmpada e portão elétrico com fiação
funcionando... Agora falta o porão... aqui está...", abriu a porta...
“Vamos”,
disse
Carlos descendo a estreita escadaria que foi dar lá em baixo, “Serve para caso tenha
muitos móveis, aqueles que não quer mais, estragados, ou simplesmente queira se
livrar deles, ou tenha muitos objetos, material de caça, pesca, ou mesmo cachorro,
poderá deixá-lo aqui caso estiver chovendo... É muito seguro, é fundo, a escada de
madeira embora pareça fraca aguenta muito bem o peso. O lugar é grande, e ali em
cima, vê?”
“Sim", disse Joaquim a levantar a cabeça.
“Tem essa janela estreita que não abre feita somente para clarear de dia, não
precisar acender a luz. Gostou?”
“Gostei sim.”
“Claro que está meio sujo, é um porão, pero não há ratos, animais, formigas e
outros insetos, está bem conservado, veja que nem a chuva entra aqui, não tem
umidade, não tem mofo, azuleijado para melhor limpeza e logo ali tem um ralo.
“Sim, sim, dá para se notar, está muito bem cuidado.”
“Então é isso! Só falta o andar de cima que vai ter os quartos! Vamos subindo.",
Carlos puxou Joaquim pelo braço, empolgado.
A escadaria larga vermelha ao centro da sala para o primeiro andar
desembocava num duplo corredor, que separava ao meio quatro quartos com suíte.
Degrais simétricos, com bom espaçamento para os pés, corrimões de uma beleza
incrível, a madeira talhada em peça única que acompanhava a largura que começava
no primeiro degrau e ia se estreitando até o último, desenhando flores e folhas.
“Aqui o quarto”, Carlos mostrava gesticulando “três deles tem o mesmo metro
quadrado, com banheiro, chuveiro com aquecedor solar. Vai precisar com esse frio aí
fora. Basta deixar a água correr cinco minutos antes de entrar, para esquentar. E este,
o quarto principal, um pouquinho maior, acho que vai escolhê-lo. Tem esta banheira.
Está perfeita, sem nenhuma mancha, meu pai trouxera de Portugal, junto da pia. Veja
como é bela", apontava com orgulho.
“Sim, muito bonita.”
“Esta era a casa que mais agradava ao meu pai. Não a maior, pero o velho tinha
por ela um sentimento especial. Lembro que escrevia muito no escritório lá de baixo.”
9
“Então seu pai era escritor?”
“Lembro que escrevia alguns romances que não publicava.”
“Ainda guarda os textos dele?”
“Minha mãe guarda tudo que é do velho.”
“E ela não está triste por vender a casa?”
“Talvez um pouco. Na verdade queremos nos desfazer dela, não por não
gostarmos, pero por não podermos dar os devidos cuidados. Casa grande demanda
maiores gastos, mais tempo.”
“Deveras.", Joaquim confirmou.
“Então agora somente me resta mostrar a piscina e o quintal.”
A piscina, mandada fazer de piso, tinha uns dez metros de comprimento, água
suja com folhas amarelas de grandes árvores que não foram podadas, na orla um
jardim com rosas, muros altíssimos e cerca elétrica que impedia a entrada de ladrões.
“A cerca está a funcionar?", Perguntou Joaquim.
“Está sim! Quem a colocou fez um belo serviço, nunca deu problema. E a
corrente elétrica é forte, vai desacordar qualquer um que queira pular o muro. Se bem
que para tentar pular este muro precisará de uma escada, vê como é alto?”
“Sim, é bem alto.”
“Pois é, por fora é mais alto ainda, pois a residência está em cima de morro.
Nunca tivemos de usar a cerca. Pero ela vive ligada, a tomada fica lá na garagem caso
queira desligar.”
“E a piscina como está?”
“Está suja, como pode ver. Porém o azuleijo não está quebrado e o
encanamento da limpeza em perfeitas condições. Só será necessário esvaziá-la, a
sujeira ficará presa no filtro, daí é só enchê-la e espalhar o cloro. Nem é preciso
chamar alguém, você mesmo poderá fazer em pouco tempo. A única preocupação é
vigiar as crianças quando elas estiverem nadando, pois a piscina é funda. Tem filhos?”
“Não, não tenho.”
“Ah, então está tudo bem.", Carlos colocou a mão no queixo, "Na verdade se
bem me lembro há umas boias no porão, as deixarei lá caso queira usar.”
“Sim, sim, obrigado.”
“Algo mais? Alguma dúvida?”
“A casa possui cupins?”
”Não! De forma alguma, a madeira possui tratamento especial, não tóxico, que
espanta qualquer inseto. Também não é inflamável. De qualquer forma, se quiser ficar
com a consciência tranquila, conheço uma empresa há alguns quilômetros daqui que o
poderá ligar e chamar alguém para vir detetizar a casa inteira, incluindo o porão, as
garagens e este jardim.”
“Ah! Era só uma dúvida, se diz eu confio.”
“Sim, pode confiar. Esta casa foi construída para ser muito segura. De qualquer
forma te deixarei o número da empresa para ter maior segurança.”
“Sim, obrigado. E quanto a umidade, não tem perigo?”
“Pergunta por causa dos instrumentos musicais?”
10
“Sim, é isso.”
”Não precisa se preocupar, dentro da casa não há umidade ou goteira. Poderá
guardar os instrumentos de madeira tranquilamente. Somente precisará se preocupar
quando for à Cuiabá, lá o tempo é seco e quente, né?”
“Sim, deveras! Tomo cuidado para não rachar os intrumentos.”
“Correto, quando for à Cuiabá poderá passar um óleo protetor na madeira, acho
que há um no porão. Havia na sala um piano.”
“Ah! Por isso a sala é tão grande", falou Joaquim surpreendido.
“Exatamente, meu pai era um ótimo pianista.”
“E o que aconteceu com o piano?”
“Está conosco em outra casa. Minha mãe gosta muito dele. Toca-o de vez em
quando."
“Sim.”
“Mais alguma coisa? Alguma dúvida, qualquer coisa basta me perguntar.”
“Não. Não há nada. Acho que está tudo certo.”
“Que bom, se está tudo certo só nos resta mesmo ir ao cartório assinar a venda
da casa. Vamos no meu carro?”
“Sim, vamos.”
Pegaram o carro que correu pelas ruas ainda molhadas, o raro tempo bom do
Estado dava uma cor azulada ao céu sem muita luz. O relógio do pulso de Joaquim
contava agora dez horas. Da janela do banco de passegeiro ele olhou em busca do sol,
estava tampado pelas nuvens que voavam lentamente, aglomerando-se e ficando mais
escuras.
“Parece que vai chover mais tarde.", comentou Joaquim
“Pelo jeito vai, não é? Tem chovido todos os dias por aqui.", informou Carlos com
um sorisso.
“Então o tempo aqui é mesmo melhor que em Cuiabá, em?", perguntou Joaquim
só por perguntar.
“E como! Quanta diferença.”
“Será agradável morar aqui.”
“Será sim. Minha mãe adora viver aqui. Não voltaria para Cuiabá de forma
alguma. Pero morará aqui?”
“Não, a casa é somente para os fins de semana, trabalho em Cuiabá.”
“Isso, professor, não é mesmo?”
“Sou.”
Após XXX minutos chegaram ao cartório. Lugar branco, aparentemente bem
organizado, com uma imagem de Jesus Cristo na parede. Pegaram senha e
aguardaram. Foram após um tempo atendidos e assinaram os papéis, Joaquim olhou,
vendo nome dele como proprietário.
Na volta, as nuvens que prometiam despencavam em chuva. O vento empurrava
as muitas árvores e o mato da beira da estrada, balançando-se umas nas outras, como
se fossem cair.

11
“Cá estão as chaves. Esta do escritório, esta do futuro estúdio, da biblioteca, da
porta da frente, da porta dos fundos, da cozinha, do porão, das garagens e dos quatro
quartos de cima, e esta do portão. Muito obrigado, qualquer coisa que eu puder ajudar
não deixe de me ligar. Até logo.", disse Carlos simpaticamente apertando a mão de
Joaquim.
“Obrigado! Até.", Joaquim despediu-se com um sorriso de satisfação.
CAPÍTULO II
CAMINHOU PARA CASA. Cuiabano não suporta o frio, esvaziaram as ruas, o
céu cinza, comércio fechado ou fechando, os bares outrora lotados agora solitários,
cade a sede de uma das cidades que mais bebia cerveja? Talvez junto do sol também
fora embora os costumes do cuiabano, estaria essa gente com identidade somente
ligada ao fato do calor excessivo? E os obesos? Lanchonetes vazias. Parecia uma
cidade falida, abandonada, nem mais os trevestis corriam gritando pela rua... Nada de
carros, muito menos de ônibus. Caso esperasse ali a noite toda, a terceira cidade mais
violenta do país o decepcionaria.
Em casa o café quente escorreu-lhe garganta abaixo, o canto dos grilos não
mais o faziam companhia, escrever seria duro. Assentou-se à máquina, tudo que
precisa ter, escrevia ele, eram os personagens, o resto do texto a eles cabia. Parou.
Sentiu-se impossibilitado de mexer os dedos. Pensava em Alice. Ele não poderia casarse! Essas mulheres não entendem, não veem que casamento implicaria em
responsabilidades demais? Tinha já as da escola, comprara agora uma casa. E se
viessem os filhos? Planejava escrever ainda alguns livros, umas poesias, uns
romances, fazia a tradução de “O Processo”, pensava em ir à São Paulo fazer
doutorado. Não poderia ser tão simplista, queria algo mais da vida. Afinal qual é essa
de casamento? Por que tanta importância dada a ele? Não poderiam apenas namorar
por tempo indeterminado? Até o fim da vida se fosse possível? Não estaria ela a
estragar o namoro com o papo forçado de casamento e filhos? Claro que estava... que
mania feia é essa de viver no século retrasado! Apesar de amá-la era óbvio que seus
objetivos não batiam, nem mesmo a educação, costumes de família. Joaquim tinha
horror de terminar como seu pai terminara, como seu avô terminara, como seu bisavô
terminara. Desde que o primeiro antepassado dele chegara ao Brasil, os Casalescchi
reproduziram-se, reproduziram-se, estavam na década de X do século XXI e nenhum
deles teve futuro. Agora dependia dele. Veja o tamanho da preocupação que tinha na
cabeça e Alice lá... apenas não se importava, não pensava. E adiantava explicar?
Desde quando adianta explicar alguma coisa as mulheres? Preocupavam-se mesmo
era com o cabelo. Cade as ambições? Escolheu a moça errada, só podia.
Telefone toca,
“Alô”, disse Joaquim entediado e deitando-se na cadeira.
“Oi Jo.”
“Oi Alice”, respondeu indiferente
12
“Estava dormindo tão cedo?”
“Não. Cheguei há pouco tempo, estava escrevendo."
“Tem como você lavar minha calça jeans que ficou aí?”
“Sim, as lavo."
“E me trazer amanhã?
“Amanhã? Acho que não posso. Tenho aula no primeiro horário. Talvez no
almoço, que tal?"
“Não, de tarde.”
“De tarde também estou ocupado."
“Você não quer me ver?”
“Não é que eu não queira, é que preciso entregar o texto para a revista e esta
noite não consegui escrever nada."
“Ah, então eu estou atrapalhando!”
“Não está atrapalhando, não estava escrevendo nada."
“Não disse que estava escrevendo?”
“Claro, estava à maquina, pero não consegui escrever."
“Então terá de escrever amanhã.”
“É isso que estou dizendo, não ouviu?"
“Não sou surda, idiota.”
“Tá, desculpa. Estou dizendo que amanhã não posso porque preciso escrever.
Façamos assim, fará algo no sábado? Sábado posso buscá-la aí para irmos ver a
casa."
“Já fez tudo?”
“Sim está tudo pronto, estou com os documentos."
“Tem uma menina aqui que quer ajuda com o trabalho da escola, tem tempo?”
“Aninha quer ajuda?”
“É.”
“Claro, pode chamar."
“Espera.”
“Espero.”
“Oi."
“Oi princesa, como está?"
“Bem e você?”
“Estou bem, o que manda?”
“Trabalho sobre o capitalismo.”
“Farei tudo que um professor de literatura puder para ajudar...”
“As condições dos trabalhadores na época do Fordismo...“
“Sei..."
“Que os operários destruiram as máquinas porque elas os havia roubado o
emprego.”
“Não, não é bem assim.“
“Foi a professora quem disse.”
“Essa sua professora não bate bem das ideias.”
“Uhm...”
13
“A questão de destruir as máquinas não é porque elas eram mágicas e tinham
vida própria, pero prejudicar financeiramente o dono da fabrica que controla o meio de
produção, o capitalista, para que dessa forma ele seja obrigado a repensar o trabalho
burro e mecânico do operário. Nesta época as máquinas vinham com intenção de
dividir a produção e controlar o tempo, sacrificando o trabalhador, contudo dando mais
lucros.”
“E isso melhorou?”
“De forma alguma. O trabalho é ruim até hoje, o sitema que Ford criou acabou
com a vida das pessoas, muitas ficam com LER por conta da quantidade de
movimentos repetitivos que descartam totalmente qualquer inteligência, como se o
empregado fosse um robô. Você pode dizer que hoje as pessoas vivem mais tempo,
não temos a peste negra, porém é óbvio que não, isso iria prejudicar os ricos, repare
que os gados recebem vacina, etc... a morte deles seria perda de dinheiro e nos
causaria doenças. Além do operário não ser dono de suas ferramentas, de sua
produção, de seu trabalho, ele ainda não sabe como fazê-lo. Pois nada mais é
artesanal, ele é limitado a apenas uma pequena parte da montagem de um veículo por
exemplo.”
“Isso aprisionou o trabalhador?”
“Sim, não há como fugir.”
“Pero o trabalho é recompensador, não?”
“Não... veja... essa ideia do trabalho ser algo bom é uma ideologia que foi surgir
da burguesia para os trabalhadores. Que uma pessoa só era cidadã, só podia se
orgulhar com trabalho, fazendo os operários trabalharem mais e reclamar menos. Antes
dela o ócio era valorizado, pero claro, sempre foi da elite, não dos escravos. Não é de
se admirar que o brasileiro não lê, ele não tem tempo... imagine uma situação, como
pode um ser humano não se dedicar a arte ou ao esporte, melhor ainda, a ambos? é
porque para ter um passa-tempo, algo que se faz por prazer, que se paga para fazer, é
preciso ter tempo disponível, coisa que a maioria dos trabalhadores não tem. Trabalhase para comprar comida, come-se para viver e perde a vida toda em favor do outro, a
vida toda jogada no lixo.”
“Certo, obrigada, tio.”
“De nada, entrega para sua mãe.”
“Oi.”
“Oi, Alice, por que ela perguntou para mim, por que você não a respondeu?”
“Ué, ainda não percebeu que era uma desculpa pra falar com você?”
“Uhm... então ficamos para sábado?”
“Sim.”
“Passarei aí às oito, tudo bem?”
“Sim. Beijo.”
“Outro.”
CAPÍTULO III

14
“LEMBRAM, NARCISO VIVERIA caso não olhasse no espelho. Por que ele não
podia olhar... Camila?”
“Porque o oráculo Tiré... sias havia dito para mãe dele que não podia.”
“Luís, qual era o nome da mãe de Narciso?"
“Liríope, professor.”
“Ela engravidou do Deus...”
“Cefiso!", disse Marcos, ganhando a disputa de quem respondia mais rápido.
“Amanda, por que Narciso era uma criança especial, o que ele tinha de
diferente?”
“Ele era muito bonito.”
“Maria! Acorda Maria!", ela levantou o rosto da cadeira e fitou o professor “Maria,
como Narciso morreu?”
“Ele estava com sede, foi beber água de um rio, viu seu reflexo, se apaixonou
pela própria beleza e morreu afogado.”
“Vejam. Percebem que Narciso era tão obsecado pela sua imagem, amava tanto
a si mesmo, que era incapaz de amar o outro. Então o que seria uma pessoa
narcisista?”
“Aquele que ama a si mesmo?", disse Lucas.
“Só isso? Narcisista é a pessoa que ama tanto a si mesma que reconhece
apenas os seus próprios desejos, ignorando o outro. Tudo no mundo gira em torno
dele, e fará o que puder para conseguir o que quer sem importar se prejudica o outro.
Como nós podemos pegar o mito de Narciso e adequar a nossa época?” a sala em
silêncio, “E se eu disser que nós somos todos narcisistas?", olhares espantados “sim,
pensem dessa forma... desde que nascemos vemos na tevê, comerciais oferecendonos produtos... dizendo que nós somos importantes, que nós merecemos tais produtos,
que precisamos, que podemos, tudo para o mercado imperfeito sobreviver e lucrar
mais. As empresas nos fazem amar a nossa própria imagem. Vejam que nenhuma
propaganda nos ofertará algo para o bem de toda a sociedade, pero sempre apenas a
nós! E nós realmente podemos! Trabalhamos, consumimos, o cartão de crédito está aí,
podemos comprar tudo, podemos ter tudo que quisermos, sempre tivemos... celulares,
tevês, computadores, roupas, sapatos, brinquedos... carro, moto, casa... cirurgias
plásticas! caso não esteja satisfeito com o formato da boca, do nariz... com dinheiro
poder-se-ia mudar a cor dos olhos, do cabelo, da pele... fazer implante de silicone nos
seios, glúteos, lábios... homens e mulheres, amando a própria imagem, salões de
beleza cheios, vários comerciais sobre lâminas de barbear! vamos nos depilar! sejamos
todos obrigatoriamente metrossexuais... desprezemos o conteúdo, agora se tudo é
produto, tudo podemos comprar, todas as coisas beneficiam apenas a nós, nunca a
sociedade, vivemos a morte do social, aonde é que entraria o outro? o próximo? Eu sei
a resposta! São produtos também!, óbvio que o são, o que mais seriam? por que
adicionamos tanta gente nas redes sociais? qual a importância delas? somos
realmente amigos de tanta gente? Não! queremos apenas que elas idolatrem a nossa
imagem! caso não fizerem, qual é a solução? Simples, poderemos a excluir com um
clique. O que ta estragado vai para o lixo. Agora imaginem se isso não acontece
apenas na internet, acontece nos relacionamentos, por que tanta violência? os ladrões
15
de hoje não roubam por comida, pero para também ter poder aquisitivo, e matam sem
remorso. A violência não é algo isolado, pero social. Por que tanta gente se casa e
tanta gente separa-se?, por que tantas namoradas e tantos namorados, por que o
ficar? quem foi que inventou o sexo casual? Será que nós não estamos mais próximos
às notícias, às tecnologias, aos produtos, e mais distantes das pessoas? Reparem o
que vocês mesmos fazem em casa... quanto tempo realmente gastam conversando
com os pais, com os irmãos... ou estão separados, divididos... um no celular, outro na
televisão e o outro no computador? A família, os amigos, verdadeiramente nos
satisfaz? estamos verdadeiramente satisfeitos? ou o consumo gera um círculo vicioso
que nunca se desfaz, e precisamos sempre comprar para manter um prazer efêmero e
burro?”, o sino tocou, “Pensem a respeito disso.”
Com o fim da aula Joaquim foi arrumar suas coisas. E foram ter com ele duas
gêmeas, Maria e Carla Davidoff, de XII anos.
“Oi, professor, gostamos da aula", disse Carla
“Desculpa ter dormido, professor”, desculpou-se Maria, com o rosto vermelho e
inchado.
“Nada, obrigado, então gostaram?", sorriu Joaquim.
“Sim", responderam, “o que teremos na próxima?”
“A próxima é só na semana que vem não é?”
“Sim”, responderam.
“Uhm, acho que falarei sobre Castro Alves e o trabalho escravo que ocorre nas
fazendas de cana-de-açúcar, que tal?”
“Parece legal”, respondeu Carla.
“Leram o Navio Negreiro?”
“Não”, disse Maria com os grandes olhos azuis, "Ninguém nos comentou sobre
ele.”
“Ah, então leiam para a próxima aula e avisem o resto da turma.”
“Sim”, disseram contentes, olhos brilhavam de alegria, e o sorriso com dentes
novos, “Professor, o senhor verá o nosso jogo de handball nas olimpíadas?”
“Claro, é na quinta à tarde, não é?”
“Sim.”
“Verei sim, vocês vão jogar?”
“Vamos, Maria e eu somos as melhores do time!", Balançavam-se como
adolescentes contentes.
“Vou gostar de assistir... Maria!”, chamou atenção dela.
“Oi!”
“Você tem jogo, deve dormir cedo”, riu.
“Sim, sempre durmo cedo.”
“Mentira dela professor, ela tem dormido tarde”, Carla dedurou fazendo bico.
“Bom, acho melhor vocês irem, se comportem e preparem-se para o jogo!”
“Vamos!", afirmaram.
E saíram apressadas, naquela pressa que adolescentes sempre tem, com
eufórica energia e saúde. As duas tinham cabelo louro escorrido, que chegava até o
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ombro; mediam por volta dos um metro e meio, haviam recém saído da infância e os
hormônios empurravam agora os seios miúdos que iam aumentando de pouco em
pouco até ganharem forma por volta dos XV anos. Pela primeira vez Joaquim admitiu a
beleza das irmãs, pero o pensamento seguiu sem maiores transformações, apesar de
ter se interessado pelo jogo da quinta.
CAPÍTULO IV
AO CENTRO-OESTE DO BRASIL, no estado de Mato Grosso, longe do litoral e
das capitais, nasce em meio a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado a cidade de Cuiabá
em MDCC. Situa-se numa depressão de difícil acesso aos ventos frios que vem do sul,
é uma dos municípios mais quentes do país e com maior índice de raios solares. Fora
em sua origem povoada pelos bandeirantes paulistas, logo após os nordestinos, a
buscar a grande quantidade de ouro que havia. Dividiram o território com as diversas
tribos indígenas da zona; e mais tarde na década de LXX recebeu migrantes cariocas e
sulistas. Pela melhor condição financeira destas pessoas, o cuiabano, pessoa natural
desta cidade perdeu gradualmente o sotaque carregado, ficando presente mais na
periferia e nos ribeirinhos, aqueles que ainda vivem da pesca. Na época também
ganhou o apelido de “preguiçoso”, pois era um costume indígena pescar de noite e
descansar durante o dia.
Diz uma lenda muito famosa a origem do nome, Cuyabá, grafia arcaica, palavra
vinda do tupiguarani, signficando “artesão de copos”. A estória fala que um índio estava
a contar ao outro como perdeu a cuia (S.f. 1. copo, glass, tigela), pescava quando um
peixe o assustou e derrubou a cuia no rio, e pelo som ao bater na água, dá-se a
onomatopeia “bá”.
Pertence a ela o centro geodésico da América do Sul, calculado pelo marechal
Cândido Rondon. Sobrenome este vindo da palavra francesa “rond”, significando
pessoa gorda. Virou último nome na idade média para identificar as famílias. Irmãos
espanhóis o trouxeram ao Estado, tornando assim este nome tão famoso na região e
invulgar noutros cantos do país. Cândido foi homenageado com a construção da cidade
Rondonópolis, Estado de Rondônia e o aeroporto Internacional Marechal Rondon, entre
outras.
O gigantesco Estado possui o maior Pantanal do Brasil, e vive principalmente da
produção e exportação de grãos e pecuária. Carregando um grande impacto ambiental
com queimadas, desmatamentos e poluição das águas.
“Cidade verde” é um apelido pela grande quantidade de árvores no município,
hoje sem razão. A capital com 500 mil pessoas, possui áreas de lazer extremamente
limitadas; os casarões antigos deixados à mercê do tempo, abandonados; ruas mal
feitas, com lixo; esburacadas; esgoto a céu aberto; mendingos; trânsito engarrafado,
sem muitas vias; ar poluído pelos muitos carros e fumaça dos incêndios que cobre a
cidade frequentemente.
Horrivelmente quente pela falta de árvores e construções,
recebe a carinhosa alcunha de “inferno”. Foi escolhida como uma das XII cidades
sedes da Copa do mundo de 2014. Por este motivo será feito uma espécie de metrô,
chamado “Veículo leve sobre trilhos”, projeto bilhonário substituindo o antigo que valia
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menos da metade do preço. Construção em andamento, tem destruído os canteiros;
impedido o trânsito de alguns lugares; retirando a vegetação. O ano previsto para
término é 2016.
CAPÍTULO V
“CUIABANO DE CHAPA E CRUZ” expressão para designar o cuiabano legítimo,
o que nasceu e morreu cá; tem por significado descrever um idoso que usa dentaduras
(chapa) e é católico fervoroso; é preciso salientar o número de igrejas, sobretudo as
protestantes que apoderam-se de qualquer esquina. O cuiabano tem péssima
qualidade de vida; é sonho de todos ter um automóvel, numa maneira de disputar por
status, consequência de um baixo nível intelectual formado por escolas ruins; recentes
pesquisas indicam que está a crescer o número de analfabetos.
Várzea Grande, a cidade vizinha de 200 mil habitantes é um alongamento de
Cuiabá.
Em resumo o cuiabano tem o seguinte cotidiano: divide a semana entre o
trabalho; os shoppings, em que passeam pois não tem dinheiro para as compras;
igreja, qualquer uma serve, precisam somente socializar; restaurantes de fast food,
pois necessitam manter seu título de o cidadão mais obeso do país; academia, porque
frequentam a lanchonete; puteiros, presentes em toda parte; bocas de fumo e os bares,
este oferece os dois últimos itens.
CAPÍTULO VI
A PEQUENA ESCOLA estava em festa. Pais, alunos, professores, barracas de
comida, jovens andando de lá pra cá, o pátio iluminado pela lua cheia que cobria todo o
lugar. O céu já escuro das seis horas, frio de doer, com vento cantando. Todo mundo
agasalhado, gorro, sapato, calça. Pipoqueiro fritava o bacon, alguém enrolando
algodão doce, balões na mão dos bebês que passavam nos carrinhos. O apito soou e o
jogo começou. Sorrisos alegres, moças correndo rápido de olhos na bola, olhando as
inimigas, balançando o rabo de cavalo, mordendo o beiço, gritando nervosas umas
pras outras com vozes quase infantis. Agitação, suor escorrendo, adrenalina, apito,
falta, gol e outro gol, mais um gol. Maria e Carla brigavam uma com a outra, mais
bonitas e mais saudáveis que nunca. Camisa pequena, short de ginástica delineando a
pequena bunda que enrigecia a cada movimento, e eram tantos. Joaquim mirava,
acompanhava o jogo, torcia para ambas as turmas, era professor, não podia torcer para
alguma específica, para dizer a verdade estava mais era prestando atenção nas
gêmeas que exalavam, transpareciam a beleza virginal, aquela que mistura-se a
inocência, alegria e sensualidade. O último apito soou. O jogo havia terminado, a
classe das meninas venceu.
Vieram correndo em busca dos pais para comemorar a felicidade, estes as
receberam com abraços e beijinhos... Altos, brancos, olhos claros, haveriam de ser do
sul! Joaquim até poderia imaginar um “tu fez bem” e algum “to tricontente”.

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A arquibancada levantava e a gente ia embora para casa, Joaquim foi também,
tinha de chegar cedo, a máquina de escrever o esperava. Uma bela professora o
encontrou e trataramm de soltar uns papos.
“Oi, Joaquim, como ta?” disse a professora de biologia Cláudia, olhos castanhos,
cintura fina, quadris largos, XXX anos, pero ainda formosa e com bom jeito de andar
“To bem e você?”, disse Joaquim com um sorriso articial.
“Bem. A turma B ganhou, você dá aula pra elas?", ela já sabia a resposta, porém
procurava uma maneira de começar um assunto, não tinha namorado, estava afim de
arranjar algo.
“Dou sim, de literatura”, disse Joaquim com o mesmo sorriso artificial, pero
contente em vê-la, qualquer um a acharia bonita e ele foi falando “Que bom que
ganharam, as meninas jogam muito bem, se esforçaram.”
“Sim, elas são mesmo muito boas”, disse Cláudia vindo para mais perto,
“Teremos reunião na terça para difinir as provas do bimestre.”
“Sei, defini a minha, vou elaborar algumas discursivas e fazer valer a opinião dos
alunos sobre o tema proposto, não terá uma resposta certa. Acho mais importante o
que eles pensam sobre o assunto”, disse Joaquim com confiança.
“Acha que a diretora aceitará?", perguntou Cláudia.
“Acho que sim”, respondeu Joaquim, “Não vejo porque não, não será uma prova
típica, pero imagino ser melhor.”
“Sim”, disse Cláudia, “Deve ser melhor, eu também o faria, acontece que na na
biologia eles precisam decorar alguns nomes, entender alguns fenômenos, coisas do
gênero, preciso seguir o que está na apostila. Você não a usa, né?”
“Não, não uso”, respondeu Joaquim gesticulando para o argumento, “Não vejo
necessidade. Ao invés de seguir uma ordem cronológica e didática, já estabelecida,
prefiro procurar um tema atual abordado por algum autor e mostrar aos alunos qual a
contribuição dele para a nossa época. Não penso que a questão cronológica seja uma
boa ordem... eles poderão estudar isso por si só, quero algo que não esteja no livro,
quero ser um professor do qual se lembrem, tenham algum tipo de orgulho por mim,
que eu ensine algo de valioso para eles durante a juventude e o que o leve até a
maturidade. Tem a literatura muito para nos ensinar a respeito da sociedade.”
“Sim, você está totalmente correto, quem dera eu ter tido um professor tão bom
quando tinha a idade deles”, ela descansou o ombro, “Eu não seria tão analfabeta em
literatura como sou hoje. Procuro ler, porém acabo lendo pouco ao lecionar nos três
turnos.”
“É difícil, não é?", concordou Joaquim, “Bom, vou indo, até mais.”
“Até”, disse Cláudia com um pouco de tristeza ao abandonar Joaquim na porta
da escola.
CAPÍTULO VII
AO SAIR DA ESCOLA Joaquim pegou ônibus. Achou lugar para sentar-se, abriu
uma das janelas pois acabava de entrar na Universidade Federal, passou pela
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biblioteca, viu os muitos graduantes, viu as negras árvores e em uma delas um macaco
a dormir, calma, UFMT possui um zoológico, e provavelmente o macaquinho de lá
fugira. Os esportistas jogavam bola, corriam, tiravam fotos... ao sair da faculdade
avistou o córrego do Barbado, sujo, sem proteção onde qualquer um podia cair, e já
caíram, Operários elevando os blocos de concreto que fariam a pista para pegar outra
mão; percorreu toda a Avenida Fernando Corrêa, que resume-se em lojas de
automóveis... o busão fez a curva chegando enfim a Praínha. Puxou o cordão e
desceu. Agora à pé subiu a Getúlio Vargas, e foi-se assentar num banco da praça da
República, ao lado do prédio velho da prefeitura. Observou ali toda sobrevivência da
cidade: os camelôs, as lojas de roupa, de cosméticos, de eletrônicos e móveis. As
pombas ainda espalhadas pelo chão comiam as migalhas dos pipoqueiros; os taxistas
estavam lá vigiando os clientes. Atrás dele poderia descer por uma rua em que
encontraria artigos religiosos e prédios antigos, do princípio da cidade, e por falar deles
à sua frente os Correios, na lateral um museu e o Palácio da Instrução, pode lá
encontrar fotos de quando Cuiabá era Cuyabá, e o balançar da bandeira do Brasil num
grande mastro. A lua estava cheia, pero sombreava-o uma alta figueira, com raízes
enormes que ali existia desde o tempo em que era criança. A colossal catedral Matriz
espunha portas abertas, o que havia de ter em tamanha casa de concreto? E estes
relógios gigantes que nunca mudam o horário? Sentiu-se minúsculo, um inseto. Nesse
sentido veria reaberto o Cineteatro, um dos primeiros cinemas dessa capital. Caso bom
tempo fizesse, encontrar-se-ia carrinhos-de-mão cheios de Pequi, uma fruta típica do
cerrado, que o cuiabano mistura com arroz, aviso: cuidado com os espinhos.
Pensava em Alice. Caso não desistisse da ideia de casamento, o namoro iria
acabar por terminar. Talvez não fosse essa uma má ideia. Ele precisava de um tempo,
o trabalho o enchia, podia agora mesmo voltar para casa, devia escrever, pero se
voltasse, conseguiria? Então caducou por lá mais uns tempos... o pensamento vagava
entre as pernas que saíam do trabalho, “quantas pernas meu Deus!”, já dizia
Drummond. Faltava um artigo para o dia seguinte, sobre o que seria? Faltava uma
poesia, já que está aqui poderia ser sobre o centro, porém que cidade monótona que
não inspira ninguém! O vento assoprava-lhe o cabelo, o mesmo coçava, será que lavou
ontem? Imagina um texto: o café é para o escritor como a caneta é para o papel,
elementar. Como pode um escritor viver sem escrever, se o mundo lhe cabe num
papel? Sem querer veio a intromissão de um devaneio, desculpa, eu não quero pensar
nisso, as gêmeas tão bonitas e tão vivas. O que estavam a fazer neste momento? A
jantar e ir para a cama? A escovar os dentes? Os dentes tão bonitos... o cabelo a
pentear, os lábios sempre a sorrir. Queria voltar a alguns anos atrás em que tudo podia,
que moças belas! Contudo deixa pra lá... o pensamento de um escritor deve ser um só:
escrever. Meditar é preciso, pero quanto mais pesada, maior o intervalo de uma obra
para outra, não é Fernando Pessoa? A vida é mesmo um naufrágio em que corremos
para não nos afogarmos, no fim a morte é somente um conserto de um erro. Queremos
consertar, porém o mundo só quem arruma é o fim.

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Levantou-se, caminhou entre os hippies e seguiu em frente, até a praça da
Bispo. Encontrou lá uns mudos a fumar, fez uma saudação com o dedo mínimo
levantado: oi. Continuou pela Avenida, agora imaginava, o cigarro cai bem para os que
nada estão a fazer com as mãos. Qual afinal é essa necessidade de fazer algo com as
mãos? Será que deveria voltar a fumar? Antes pagava dois reais num maço que hoje
pagaria sete. Deixou pra lá. Encontrava-se ao pé da Maria Taquara, uma estátua.
Travestis desfilando, bares, gente e mais gente... apressou o passo antes de levar um
tiro... acontece muito por lá... Avistou a belíssima igreja do Bom Despacho, em cima de
um morro. Continuou sem cessar, andou, andou e chegou no bairro do Porto, que
outrora fora um dos mais perigosos. O Porto é também um porto. O rio Cuiabá que
sustenta a cidade, no passado tivera muitas embarcações, principal meio de
comunicação e transporte de produtos, atualmente fede. Aproveitou e à margem dele
foi para casa.
CAPÍTULO VIII
GIROU A CHAVE, passou pelo corredor e foi a cozinha. Preparou um grande
copo de café. Os pés doiam, muito caminhara, pero é sabido que faltava o artigo do
jornal. Pôs-se frente a frente com o notebook, subiu os pés para cima da escrivaninha...
esperava que o sangue circulasse melhor, porém daqui a pouco iriam ficar dormentes.
Relaxou as costas duras na cadeira de rodinhas e ficou balançando, balançando,
bebendo, tossindo, pensando, com sono, o que iria escrever? Apesar de não ter o que
escrever ser algo corriqueiro, dizia Rubem Fonseca, que o escritor verdadeiro tem uma
maneira de dizer nada, Joaquim estava irritado, parecia que há anos não escrevia.
Pensou em Alice, pensou nas gêmeas. Talvez fossem culpa das mulheres, aquelas
malditas. Não era. Era culpa dele mesmo. Esfregou os olhos, agora ardiam, as letras
embaçavam, a luz estava de repente mais forte, mais iluminada, cegando-o. Começou
a bater os dedos na mesa, apoiou-se no cotovelo, queria ter uma ideia, pero escutava
com atenção o barulho de cada dedo na madeira... indicador forte, médio o mais forte,
e a força se amenizava até o mínimo. E assim continuava. Gritou,
“Filho da puta!”, bateu o monitor ao teclado, fechando o desgramado. Foda-se,
ele ia dormir. Levantou e jogou-se em cima da cama. As pernas doiam, e como já
profetizado, os pés estavam dormentes. Naquela noite ele sonhou, coisa rara.
Era dia. O cemitério um grande lugar de não se ver horizontes. Túmulos bonitos,
com epitáfios, árvores, o sol estava intenso, porém a luz não o incomodava. O ar era
bom. Sentia o pulmão vazio, leve. Corpo mais forte, mais jovem, a vontade de sorrir
incontrolável. Via as flores coloridíssimas, o canto dos pássaros, uma tranquilidade
indescritível. Apesar da paz do lugar ele necessitava fazer uma coisa... precisava voltar
para casa... cadê? qual direção deveria tomar? Mirou a sua volta, por mais que
expremia os olhos não conseguia enxergar caminhos de entrada ou de saída.
Precisava ir para casa. Tinha uma pressa imensa de ir para casa, cade a casa?
Apressou o passo, corre, corre, corre corre, precisava ir para casa, por mais que
corria só túmulos, só esculturas de anjos e a música dos passarinhos. Parou. Respirou
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fundo por três vezes. Entendeu e reconheceu que nunca acharia o caminho de volta,
estranhamente estava preso naquele lugar. Alguém o chamou,
“Para aonde está indo, Joaquim?”, um senhor de aparência séria, cabelo
grisalho, vestido um paletó antigo, barba, um pequeno óculos sem as perninhas de
enganchar na orelha.
“Quero achar o caminho, Machado de Assis”, disse Joaquim ao homem,
chegando mais próximo dele.
“É por aqui, venha”, disse Machado, pegando Joaquim pelo ombro e sorrindo
para ele de maneira tranquila e pacífica.
Joaquim o acompanhou emocionado com aquele gesto. As lágrimas escorriam
pelo rosto e ele limpava com a manga da camisa.
“Por que chora, Joaquim?”, disse Machado com voz serena e fitando-o.
“Porque eu não consigo escrever!”, exclamou Joaquim num soluço.
“Quando chegar ao fim, comece! Qual a sua motivação?”
“Quero ser inédito.”
“Que mais?”
“Quero revelar o que me incomoda, o que me chateia”, respondeu Joaquim com
ânimo e movendo o punho.
”Por quê?”
“Desejo que as pessoas melhorem. A leitura é o que nos separa dos animais. É
a inteligência em essência. A palavra é a comunicação, o segredo de avançar. Reside
nas palavras qualquer evolução, não tudo que há de belo, pero todas as coisas em
suas totalidades sem faltar. Tanto a graça quanto a desgraça; a tristeza, a euforia, o
júbilo e o martírio e a consolação e a promessa e a dívida e a vida em si. Mais que a
vida! a palavra é a criação da vida e da morte. Se algo existe, poder-se-ia resumí-lo no
texto. Poder-se-ia lendo, pois a leitura é uma criação individual, não existe o autor. Pero
os autores! Porque toda inteligência tem a necessidade da criação e é pela
interpretação que começa-se!”, disse Joaquim com muito entusiasmo, como se tirasse
um peso das costas, orgulhoso pelas suas ideias.
“Bom argumento”, disse Machado num sorriso e continou, “porém por que os
escritores escrevem realmente?", perguntou com a malícia no olhar querendo saber se
Joaquim saberia a resposta.
“Porque querem mudar a sociedade!", exclamou Joaquim com toda certeza.
“Não, Joaquim”, respondeu Machado balançando a cabeça de forma negativa e
já sabendo que Joaquim iria errar.
“Não!?”
“Não! Joaquim, você sabe em que lugar está?”
“Acho que estou morto. Estou no céu?”
“Não está morto. Pero está no céu”
“O senhor me trouxe aqui?”
“Obviamente”
“Por quê?, para me mostrar que escrever é tornar-se imortal?”

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“Não, porque quero te ajudar a escrever. Te mostrarei o real motivo dos
escritores escreverem... Sabe Joaquim, os poetas escrevem porque ao morrerem
encontrarão no céu um harém com as mulheres mais bonitas que se pode imaginar.”
Pararam e Machado o levou até uma escadaria para debaixo da terra.
“Venha, Joaquim”, disse Machado puxando-lhe pelo braço.
Encontraram um salão cheio, mulheres nuas perfeitamente modeladas, com o
seio grande e duro a balançar de um lado para o outro enquanto caminhavam,
sentavam-se nos colos dos rapazes, lá serviam-lhes bebida, fumo e chupavam-lhes o
pau. As volumosas bundas arredondadas e brancas, outras negras. Havia ali belezas
infindáveis para todos os gostos. Numa mesa estava um rapaz moço, com um ralo
bigode e cabelo penteado para trás. Tão jovem, pelo menos dez anos mais novo que
Joaquim. Fumava enquanto era chupado por uma lívida dama, balançou a taça para
cima e gritou,
“Taverneira! Não vê que meu copo está vazio?”, ria, fazia piadas... olhou para
Joaquim, o reconheceu e chamou, “Joaquim! Vem, aqui tem uma cadeira pra você!”
Machado e Joaquim foram se assentar. Uma ruiva garbosa, cheia de sardas e
extremamente sensual veio lhes encher o copo.
“Então, Joaquim! Primeira vez que vem aqui? Haha! Sabia que ia ser assim?
Nem imaginava, né?”, disse Álvares de Azevedo.
“Com toda certeza não!”
“Sabe o que é isso aqui?”
“Um cabaré?”
“Não, Joaquim... cá estão todas as mulheres que nos inspiraram enquanto
estávamos vivos, e veja... todas estão gratas”, disse Álvares com um grande sorriso.
“Incrível!”
“Pois é! Iai, gostou da ruiva?”
“Sim, muito bonita.”
A moça sentou no colo dele, beijou-lhe a boca, lambeu-lhe o rosto, ajoelhou-se aos
seus pés, abriu o zíper e começou a sugá-lo. Quando um homem deu um tapinha no
ombro dele e disse,
“Fica calmo aí Joaquim! a orgia nem começou ainda! Cá os gozos são infinitos!",
falou Bocage, empolgado.
Joaquim foi responder, pero sentiu-se indisposto, meio tonto, seria o vinho?
Fechou os olhos algumas vezes, sentia náuseas, e se aproximou dele duas meninas
loiras, a sorrir-lhe... eram as gêmeas Davidoff, suas alunas.
Chegou perto delas e quando ia as tocar Machado gritou,
“Não Joaquim!”
Joaquim acordou com o barulho do celular. Havia amanhecido. Atendeu, era
Alice.
“Bom dia, amor.”
“Bom dia”, respondeu Joaquim espreguiçando.
“Jo, vamos ao cinema hoje?”

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“Desculpa, amor, não posso. Tenho que ir a escola e sei que vai brigar comigo,
pero não escrevi nada a semana toda”, explicou Joaquim coçando os olhos e
angustiado.
“Uhm! Passará um filme francês no Cineteatro hoje. Vou com Aninha.”
“Vá, não perca. Eu não posso ir. Acabo de lembrar que ainda tenho que pagar as
contas de água e luz.”
“Onde?”
“Merda! Só posso pagar lá no centro eu acho.”
“Ah. Sua aula começa às nove?”
“Sim.”
“Então acho melhor ir logo. Já são sete.”
“É mesmo! dormi demais!”, exclamou Joaquim assustado ao olhar o relógio.
“Teve algum sonho bom?”
“Não, eu nunca sonho, ou nunca lembro, não sei.”
“Uhm! Então até.”
“Certo, beijos, amor.”
“Beijo!”
CAPÍTULO IX
SAIU DA CAMA, escovou os dentes, tomou banho, fez a barba, amarrou o
cadarço, escolheu uma camisa listrada, pegou a jaqueta, também uma caneta para por
no bolso, pensou,
“Escritor que não carrega uma caneta não vale nada.”
A manhã estava cheirosa, vento frio, as cores mais azuis, as árvores peladas, a
rua úmida. Um monte de gente no ponto de ônibus, será que vai passar logo?, vai
demorar. Demorou até que juntasse muita, muita gente! Pare aqui! pare aqui! aqui!,
parou lá. A massa de porcos juntos e fedidos, uns apertando os outros, uma onda em
maré alta que era puxada pela força e pressa de todos para entrar na porta minúscula
do ônibus. A quem lembrar-se da primeira cena de “Tempos modernos” de Charlie
Chaplin, a use aqui. Ou lembrem-se de gados correndo por corredores de um
matadouro por causa do choque que lhe dão no traseiro, é bem parecido. De pé a
balançar sem parar, idosos entram, também ficam de pé, cadeirantes entram, também
ficam de pé, e drogados gritando, Bom dia!, desculpe incomodar o silêncio da sua
viagem, ajude a… Foda-se, idiota! O mesmo discurso chato e repetitivo de sempre. A
rádio do ônibus tocava música ruim, eram obrigados a ouvir... alguma religiosa
cantarolava algo de crente, ai meus ouvidos!
Chegou, desceu do ônibus: finalmente podia respirar, cough! cough! cough!
cough!, a fumaça cobria a cidade. Quem meteu fogo, ondê? Começou a andar apesar
do ar horrível. Depois dessas coisas sentia-se incrivelmente chateado. Mesmo tendo
carro prefere o transporte coletivo, é ruim, pero polui menos, gasta menos, usando o
automóvel só para passeio. Começou a pensar mais, de uma ideia foi a outra, logo
outra e outra, evoluindo, devaneando, namorada, trabalho, texto, computador, escola,
professora, casa, Chapada, trânsito, olimpíada, esporte, ... as gêmeas... que anjos
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bonitos, pensava... o cabelo amarelo e macio, as íris azuladas, a boca miúda, delicada,
a pele suave, suave, como veludo, igual a uma fruta... e o cheiro, que cheiro bom,
delicado, doce, flores, mel, abelhas, pássaros, borboletas, ventos, nuvens, céus, o
frio... BUUUUUUUUUUUUUUUUUUUFFFFFFF!!!
Um barulho estrondoso ouviu! O coração assustado pulava, os olhos
esbugalharam, deu um pulo e procurou saber o que aconteceu. De repente um monte
de gente correu, e aglomeraram-se logo mais a frente... ele também correu para ver o
que tinha ocorrido, foi cortando todo aquele povo curioso até chegar na frente e ver:
Um caminhão desgovernado acertara uma velha que cruzava a avenida. E foi
frear depois de um tempo. Chamaram o socorro, porém evidentemente tarde demais.
Em XV minutos a ambulância chegou, bombeiros, polícia, mais gente, a tevê, e muito
mais gente. Foi costurando a multidão para olhar de perto:
A senhora encontrava-se numa poça de sangue no meio da rua, o corpo todo
dobrado, roupa rasgada, seminua, imóvel, morta, suja de graxa e marcas de pneu nas
pernas, braços, pescoço... a cabeça... sem cabeça! Cade a cabeça? não encontrava,
pero estava lá, em partes... esparramada em pequenos fragmentos num raio de metros
e metros. Uma mulher com uma caixa térmica e luvas foi procurando os pedaços de
cérebro e catando, pedaço por pedaço, igual carne moída... de tanto ir catando no meio
daquela gente, da sujeira e embaixo do sol a mesma passou mal... correu para se livrar
dos olhares, não conseguiu e foi vomitando, espalhando o vômito.
CAPÍTULO X
Barracas de frutas, carne, peixe, verdura, grãos, pastelaria, doces, brinquedos,
etcétera. Moça bonita, mediana, olhos verdes e brilhantes, cabelo preto abaixo do
ombro, muito clara, com boa voz, bom jeito, bonita beleza, andar calmo, movimentos
elegantes, canhota, sotaque estranho, lábio hidratado, cheirosa; feirantes gritando,
“Olha o peixe!”, “Olha a fruta!”, “Olha a melancia!”, “Olha a linguiça!”, e vários
outros anúncios. Caso esteja caro, pexinxe, eles querem vender, é bom comprar
sempre por menos,
“Mãe! eu quero algodão doce”, exigiu Aninha.
“Calma, vou comprar, pero primeiro vamos comprar as frutas, acalmava Alice.
Dirigiram-se a barraca,
“Pega sacola, Quanto está a maçã?, Filha, escolha as pêras, Quero metade
dessa melância, por favor, Aninha, pegou as pêras?, Então pega o abacaixi também,
Esses morangos estão bons?, De que lugar eles vem?, Limão é bom com peixe,
Quanto custa a sacola do pequi?, Tudo isso? Faz desconto, Levo então duas, Hoje vai
ter pequi com arroz, Quando deu tudo?, Aqui, obrigada.”
Tivera Aninha com XVII anos, fruto do primeiro casamento que durou apenas
três anos. Ex-marido era engenheiro, bonito, alto, um pouco machista, muito machista
e arrogante. Alice conheceu Joaquim numa festa, amigo da prima dela. Beijaram-se na
mesma noite, viram que tinham muito em comum, o jeito sério, as mesmas frutrações,
talvez fosse comum encontrar alguém desse tipo, não sei, de qualquer forma Joaquim
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era um bom rapaz, educado, a gentileza fazia parte da educação, inteligente, desejava
bom futuro, gostava de crianças, dava-se bem com Aninha, pegaram intimidade rápido.
Tudo ia bem, a ele não incomodava ela ter uma filha, não era ciumento. Ela, um pouco
mandona, pero elegante, compreensiva, amorosa, carinhosa, cozinhava bem, queria
casar-se de novo, gostava de relacionamentos sérios, tudo tinha de ser sério, se não
não valia, se não não era a mesma coisa. Talvez acabasse casando-se nove vezes
como fez Vinicius, “quantas vezes for preciso”, não, ela não iria fazer isso. Amava
Joaquim, pensava ter sorte por tê-lo conhecido, ele sim era bom partido, não rico,
porém não era miserável; tinha defeitos, contudo se analisar bem, irrelevantes quanto a
conduta e caráter. Alice viera do interior do Estado, e antes disso de São Paulo, e antes
de São Paulo, Florianópolis. Apesar da pouca idade parecia ter viajado bastante. O pai
dono de uma loja de cama e colchões acusava melhoroes condições em outros
lugares, então mudavam-se... Pero agora não precisavam mais, estavam
estabelecidos.
“Que peixe é esse?, Peraputanga?, Quanto tá?, Tudo isso?, E esse aqui, esse
aí, pega esse aí, esse pacu está melhor, quanto fica?, Já limpo?, Faz ele limpo por
esse preço, moço, É de tanque ou rio?, Quando foi pescado?, Posso fazer ele com
pimenta de cheiro?, É? Fica melhor com pimenta de verdade?, É que eu não gosto de
peixe muito apimentado, queria só o cheiro, Ah, sim, é verdade, então o gosto
desaparece?, Ah farei dessa forma então, Tenho que fazê-lo hoje ou posso congelar?,
Ah, congelado perde o gosto né?, Também acho, sim, sim, Aqui o dinheiro, Não tenho
cinco trocado, Obrigada.”
Luzes, gente, bicicleta, vendedores ambulantes, gritos, assaltos, furtos,
confusões, brigas, polícia, música alta, fumaça de churrasco, de cigarro, bêbados,
pessoas passeando.
“Mãe, eu quero pastel”, pararam na pastelaria.
“Carne, presunto ou queijo?”
“Queijo.”
“Garapa?", (s.f. 1. Caldo de cana; 2. Sumo extraído pela compressão do bagaço
da planta gramínea, Cana-de-açúcar. 3. Nome utilizado em algumas regiões do Brasil.
4. O autor diz ser bom, pero tome cuidado para não ser misturada com água. 5.
Contém propriedades laxantes. 6. Cuiabano não sabe o que é Caldo-de-cana.)
“Quero.”
“Então, quatro pastéis de queijo e duas garapas, por favor”, disse Alice
ao
pasteleiro.
“Vai comer ou vai levar?", perguntou o vendedor.
“Vou comer aqui.”
Cheiro forte de fritura, fumaça de óleo, gordura preta de tão usada e coada na
palha de aço, empregados suados, tudo sem higiene, formigas, baratas, moscas,
poeira, pastéis com mais ar que recheio.
CAPÍTULO XI
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DEPOIS DE OUTRA NOITE sem escrever, frustrado e ranzinza teve outro
sonho.
O navio balançava-se, sol quente da tarde, pero o mar refrescava. Gaivotas,
nuvens de tão claras quase transparentes, vento, barulho silencioso, e toda virilidade
que é estar a bordo. Joaquim repousava os cotovelos e observava a beleza da água
que juntava com o céu.
“Olá, Joaquim”, disse um homem alto, bigode, óculos fundo de garrafa e chapéu,
se aproximando.
“Boa tarde, Fernando Pessoa”, Joaquim respondeu com um sorriso.
“Fernando Pessoa? Quem? Eu me chamo Álvaro de Campos”, disse o homem,
já ao lado de Joaquim, como um amigo.
“Ah! boa tarde Álvaro, como vai?”, Joaquim não quis contrariar o maluco.
“Vou bem, e você?”, disse Álvaro.
“Bem”, fez um olhar de dúvida, “Para aonde este navio está indo?”
“Esta máquina de petróleo em movimento está a ir a Lisboa, estamos a voltar da
Índia”, respondeu Álvaro, sorridente.
“Eu não consigo escrever mais!”, reclamou Joaquim como um desabafo.
“Pois, lembre-se, escrever é preciso, viver não é preciso. Esqueça-se da vida,
escrever é somente a razão da tua existência.”
“Uhm!”, Joaquim suspirou desconsolado.
“Escreva, para que no fim se torne uma folha amarela como as outras, pero num
tom diferente.”
“É isso que tento fazer”, respondeu Joaquim abaixando os olhos num desalento.
“Pois faça.”
“Eu estive na sua casa, gostei da sua máquina de cortar cabelo antiga”,
comentou Joaquim a tentar se livrar da tristeza.
“Antiga?”, perguntou Álvaro surpreso.
“Sim, hoje nós costumamos usar uma elétrica, veja”, Joaquim abriu o paletó
tirando uma máquina de barbear e dando para Álvaro ver.
“Ah! Very nice!, demasiado futurista”, comentou Álvaro com a ferramenta em
mãos.
“É, pode ficar com ela, mesmo não tendo muito para cortar”, Joaquim riu, “Tem
duas fotos suas na parede do meu quarto.”
“Aé? Estou bonito nelas? onde as conseguiu?”
“Uma em jornal, nem lembro do que falava, outra numa exposição sua que teve
no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.”
“Uhm... Joaquim, eu sei porque você não consegue escrever.”
“Sabe?! por que então?”
“Vamos ver... pense a respeito do mito de Adão e Eva... ambos no Éden, tudo
perfeito, comida, paz, felicidade, vida eterna... porém os mesmos sentiram uma
estranha vontade de comer maçã, a fruta sagrada proibida por Deus... então Joaquim,
não coma a maçã... ela não vale o esforço.”
27
“Eu não comi a maçã!”, exclamou Joaquim, e ao dizer se assustou, o navio
virou, a água subiu-lhe até as canelas e foi enchendo cada vez mais, estavam sendo
absorvidos pelo mar!, “O que está acontecendo?!”
“Estamos afundando!”, disse Álvaro, “você comeu a maçã!”
“Não comi! juro!”
“Pero vai comer!”, ambos afundaram na água que os puxara para baixo,
Joaquim começou a afogar.
Joaquim pulou da cama, estava engasgando com o próprio refluxo, correu para
o banheiro, cuspiu e lavou o rosto, a garganta queimada, a boca inteira doendo, ”Que
ácido desgraçado!”, olhou-se no espelho, cara anêmica, doente, amarelo, olheiras,
acabado como um defunto tardio. Não recordava-se do sonho, porém pensava nas
gêmeas Davidoff.
CAPÍTULO XII
CHECOU AS HORAS NO PULSO: está na hora. Levantou a tampa do vaso de
qualquer jeito, a fazendo bater, ele nem lembrava mais que horas eram, pero sabia que
estava na hora, pelo menos isso... mijou forte, grosso, rápido, um jato contínuo de urina
amarelada quase marrom saindo do pinto flácido que ainda dormia... e aquilo ao pegar
na água liberou um cheiro intenso de café, pensou, “Minha urina tem cheiro de café”,
balançou, tirou o short de dormir, assentou-se, cagou e quanto cagava pensou, “Eu
podia ter mijado cagando, pero um homem deve fazer isso de pé, trata-se do orgulho
masculino!”, ele não dizia nada com nada, não pensava em coisas boas, tinha acabado
de acordar e estava com sono... nessas horas também pensou rapidamente nas
gêmeas... que meninas bonitas, adoráveis, como pode existir algo tão puro e tão belo
neste mundo, ele por este motivo tinha sido honrado em conhecê-las...
Tampou, deu descarga, colocou-se em baixo do chuveiro, ligou, água quente,
fechou o boxe, se lavou dos cabelos aos pés, cantarolava, “... lava uma mão, lava
outra, lava uma mão, lava outra, lava uma mão... mão, mão... pés, meus queridos pés
que me aguentam o dia inteiroooooo”.
Aproveitou a água quente para amaciar a barba, fez espuma com creme de
barbear, pincelou o rosto inteiro, pegou a navalha, olhou, afiada, foi passando no rosto
contra os pelos, um corte aqui outro lá, o barulho dos fios sendo cortados “tchii, tchiii,
tchii”, que demora, acabou. Expremeu o resto de pasta na escova de cerdas duras,
meteu-lha nágua e foi passando nos dentes com toda força, cantarolava no
pensamento, “...escova, escova, escova, tira toda sujeira”.
Amarrou os sapatos, camisa xadrez, perfume, jaqueta, uma caneta para o bolso,
não pode esquecer, copo grande de café para acordar, os dentes já estavam pretos.
Pegou a mochila, colocou toda a roupa dentro, abriu o carro, jogou no banco, empurrou
o portão e foi-se embora para casa de Alice. Telefonou,
“Bom dia amor, to passando aí, tá?”
“Tudo bem to pronta, só to penteando Aninha.”
“Ta bom, não esquece de nada, beijos.”
28
“Beijo.”
Estacionou o automóvel em cima da calçada, "Alice!”, gritou, e vieram Alice e
Aninha com muitas malas,
“Pra que tanta mala, meu Deus?”, perguntou Joaquim, “É só um final de
semana.”
“Aqui só tem roupa para um final de semana”, respondeu Alice, “Se fosse mais
teríamos mais malas.”
“Você concorda com isso Aninha?”, perguntou Joaquim.
“Só tem o necessário, Jo.”
“Então vamos, coloquem no porta malas e vamos logo para chegarmos o mais
depressa possível.”
Estrada longa, esburacada, lameada, emporcalhada, o mato em volta estava
quase a tomar conta da pista. Chapada estava longe, quanto tempo mais?, foram
conversando, foram cantando, olhando a paisagem, olhando qualquer coisa, lendo,
pero pouco, os pulos que o carro dava não deixava. Adiantando a fita... por fim
chegaram. Acionou o botão, garagem abriu, entrou, apertou o controle, fechou, pronto.
Lá estavam eles para conhecer a casa.
“Cá está a sala, o sofá, ali na frente o corredor do escritório, biblioteca,
estúdio...”
“Estúdio?”, Aninha interrompeu,
“Sim, Aninha, vou montar um estúdio pequeno aqui”, explicou Joaquim.
“E eu poderei gravar também?”, perguntou a moça de franja e com um rosto
fofíssimo.
“Claro, por que não, só me esperar comprar os equipamentos de gravação,
tratar da acústica do lugar...", disse Joaquim.
“Onde fica a cozinha, Jo? O peixe está descongelando”, perguntou Alice.
“Pra cá, atrás de nós, venham...”
“Primeiro vamos botar as malas no quarto.”
“Claro, claro, lá em cima, por aqui...”
“Pero o peixe pode estragar, vamos pra cozinha mesmo.”
Joaquim fez uma cara feia, por que não decidia?, “Venha por aqui”, entraram na
cozinha.
CAPÍTULO XIII
“JO, DA ÚLTIMA vez que fui a sua casa vi que o livro “Drácula", de Bram Stoker
estava de cabeça pra baixo na estante... não arrumei, ia te avisar, pero esqueci e só
lembrei agora”, informou Aninha.
“Ah! é que o conde Drácula estava dormindo”, provocou Joaquim.
Riram tanto que quase engasgaram o pacu assado com pimenta e uns pingos de limão
que estavam comendo no almoço.

29
“Por falar nele, eu tenho Nosferatu no meu pendrive, poderemos ver de noite,
que tal?", perguntou Joaquim às moças.
“Vamos!", exclamou Aninha.
“É o da década de LXX ou de XX?”, perguntou Alice.
“O de XX, o de LXX não sei em que lugar guardei”, comentou Joaquim.
“Ou de XC?”, perguntou Alice.
“De XX, tenho certeza, expressionismo alemão."
“E de tarde o que faremos?”, questionou Aninha.
“A piscina ta gelada demais, nem pense nela”, disse Alice prevendo o que a
menina queria.
“Ah mãe!”
“Ah nada!", disse Alice.
“Poderemos passear por aqui, ir até a cidade, que tal?", sugeriu Joaquim.
“Podemos mesmo”, disse Alice.
“Vamos!”, exclamou Aninha sempre contente.
Esqueci de comentar sobre o que estavam tomando com a comida, eu nem sei,
caso queiram pensar nisso, podem escolher entre o suco de caju e o guaraná ralado,
são as bebidas mais típicas de Cuiabá. Preciso avisar que este segundo é muito forte,
misture apenas uma colher.
Ao chegar três horas da tarde foram agasalhadíssimos até a cidade, visitaram
alguns pontos turísticos. O vento estava de cortar, porém andaram bastante,
compraram lembranças, viram os artesanatos de barro, copos, jacarés, beberam
alguma coisa, comeram bolo de fubá, café, viram um punhado de turistas gringos que
não sabiam português. Deram informação e etcétera. Chegaram em casa às sete da
noite, prontos para jantar e descansar, e o casal pronto para...
O que tem para jantar? Nada. Então foram para um restaurante de comida
regional, e lá serviram-se com farofa de banana, mujica de pintado e Maria Isabel.
Aquele pode entender-se como sopa de peixe e este simplesmente carne picada com
arroz.
Após o filme Alice colocou Aninha na cama,
“Está confortável, mocinha?”, perguntou Alice apertando o cobertor sobre ela.
“Estou, mãe... gostaria de uma estória antes de dormir.”
Alice e Joaquim se entreolharam, que estória poderiam contar? não tinham
nenhuma e a biblioteca nem estava feita ainda. Foi então que Joaquim catou do casaco
um minilivro, o qual nunca tirava do bolso, eram alguns contos de Allan Poe, abriu em
'The fall of the house of Usher' e recitou com voz de Vicent Price,
“'...For several days ensuing, her name was unmentioned by either Usher or
myself: and during this period I was busied in earnest endeavors to alleviate the
melancholy of my friend. We painted and read together...'”

30
Depois de concluído poderia ver a cara assustada de Aninha, então Alice e
Joaquim apagaram a luz e a deixaram só com o vento que batia na janela de madeira,
refugiando-se noutro quarto, teriam finalmente tempo para eles.
“Não acha demais Nosferatu e após Poe?”, perguntou Alice já na cama.
“Claro que não! crianças gostam dessas estórias!”, disse Joaquim com certeza e
se chegando para debaixo das cobertas.
“E você...”, disse Alice rebuçando-se também.
“Eu o quê?”
“Por que anda tristonho?”
“Não tenho conseguido escrever”, revelou Joaquim com olhar sem luz.
“Por quê?”
“Não sei.”
“Talvez alguma preocupação?”, Alice tentou desconfiando de algo.
“Sempre tive muitas”, respondeu Joaquim com indiferença.
“Alguma em especial?”
“Tenho.”
“Qual?”
“O casamento.”
”O que tem ele?”
“Não tenho certeza.”
“Não tínhamos decidido?”
“Desculpa, talvez não seja boa hora.”
“Como assim?”
“Tente entender, Alice, eu tenho sonhos...”
“Não pode realizá-los casado?”
“Posso...”
“Ou não faz parte dos seus sonhos o casamento?”
“Talvez.”
“Talvez?”, perguntou Alice com olhar de indignação.
“Não é isso, veja”, Joaquim pegou na mão de Alice, “Casamento requer muita
dedicação, preocupação com a família, com os filhos, e se tivermos outro filho? pois se
Aninha vem morar conosco ela passa a ser minha filha também. Talvez... imagine... eu
necessito escrever, necessito viajar por causa do doutorado, e de eventos de
literatura... acha que eu seria um bom marido e pai?”
“Tudo consome tempo, não é mesmo?”, disse Alice em desalento.
“Não fique assim, coração”, Joaquim se debruçou sobre ela, fitando o brilho
natural daqueles olhos cor de oliva, “Amo-te!”
”Amo-te?”, questionou Alice a colocação do pronome após o verbo.
“É o que diz a gramática”, respondeu Joaquim.
“Pero 'o bom negro e o bom branco da nação brasileira falam todos os dias,
deixa disso camarada, me dá um cigarro'”, Alice citou Andrade.
“É por isso que te amo”, disse Joaquim sorrindo e beijando a boca de Alice. Esta
correspondeu, então ele mordeu seu pescoço e sussurrou em sua orelha, “Forever.”
“'Till the stars fall from the sky'”, Alice citou Doors.
31
Em meio a este clima Joaquim começou a cantarolar a nona sinfonia de
Beethoven, para começarem o bom e velho 'in out in out'.
“Venha me fazer feliz, 'brother'”, disse Alice retirando a camisa de Joaquim.
Num segundo estavam ambos nus, Joaquim a deslizar calmamente entre as
coxas dela, suavemente hidratadas e macias como veludo. Enquanto o tempo estava
frio, Alice estava quente como fogo, uma chama que aquecia os lençóis, a cama e tudo
que estava em sua orla, em toda aquela alvura do rosto bem formado, com feições
arredondadas, sobrancelhas de poucos pelos e o lábio de uma pintura rósea que
tremia querendo balbuciar algo, e de repente Alice com os braços em volta do pescoço
dele o puxou para mais perto como se numa súplica por piedade, para ter a boca junto
ao seu ouvido e poder gemer baixo, em sussurros. Se todo movimento era calmo e
lento, sabendo aproveitar o momento, o coração palpitava forte, rápido e sofrendo, até
que num ápice de união ele começasse a descansar e ir vagarosamente retornando ao
ritmo normal.
Os dois a dormir, Joaquim sonhou.
CAPÍTULO XIV
JOAQUIM CAMINHAVA entre o vento frio de cristais, afundando os pés na neve
profunda e pesada. Por volta é só branco e neblina. O rosto vermelho estava sendo
machucado pelo ar gélido, e mesmo com grossos casacos e botas estava congelando.
Naquele tempo escuro que tampava o sol, via ao longe a sua frente, muito, muito
distante a figura borrada de um castelo, quando desviou os olhos dele, conseguiu
enxergar há poucos metros um homem franzino, olhos esbulhados, orelha grande e
nariz longo.
“Kafka!", Joaquim gritou, conseguindo a atenção do homem, que caiu na neve
pelo susto que levara.
“Quem é você?!, um fascista?!”, questionou o homem apavorado.
“Não, fique calmo! não sou fascista”, Joaquim explicou.
“Como diabos sabe meu nome?!", Kafka, ainda assustado, pero se
restabelecendo.
“Você quer chegar ao castelo, não é? Sinto dizer, que nunca conseguirá entrar
lá”, Joaquim informou.
“Por que não?! Você é funcinário do castelo?”, indagou Kafka com olhar sério.
“Não! Te conheço porque vim do futuro”, disse Joaquim sem achar que Kafka
acreditaria.
“Do futuro?! Não acredito!”, disse Kafka achando que encontrara um louco, pero
queria saber como esse louco o conhecia.
“Sabe... depois da sua morte, seu amigo pega todos os seus cadernos e publica
seus textos... em meu tempo você é um autor mundialmente famoso. Não sei porque
não conseguirá entrar no castelo, muitos já discutiram sobre isso, elaboraram
hipóteses... pero só você mesmo poderá dizer.”
“Meus cadernos?! aqueles garranchos?!”, Kafka não acreditava em nada.

32
“Sim. E você não tem muito tempo de vida... porém morrerá fazendo o que
gosta, afinal, 'tudo que não é literatura...'”
“'Me chateia'”, completou Kafka, surpreso, pero agora acreditando no homem
estranho.
“Estou aqui por um motivo, vim pedir a sua ajuda, eu não consigo escrever”,
lamentou Joaquim.
“Como não consegue, seu preguiçoso! Escrevi tudo à mão, em pilhas de
cadernos com garranchos que nem eu mesmo entendia! Se veio do futuro deve ter em
seu tempo alguma máquina melhor para escrever, pois não me venha dar alguma
desculpa, é preguiça pura!”, exclamou Kafka, aborrecido.
“Sim, desculpa”, lamentou Joaquim capisbaixo.
“Me diga uma coisa, por favor”, pediu Kafka, “E os fascistas, o que acontece
com os desgraçados?”
“Eles perdem a guerra, não se preocupe”, consolou Joaquim.
“E Frieda? ela fica bem?”, perguntou Kafka.
“Que Frieda?”, Joaquim não podia contar que ela seria assassinada num campo
de concentração.
“A minha mulher... baixa... cabelos louros...”
“Baixa, cabelos louros”... as gêmeas Davidoff...
Joaquim acordou num suor melado, respirando forte como se tivesse por
instantes perdido ar. Viu ao seu lado direito Alice a dormir como um anjo, então foi ao
banheiro lavar o rosto, voltando para cama em seguida, e foi levantar pela manhã.
CAPÍTULO XV
ALICE ACORDARA primeiro, e havia feito café suficiente para inspirar qualquer
escritor. Aninha também estava acordada e ambas à mesa comiam pão, bolo, suco de
laranja, leite, e ouviam o canto dos passarinhos.
“Que horas vamos embora, mãe?”, pergunto Aninha, ela sentia ter que voltar
para casa.
“No fim da tarde”, anunciou Alice, mastigando o bolo e dando um gole no café.
“E o tio?”
“Ele ainda não acordou”, disse a mãe, “deve estar cansado, deixe-o dormir até
mais tarde.", Alice pensava, será que tinha dado muito trabalho a Joaquim ontem de
noite? E sorriu.
“Por que está rindo, mãe?", perguntou a filha vendo.
“Nada, estava pensando, pronta para voltar para escola amanhã?"
“Não! Nem quero voltar”, queixou-se a menina.
“Bom, temos que voltar alguma hora, né? Semana que vem poderemos vir pra
cá se tudo der certo.”
“Vamos voltar semana que vem?", perguntou Aninha.
“Se tudo der certo...", respondeu Alice.
“Por que pode não dar certo?", Aninha perguntou intrigada.
33
“Por nada”, Alice respondeu, “Temos de ver se o Jo vai poder vir, né?”
“E se ele não puder?”, perguntou a filha.
Alice terminou o café e disse, “Aí não poderemos vir, ué...”
“E o que faremos então?”, perguntou a menina chateada.
“Joaquim comprou essa casa”, disse Alice fitando a filha, “Para virmos aqui todo
final de semana, se acontecer de não virmos, é porque Joaquim teve outra coisa para
fazer, ele é ocupado, lembra-se?”
“Escrevendo?”
“Sim, e com a escola..."
”Ele não disse que não tem escrito?”
“Disse, pero ele pode escrever, vai saber... que perguntas bobas, Ana, deixa pra
lá..."
“Ta bom.”
Joaquim acordou, viu que Alice não estava mais na cama, mirou o relógio que
nunca tirava, que horas eram? Tarde demais. Então levantou-se, calçou os chinelos, foi
ao banheiro, lavou o rosto, escovou os dentes com pressa, tomou uma ducha rápida e
fria... aprontou-se e desceu arrumado. As moças ainda estavam à mesa, pero já tinham
terminado de comer.
“Bom dia, senhoritas”, cumprimentou as mulheres.
“Bom dia.”
“Bom dia. Jo, o que vamos fazer hoje?”, perguntou a menina impaciente.
“Vamos comer primeiro, depois andar pela cidade”, respondeu.
“Mamãe e eu já comemos.”
“Então escove os dentes e pegue uma jaqueta”, disse Joaquim.
“Ainda ta frio lá fora?", perguntou Aninha.
“Deve estar”, a mãe respondeu.
“É, pena não termos ido ao rio”, disse Joaquim, “Com esse frio iriamos ficar
doentes.”
“Iríamos congelar”, Completou Alice. “A propósito, tem café na garrafa.”
“Que bom! obrigado”, agradeceu Joaquim.
“Jo, que hora vamos embora?”, perguntou Aninha.
“No fim da tarde, ainda temos tempo”, disse Joaquim.
“Temos nada...", comentou a menina olhando o vazio.
“Não pense nisso, semana que vem poderemos vir de novo”, comentou
Joaquim.
“Mamãe falou que talvez você não pudesse”, disse Aninha.
“Por que não?”, perguntou Joaquim.
“Porque talvez fosse estar ocupado escrevendo”, disse Ana.
“Uhm! Talvez, pero vou conciliar isso, poderemos vir sim”, respondeu Joaquim.
“Ta vendo, Ana? pare de ser neurótica”, disse Alice.
O dia estava muito claro, pero ainda frio. Frio o bastante para andarem
tranquilos sem suarem. Foram a cidade, nas mesmas casas de artesanato, de turistas,
34
caminhavam pela rua movimentada, não um grande movimento, Chapada já esteve
mais cheia, tinha menos gente por causa do tempo feio.
“Vou comprar pão de queijo!”, disse Aninha correndo para padaria.
Alice e Joaquim continuaram a andar, até a ponta da calçada, voltar, ver as
vitrines, as pessoas, caminhar em círculos, parar, conversar e na conversa,
“Preocupada com o nosso papo de ontem?”, perguntou Joaquim perto de Alice.
“Não”, Alice respondeu rapidamente, sorria, pero era fácil entender que tratavase de um sorriso dissimulado, Joaquim havia percebido que ela estava triste, a
conhecia tempo suficiente para tal coisa.
“Sei que está triste”, disse ele a encará-la e prender seu braço.
“Não estou, já disse”, agora sim Alice parecia desanimada, com os olhos sem
brilho.
“Sabe, Alice, que gosto muito de você, e cogite por um instante, lembre-se do
que dissera Kafka que, 'toda relação tem suas faltas, a nossa também'. Veja quantas
coisas boas nós temos, amamos um ao outro, e não quero outra mulher, falei tantas
vezes e parece não adiantar, você é a mulher da minha vida...”
“E não pode sacrificar-se por mim...”, disse Alice.
“Eu trocaria qualquer coisa por você sem pensar duas vezes, pero não é este o
caso. Podemos viver como estamos agora... veja, tudo é perfeito, somos como Adão e
Eva no jardim do Éden, não somos ricos, pero nossas privações são mínimas, dê valor
a isso...”, disse Joaquim fitando os olhos que já ganhavam maior brilho.
Aninha chegou trazendo uma sacola de papel que cheirava bem, depois da
longa fila que pegara na padaria,
“Voltei, a fila tava enorme!”
“Está cheirando bem”, disse Alice
“Pegue”, falou Aninha dando a sacola para a mãe, e ela passando a sacola para
Joaquim depois de ter pego um,
“Que caro!”, disse Joaquim olhando o preço, “Isso aqui é de ouro?”
“Tudo é caro para turistas”, comentou Aninha,
“Pero eu não sou turista”, argumentou Joaquim, “Moro logo ali...”
“Só nos finais de semana”, disse Alice, “Então é como um turista.”
Ao pôr do sol jantaram, arrumaram as coisas e voltaram para Cuiabá.
CAPÍTULO XVI
DORMIU DEMAIS, o sol batia-lhe com intensidade na cara, e ele levantou como
se apanhasse, mirou o relógio que despertava-o com um bipe, “tarde demais: tarde
demais: está atrasado: está atrasado: vai chegar tarde: vai chegar tarde: vai ser
despedido: vai ser despedido: vai ouvir sermão: vai ouvir sermão: arranje outro
emprego: arranje outro emprego.”
Voou para o chuveiro: lavou o que lhe era mais importante: se aprontou sem
esquecer da caneta no bolso e o café: pegou as chaves do carro: atrasado demais para

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ir de ônibus: empurrou o portão com toda a força e raiva: cantou os pneus para a
escola.
O sino tinha batido: andou com passos largos e rápidos pelos corredores
brancos: cumprimentou os funcionários: desde o diretor: donos: faxineiras:
“Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia:”
Entrou na sala:
“Bom dia, turma... todos sentados por favor.”
Os alunos sentaram-se. Maria e Carla Davidoff estavam lindas de doer. Como se
resumisse nelas toda a luz da sala, nos cachinhos que formavam-se na ponta do
cabelo dourado, na pele lívida como uma nuvem flutuante e os olhos azuis como o
mais belo e cristalino rio... Por instantes Joaquim sentiu-se no livro “Lolita” de Vladimir
Nabokov, lembrou-se também que não havia terminado de lê-lo.
Escreveu à giz no quadro, com uma caligrafia digna de dar inveja, pois estudara
muito a geometria das letras com seus adornos,
O Navio Negreiro – Castro Alves
“Leram o 'Navio Negreiro', pessoal?”, questionou o professor.
Responderam num só acorde, “Sim, professor!”, os alunos gostavam muito dele.
“Vamos começar pelo poema e partir logo mais para a poesia, alguém pode me
dizer quanto a estrutura, por que Castro Alves utiliza quatro ou cinco metrificações?
Estilo artístico muito utilizado no modernismo?”, perguntou Joaquim.
Maria Davidoff levantou a pequena mão e disse, “Na minha opinião ele
pretendeu com o decassílabo mostrar maior descrição, quanto na redondilha apelar
para a musicalidade que julgou necessária”, Maria temia que estivesse errada, mordeu
os lábios, fez um olhar de tensão sem piscar, esperando ansiosa a resposta do
professor.
“Perfeito, Maria”, comentou Joaquim, “Vejo que teve prazer na leitura...”
“Sim, professor, até decorei a primeira parte”, respondeu Maria contentíssima.
“Ah! então nos faça o favor de recitar...", pediu Joaquim.
Maria cantou com maestria, com adorável voz e boa dicção, podia se ver os
dentinhos novos entre os lábios delicadíssimos,
“Muito bem Maria”, disse o professor feliz, “Pode me responder só mais uma
coisa, e quanto aos parágrafos dodecassílabos e sextassílabos?”
Maria fez um olhar de nervosismo, como se estivesse próximo de errar, ia falar,
pero foi interrompida pela irmã,
“Penso que para chamar atenção do leitor, e rogar a Deus proteção ou se
confessar... como se ele pedisse para Deus ver o que acontecia, como se Deus não
estivesse a ver, tivesse esquecido daquela gente no navio... quanto ao disseto
decassílabo seguindo um verso final sextassílabo é como se ele... o dissesse com o
último fôlego, um lamento.", Falou rapidamente Carla, a tremer de preocupação...
“Brilhante, Carla, brilhante... ótima interpretação”, disse o professor sorrindo,
“Vocês duas terão um grande futuro!”
Maria encarou Carla com fúria, pero sem dizer nada, talvez ela não tivesse
pensado sobre esse trecho, pedaço que Carla soube fazer boa análise. Então ela
perguntou com curiosidade,
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“Pero professor!”, Maria o chamou atenção, “Qual a verdade sobre o poema? a
resposta certa?”
Carla também concordou, “Sim, e a resposta correta?”
“Resposta correta?", perguntou Joaquim espantado, “Isso não é matemática, é
literatura. Exercício da reflexão e interpretação. E acho que tiveram uma ótima ideia.
Se nenhum de vocês tem algo mais a dizer sobre o poema, partiremos para outro
assunto. Os leitores são vocês, e quem sou eu para dizer que estão errados?”
A classe ficou sem saber o que falar, surpresos, foi quando as duas moças
explodiram numa ideia tomada as pressas, disseram juntas, como se fossem ligadas
mentalmente,
“Você é o professor!", exclamaram.
Joaquim fitou-as, observou a classe... andou, deu voltas em cima do tablado,
ajustou a caneta preta do bolso da camisa, alisou o cabelo com a mão direita, e
respondeu,
“Quem é o professor, senão um mestre em alguma faculdade, que busca
despertar o interesse dos alunos? E quem formula hipóteses sobre os autores e suas
obras? Os donos da verdade? Ou apenas mestres em faculdades diferentes, com
diferentes buscas, com diferentes pensamentos, intenções, e verdades distintas? Se
alguém pode dizer a verdade sobre um texto, é próprio escritor... e veja que nem este
tem certeza sobre o texto, pois não está completo, foi somente um ato de devaneio e
reflexão que se tem a todo momento... e se este autor está morto? E agora, como
ficamos? Paramos de lê-lo? de pensar?... não, pessoal... filosoficamente a vida é
buscar a verdade. Porém se a acha, não é nada mais que um idiota que a espalha em
dogmas... pensem em tantas guerras e mortos que temos até hoje por essa simples
coisa... que parece inofensiva, pero extremamente asquerosa, que é encontrar a
verdade e impô-la aos outros... Pensando dessa forma é óbvio entendermos que
conforme a nossa cultura muda, a época muda, os homens mudam, a sociedade muda,
transforma-se... nossas interpretações sobre as obras, artisticamente falando com a
sua técnica, objetivo e expressão, sofrerão modificações e receberão novas
interpretações... a fim que possamos adaptar ao nosso dia-a-dia... imaginem como
estão errados em pensarem na verdade absoluta... se a sociedade transforma-se, a
interpretação da obra consequentemente transforma-se também... e é por este motivo
que estamos aqui reunidos, para entendermos, não aceitarmos o que está escrito nos
livros, apostilas, e nem mesmo o que nos dizem... pero ver o mundo com os nossos
próprios olhos e desejos.”
Joaquim olhou o relógio enquanto a turma estava paralisada...
“Bom, pessoal, a aula já vai acabar... É assim mesmo, o nosso tempo é curto.
Vamos deixar para a próxima aula o debate sobre a escravidão de outrora e a atual nas
fazendas de cana. Obrigado e podem arrumar suas coisas. Esperar o sinal bater para ir
pra casa e comer uma comida bem gostosa.”
Os alunos trataram de arrumar as coisas, fazendo barulho. Um menino chamado
Carlos veio ter com o professor,
“Professor, uma coisinha, quero saber se o senhor pode me ajudar”, disse o guri
com caderno e lápis na mão.
37
“Diga”, Joaquim falou atencioso.
“É sobre física, tenho essas perguntas para responder, pero não entendo nada,
veja... como posso calcular a força de uma batida de trânsito?", perguntou Carlos.
“É fácil”, Joaquim pegou o lápis, “Primeiro necessita saber se a velocidade é
constante, se o atrito é desprezado... calcular velocidade média... segundo ver os
dados, qual a velocidade? e qual a massa do carro A, lembrando que é medida por
quilograma e não por Newtons... então força será igual a massa vezes velocidade...
faça o mesmo com o carro B, então terá de somar as forças pois é do princípio da
física que a força exercida é paga na mesma moeda, lembra? e depois os dois carros
estão em movimento...”
“É mesmo! Agora lembrei”, disse o menino gordinho, “Obrigado professor, eu
gostei da aula em!”
“Nada, até a próxima”, Joaquim despediu-se.
“Tchau, professor!”
Logo o sinal tocou e foram todos embora.
CAPÍTULO XVII
NA PORTA as gêmeas esperavam por ele. Joaquim sem perceber foi passando
quando deparou-se com elas a sua frente,
“Professor!", disseram os anjos juntos.
“Oba, o que foi?", perguntou Joaquim curioso.
“Gostamos muito da sua aula!", falou Maria com um lindo sorriso.
“Ah!, obrigado meninas, é um prazer dar aula pra moças tão inteligentes como
vocês, uma honra”, comentou Joaquim agradecido.
“Virei fã de Castro Alves”, falou Carla balançando os cachos de ouro.
“Que bom, ele é de que geração do romantismo?", perguntou Joaquim.
“Terceira!", responderam num coro.
“E em que se basea?”, perguntou o professor.
“Luta social”, respondeu Maria.
“Uhm!, sim...", disse Joaquim, e o pré-modernismo, não seria também uma luta
social?”
Elas se entreolharam e disseram, “Sim...”
“É o dever de casa de vocês, refletir sobre isso...", disse Joaquim.
“Tem uma coisa”, Carla apontou o dedo, “O senhor mora no Grande III?”
“Sim, moro”, respondeu, “Por quê?", Joaquim estava curioso...
Então Maria pediu, “Nós moramos aqui por dentro do Boa Esperança, e nosso
cartão de ônibus não está funcionando, o senhor está de carro?”
“Estou sim”, Joaquim explicou, “Não costumo vir de carro para escola, pego o
ônibus, pero hoje vim pois estava atrasado, querem carona?”
“Sim”, disseram, “Não tem problema pro senhor?", perguntou Carla.
“Para mim não, claro que não, com maior prazer”, Joaquim levantou o dedo
indicador, “Pero seus pais não vão se incomodar com isso?”
“Não vão!", disseram.
38
“Certeza?", Joaquim perguntou.
“Temos!", disseram.
“Então vamos”, Joaquim convidou.
“Antes vamos passar na sorveteria”, disse Maria, “É rapidinho, o senhor ta com
pressa?”
“Não...", disse Joaquim, “Pero não está frio demais para sorvete?”
“Assim que é melhor”, argumentou Carla,
“Sim, derrete menos”, completou Maria.
Acomodaram-se na sorveteria do colégio, talvez com essa nova lei de excluir os
doces e salgados, seja retirada da escola.
As gêmeas possuíam um belíssimo corpo em desenvolvimento; a firmeza da
pele, do tecido adiposo e músculos equilibrados, dava curvas magníficas, próprias de
obras primas. Ora moviam a perna, se esticavam tentando alcançar as colheres do
balcão e notava-se a rigidez da batata da perna e a flexibilidade da coxa de impecável
beleza. Atléticas, proporcionavam a saúde com o esporte, como uma flor que ganhasse
força, cheiro adocicado e cores vivas às pétalas que futuramente iam desabrochar. O
rosto vivo contava com algumas sardas e vermelho por causa do sol que machucava a
derme melindrosa. O sorriso de incomparável encantamento espelhavam o cérebro
sadio, esperto, e a alma sincera, aventureira, juvenil.
Se assentaram sempre sorridentes e divertidas, com as bolas que escolheram
nas casquinhas pequenas... Maria preferia flocos quanto Carla chocolate. Apesar de
serem idênticas, suas personalidades assemelhavam-se com os sorvetes. Carla
atenciosa e paciente, ao visto que Maria corajosa e rápida.
“Professor, o senhor tem religião?", Perguntou Maria, para puxar conversa, e
Carla esperou a resposta.
“Fui batizado na católica, pero estou com Fernando Pessoa quando ele diz, 'Não
procures nem creias, tudo é oculto'. E vocês?”
“Nós frequentamos a missa toda semana”, respondeu Carla.
“Ah! religião é algo bom”, comentava o professor, “pero é necessário saber
buscar as coisas boas dela. Ser crítico quanto a sua utilização, e sempre procurar lutar
contra a falta de informações.”
“Uhum!", concordaram
“E os seus pais, professor, mora com eles?", perguntou Carla
“Não, não... eles moram no interior, moro só”, respondeu Joaquim.
“Tem namorada?”, questionou Maria.
“Tenho sim”, Joaquim respondeu num sorriso.
“O que ela faz?", perguntou Carla
“Dá aula em faculdade, de sociologia”, respondeu.
“Deve ser inteligente”, disse Carla aparentando inveja.
“É sim. Só gosto de pessoas inteligentes, por isso estou aqui com vocês”,
respondeu Joaquim num argumento esperto.
Ficaram contentes, sorriram, e Maria sugeriu,
“Vamos indo?”
39
Logo levantaram-se e foram para o estacionamento... apesar de velho o carro
dele tinha bom motor, forte e duradouro, eram um daqueles automóveis com um porta
malas espaçoso, ótimo para as compras do mês. Sentaram-se e as rodas partiram,
espalhando o cascalho,
“Por onde?”, perguntou Joaquim olhando dos dois lados antes de tomar a
avenida.
“Entre aqui e vá reto”, ensinou Carla.
“Agora tome esta rua debaixo até o final e vire à esquerda”, Maria o direcionou
mais tarde.
“Esta aqui?”, perguntou o professor.
“Sim”, responderam juntas, e o carro andou por alguns minutos.
“Nesta rua”, disse Carla,
“A casa com portão preto”, completou Maria indicando com o dedo.
“Obrigada, professor.”
“Obrigada, professor”, falou Carla
“De nada, nos vemos na escola, tchau...”
“Tchau”, responderam juntas.
Joaquim ficou parado em frente ao sobrado com jardim, garagem e uma casinha
para santo que havia ao lado da porta de ferro com vidraça colorida, até que as
meninas entraram, acenando com a mão. Não viu ninguém, será que elas estavam
sós, ou os pais as esperavam para almoçar? Se esperavam, sempre esperavam? Ou
era aquela uma situação especial? É raro uma família ser unida a ponto de almoçarem
juntos nos dias atuais, ainda mais com adolescentes, esses adultos em miniaturas que
brigavam por liberdade e independência. E se havia uma garagem por que não havia
carro? E se tem carro por que não pediram para os pais irem as buscar?, Joaquim
pensava, O pai delas poderia estar usando o carro no trabalho, deixando-as sozinhas
com a mãe que as esperava para almoço, isso se fossem casados, se alguém as
esperava em casa por que abriram a porta com a própria chave que levaram consigo
pro colégio? não via necessidade, a mãe bem podia abrir a porta feliz. O treino de
handball da escola costuma ser de noite, ao pôr do sol, e alimentação delas deveria ser
pontual, não havendo assim motivo para chegarem mais tarde ou mais cedo da aula,
Joaquim chegou a uma conclusão, estavam então à sós. As borboletas estavam
sozinhas, solitárias... bem haviam dito que sabiam cozinhar. E tem mais, queriam que
ele as levasse para casa? o cartão não estava mesmo a funcionar? Sabiam que ele
havia ido de carro para o colégio?, Joaquim imaginava, A distância daqui para a escola
não é tão longa, pero o sol faria a caminhada ser cansativa por demais, além de torrar
a pele, que com o tempo apresentaria manchas e envelheceria, Tomaram atitude certa,
pensou. E agora sabia onde moravam... não distante dele, talvez tudo ao redor do
centro fosse perto. Vamos embora Poirot.
CAPÍTULO XVIII
FINDAVA A TARDE e começava a noite fresca e de tortura. Joaquim pensava na
escola, e nas gêmeas, o que elas haviam dito a ele, a conversa, a sorveteria. Percebeu
40
que elas dele gostavam, será porque era apenas um bom professor? Ou havia algo
implícito? Alguma malícia que ainda não tivera percebido? Lembrou que em toda sua
infância e adolescência fora um menino bobo, avoado, lunático. Que papeava mais
com os livros e com os escritores que já haviam morrido, como se eles fossem seus
amigos, e quanto ao diálogo coloquial que tinha com as pessoas, parecia-lhe
rebuscados demais, as gírias a ele eram vistas como termos herméticos de química.
Aprendera palavras de baixo calão com Gregório de Matos e Graciliano Ramos, pero
congeladas pelo tempo, enquanto que os meninos da sua época estavam sempre
evoluindo. Depois de ter chamado um colega de classe de escroque porque o mesmo
havia furtado-lhe a caneta, e o colega não sabia a diferença de furto e roubo... ele se
recolheu em seu quarto. Passando cada dia mais perdido nos livros, como alguém que
se perdesse em drogas. A sociedade a seu ver era tola demais, burra demais. Tinha
razão. Porém a questão era socializar-se melhor. Não conseguiu. Já chamou a
professora de literatura de jumenta pois havia dito bobagens sobre Machado de Assis,
e o de português de macaco analfabeto porque errou a metrificação de uns versos de
Alberto de Oliveira. Odiava os professores, e por este motivo tornou-se um.
Muito devaneio, pouco trabalho. Havia percebido que não iria escrever nada. Foi
quando bateram-lhe a porta com afobação, Quem será? Abriu e pulou para trás,
“Parado aí!", Um homem careca de olhos azuis o apontava uma arma. Depois
este mesmo a pôs na mão de Joaquim.
Era um revolver calibre XXXVIII, cano curtíssimo, brilhava sem oxidação alguma,
de muito boa fabricação e marca. Pesado de sentir-se o poder em mãos, pero leve e
pequeno para ser guardado em qualquer lugar. Cheirou, e tinha cheiro de loja.
“Quanto quer por ele?", perguntou Joaquim ao amigo da polícia civil.
“900”, respondeu o careca.
“Qual a procedência?”
“Tiramos da mão de um vagabundo, trazia do Paraguai.”
“E a munição?”, disse Joaquim, recebendo uma sacola de balas. “Você pode
deixar aqui, pero não tenho o dinheiro agora, só na sexta.”
“Tudo bem então”, disse o careca, “Coloca uma camisa, vamos sair pra beber.”
“Pera aí”, disse Joaquim, “Você quer alguma coisa?”
“Mijar”
“Você sabe onde é o banheiro”, respondeu Joaquim e o amigo foi em frente.
Joaquim vestiu-se e estavam prontos para sair da casa quando o careca disse,
“Você sabe que se não me pagar sexta eu te mato, não é?”
Joaquim fez pouco caso e argumentou, “Você não mataria o professor do seu
filho, deixaria ele na mão de pessoas incompetentes.”
“Tem razão, hahaha.”
José, XXXIV, viera do Rio de Janeiro com a família, ainda carregava o forte
sotaque com todos os xis rasgados. Vestia sempre uma camisa regata para mostrar os
braços fortes tatuados, e andar desequilibrado, também tinha todo jeito de bandido e a
falta de educação dos cariocas. Com a calça jeans caída ora tampava a pistola na
cintura, ora deixava mostrar a coronha.
41
As Gêmeas de Narciso: Um Retiro Literário
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As Gêmeas de Narciso: Um Retiro Literário

  • 2. As gêmeas de Narciso / Lous Rondon. Cuiabá, 2013. Romance brasileiro. 2
  • 4. Ninguém duvida serem muitos os que se cansam sem nada fazer, como os que se dedicam a inúteis estudos de literatura. SÊNECA The rich get richer and the poor get children. F. SCOOT FITZGERALD Apenas através da mulher o homem aprendeu a saborear da árvore do conhecimento. NIETZSCHE Nada temos a temer. Exceto as palavras. RUBEM FONSECA A linguagem escrita é uma safadeza para enganar a humanidade com mentiras. GRACILIANO RAMOS Escrever é uma chatice. CHICO BUARQUE DE HOLLANDA Para multiplicar minhas homenagens não faço distinção de idades. SADE Antes da refeição sanguinolenta! AUGUSTO DOS ANJOS Que a vida para os tristes é desgraça, BOCAGE É muito mais seguro ser temido do que amado. MAQUIAVEL Cada um de nós comporta-se como um paranóico, corrige alguma faceta do mundo que lhe é intolerável, mediante a elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. FREUD Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; CAMÕES Todo homem mata o que ele ama. OSCAR WILDE Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. 4
  • 5. MACHADO DE ASSIS Tenho um tédio enorme da vida. VINICIUS DE MORAES Se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. ÁLVARES DE AZEVEDO E quem são aqueles que o desgosto da vida levou a se matar? Não são sobretudo pessoas devotadas à sabedoria? se a sabedoria se apoderasse de todos os homens. Logo a terra estaria deserta. ERASMO 5
  • 6. NOTA DO AUTOR MUITÍSSIMO obrigado por estar lendo, a parte mais difícil de escrever é arranjar os leitores, e com eles tenho todo o zê-lo do mundo; algumas cenas foram retiradas ou não foram escritas justamente pelo medo que tenho do que vão pensar; e nesta notinha desejo incliná-los ao meu verdadeiro objetivo; primeiramente não pensem, nem julguem por verdade qualquer coisa aqui escrita; é tudo ficção e não foi pensado em ninguém, até pelo motivo de não conhecê-los; como vão ficar sabendo mais para frente, pero já adiantando, essa estorinha se passa em Cuiabá, Mato Grosso, cidade onde nasci; quis com isso regionalizar, trazê-la mais próximo da realidade dos leitores, e para fazê-la compreensível às pessoas de outros lugares tratei de dar algumas explicações necessárias, haja vista que Cuiabá não é uma capital como São Paulo, Rio, ou Porto Alegre, que não precisa de nenhuma apresentação; não fui pago para fazer propaganda de nada, dessa forma não sou obrigado a agradar ninguém ou esconder certos defeitos, porém nem tudo diz respeito ao que realmente penso e nem está expresso aqui o que defendo; por último notarão que tenho algumas particularidades na escrita, erros cometidos propositalmente; estrangeirismo que trato por língua brasileira; dividi por partes e subdividi por capítulos curtíssimos; rapidez no relato; todas essas coisas encontradas e inspiradas em diversos autores. Leitores sempre foram enganados por acharem que o escritor conhece tudo do texto, totalmente os personagens e toda a verdade; eles são uma porta aberta para qualquer tipo de criação, não é relatado todos os atos, só relata-se o que se vê, o que sabe-se, o que se imagina, o que disseram; e interpretações nem sempre são verdadeiras ou originais; quando o conteúdo entrar no seu cérebro ele vai ser automaticamente influenciado por sua memória, o que já leu e viveu; parte do que é ruim ou do que é bom foi feito pela fantasia do leitor; a mim só coube, infelizmente, anotar o que os personagens fizeram, sem interferir. 6
  • 7. PRIMEIRA PARTE: VIDA CAPÍTULO I ERAM QUATRO HORAS DA MANHÃ quando Joaquim Antônio Casalescchi tomou o longo caminho para a cidade de Chapada. Cuiabá, graças a Deus, estava num tempo bom, o orvalho da matina havia deixado o carro, a estrada, as árvores molhadas e o ar com umidade quase em C por cento. O oxigênio entrava calmamente, deslizando pelas vias aéreas, refrescando a garganta, as narinas, os pulmões, oxigenando o sangue e as células, que davam energia ao corpo com a ajuda do copo grande de café que tomara ao acordar. A estrada encharcada podia representar um possível acidente, contudo valia a pena. O frio atrasava o aparecimento do sol. Os faróis ligados acenavam de um carro ao outro, os pneus passavam pelos buracos, o limpador retirava a água do parabrisa, velocímetro indicava LXX quilômetros por hora e o tanque estava cheio. Quanto tempo ainda falta para chegar? olhou o relógio do celular: restava mais uma hora e meia. Joaquim havia pego parte da herança que seu avô o deixara com a venda da fazenda no Paraná, para comprar uma belíssima casa de um andar cercada de árvores que o custaria mais de meio milhão, no morro da Chapada. Lugar privilegiado, solitário, sem vizinhos, afastado do centro, da agitação, que usaria para descanso. Lá guardaria sua biblioteca particular, com clássicos brasileiros e estrangeiros, e até os livros mais desconhecidos. Teria uma sala ampla que praticaria a arte de carpintaria; em outra um estúdio para gravação de música, era um excelente violonista; um escritório singelo, equipado com máquina de escrever, computador, pequeno banheiro e uma cafeteira para satisfazer seus prazeres de contista. Ao passar na casa feriados e finais de semana usaria a internet para mandar os textos para o jornal; trabalho de freelancer, artigos de opinião e poesias para uma revista carioca. Quanto tempo ainda falta para chegar? olhou o relógio de pulso folheado a ouro que ganhara de aniversário da namorada: meia hora. Professor de literatura em uma escola particular no bairro Boa Esperança; lecionava para o ensino fundamental noções básicas para o bom entendimento da literatura mundial adaptada a atualidade e a vida cotidiana. Em outros turnos dava aula de caligrafia e língua inglesa. Reconhecido pelas novas traduções de Kafka que estava a conduzir por conta própria. Estacionou, o dia havia nascido. Ao sair do automóvel mirou orgulhoso a enorme casa que ficava no monte, portões compridos, pretos, uma câmera de segurança a vigiar a rua vazia. As paredes de tijolinhos envernizados tinham como adorno colunas e janelas de madeira bruta. “Bom dia, seu Joaquim! Chegou cedo.", Carlos, o dono da casa o recebia. “Sim, aproveitei a estrada que estava vazia. Não te fiz esperar, fiz?", sorriu. “Não, claro que não, eu moro lá em Cuiabá, pero passei o final de semana na casa da minha mãe que fica há alguns quilômetros daqui.” 7
  • 8. “Eu vim hoje acertar toda a compra da casa.", Joaquim explicou. “Vamos falar disso, entra deixa eu te mostrar a casa.", Joaquim já havia visto, pero Carlos insistiu em mostrá-la mais uma vez, como se exaltasse a beleza do imóvel, e contente Joaquim aceitou. Carlos Becker era um homem grande de quarenta anos. Mãos fortes como de um trabalhador braçal ou visiculturista, pero originava-se da genética alemã e o cabelo castanho claro indicava que fora loiro na infância. Subiram o monte escorregadio, e deram de cara com a gigantesca e fortíssima porta de madeira. “Entra”, Carlos procurou a chave no bolso esquerdo, não encontrou, pôs a mão no bolso direito, “cadê?", procurou nos bolsos de trás e foi encontrá-la no bolso da camisa, abaixo do paletó. Abriu correndo já que tinha desperdiçado tempo procurando, parecia nervoso, porém apenas confirmava o mito de pessoas altas serem desastradas. A grande porta dava luz a uma arejada e espaçosa sala em que caberia dois ou três jogos de sofá. Assoalho de madeira velho, precisava de outra demão de tinta. Paredes claras, a lareira no centro da casa de enfeite, à esquerda um corredor que daria às salas, à direita três portas, a da cozinha, a da garagem e a trancada para o porão. Após a contemplarem Carlos falou, “Venha, por aqui, neste corredor está esse quarto pequeno, com banheiro, poderia ser um quarto de empregada..." Joaquim interrompeu, “Aqui eu vou deixar para o escritório em que vou escrever.” “Ah, sim! Fica realmente excelente para isso, na verdade ele foi feito para ser escritório de um advogado. Agora aqui, e este grande o que você vai fazer com ele?” “Neste farei um estúdio para gravação de música.” “Aé? Você toca?” “Um pouco, vou tentar gravar uns sambas, umas bossas.” “Fica bom, só vai ser necessário a espuma para isolar o som.” “Sim, farei isso.” “E os equipamentos de gravação, você tem?” “Não, vou negociar com um amigo, estou guardando o dinheiro para isso.” “Ficará bom!", Carlos disse alegre. “Agora temos esse, dos três é o maior, seria uma segunda sala de estar. Aposto que vai montar uma biblioteca, não é? “Sim.", Joaquim riu. “Vou sim.” “Dará uma excelente biblioteca! Veja que o teto aqui é mais alto que no resto da casa! Poderá por estantes enormes, fazer uns cinco ou seis corredores dela e sobrará espaço para uma escrivaninha. Vai ficar perfeito.” “Vai mesmo, você leu meus pensamentos.” “Agora deixa eu te mostrar a cozinha”, disse Carlos indicando caminho. Atravessaram a casa para o lado direito. “Aqui a cozinha, pode ver que é bem grande, separada por esta porta de abertura para a copa. Esta mesa comprida, como eu havia dito, vai ficar incluído no 8
  • 9. preço do imóvel, pois não tenho lugar para colocá-la, então minha mãe e eu achamos melhor vendê-la com a casa. Pero não se arrependerá. A madeira é de muito boa qualidade, bem trabalhada, resistente, durará muitas décadas mais. No máximo o trabalho que terá vai ser mandá-la envernizar novamente e trocar o plástico protetor. As cadeiras igualmente.” “Sim! Dá para ver a qualidade da mesa, caso precisar de reforma eu mesmo a faço. Mexo com carpintaria”, Joaquim informou com entusiasmo. “Ah, havia me dito, por isso falou da sala de carpintaria... venha, deixa eu te mostrar."Andaram um pouco... “aqui... esta seria uma segunda garagem fechada, caso não tenha mais de um veículo pode usar para carpintaria, pintura, imagino que só forrar o chão. Tem espaço, não tem?” “Tem sim! É perfeita, justo o que eu queria.” “A outra garagem é igual, ambas tem lâmpada e portão elétrico com fiação funcionando... Agora falta o porão... aqui está...", abriu a porta... “Vamos”, disse Carlos descendo a estreita escadaria que foi dar lá em baixo, “Serve para caso tenha muitos móveis, aqueles que não quer mais, estragados, ou simplesmente queira se livrar deles, ou tenha muitos objetos, material de caça, pesca, ou mesmo cachorro, poderá deixá-lo aqui caso estiver chovendo... É muito seguro, é fundo, a escada de madeira embora pareça fraca aguenta muito bem o peso. O lugar é grande, e ali em cima, vê?” “Sim", disse Joaquim a levantar a cabeça. “Tem essa janela estreita que não abre feita somente para clarear de dia, não precisar acender a luz. Gostou?” “Gostei sim.” “Claro que está meio sujo, é um porão, pero não há ratos, animais, formigas e outros insetos, está bem conservado, veja que nem a chuva entra aqui, não tem umidade, não tem mofo, azuleijado para melhor limpeza e logo ali tem um ralo. “Sim, sim, dá para se notar, está muito bem cuidado.” “Então é isso! Só falta o andar de cima que vai ter os quartos! Vamos subindo.", Carlos puxou Joaquim pelo braço, empolgado. A escadaria larga vermelha ao centro da sala para o primeiro andar desembocava num duplo corredor, que separava ao meio quatro quartos com suíte. Degrais simétricos, com bom espaçamento para os pés, corrimões de uma beleza incrível, a madeira talhada em peça única que acompanhava a largura que começava no primeiro degrau e ia se estreitando até o último, desenhando flores e folhas. “Aqui o quarto”, Carlos mostrava gesticulando “três deles tem o mesmo metro quadrado, com banheiro, chuveiro com aquecedor solar. Vai precisar com esse frio aí fora. Basta deixar a água correr cinco minutos antes de entrar, para esquentar. E este, o quarto principal, um pouquinho maior, acho que vai escolhê-lo. Tem esta banheira. Está perfeita, sem nenhuma mancha, meu pai trouxera de Portugal, junto da pia. Veja como é bela", apontava com orgulho. “Sim, muito bonita.” “Esta era a casa que mais agradava ao meu pai. Não a maior, pero o velho tinha por ela um sentimento especial. Lembro que escrevia muito no escritório lá de baixo.” 9
  • 10. “Então seu pai era escritor?” “Lembro que escrevia alguns romances que não publicava.” “Ainda guarda os textos dele?” “Minha mãe guarda tudo que é do velho.” “E ela não está triste por vender a casa?” “Talvez um pouco. Na verdade queremos nos desfazer dela, não por não gostarmos, pero por não podermos dar os devidos cuidados. Casa grande demanda maiores gastos, mais tempo.” “Deveras.", Joaquim confirmou. “Então agora somente me resta mostrar a piscina e o quintal.” A piscina, mandada fazer de piso, tinha uns dez metros de comprimento, água suja com folhas amarelas de grandes árvores que não foram podadas, na orla um jardim com rosas, muros altíssimos e cerca elétrica que impedia a entrada de ladrões. “A cerca está a funcionar?", Perguntou Joaquim. “Está sim! Quem a colocou fez um belo serviço, nunca deu problema. E a corrente elétrica é forte, vai desacordar qualquer um que queira pular o muro. Se bem que para tentar pular este muro precisará de uma escada, vê como é alto?” “Sim, é bem alto.” “Pois é, por fora é mais alto ainda, pois a residência está em cima de morro. Nunca tivemos de usar a cerca. Pero ela vive ligada, a tomada fica lá na garagem caso queira desligar.” “E a piscina como está?” “Está suja, como pode ver. Porém o azuleijo não está quebrado e o encanamento da limpeza em perfeitas condições. Só será necessário esvaziá-la, a sujeira ficará presa no filtro, daí é só enchê-la e espalhar o cloro. Nem é preciso chamar alguém, você mesmo poderá fazer em pouco tempo. A única preocupação é vigiar as crianças quando elas estiverem nadando, pois a piscina é funda. Tem filhos?” “Não, não tenho.” “Ah, então está tudo bem.", Carlos colocou a mão no queixo, "Na verdade se bem me lembro há umas boias no porão, as deixarei lá caso queira usar.” “Sim, sim, obrigado.” “Algo mais? Alguma dúvida?” “A casa possui cupins?” ”Não! De forma alguma, a madeira possui tratamento especial, não tóxico, que espanta qualquer inseto. Também não é inflamável. De qualquer forma, se quiser ficar com a consciência tranquila, conheço uma empresa há alguns quilômetros daqui que o poderá ligar e chamar alguém para vir detetizar a casa inteira, incluindo o porão, as garagens e este jardim.” “Ah! Era só uma dúvida, se diz eu confio.” “Sim, pode confiar. Esta casa foi construída para ser muito segura. De qualquer forma te deixarei o número da empresa para ter maior segurança.” “Sim, obrigado. E quanto a umidade, não tem perigo?” “Pergunta por causa dos instrumentos musicais?” 10
  • 11. “Sim, é isso.” ”Não precisa se preocupar, dentro da casa não há umidade ou goteira. Poderá guardar os instrumentos de madeira tranquilamente. Somente precisará se preocupar quando for à Cuiabá, lá o tempo é seco e quente, né?” “Sim, deveras! Tomo cuidado para não rachar os intrumentos.” “Correto, quando for à Cuiabá poderá passar um óleo protetor na madeira, acho que há um no porão. Havia na sala um piano.” “Ah! Por isso a sala é tão grande", falou Joaquim surpreendido. “Exatamente, meu pai era um ótimo pianista.” “E o que aconteceu com o piano?” “Está conosco em outra casa. Minha mãe gosta muito dele. Toca-o de vez em quando." “Sim.” “Mais alguma coisa? Alguma dúvida, qualquer coisa basta me perguntar.” “Não. Não há nada. Acho que está tudo certo.” “Que bom, se está tudo certo só nos resta mesmo ir ao cartório assinar a venda da casa. Vamos no meu carro?” “Sim, vamos.” Pegaram o carro que correu pelas ruas ainda molhadas, o raro tempo bom do Estado dava uma cor azulada ao céu sem muita luz. O relógio do pulso de Joaquim contava agora dez horas. Da janela do banco de passegeiro ele olhou em busca do sol, estava tampado pelas nuvens que voavam lentamente, aglomerando-se e ficando mais escuras. “Parece que vai chover mais tarde.", comentou Joaquim “Pelo jeito vai, não é? Tem chovido todos os dias por aqui.", informou Carlos com um sorisso. “Então o tempo aqui é mesmo melhor que em Cuiabá, em?", perguntou Joaquim só por perguntar. “E como! Quanta diferença.” “Será agradável morar aqui.” “Será sim. Minha mãe adora viver aqui. Não voltaria para Cuiabá de forma alguma. Pero morará aqui?” “Não, a casa é somente para os fins de semana, trabalho em Cuiabá.” “Isso, professor, não é mesmo?” “Sou.” Após XXX minutos chegaram ao cartório. Lugar branco, aparentemente bem organizado, com uma imagem de Jesus Cristo na parede. Pegaram senha e aguardaram. Foram após um tempo atendidos e assinaram os papéis, Joaquim olhou, vendo nome dele como proprietário. Na volta, as nuvens que prometiam despencavam em chuva. O vento empurrava as muitas árvores e o mato da beira da estrada, balançando-se umas nas outras, como se fossem cair. 11
  • 12. “Cá estão as chaves. Esta do escritório, esta do futuro estúdio, da biblioteca, da porta da frente, da porta dos fundos, da cozinha, do porão, das garagens e dos quatro quartos de cima, e esta do portão. Muito obrigado, qualquer coisa que eu puder ajudar não deixe de me ligar. Até logo.", disse Carlos simpaticamente apertando a mão de Joaquim. “Obrigado! Até.", Joaquim despediu-se com um sorriso de satisfação. CAPÍTULO II CAMINHOU PARA CASA. Cuiabano não suporta o frio, esvaziaram as ruas, o céu cinza, comércio fechado ou fechando, os bares outrora lotados agora solitários, cade a sede de uma das cidades que mais bebia cerveja? Talvez junto do sol também fora embora os costumes do cuiabano, estaria essa gente com identidade somente ligada ao fato do calor excessivo? E os obesos? Lanchonetes vazias. Parecia uma cidade falida, abandonada, nem mais os trevestis corriam gritando pela rua... Nada de carros, muito menos de ônibus. Caso esperasse ali a noite toda, a terceira cidade mais violenta do país o decepcionaria. Em casa o café quente escorreu-lhe garganta abaixo, o canto dos grilos não mais o faziam companhia, escrever seria duro. Assentou-se à máquina, tudo que precisa ter, escrevia ele, eram os personagens, o resto do texto a eles cabia. Parou. Sentiu-se impossibilitado de mexer os dedos. Pensava em Alice. Ele não poderia casarse! Essas mulheres não entendem, não veem que casamento implicaria em responsabilidades demais? Tinha já as da escola, comprara agora uma casa. E se viessem os filhos? Planejava escrever ainda alguns livros, umas poesias, uns romances, fazia a tradução de “O Processo”, pensava em ir à São Paulo fazer doutorado. Não poderia ser tão simplista, queria algo mais da vida. Afinal qual é essa de casamento? Por que tanta importância dada a ele? Não poderiam apenas namorar por tempo indeterminado? Até o fim da vida se fosse possível? Não estaria ela a estragar o namoro com o papo forçado de casamento e filhos? Claro que estava... que mania feia é essa de viver no século retrasado! Apesar de amá-la era óbvio que seus objetivos não batiam, nem mesmo a educação, costumes de família. Joaquim tinha horror de terminar como seu pai terminara, como seu avô terminara, como seu bisavô terminara. Desde que o primeiro antepassado dele chegara ao Brasil, os Casalescchi reproduziram-se, reproduziram-se, estavam na década de X do século XXI e nenhum deles teve futuro. Agora dependia dele. Veja o tamanho da preocupação que tinha na cabeça e Alice lá... apenas não se importava, não pensava. E adiantava explicar? Desde quando adianta explicar alguma coisa as mulheres? Preocupavam-se mesmo era com o cabelo. Cade as ambições? Escolheu a moça errada, só podia. Telefone toca, “Alô”, disse Joaquim entediado e deitando-se na cadeira. “Oi Jo.” “Oi Alice”, respondeu indiferente 12
  • 13. “Estava dormindo tão cedo?” “Não. Cheguei há pouco tempo, estava escrevendo." “Tem como você lavar minha calça jeans que ficou aí?” “Sim, as lavo." “E me trazer amanhã? “Amanhã? Acho que não posso. Tenho aula no primeiro horário. Talvez no almoço, que tal?" “Não, de tarde.” “De tarde também estou ocupado." “Você não quer me ver?” “Não é que eu não queira, é que preciso entregar o texto para a revista e esta noite não consegui escrever nada." “Ah, então eu estou atrapalhando!” “Não está atrapalhando, não estava escrevendo nada." “Não disse que estava escrevendo?” “Claro, estava à maquina, pero não consegui escrever." “Então terá de escrever amanhã.” “É isso que estou dizendo, não ouviu?" “Não sou surda, idiota.” “Tá, desculpa. Estou dizendo que amanhã não posso porque preciso escrever. Façamos assim, fará algo no sábado? Sábado posso buscá-la aí para irmos ver a casa." “Já fez tudo?” “Sim está tudo pronto, estou com os documentos." “Tem uma menina aqui que quer ajuda com o trabalho da escola, tem tempo?” “Aninha quer ajuda?” “É.” “Claro, pode chamar." “Espera.” “Espero.” “Oi." “Oi princesa, como está?" “Bem e você?” “Estou bem, o que manda?” “Trabalho sobre o capitalismo.” “Farei tudo que um professor de literatura puder para ajudar...” “As condições dos trabalhadores na época do Fordismo...“ “Sei..." “Que os operários destruiram as máquinas porque elas os havia roubado o emprego.” “Não, não é bem assim.“ “Foi a professora quem disse.” “Essa sua professora não bate bem das ideias.” “Uhm...” 13
  • 14. “A questão de destruir as máquinas não é porque elas eram mágicas e tinham vida própria, pero prejudicar financeiramente o dono da fabrica que controla o meio de produção, o capitalista, para que dessa forma ele seja obrigado a repensar o trabalho burro e mecânico do operário. Nesta época as máquinas vinham com intenção de dividir a produção e controlar o tempo, sacrificando o trabalhador, contudo dando mais lucros.” “E isso melhorou?” “De forma alguma. O trabalho é ruim até hoje, o sitema que Ford criou acabou com a vida das pessoas, muitas ficam com LER por conta da quantidade de movimentos repetitivos que descartam totalmente qualquer inteligência, como se o empregado fosse um robô. Você pode dizer que hoje as pessoas vivem mais tempo, não temos a peste negra, porém é óbvio que não, isso iria prejudicar os ricos, repare que os gados recebem vacina, etc... a morte deles seria perda de dinheiro e nos causaria doenças. Além do operário não ser dono de suas ferramentas, de sua produção, de seu trabalho, ele ainda não sabe como fazê-lo. Pois nada mais é artesanal, ele é limitado a apenas uma pequena parte da montagem de um veículo por exemplo.” “Isso aprisionou o trabalhador?” “Sim, não há como fugir.” “Pero o trabalho é recompensador, não?” “Não... veja... essa ideia do trabalho ser algo bom é uma ideologia que foi surgir da burguesia para os trabalhadores. Que uma pessoa só era cidadã, só podia se orgulhar com trabalho, fazendo os operários trabalharem mais e reclamar menos. Antes dela o ócio era valorizado, pero claro, sempre foi da elite, não dos escravos. Não é de se admirar que o brasileiro não lê, ele não tem tempo... imagine uma situação, como pode um ser humano não se dedicar a arte ou ao esporte, melhor ainda, a ambos? é porque para ter um passa-tempo, algo que se faz por prazer, que se paga para fazer, é preciso ter tempo disponível, coisa que a maioria dos trabalhadores não tem. Trabalhase para comprar comida, come-se para viver e perde a vida toda em favor do outro, a vida toda jogada no lixo.” “Certo, obrigada, tio.” “De nada, entrega para sua mãe.” “Oi.” “Oi, Alice, por que ela perguntou para mim, por que você não a respondeu?” “Ué, ainda não percebeu que era uma desculpa pra falar com você?” “Uhm... então ficamos para sábado?” “Sim.” “Passarei aí às oito, tudo bem?” “Sim. Beijo.” “Outro.” CAPÍTULO III 14
  • 15. “LEMBRAM, NARCISO VIVERIA caso não olhasse no espelho. Por que ele não podia olhar... Camila?” “Porque o oráculo Tiré... sias havia dito para mãe dele que não podia.” “Luís, qual era o nome da mãe de Narciso?" “Liríope, professor.” “Ela engravidou do Deus...” “Cefiso!", disse Marcos, ganhando a disputa de quem respondia mais rápido. “Amanda, por que Narciso era uma criança especial, o que ele tinha de diferente?” “Ele era muito bonito.” “Maria! Acorda Maria!", ela levantou o rosto da cadeira e fitou o professor “Maria, como Narciso morreu?” “Ele estava com sede, foi beber água de um rio, viu seu reflexo, se apaixonou pela própria beleza e morreu afogado.” “Vejam. Percebem que Narciso era tão obsecado pela sua imagem, amava tanto a si mesmo, que era incapaz de amar o outro. Então o que seria uma pessoa narcisista?” “Aquele que ama a si mesmo?", disse Lucas. “Só isso? Narcisista é a pessoa que ama tanto a si mesma que reconhece apenas os seus próprios desejos, ignorando o outro. Tudo no mundo gira em torno dele, e fará o que puder para conseguir o que quer sem importar se prejudica o outro. Como nós podemos pegar o mito de Narciso e adequar a nossa época?” a sala em silêncio, “E se eu disser que nós somos todos narcisistas?", olhares espantados “sim, pensem dessa forma... desde que nascemos vemos na tevê, comerciais oferecendonos produtos... dizendo que nós somos importantes, que nós merecemos tais produtos, que precisamos, que podemos, tudo para o mercado imperfeito sobreviver e lucrar mais. As empresas nos fazem amar a nossa própria imagem. Vejam que nenhuma propaganda nos ofertará algo para o bem de toda a sociedade, pero sempre apenas a nós! E nós realmente podemos! Trabalhamos, consumimos, o cartão de crédito está aí, podemos comprar tudo, podemos ter tudo que quisermos, sempre tivemos... celulares, tevês, computadores, roupas, sapatos, brinquedos... carro, moto, casa... cirurgias plásticas! caso não esteja satisfeito com o formato da boca, do nariz... com dinheiro poder-se-ia mudar a cor dos olhos, do cabelo, da pele... fazer implante de silicone nos seios, glúteos, lábios... homens e mulheres, amando a própria imagem, salões de beleza cheios, vários comerciais sobre lâminas de barbear! vamos nos depilar! sejamos todos obrigatoriamente metrossexuais... desprezemos o conteúdo, agora se tudo é produto, tudo podemos comprar, todas as coisas beneficiam apenas a nós, nunca a sociedade, vivemos a morte do social, aonde é que entraria o outro? o próximo? Eu sei a resposta! São produtos também!, óbvio que o são, o que mais seriam? por que adicionamos tanta gente nas redes sociais? qual a importância delas? somos realmente amigos de tanta gente? Não! queremos apenas que elas idolatrem a nossa imagem! caso não fizerem, qual é a solução? Simples, poderemos a excluir com um clique. O que ta estragado vai para o lixo. Agora imaginem se isso não acontece apenas na internet, acontece nos relacionamentos, por que tanta violência? os ladrões 15
  • 16. de hoje não roubam por comida, pero para também ter poder aquisitivo, e matam sem remorso. A violência não é algo isolado, pero social. Por que tanta gente se casa e tanta gente separa-se?, por que tantas namoradas e tantos namorados, por que o ficar? quem foi que inventou o sexo casual? Será que nós não estamos mais próximos às notícias, às tecnologias, aos produtos, e mais distantes das pessoas? Reparem o que vocês mesmos fazem em casa... quanto tempo realmente gastam conversando com os pais, com os irmãos... ou estão separados, divididos... um no celular, outro na televisão e o outro no computador? A família, os amigos, verdadeiramente nos satisfaz? estamos verdadeiramente satisfeitos? ou o consumo gera um círculo vicioso que nunca se desfaz, e precisamos sempre comprar para manter um prazer efêmero e burro?”, o sino tocou, “Pensem a respeito disso.” Com o fim da aula Joaquim foi arrumar suas coisas. E foram ter com ele duas gêmeas, Maria e Carla Davidoff, de XII anos. “Oi, professor, gostamos da aula", disse Carla “Desculpa ter dormido, professor”, desculpou-se Maria, com o rosto vermelho e inchado. “Nada, obrigado, então gostaram?", sorriu Joaquim. “Sim", responderam, “o que teremos na próxima?” “A próxima é só na semana que vem não é?” “Sim”, responderam. “Uhm, acho que falarei sobre Castro Alves e o trabalho escravo que ocorre nas fazendas de cana-de-açúcar, que tal?” “Parece legal”, respondeu Carla. “Leram o Navio Negreiro?” “Não”, disse Maria com os grandes olhos azuis, "Ninguém nos comentou sobre ele.” “Ah, então leiam para a próxima aula e avisem o resto da turma.” “Sim”, disseram contentes, olhos brilhavam de alegria, e o sorriso com dentes novos, “Professor, o senhor verá o nosso jogo de handball nas olimpíadas?” “Claro, é na quinta à tarde, não é?” “Sim.” “Verei sim, vocês vão jogar?” “Vamos, Maria e eu somos as melhores do time!", Balançavam-se como adolescentes contentes. “Vou gostar de assistir... Maria!”, chamou atenção dela. “Oi!” “Você tem jogo, deve dormir cedo”, riu. “Sim, sempre durmo cedo.” “Mentira dela professor, ela tem dormido tarde”, Carla dedurou fazendo bico. “Bom, acho melhor vocês irem, se comportem e preparem-se para o jogo!” “Vamos!", afirmaram. E saíram apressadas, naquela pressa que adolescentes sempre tem, com eufórica energia e saúde. As duas tinham cabelo louro escorrido, que chegava até o 16
  • 17. ombro; mediam por volta dos um metro e meio, haviam recém saído da infância e os hormônios empurravam agora os seios miúdos que iam aumentando de pouco em pouco até ganharem forma por volta dos XV anos. Pela primeira vez Joaquim admitiu a beleza das irmãs, pero o pensamento seguiu sem maiores transformações, apesar de ter se interessado pelo jogo da quinta. CAPÍTULO IV AO CENTRO-OESTE DO BRASIL, no estado de Mato Grosso, longe do litoral e das capitais, nasce em meio a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado a cidade de Cuiabá em MDCC. Situa-se numa depressão de difícil acesso aos ventos frios que vem do sul, é uma dos municípios mais quentes do país e com maior índice de raios solares. Fora em sua origem povoada pelos bandeirantes paulistas, logo após os nordestinos, a buscar a grande quantidade de ouro que havia. Dividiram o território com as diversas tribos indígenas da zona; e mais tarde na década de LXX recebeu migrantes cariocas e sulistas. Pela melhor condição financeira destas pessoas, o cuiabano, pessoa natural desta cidade perdeu gradualmente o sotaque carregado, ficando presente mais na periferia e nos ribeirinhos, aqueles que ainda vivem da pesca. Na época também ganhou o apelido de “preguiçoso”, pois era um costume indígena pescar de noite e descansar durante o dia. Diz uma lenda muito famosa a origem do nome, Cuyabá, grafia arcaica, palavra vinda do tupiguarani, signficando “artesão de copos”. A estória fala que um índio estava a contar ao outro como perdeu a cuia (S.f. 1. copo, glass, tigela), pescava quando um peixe o assustou e derrubou a cuia no rio, e pelo som ao bater na água, dá-se a onomatopeia “bá”. Pertence a ela o centro geodésico da América do Sul, calculado pelo marechal Cândido Rondon. Sobrenome este vindo da palavra francesa “rond”, significando pessoa gorda. Virou último nome na idade média para identificar as famílias. Irmãos espanhóis o trouxeram ao Estado, tornando assim este nome tão famoso na região e invulgar noutros cantos do país. Cândido foi homenageado com a construção da cidade Rondonópolis, Estado de Rondônia e o aeroporto Internacional Marechal Rondon, entre outras. O gigantesco Estado possui o maior Pantanal do Brasil, e vive principalmente da produção e exportação de grãos e pecuária. Carregando um grande impacto ambiental com queimadas, desmatamentos e poluição das águas. “Cidade verde” é um apelido pela grande quantidade de árvores no município, hoje sem razão. A capital com 500 mil pessoas, possui áreas de lazer extremamente limitadas; os casarões antigos deixados à mercê do tempo, abandonados; ruas mal feitas, com lixo; esburacadas; esgoto a céu aberto; mendingos; trânsito engarrafado, sem muitas vias; ar poluído pelos muitos carros e fumaça dos incêndios que cobre a cidade frequentemente. Horrivelmente quente pela falta de árvores e construções, recebe a carinhosa alcunha de “inferno”. Foi escolhida como uma das XII cidades sedes da Copa do mundo de 2014. Por este motivo será feito uma espécie de metrô, chamado “Veículo leve sobre trilhos”, projeto bilhonário substituindo o antigo que valia 17
  • 18. menos da metade do preço. Construção em andamento, tem destruído os canteiros; impedido o trânsito de alguns lugares; retirando a vegetação. O ano previsto para término é 2016. CAPÍTULO V “CUIABANO DE CHAPA E CRUZ” expressão para designar o cuiabano legítimo, o que nasceu e morreu cá; tem por significado descrever um idoso que usa dentaduras (chapa) e é católico fervoroso; é preciso salientar o número de igrejas, sobretudo as protestantes que apoderam-se de qualquer esquina. O cuiabano tem péssima qualidade de vida; é sonho de todos ter um automóvel, numa maneira de disputar por status, consequência de um baixo nível intelectual formado por escolas ruins; recentes pesquisas indicam que está a crescer o número de analfabetos. Várzea Grande, a cidade vizinha de 200 mil habitantes é um alongamento de Cuiabá. Em resumo o cuiabano tem o seguinte cotidiano: divide a semana entre o trabalho; os shoppings, em que passeam pois não tem dinheiro para as compras; igreja, qualquer uma serve, precisam somente socializar; restaurantes de fast food, pois necessitam manter seu título de o cidadão mais obeso do país; academia, porque frequentam a lanchonete; puteiros, presentes em toda parte; bocas de fumo e os bares, este oferece os dois últimos itens. CAPÍTULO VI A PEQUENA ESCOLA estava em festa. Pais, alunos, professores, barracas de comida, jovens andando de lá pra cá, o pátio iluminado pela lua cheia que cobria todo o lugar. O céu já escuro das seis horas, frio de doer, com vento cantando. Todo mundo agasalhado, gorro, sapato, calça. Pipoqueiro fritava o bacon, alguém enrolando algodão doce, balões na mão dos bebês que passavam nos carrinhos. O apito soou e o jogo começou. Sorrisos alegres, moças correndo rápido de olhos na bola, olhando as inimigas, balançando o rabo de cavalo, mordendo o beiço, gritando nervosas umas pras outras com vozes quase infantis. Agitação, suor escorrendo, adrenalina, apito, falta, gol e outro gol, mais um gol. Maria e Carla brigavam uma com a outra, mais bonitas e mais saudáveis que nunca. Camisa pequena, short de ginástica delineando a pequena bunda que enrigecia a cada movimento, e eram tantos. Joaquim mirava, acompanhava o jogo, torcia para ambas as turmas, era professor, não podia torcer para alguma específica, para dizer a verdade estava mais era prestando atenção nas gêmeas que exalavam, transpareciam a beleza virginal, aquela que mistura-se a inocência, alegria e sensualidade. O último apito soou. O jogo havia terminado, a classe das meninas venceu. Vieram correndo em busca dos pais para comemorar a felicidade, estes as receberam com abraços e beijinhos... Altos, brancos, olhos claros, haveriam de ser do sul! Joaquim até poderia imaginar um “tu fez bem” e algum “to tricontente”. 18
  • 19. A arquibancada levantava e a gente ia embora para casa, Joaquim foi também, tinha de chegar cedo, a máquina de escrever o esperava. Uma bela professora o encontrou e trataramm de soltar uns papos. “Oi, Joaquim, como ta?” disse a professora de biologia Cláudia, olhos castanhos, cintura fina, quadris largos, XXX anos, pero ainda formosa e com bom jeito de andar “To bem e você?”, disse Joaquim com um sorriso articial. “Bem. A turma B ganhou, você dá aula pra elas?", ela já sabia a resposta, porém procurava uma maneira de começar um assunto, não tinha namorado, estava afim de arranjar algo. “Dou sim, de literatura”, disse Joaquim com o mesmo sorriso artificial, pero contente em vê-la, qualquer um a acharia bonita e ele foi falando “Que bom que ganharam, as meninas jogam muito bem, se esforçaram.” “Sim, elas são mesmo muito boas”, disse Cláudia vindo para mais perto, “Teremos reunião na terça para difinir as provas do bimestre.” “Sei, defini a minha, vou elaborar algumas discursivas e fazer valer a opinião dos alunos sobre o tema proposto, não terá uma resposta certa. Acho mais importante o que eles pensam sobre o assunto”, disse Joaquim com confiança. “Acha que a diretora aceitará?", perguntou Cláudia. “Acho que sim”, respondeu Joaquim, “Não vejo porque não, não será uma prova típica, pero imagino ser melhor.” “Sim”, disse Cláudia, “Deve ser melhor, eu também o faria, acontece que na na biologia eles precisam decorar alguns nomes, entender alguns fenômenos, coisas do gênero, preciso seguir o que está na apostila. Você não a usa, né?” “Não, não uso”, respondeu Joaquim gesticulando para o argumento, “Não vejo necessidade. Ao invés de seguir uma ordem cronológica e didática, já estabelecida, prefiro procurar um tema atual abordado por algum autor e mostrar aos alunos qual a contribuição dele para a nossa época. Não penso que a questão cronológica seja uma boa ordem... eles poderão estudar isso por si só, quero algo que não esteja no livro, quero ser um professor do qual se lembrem, tenham algum tipo de orgulho por mim, que eu ensine algo de valioso para eles durante a juventude e o que o leve até a maturidade. Tem a literatura muito para nos ensinar a respeito da sociedade.” “Sim, você está totalmente correto, quem dera eu ter tido um professor tão bom quando tinha a idade deles”, ela descansou o ombro, “Eu não seria tão analfabeta em literatura como sou hoje. Procuro ler, porém acabo lendo pouco ao lecionar nos três turnos.” “É difícil, não é?", concordou Joaquim, “Bom, vou indo, até mais.” “Até”, disse Cláudia com um pouco de tristeza ao abandonar Joaquim na porta da escola. CAPÍTULO VII AO SAIR DA ESCOLA Joaquim pegou ônibus. Achou lugar para sentar-se, abriu uma das janelas pois acabava de entrar na Universidade Federal, passou pela 19
  • 20. biblioteca, viu os muitos graduantes, viu as negras árvores e em uma delas um macaco a dormir, calma, UFMT possui um zoológico, e provavelmente o macaquinho de lá fugira. Os esportistas jogavam bola, corriam, tiravam fotos... ao sair da faculdade avistou o córrego do Barbado, sujo, sem proteção onde qualquer um podia cair, e já caíram, Operários elevando os blocos de concreto que fariam a pista para pegar outra mão; percorreu toda a Avenida Fernando Corrêa, que resume-se em lojas de automóveis... o busão fez a curva chegando enfim a Praínha. Puxou o cordão e desceu. Agora à pé subiu a Getúlio Vargas, e foi-se assentar num banco da praça da República, ao lado do prédio velho da prefeitura. Observou ali toda sobrevivência da cidade: os camelôs, as lojas de roupa, de cosméticos, de eletrônicos e móveis. As pombas ainda espalhadas pelo chão comiam as migalhas dos pipoqueiros; os taxistas estavam lá vigiando os clientes. Atrás dele poderia descer por uma rua em que encontraria artigos religiosos e prédios antigos, do princípio da cidade, e por falar deles à sua frente os Correios, na lateral um museu e o Palácio da Instrução, pode lá encontrar fotos de quando Cuiabá era Cuyabá, e o balançar da bandeira do Brasil num grande mastro. A lua estava cheia, pero sombreava-o uma alta figueira, com raízes enormes que ali existia desde o tempo em que era criança. A colossal catedral Matriz espunha portas abertas, o que havia de ter em tamanha casa de concreto? E estes relógios gigantes que nunca mudam o horário? Sentiu-se minúsculo, um inseto. Nesse sentido veria reaberto o Cineteatro, um dos primeiros cinemas dessa capital. Caso bom tempo fizesse, encontrar-se-ia carrinhos-de-mão cheios de Pequi, uma fruta típica do cerrado, que o cuiabano mistura com arroz, aviso: cuidado com os espinhos. Pensava em Alice. Caso não desistisse da ideia de casamento, o namoro iria acabar por terminar. Talvez não fosse essa uma má ideia. Ele precisava de um tempo, o trabalho o enchia, podia agora mesmo voltar para casa, devia escrever, pero se voltasse, conseguiria? Então caducou por lá mais uns tempos... o pensamento vagava entre as pernas que saíam do trabalho, “quantas pernas meu Deus!”, já dizia Drummond. Faltava um artigo para o dia seguinte, sobre o que seria? Faltava uma poesia, já que está aqui poderia ser sobre o centro, porém que cidade monótona que não inspira ninguém! O vento assoprava-lhe o cabelo, o mesmo coçava, será que lavou ontem? Imagina um texto: o café é para o escritor como a caneta é para o papel, elementar. Como pode um escritor viver sem escrever, se o mundo lhe cabe num papel? Sem querer veio a intromissão de um devaneio, desculpa, eu não quero pensar nisso, as gêmeas tão bonitas e tão vivas. O que estavam a fazer neste momento? A jantar e ir para a cama? A escovar os dentes? Os dentes tão bonitos... o cabelo a pentear, os lábios sempre a sorrir. Queria voltar a alguns anos atrás em que tudo podia, que moças belas! Contudo deixa pra lá... o pensamento de um escritor deve ser um só: escrever. Meditar é preciso, pero quanto mais pesada, maior o intervalo de uma obra para outra, não é Fernando Pessoa? A vida é mesmo um naufrágio em que corremos para não nos afogarmos, no fim a morte é somente um conserto de um erro. Queremos consertar, porém o mundo só quem arruma é o fim. 20
  • 21. Levantou-se, caminhou entre os hippies e seguiu em frente, até a praça da Bispo. Encontrou lá uns mudos a fumar, fez uma saudação com o dedo mínimo levantado: oi. Continuou pela Avenida, agora imaginava, o cigarro cai bem para os que nada estão a fazer com as mãos. Qual afinal é essa necessidade de fazer algo com as mãos? Será que deveria voltar a fumar? Antes pagava dois reais num maço que hoje pagaria sete. Deixou pra lá. Encontrava-se ao pé da Maria Taquara, uma estátua. Travestis desfilando, bares, gente e mais gente... apressou o passo antes de levar um tiro... acontece muito por lá... Avistou a belíssima igreja do Bom Despacho, em cima de um morro. Continuou sem cessar, andou, andou e chegou no bairro do Porto, que outrora fora um dos mais perigosos. O Porto é também um porto. O rio Cuiabá que sustenta a cidade, no passado tivera muitas embarcações, principal meio de comunicação e transporte de produtos, atualmente fede. Aproveitou e à margem dele foi para casa. CAPÍTULO VIII GIROU A CHAVE, passou pelo corredor e foi a cozinha. Preparou um grande copo de café. Os pés doiam, muito caminhara, pero é sabido que faltava o artigo do jornal. Pôs-se frente a frente com o notebook, subiu os pés para cima da escrivaninha... esperava que o sangue circulasse melhor, porém daqui a pouco iriam ficar dormentes. Relaxou as costas duras na cadeira de rodinhas e ficou balançando, balançando, bebendo, tossindo, pensando, com sono, o que iria escrever? Apesar de não ter o que escrever ser algo corriqueiro, dizia Rubem Fonseca, que o escritor verdadeiro tem uma maneira de dizer nada, Joaquim estava irritado, parecia que há anos não escrevia. Pensou em Alice, pensou nas gêmeas. Talvez fossem culpa das mulheres, aquelas malditas. Não era. Era culpa dele mesmo. Esfregou os olhos, agora ardiam, as letras embaçavam, a luz estava de repente mais forte, mais iluminada, cegando-o. Começou a bater os dedos na mesa, apoiou-se no cotovelo, queria ter uma ideia, pero escutava com atenção o barulho de cada dedo na madeira... indicador forte, médio o mais forte, e a força se amenizava até o mínimo. E assim continuava. Gritou, “Filho da puta!”, bateu o monitor ao teclado, fechando o desgramado. Foda-se, ele ia dormir. Levantou e jogou-se em cima da cama. As pernas doiam, e como já profetizado, os pés estavam dormentes. Naquela noite ele sonhou, coisa rara. Era dia. O cemitério um grande lugar de não se ver horizontes. Túmulos bonitos, com epitáfios, árvores, o sol estava intenso, porém a luz não o incomodava. O ar era bom. Sentia o pulmão vazio, leve. Corpo mais forte, mais jovem, a vontade de sorrir incontrolável. Via as flores coloridíssimas, o canto dos pássaros, uma tranquilidade indescritível. Apesar da paz do lugar ele necessitava fazer uma coisa... precisava voltar para casa... cadê? qual direção deveria tomar? Mirou a sua volta, por mais que expremia os olhos não conseguia enxergar caminhos de entrada ou de saída. Precisava ir para casa. Tinha uma pressa imensa de ir para casa, cade a casa? Apressou o passo, corre, corre, corre corre, precisava ir para casa, por mais que corria só túmulos, só esculturas de anjos e a música dos passarinhos. Parou. Respirou 21
  • 22. fundo por três vezes. Entendeu e reconheceu que nunca acharia o caminho de volta, estranhamente estava preso naquele lugar. Alguém o chamou, “Para aonde está indo, Joaquim?”, um senhor de aparência séria, cabelo grisalho, vestido um paletó antigo, barba, um pequeno óculos sem as perninhas de enganchar na orelha. “Quero achar o caminho, Machado de Assis”, disse Joaquim ao homem, chegando mais próximo dele. “É por aqui, venha”, disse Machado, pegando Joaquim pelo ombro e sorrindo para ele de maneira tranquila e pacífica. Joaquim o acompanhou emocionado com aquele gesto. As lágrimas escorriam pelo rosto e ele limpava com a manga da camisa. “Por que chora, Joaquim?”, disse Machado com voz serena e fitando-o. “Porque eu não consigo escrever!”, exclamou Joaquim num soluço. “Quando chegar ao fim, comece! Qual a sua motivação?” “Quero ser inédito.” “Que mais?” “Quero revelar o que me incomoda, o que me chateia”, respondeu Joaquim com ânimo e movendo o punho. ”Por quê?” “Desejo que as pessoas melhorem. A leitura é o que nos separa dos animais. É a inteligência em essência. A palavra é a comunicação, o segredo de avançar. Reside nas palavras qualquer evolução, não tudo que há de belo, pero todas as coisas em suas totalidades sem faltar. Tanto a graça quanto a desgraça; a tristeza, a euforia, o júbilo e o martírio e a consolação e a promessa e a dívida e a vida em si. Mais que a vida! a palavra é a criação da vida e da morte. Se algo existe, poder-se-ia resumí-lo no texto. Poder-se-ia lendo, pois a leitura é uma criação individual, não existe o autor. Pero os autores! Porque toda inteligência tem a necessidade da criação e é pela interpretação que começa-se!”, disse Joaquim com muito entusiasmo, como se tirasse um peso das costas, orgulhoso pelas suas ideias. “Bom argumento”, disse Machado num sorriso e continou, “porém por que os escritores escrevem realmente?", perguntou com a malícia no olhar querendo saber se Joaquim saberia a resposta. “Porque querem mudar a sociedade!", exclamou Joaquim com toda certeza. “Não, Joaquim”, respondeu Machado balançando a cabeça de forma negativa e já sabendo que Joaquim iria errar. “Não!?” “Não! Joaquim, você sabe em que lugar está?” “Acho que estou morto. Estou no céu?” “Não está morto. Pero está no céu” “O senhor me trouxe aqui?” “Obviamente” “Por quê?, para me mostrar que escrever é tornar-se imortal?” 22
  • 23. “Não, porque quero te ajudar a escrever. Te mostrarei o real motivo dos escritores escreverem... Sabe Joaquim, os poetas escrevem porque ao morrerem encontrarão no céu um harém com as mulheres mais bonitas que se pode imaginar.” Pararam e Machado o levou até uma escadaria para debaixo da terra. “Venha, Joaquim”, disse Machado puxando-lhe pelo braço. Encontraram um salão cheio, mulheres nuas perfeitamente modeladas, com o seio grande e duro a balançar de um lado para o outro enquanto caminhavam, sentavam-se nos colos dos rapazes, lá serviam-lhes bebida, fumo e chupavam-lhes o pau. As volumosas bundas arredondadas e brancas, outras negras. Havia ali belezas infindáveis para todos os gostos. Numa mesa estava um rapaz moço, com um ralo bigode e cabelo penteado para trás. Tão jovem, pelo menos dez anos mais novo que Joaquim. Fumava enquanto era chupado por uma lívida dama, balançou a taça para cima e gritou, “Taverneira! Não vê que meu copo está vazio?”, ria, fazia piadas... olhou para Joaquim, o reconheceu e chamou, “Joaquim! Vem, aqui tem uma cadeira pra você!” Machado e Joaquim foram se assentar. Uma ruiva garbosa, cheia de sardas e extremamente sensual veio lhes encher o copo. “Então, Joaquim! Primeira vez que vem aqui? Haha! Sabia que ia ser assim? Nem imaginava, né?”, disse Álvares de Azevedo. “Com toda certeza não!” “Sabe o que é isso aqui?” “Um cabaré?” “Não, Joaquim... cá estão todas as mulheres que nos inspiraram enquanto estávamos vivos, e veja... todas estão gratas”, disse Álvares com um grande sorriso. “Incrível!” “Pois é! Iai, gostou da ruiva?” “Sim, muito bonita.” A moça sentou no colo dele, beijou-lhe a boca, lambeu-lhe o rosto, ajoelhou-se aos seus pés, abriu o zíper e começou a sugá-lo. Quando um homem deu um tapinha no ombro dele e disse, “Fica calmo aí Joaquim! a orgia nem começou ainda! Cá os gozos são infinitos!", falou Bocage, empolgado. Joaquim foi responder, pero sentiu-se indisposto, meio tonto, seria o vinho? Fechou os olhos algumas vezes, sentia náuseas, e se aproximou dele duas meninas loiras, a sorrir-lhe... eram as gêmeas Davidoff, suas alunas. Chegou perto delas e quando ia as tocar Machado gritou, “Não Joaquim!” Joaquim acordou com o barulho do celular. Havia amanhecido. Atendeu, era Alice. “Bom dia, amor.” “Bom dia”, respondeu Joaquim espreguiçando. “Jo, vamos ao cinema hoje?” 23
  • 24. “Desculpa, amor, não posso. Tenho que ir a escola e sei que vai brigar comigo, pero não escrevi nada a semana toda”, explicou Joaquim coçando os olhos e angustiado. “Uhm! Passará um filme francês no Cineteatro hoje. Vou com Aninha.” “Vá, não perca. Eu não posso ir. Acabo de lembrar que ainda tenho que pagar as contas de água e luz.” “Onde?” “Merda! Só posso pagar lá no centro eu acho.” “Ah. Sua aula começa às nove?” “Sim.” “Então acho melhor ir logo. Já são sete.” “É mesmo! dormi demais!”, exclamou Joaquim assustado ao olhar o relógio. “Teve algum sonho bom?” “Não, eu nunca sonho, ou nunca lembro, não sei.” “Uhm! Então até.” “Certo, beijos, amor.” “Beijo!” CAPÍTULO IX SAIU DA CAMA, escovou os dentes, tomou banho, fez a barba, amarrou o cadarço, escolheu uma camisa listrada, pegou a jaqueta, também uma caneta para por no bolso, pensou, “Escritor que não carrega uma caneta não vale nada.” A manhã estava cheirosa, vento frio, as cores mais azuis, as árvores peladas, a rua úmida. Um monte de gente no ponto de ônibus, será que vai passar logo?, vai demorar. Demorou até que juntasse muita, muita gente! Pare aqui! pare aqui! aqui!, parou lá. A massa de porcos juntos e fedidos, uns apertando os outros, uma onda em maré alta que era puxada pela força e pressa de todos para entrar na porta minúscula do ônibus. A quem lembrar-se da primeira cena de “Tempos modernos” de Charlie Chaplin, a use aqui. Ou lembrem-se de gados correndo por corredores de um matadouro por causa do choque que lhe dão no traseiro, é bem parecido. De pé a balançar sem parar, idosos entram, também ficam de pé, cadeirantes entram, também ficam de pé, e drogados gritando, Bom dia!, desculpe incomodar o silêncio da sua viagem, ajude a… Foda-se, idiota! O mesmo discurso chato e repetitivo de sempre. A rádio do ônibus tocava música ruim, eram obrigados a ouvir... alguma religiosa cantarolava algo de crente, ai meus ouvidos! Chegou, desceu do ônibus: finalmente podia respirar, cough! cough! cough! cough!, a fumaça cobria a cidade. Quem meteu fogo, ondê? Começou a andar apesar do ar horrível. Depois dessas coisas sentia-se incrivelmente chateado. Mesmo tendo carro prefere o transporte coletivo, é ruim, pero polui menos, gasta menos, usando o automóvel só para passeio. Começou a pensar mais, de uma ideia foi a outra, logo outra e outra, evoluindo, devaneando, namorada, trabalho, texto, computador, escola, professora, casa, Chapada, trânsito, olimpíada, esporte, ... as gêmeas... que anjos 24
  • 25. bonitos, pensava... o cabelo amarelo e macio, as íris azuladas, a boca miúda, delicada, a pele suave, suave, como veludo, igual a uma fruta... e o cheiro, que cheiro bom, delicado, doce, flores, mel, abelhas, pássaros, borboletas, ventos, nuvens, céus, o frio... BUUUUUUUUUUUUUUUUUUUFFFFFFF!!! Um barulho estrondoso ouviu! O coração assustado pulava, os olhos esbugalharam, deu um pulo e procurou saber o que aconteceu. De repente um monte de gente correu, e aglomeraram-se logo mais a frente... ele também correu para ver o que tinha ocorrido, foi cortando todo aquele povo curioso até chegar na frente e ver: Um caminhão desgovernado acertara uma velha que cruzava a avenida. E foi frear depois de um tempo. Chamaram o socorro, porém evidentemente tarde demais. Em XV minutos a ambulância chegou, bombeiros, polícia, mais gente, a tevê, e muito mais gente. Foi costurando a multidão para olhar de perto: A senhora encontrava-se numa poça de sangue no meio da rua, o corpo todo dobrado, roupa rasgada, seminua, imóvel, morta, suja de graxa e marcas de pneu nas pernas, braços, pescoço... a cabeça... sem cabeça! Cade a cabeça? não encontrava, pero estava lá, em partes... esparramada em pequenos fragmentos num raio de metros e metros. Uma mulher com uma caixa térmica e luvas foi procurando os pedaços de cérebro e catando, pedaço por pedaço, igual carne moída... de tanto ir catando no meio daquela gente, da sujeira e embaixo do sol a mesma passou mal... correu para se livrar dos olhares, não conseguiu e foi vomitando, espalhando o vômito. CAPÍTULO X Barracas de frutas, carne, peixe, verdura, grãos, pastelaria, doces, brinquedos, etcétera. Moça bonita, mediana, olhos verdes e brilhantes, cabelo preto abaixo do ombro, muito clara, com boa voz, bom jeito, bonita beleza, andar calmo, movimentos elegantes, canhota, sotaque estranho, lábio hidratado, cheirosa; feirantes gritando, “Olha o peixe!”, “Olha a fruta!”, “Olha a melancia!”, “Olha a linguiça!”, e vários outros anúncios. Caso esteja caro, pexinxe, eles querem vender, é bom comprar sempre por menos, “Mãe! eu quero algodão doce”, exigiu Aninha. “Calma, vou comprar, pero primeiro vamos comprar as frutas, acalmava Alice. Dirigiram-se a barraca, “Pega sacola, Quanto está a maçã?, Filha, escolha as pêras, Quero metade dessa melância, por favor, Aninha, pegou as pêras?, Então pega o abacaixi também, Esses morangos estão bons?, De que lugar eles vem?, Limão é bom com peixe, Quanto custa a sacola do pequi?, Tudo isso? Faz desconto, Levo então duas, Hoje vai ter pequi com arroz, Quando deu tudo?, Aqui, obrigada.” Tivera Aninha com XVII anos, fruto do primeiro casamento que durou apenas três anos. Ex-marido era engenheiro, bonito, alto, um pouco machista, muito machista e arrogante. Alice conheceu Joaquim numa festa, amigo da prima dela. Beijaram-se na mesma noite, viram que tinham muito em comum, o jeito sério, as mesmas frutrações, talvez fosse comum encontrar alguém desse tipo, não sei, de qualquer forma Joaquim 25
  • 26. era um bom rapaz, educado, a gentileza fazia parte da educação, inteligente, desejava bom futuro, gostava de crianças, dava-se bem com Aninha, pegaram intimidade rápido. Tudo ia bem, a ele não incomodava ela ter uma filha, não era ciumento. Ela, um pouco mandona, pero elegante, compreensiva, amorosa, carinhosa, cozinhava bem, queria casar-se de novo, gostava de relacionamentos sérios, tudo tinha de ser sério, se não não valia, se não não era a mesma coisa. Talvez acabasse casando-se nove vezes como fez Vinicius, “quantas vezes for preciso”, não, ela não iria fazer isso. Amava Joaquim, pensava ter sorte por tê-lo conhecido, ele sim era bom partido, não rico, porém não era miserável; tinha defeitos, contudo se analisar bem, irrelevantes quanto a conduta e caráter. Alice viera do interior do Estado, e antes disso de São Paulo, e antes de São Paulo, Florianópolis. Apesar da pouca idade parecia ter viajado bastante. O pai dono de uma loja de cama e colchões acusava melhoroes condições em outros lugares, então mudavam-se... Pero agora não precisavam mais, estavam estabelecidos. “Que peixe é esse?, Peraputanga?, Quanto tá?, Tudo isso?, E esse aqui, esse aí, pega esse aí, esse pacu está melhor, quanto fica?, Já limpo?, Faz ele limpo por esse preço, moço, É de tanque ou rio?, Quando foi pescado?, Posso fazer ele com pimenta de cheiro?, É? Fica melhor com pimenta de verdade?, É que eu não gosto de peixe muito apimentado, queria só o cheiro, Ah, sim, é verdade, então o gosto desaparece?, Ah farei dessa forma então, Tenho que fazê-lo hoje ou posso congelar?, Ah, congelado perde o gosto né?, Também acho, sim, sim, Aqui o dinheiro, Não tenho cinco trocado, Obrigada.” Luzes, gente, bicicleta, vendedores ambulantes, gritos, assaltos, furtos, confusões, brigas, polícia, música alta, fumaça de churrasco, de cigarro, bêbados, pessoas passeando. “Mãe, eu quero pastel”, pararam na pastelaria. “Carne, presunto ou queijo?” “Queijo.” “Garapa?", (s.f. 1. Caldo de cana; 2. Sumo extraído pela compressão do bagaço da planta gramínea, Cana-de-açúcar. 3. Nome utilizado em algumas regiões do Brasil. 4. O autor diz ser bom, pero tome cuidado para não ser misturada com água. 5. Contém propriedades laxantes. 6. Cuiabano não sabe o que é Caldo-de-cana.) “Quero.” “Então, quatro pastéis de queijo e duas garapas, por favor”, disse Alice ao pasteleiro. “Vai comer ou vai levar?", perguntou o vendedor. “Vou comer aqui.” Cheiro forte de fritura, fumaça de óleo, gordura preta de tão usada e coada na palha de aço, empregados suados, tudo sem higiene, formigas, baratas, moscas, poeira, pastéis com mais ar que recheio. CAPÍTULO XI 26
  • 27. DEPOIS DE OUTRA NOITE sem escrever, frustrado e ranzinza teve outro sonho. O navio balançava-se, sol quente da tarde, pero o mar refrescava. Gaivotas, nuvens de tão claras quase transparentes, vento, barulho silencioso, e toda virilidade que é estar a bordo. Joaquim repousava os cotovelos e observava a beleza da água que juntava com o céu. “Olá, Joaquim”, disse um homem alto, bigode, óculos fundo de garrafa e chapéu, se aproximando. “Boa tarde, Fernando Pessoa”, Joaquim respondeu com um sorriso. “Fernando Pessoa? Quem? Eu me chamo Álvaro de Campos”, disse o homem, já ao lado de Joaquim, como um amigo. “Ah! boa tarde Álvaro, como vai?”, Joaquim não quis contrariar o maluco. “Vou bem, e você?”, disse Álvaro. “Bem”, fez um olhar de dúvida, “Para aonde este navio está indo?” “Esta máquina de petróleo em movimento está a ir a Lisboa, estamos a voltar da Índia”, respondeu Álvaro, sorridente. “Eu não consigo escrever mais!”, reclamou Joaquim como um desabafo. “Pois, lembre-se, escrever é preciso, viver não é preciso. Esqueça-se da vida, escrever é somente a razão da tua existência.” “Uhm!”, Joaquim suspirou desconsolado. “Escreva, para que no fim se torne uma folha amarela como as outras, pero num tom diferente.” “É isso que tento fazer”, respondeu Joaquim abaixando os olhos num desalento. “Pois faça.” “Eu estive na sua casa, gostei da sua máquina de cortar cabelo antiga”, comentou Joaquim a tentar se livrar da tristeza. “Antiga?”, perguntou Álvaro surpreso. “Sim, hoje nós costumamos usar uma elétrica, veja”, Joaquim abriu o paletó tirando uma máquina de barbear e dando para Álvaro ver. “Ah! Very nice!, demasiado futurista”, comentou Álvaro com a ferramenta em mãos. “É, pode ficar com ela, mesmo não tendo muito para cortar”, Joaquim riu, “Tem duas fotos suas na parede do meu quarto.” “Aé? Estou bonito nelas? onde as conseguiu?” “Uma em jornal, nem lembro do que falava, outra numa exposição sua que teve no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.” “Uhm... Joaquim, eu sei porque você não consegue escrever.” “Sabe?! por que então?” “Vamos ver... pense a respeito do mito de Adão e Eva... ambos no Éden, tudo perfeito, comida, paz, felicidade, vida eterna... porém os mesmos sentiram uma estranha vontade de comer maçã, a fruta sagrada proibida por Deus... então Joaquim, não coma a maçã... ela não vale o esforço.” 27
  • 28. “Eu não comi a maçã!”, exclamou Joaquim, e ao dizer se assustou, o navio virou, a água subiu-lhe até as canelas e foi enchendo cada vez mais, estavam sendo absorvidos pelo mar!, “O que está acontecendo?!” “Estamos afundando!”, disse Álvaro, “você comeu a maçã!” “Não comi! juro!” “Pero vai comer!”, ambos afundaram na água que os puxara para baixo, Joaquim começou a afogar. Joaquim pulou da cama, estava engasgando com o próprio refluxo, correu para o banheiro, cuspiu e lavou o rosto, a garganta queimada, a boca inteira doendo, ”Que ácido desgraçado!”, olhou-se no espelho, cara anêmica, doente, amarelo, olheiras, acabado como um defunto tardio. Não recordava-se do sonho, porém pensava nas gêmeas Davidoff. CAPÍTULO XII CHECOU AS HORAS NO PULSO: está na hora. Levantou a tampa do vaso de qualquer jeito, a fazendo bater, ele nem lembrava mais que horas eram, pero sabia que estava na hora, pelo menos isso... mijou forte, grosso, rápido, um jato contínuo de urina amarelada quase marrom saindo do pinto flácido que ainda dormia... e aquilo ao pegar na água liberou um cheiro intenso de café, pensou, “Minha urina tem cheiro de café”, balançou, tirou o short de dormir, assentou-se, cagou e quanto cagava pensou, “Eu podia ter mijado cagando, pero um homem deve fazer isso de pé, trata-se do orgulho masculino!”, ele não dizia nada com nada, não pensava em coisas boas, tinha acabado de acordar e estava com sono... nessas horas também pensou rapidamente nas gêmeas... que meninas bonitas, adoráveis, como pode existir algo tão puro e tão belo neste mundo, ele por este motivo tinha sido honrado em conhecê-las... Tampou, deu descarga, colocou-se em baixo do chuveiro, ligou, água quente, fechou o boxe, se lavou dos cabelos aos pés, cantarolava, “... lava uma mão, lava outra, lava uma mão, lava outra, lava uma mão... mão, mão... pés, meus queridos pés que me aguentam o dia inteiroooooo”. Aproveitou a água quente para amaciar a barba, fez espuma com creme de barbear, pincelou o rosto inteiro, pegou a navalha, olhou, afiada, foi passando no rosto contra os pelos, um corte aqui outro lá, o barulho dos fios sendo cortados “tchii, tchiii, tchii”, que demora, acabou. Expremeu o resto de pasta na escova de cerdas duras, meteu-lha nágua e foi passando nos dentes com toda força, cantarolava no pensamento, “...escova, escova, escova, tira toda sujeira”. Amarrou os sapatos, camisa xadrez, perfume, jaqueta, uma caneta para o bolso, não pode esquecer, copo grande de café para acordar, os dentes já estavam pretos. Pegou a mochila, colocou toda a roupa dentro, abriu o carro, jogou no banco, empurrou o portão e foi-se embora para casa de Alice. Telefonou, “Bom dia amor, to passando aí, tá?” “Tudo bem to pronta, só to penteando Aninha.” “Ta bom, não esquece de nada, beijos.” 28
  • 29. “Beijo.” Estacionou o automóvel em cima da calçada, "Alice!”, gritou, e vieram Alice e Aninha com muitas malas, “Pra que tanta mala, meu Deus?”, perguntou Joaquim, “É só um final de semana.” “Aqui só tem roupa para um final de semana”, respondeu Alice, “Se fosse mais teríamos mais malas.” “Você concorda com isso Aninha?”, perguntou Joaquim. “Só tem o necessário, Jo.” “Então vamos, coloquem no porta malas e vamos logo para chegarmos o mais depressa possível.” Estrada longa, esburacada, lameada, emporcalhada, o mato em volta estava quase a tomar conta da pista. Chapada estava longe, quanto tempo mais?, foram conversando, foram cantando, olhando a paisagem, olhando qualquer coisa, lendo, pero pouco, os pulos que o carro dava não deixava. Adiantando a fita... por fim chegaram. Acionou o botão, garagem abriu, entrou, apertou o controle, fechou, pronto. Lá estavam eles para conhecer a casa. “Cá está a sala, o sofá, ali na frente o corredor do escritório, biblioteca, estúdio...” “Estúdio?”, Aninha interrompeu, “Sim, Aninha, vou montar um estúdio pequeno aqui”, explicou Joaquim. “E eu poderei gravar também?”, perguntou a moça de franja e com um rosto fofíssimo. “Claro, por que não, só me esperar comprar os equipamentos de gravação, tratar da acústica do lugar...", disse Joaquim. “Onde fica a cozinha, Jo? O peixe está descongelando”, perguntou Alice. “Pra cá, atrás de nós, venham...” “Primeiro vamos botar as malas no quarto.” “Claro, claro, lá em cima, por aqui...” “Pero o peixe pode estragar, vamos pra cozinha mesmo.” Joaquim fez uma cara feia, por que não decidia?, “Venha por aqui”, entraram na cozinha. CAPÍTULO XIII “JO, DA ÚLTIMA vez que fui a sua casa vi que o livro “Drácula", de Bram Stoker estava de cabeça pra baixo na estante... não arrumei, ia te avisar, pero esqueci e só lembrei agora”, informou Aninha. “Ah! é que o conde Drácula estava dormindo”, provocou Joaquim. Riram tanto que quase engasgaram o pacu assado com pimenta e uns pingos de limão que estavam comendo no almoço. 29
  • 30. “Por falar nele, eu tenho Nosferatu no meu pendrive, poderemos ver de noite, que tal?", perguntou Joaquim às moças. “Vamos!", exclamou Aninha. “É o da década de LXX ou de XX?”, perguntou Alice. “O de XX, o de LXX não sei em que lugar guardei”, comentou Joaquim. “Ou de XC?”, perguntou Alice. “De XX, tenho certeza, expressionismo alemão." “E de tarde o que faremos?”, questionou Aninha. “A piscina ta gelada demais, nem pense nela”, disse Alice prevendo o que a menina queria. “Ah mãe!” “Ah nada!", disse Alice. “Poderemos passear por aqui, ir até a cidade, que tal?", sugeriu Joaquim. “Podemos mesmo”, disse Alice. “Vamos!”, exclamou Aninha sempre contente. Esqueci de comentar sobre o que estavam tomando com a comida, eu nem sei, caso queiram pensar nisso, podem escolher entre o suco de caju e o guaraná ralado, são as bebidas mais típicas de Cuiabá. Preciso avisar que este segundo é muito forte, misture apenas uma colher. Ao chegar três horas da tarde foram agasalhadíssimos até a cidade, visitaram alguns pontos turísticos. O vento estava de cortar, porém andaram bastante, compraram lembranças, viram os artesanatos de barro, copos, jacarés, beberam alguma coisa, comeram bolo de fubá, café, viram um punhado de turistas gringos que não sabiam português. Deram informação e etcétera. Chegaram em casa às sete da noite, prontos para jantar e descansar, e o casal pronto para... O que tem para jantar? Nada. Então foram para um restaurante de comida regional, e lá serviram-se com farofa de banana, mujica de pintado e Maria Isabel. Aquele pode entender-se como sopa de peixe e este simplesmente carne picada com arroz. Após o filme Alice colocou Aninha na cama, “Está confortável, mocinha?”, perguntou Alice apertando o cobertor sobre ela. “Estou, mãe... gostaria de uma estória antes de dormir.” Alice e Joaquim se entreolharam, que estória poderiam contar? não tinham nenhuma e a biblioteca nem estava feita ainda. Foi então que Joaquim catou do casaco um minilivro, o qual nunca tirava do bolso, eram alguns contos de Allan Poe, abriu em 'The fall of the house of Usher' e recitou com voz de Vicent Price, “'...For several days ensuing, her name was unmentioned by either Usher or myself: and during this period I was busied in earnest endeavors to alleviate the melancholy of my friend. We painted and read together...'” 30
  • 31. Depois de concluído poderia ver a cara assustada de Aninha, então Alice e Joaquim apagaram a luz e a deixaram só com o vento que batia na janela de madeira, refugiando-se noutro quarto, teriam finalmente tempo para eles. “Não acha demais Nosferatu e após Poe?”, perguntou Alice já na cama. “Claro que não! crianças gostam dessas estórias!”, disse Joaquim com certeza e se chegando para debaixo das cobertas. “E você...”, disse Alice rebuçando-se também. “Eu o quê?” “Por que anda tristonho?” “Não tenho conseguido escrever”, revelou Joaquim com olhar sem luz. “Por quê?” “Não sei.” “Talvez alguma preocupação?”, Alice tentou desconfiando de algo. “Sempre tive muitas”, respondeu Joaquim com indiferença. “Alguma em especial?” “Tenho.” “Qual?” “O casamento.” ”O que tem ele?” “Não tenho certeza.” “Não tínhamos decidido?” “Desculpa, talvez não seja boa hora.” “Como assim?” “Tente entender, Alice, eu tenho sonhos...” “Não pode realizá-los casado?” “Posso...” “Ou não faz parte dos seus sonhos o casamento?” “Talvez.” “Talvez?”, perguntou Alice com olhar de indignação. “Não é isso, veja”, Joaquim pegou na mão de Alice, “Casamento requer muita dedicação, preocupação com a família, com os filhos, e se tivermos outro filho? pois se Aninha vem morar conosco ela passa a ser minha filha também. Talvez... imagine... eu necessito escrever, necessito viajar por causa do doutorado, e de eventos de literatura... acha que eu seria um bom marido e pai?” “Tudo consome tempo, não é mesmo?”, disse Alice em desalento. “Não fique assim, coração”, Joaquim se debruçou sobre ela, fitando o brilho natural daqueles olhos cor de oliva, “Amo-te!” ”Amo-te?”, questionou Alice a colocação do pronome após o verbo. “É o que diz a gramática”, respondeu Joaquim. “Pero 'o bom negro e o bom branco da nação brasileira falam todos os dias, deixa disso camarada, me dá um cigarro'”, Alice citou Andrade. “É por isso que te amo”, disse Joaquim sorrindo e beijando a boca de Alice. Esta correspondeu, então ele mordeu seu pescoço e sussurrou em sua orelha, “Forever.” “'Till the stars fall from the sky'”, Alice citou Doors. 31
  • 32. Em meio a este clima Joaquim começou a cantarolar a nona sinfonia de Beethoven, para começarem o bom e velho 'in out in out'. “Venha me fazer feliz, 'brother'”, disse Alice retirando a camisa de Joaquim. Num segundo estavam ambos nus, Joaquim a deslizar calmamente entre as coxas dela, suavemente hidratadas e macias como veludo. Enquanto o tempo estava frio, Alice estava quente como fogo, uma chama que aquecia os lençóis, a cama e tudo que estava em sua orla, em toda aquela alvura do rosto bem formado, com feições arredondadas, sobrancelhas de poucos pelos e o lábio de uma pintura rósea que tremia querendo balbuciar algo, e de repente Alice com os braços em volta do pescoço dele o puxou para mais perto como se numa súplica por piedade, para ter a boca junto ao seu ouvido e poder gemer baixo, em sussurros. Se todo movimento era calmo e lento, sabendo aproveitar o momento, o coração palpitava forte, rápido e sofrendo, até que num ápice de união ele começasse a descansar e ir vagarosamente retornando ao ritmo normal. Os dois a dormir, Joaquim sonhou. CAPÍTULO XIV JOAQUIM CAMINHAVA entre o vento frio de cristais, afundando os pés na neve profunda e pesada. Por volta é só branco e neblina. O rosto vermelho estava sendo machucado pelo ar gélido, e mesmo com grossos casacos e botas estava congelando. Naquele tempo escuro que tampava o sol, via ao longe a sua frente, muito, muito distante a figura borrada de um castelo, quando desviou os olhos dele, conseguiu enxergar há poucos metros um homem franzino, olhos esbulhados, orelha grande e nariz longo. “Kafka!", Joaquim gritou, conseguindo a atenção do homem, que caiu na neve pelo susto que levara. “Quem é você?!, um fascista?!”, questionou o homem apavorado. “Não, fique calmo! não sou fascista”, Joaquim explicou. “Como diabos sabe meu nome?!", Kafka, ainda assustado, pero se restabelecendo. “Você quer chegar ao castelo, não é? Sinto dizer, que nunca conseguirá entrar lá”, Joaquim informou. “Por que não?! Você é funcinário do castelo?”, indagou Kafka com olhar sério. “Não! Te conheço porque vim do futuro”, disse Joaquim sem achar que Kafka acreditaria. “Do futuro?! Não acredito!”, disse Kafka achando que encontrara um louco, pero queria saber como esse louco o conhecia. “Sabe... depois da sua morte, seu amigo pega todos os seus cadernos e publica seus textos... em meu tempo você é um autor mundialmente famoso. Não sei porque não conseguirá entrar no castelo, muitos já discutiram sobre isso, elaboraram hipóteses... pero só você mesmo poderá dizer.” “Meus cadernos?! aqueles garranchos?!”, Kafka não acreditava em nada. 32
  • 33. “Sim. E você não tem muito tempo de vida... porém morrerá fazendo o que gosta, afinal, 'tudo que não é literatura...'” “'Me chateia'”, completou Kafka, surpreso, pero agora acreditando no homem estranho. “Estou aqui por um motivo, vim pedir a sua ajuda, eu não consigo escrever”, lamentou Joaquim. “Como não consegue, seu preguiçoso! Escrevi tudo à mão, em pilhas de cadernos com garranchos que nem eu mesmo entendia! Se veio do futuro deve ter em seu tempo alguma máquina melhor para escrever, pois não me venha dar alguma desculpa, é preguiça pura!”, exclamou Kafka, aborrecido. “Sim, desculpa”, lamentou Joaquim capisbaixo. “Me diga uma coisa, por favor”, pediu Kafka, “E os fascistas, o que acontece com os desgraçados?” “Eles perdem a guerra, não se preocupe”, consolou Joaquim. “E Frieda? ela fica bem?”, perguntou Kafka. “Que Frieda?”, Joaquim não podia contar que ela seria assassinada num campo de concentração. “A minha mulher... baixa... cabelos louros...” “Baixa, cabelos louros”... as gêmeas Davidoff... Joaquim acordou num suor melado, respirando forte como se tivesse por instantes perdido ar. Viu ao seu lado direito Alice a dormir como um anjo, então foi ao banheiro lavar o rosto, voltando para cama em seguida, e foi levantar pela manhã. CAPÍTULO XV ALICE ACORDARA primeiro, e havia feito café suficiente para inspirar qualquer escritor. Aninha também estava acordada e ambas à mesa comiam pão, bolo, suco de laranja, leite, e ouviam o canto dos passarinhos. “Que horas vamos embora, mãe?”, pergunto Aninha, ela sentia ter que voltar para casa. “No fim da tarde”, anunciou Alice, mastigando o bolo e dando um gole no café. “E o tio?” “Ele ainda não acordou”, disse a mãe, “deve estar cansado, deixe-o dormir até mais tarde.", Alice pensava, será que tinha dado muito trabalho a Joaquim ontem de noite? E sorriu. “Por que está rindo, mãe?", perguntou a filha vendo. “Nada, estava pensando, pronta para voltar para escola amanhã?" “Não! Nem quero voltar”, queixou-se a menina. “Bom, temos que voltar alguma hora, né? Semana que vem poderemos vir pra cá se tudo der certo.” “Vamos voltar semana que vem?", perguntou Aninha. “Se tudo der certo...", respondeu Alice. “Por que pode não dar certo?", Aninha perguntou intrigada. 33
  • 34. “Por nada”, Alice respondeu, “Temos de ver se o Jo vai poder vir, né?” “E se ele não puder?”, perguntou a filha. Alice terminou o café e disse, “Aí não poderemos vir, ué...” “E o que faremos então?”, perguntou a menina chateada. “Joaquim comprou essa casa”, disse Alice fitando a filha, “Para virmos aqui todo final de semana, se acontecer de não virmos, é porque Joaquim teve outra coisa para fazer, ele é ocupado, lembra-se?” “Escrevendo?” “Sim, e com a escola..." ”Ele não disse que não tem escrito?” “Disse, pero ele pode escrever, vai saber... que perguntas bobas, Ana, deixa pra lá..." “Ta bom.” Joaquim acordou, viu que Alice não estava mais na cama, mirou o relógio que nunca tirava, que horas eram? Tarde demais. Então levantou-se, calçou os chinelos, foi ao banheiro, lavou o rosto, escovou os dentes com pressa, tomou uma ducha rápida e fria... aprontou-se e desceu arrumado. As moças ainda estavam à mesa, pero já tinham terminado de comer. “Bom dia, senhoritas”, cumprimentou as mulheres. “Bom dia.” “Bom dia. Jo, o que vamos fazer hoje?”, perguntou a menina impaciente. “Vamos comer primeiro, depois andar pela cidade”, respondeu. “Mamãe e eu já comemos.” “Então escove os dentes e pegue uma jaqueta”, disse Joaquim. “Ainda ta frio lá fora?", perguntou Aninha. “Deve estar”, a mãe respondeu. “É, pena não termos ido ao rio”, disse Joaquim, “Com esse frio iriamos ficar doentes.” “Iríamos congelar”, Completou Alice. “A propósito, tem café na garrafa.” “Que bom! obrigado”, agradeceu Joaquim. “Jo, que hora vamos embora?”, perguntou Aninha. “No fim da tarde, ainda temos tempo”, disse Joaquim. “Temos nada...", comentou a menina olhando o vazio. “Não pense nisso, semana que vem poderemos vir de novo”, comentou Joaquim. “Mamãe falou que talvez você não pudesse”, disse Aninha. “Por que não?”, perguntou Joaquim. “Porque talvez fosse estar ocupado escrevendo”, disse Ana. “Uhm! Talvez, pero vou conciliar isso, poderemos vir sim”, respondeu Joaquim. “Ta vendo, Ana? pare de ser neurótica”, disse Alice. O dia estava muito claro, pero ainda frio. Frio o bastante para andarem tranquilos sem suarem. Foram a cidade, nas mesmas casas de artesanato, de turistas, 34
  • 35. caminhavam pela rua movimentada, não um grande movimento, Chapada já esteve mais cheia, tinha menos gente por causa do tempo feio. “Vou comprar pão de queijo!”, disse Aninha correndo para padaria. Alice e Joaquim continuaram a andar, até a ponta da calçada, voltar, ver as vitrines, as pessoas, caminhar em círculos, parar, conversar e na conversa, “Preocupada com o nosso papo de ontem?”, perguntou Joaquim perto de Alice. “Não”, Alice respondeu rapidamente, sorria, pero era fácil entender que tratavase de um sorriso dissimulado, Joaquim havia percebido que ela estava triste, a conhecia tempo suficiente para tal coisa. “Sei que está triste”, disse ele a encará-la e prender seu braço. “Não estou, já disse”, agora sim Alice parecia desanimada, com os olhos sem brilho. “Sabe, Alice, que gosto muito de você, e cogite por um instante, lembre-se do que dissera Kafka que, 'toda relação tem suas faltas, a nossa também'. Veja quantas coisas boas nós temos, amamos um ao outro, e não quero outra mulher, falei tantas vezes e parece não adiantar, você é a mulher da minha vida...” “E não pode sacrificar-se por mim...”, disse Alice. “Eu trocaria qualquer coisa por você sem pensar duas vezes, pero não é este o caso. Podemos viver como estamos agora... veja, tudo é perfeito, somos como Adão e Eva no jardim do Éden, não somos ricos, pero nossas privações são mínimas, dê valor a isso...”, disse Joaquim fitando os olhos que já ganhavam maior brilho. Aninha chegou trazendo uma sacola de papel que cheirava bem, depois da longa fila que pegara na padaria, “Voltei, a fila tava enorme!” “Está cheirando bem”, disse Alice “Pegue”, falou Aninha dando a sacola para a mãe, e ela passando a sacola para Joaquim depois de ter pego um, “Que caro!”, disse Joaquim olhando o preço, “Isso aqui é de ouro?” “Tudo é caro para turistas”, comentou Aninha, “Pero eu não sou turista”, argumentou Joaquim, “Moro logo ali...” “Só nos finais de semana”, disse Alice, “Então é como um turista.” Ao pôr do sol jantaram, arrumaram as coisas e voltaram para Cuiabá. CAPÍTULO XVI DORMIU DEMAIS, o sol batia-lhe com intensidade na cara, e ele levantou como se apanhasse, mirou o relógio que despertava-o com um bipe, “tarde demais: tarde demais: está atrasado: está atrasado: vai chegar tarde: vai chegar tarde: vai ser despedido: vai ser despedido: vai ouvir sermão: vai ouvir sermão: arranje outro emprego: arranje outro emprego.” Voou para o chuveiro: lavou o que lhe era mais importante: se aprontou sem esquecer da caneta no bolso e o café: pegou as chaves do carro: atrasado demais para 35
  • 36. ir de ônibus: empurrou o portão com toda a força e raiva: cantou os pneus para a escola. O sino tinha batido: andou com passos largos e rápidos pelos corredores brancos: cumprimentou os funcionários: desde o diretor: donos: faxineiras: “Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia: Bom dia:” Entrou na sala: “Bom dia, turma... todos sentados por favor.” Os alunos sentaram-se. Maria e Carla Davidoff estavam lindas de doer. Como se resumisse nelas toda a luz da sala, nos cachinhos que formavam-se na ponta do cabelo dourado, na pele lívida como uma nuvem flutuante e os olhos azuis como o mais belo e cristalino rio... Por instantes Joaquim sentiu-se no livro “Lolita” de Vladimir Nabokov, lembrou-se também que não havia terminado de lê-lo. Escreveu à giz no quadro, com uma caligrafia digna de dar inveja, pois estudara muito a geometria das letras com seus adornos, O Navio Negreiro – Castro Alves “Leram o 'Navio Negreiro', pessoal?”, questionou o professor. Responderam num só acorde, “Sim, professor!”, os alunos gostavam muito dele. “Vamos começar pelo poema e partir logo mais para a poesia, alguém pode me dizer quanto a estrutura, por que Castro Alves utiliza quatro ou cinco metrificações? Estilo artístico muito utilizado no modernismo?”, perguntou Joaquim. Maria Davidoff levantou a pequena mão e disse, “Na minha opinião ele pretendeu com o decassílabo mostrar maior descrição, quanto na redondilha apelar para a musicalidade que julgou necessária”, Maria temia que estivesse errada, mordeu os lábios, fez um olhar de tensão sem piscar, esperando ansiosa a resposta do professor. “Perfeito, Maria”, comentou Joaquim, “Vejo que teve prazer na leitura...” “Sim, professor, até decorei a primeira parte”, respondeu Maria contentíssima. “Ah! então nos faça o favor de recitar...", pediu Joaquim. Maria cantou com maestria, com adorável voz e boa dicção, podia se ver os dentinhos novos entre os lábios delicadíssimos, “Muito bem Maria”, disse o professor feliz, “Pode me responder só mais uma coisa, e quanto aos parágrafos dodecassílabos e sextassílabos?” Maria fez um olhar de nervosismo, como se estivesse próximo de errar, ia falar, pero foi interrompida pela irmã, “Penso que para chamar atenção do leitor, e rogar a Deus proteção ou se confessar... como se ele pedisse para Deus ver o que acontecia, como se Deus não estivesse a ver, tivesse esquecido daquela gente no navio... quanto ao disseto decassílabo seguindo um verso final sextassílabo é como se ele... o dissesse com o último fôlego, um lamento.", Falou rapidamente Carla, a tremer de preocupação... “Brilhante, Carla, brilhante... ótima interpretação”, disse o professor sorrindo, “Vocês duas terão um grande futuro!” Maria encarou Carla com fúria, pero sem dizer nada, talvez ela não tivesse pensado sobre esse trecho, pedaço que Carla soube fazer boa análise. Então ela perguntou com curiosidade, 36
  • 37. “Pero professor!”, Maria o chamou atenção, “Qual a verdade sobre o poema? a resposta certa?” Carla também concordou, “Sim, e a resposta correta?” “Resposta correta?", perguntou Joaquim espantado, “Isso não é matemática, é literatura. Exercício da reflexão e interpretação. E acho que tiveram uma ótima ideia. Se nenhum de vocês tem algo mais a dizer sobre o poema, partiremos para outro assunto. Os leitores são vocês, e quem sou eu para dizer que estão errados?” A classe ficou sem saber o que falar, surpresos, foi quando as duas moças explodiram numa ideia tomada as pressas, disseram juntas, como se fossem ligadas mentalmente, “Você é o professor!", exclamaram. Joaquim fitou-as, observou a classe... andou, deu voltas em cima do tablado, ajustou a caneta preta do bolso da camisa, alisou o cabelo com a mão direita, e respondeu, “Quem é o professor, senão um mestre em alguma faculdade, que busca despertar o interesse dos alunos? E quem formula hipóteses sobre os autores e suas obras? Os donos da verdade? Ou apenas mestres em faculdades diferentes, com diferentes buscas, com diferentes pensamentos, intenções, e verdades distintas? Se alguém pode dizer a verdade sobre um texto, é próprio escritor... e veja que nem este tem certeza sobre o texto, pois não está completo, foi somente um ato de devaneio e reflexão que se tem a todo momento... e se este autor está morto? E agora, como ficamos? Paramos de lê-lo? de pensar?... não, pessoal... filosoficamente a vida é buscar a verdade. Porém se a acha, não é nada mais que um idiota que a espalha em dogmas... pensem em tantas guerras e mortos que temos até hoje por essa simples coisa... que parece inofensiva, pero extremamente asquerosa, que é encontrar a verdade e impô-la aos outros... Pensando dessa forma é óbvio entendermos que conforme a nossa cultura muda, a época muda, os homens mudam, a sociedade muda, transforma-se... nossas interpretações sobre as obras, artisticamente falando com a sua técnica, objetivo e expressão, sofrerão modificações e receberão novas interpretações... a fim que possamos adaptar ao nosso dia-a-dia... imaginem como estão errados em pensarem na verdade absoluta... se a sociedade transforma-se, a interpretação da obra consequentemente transforma-se também... e é por este motivo que estamos aqui reunidos, para entendermos, não aceitarmos o que está escrito nos livros, apostilas, e nem mesmo o que nos dizem... pero ver o mundo com os nossos próprios olhos e desejos.” Joaquim olhou o relógio enquanto a turma estava paralisada... “Bom, pessoal, a aula já vai acabar... É assim mesmo, o nosso tempo é curto. Vamos deixar para a próxima aula o debate sobre a escravidão de outrora e a atual nas fazendas de cana. Obrigado e podem arrumar suas coisas. Esperar o sinal bater para ir pra casa e comer uma comida bem gostosa.” Os alunos trataram de arrumar as coisas, fazendo barulho. Um menino chamado Carlos veio ter com o professor, “Professor, uma coisinha, quero saber se o senhor pode me ajudar”, disse o guri com caderno e lápis na mão. 37
  • 38. “Diga”, Joaquim falou atencioso. “É sobre física, tenho essas perguntas para responder, pero não entendo nada, veja... como posso calcular a força de uma batida de trânsito?", perguntou Carlos. “É fácil”, Joaquim pegou o lápis, “Primeiro necessita saber se a velocidade é constante, se o atrito é desprezado... calcular velocidade média... segundo ver os dados, qual a velocidade? e qual a massa do carro A, lembrando que é medida por quilograma e não por Newtons... então força será igual a massa vezes velocidade... faça o mesmo com o carro B, então terá de somar as forças pois é do princípio da física que a força exercida é paga na mesma moeda, lembra? e depois os dois carros estão em movimento...” “É mesmo! Agora lembrei”, disse o menino gordinho, “Obrigado professor, eu gostei da aula em!” “Nada, até a próxima”, Joaquim despediu-se. “Tchau, professor!” Logo o sinal tocou e foram todos embora. CAPÍTULO XVII NA PORTA as gêmeas esperavam por ele. Joaquim sem perceber foi passando quando deparou-se com elas a sua frente, “Professor!", disseram os anjos juntos. “Oba, o que foi?", perguntou Joaquim curioso. “Gostamos muito da sua aula!", falou Maria com um lindo sorriso. “Ah!, obrigado meninas, é um prazer dar aula pra moças tão inteligentes como vocês, uma honra”, comentou Joaquim agradecido. “Virei fã de Castro Alves”, falou Carla balançando os cachos de ouro. “Que bom, ele é de que geração do romantismo?", perguntou Joaquim. “Terceira!", responderam num coro. “E em que se basea?”, perguntou o professor. “Luta social”, respondeu Maria. “Uhm!, sim...", disse Joaquim, e o pré-modernismo, não seria também uma luta social?” Elas se entreolharam e disseram, “Sim...” “É o dever de casa de vocês, refletir sobre isso...", disse Joaquim. “Tem uma coisa”, Carla apontou o dedo, “O senhor mora no Grande III?” “Sim, moro”, respondeu, “Por quê?", Joaquim estava curioso... Então Maria pediu, “Nós moramos aqui por dentro do Boa Esperança, e nosso cartão de ônibus não está funcionando, o senhor está de carro?” “Estou sim”, Joaquim explicou, “Não costumo vir de carro para escola, pego o ônibus, pero hoje vim pois estava atrasado, querem carona?” “Sim”, disseram, “Não tem problema pro senhor?", perguntou Carla. “Para mim não, claro que não, com maior prazer”, Joaquim levantou o dedo indicador, “Pero seus pais não vão se incomodar com isso?” “Não vão!", disseram. 38
  • 39. “Certeza?", Joaquim perguntou. “Temos!", disseram. “Então vamos”, Joaquim convidou. “Antes vamos passar na sorveteria”, disse Maria, “É rapidinho, o senhor ta com pressa?” “Não...", disse Joaquim, “Pero não está frio demais para sorvete?” “Assim que é melhor”, argumentou Carla, “Sim, derrete menos”, completou Maria. Acomodaram-se na sorveteria do colégio, talvez com essa nova lei de excluir os doces e salgados, seja retirada da escola. As gêmeas possuíam um belíssimo corpo em desenvolvimento; a firmeza da pele, do tecido adiposo e músculos equilibrados, dava curvas magníficas, próprias de obras primas. Ora moviam a perna, se esticavam tentando alcançar as colheres do balcão e notava-se a rigidez da batata da perna e a flexibilidade da coxa de impecável beleza. Atléticas, proporcionavam a saúde com o esporte, como uma flor que ganhasse força, cheiro adocicado e cores vivas às pétalas que futuramente iam desabrochar. O rosto vivo contava com algumas sardas e vermelho por causa do sol que machucava a derme melindrosa. O sorriso de incomparável encantamento espelhavam o cérebro sadio, esperto, e a alma sincera, aventureira, juvenil. Se assentaram sempre sorridentes e divertidas, com as bolas que escolheram nas casquinhas pequenas... Maria preferia flocos quanto Carla chocolate. Apesar de serem idênticas, suas personalidades assemelhavam-se com os sorvetes. Carla atenciosa e paciente, ao visto que Maria corajosa e rápida. “Professor, o senhor tem religião?", Perguntou Maria, para puxar conversa, e Carla esperou a resposta. “Fui batizado na católica, pero estou com Fernando Pessoa quando ele diz, 'Não procures nem creias, tudo é oculto'. E vocês?” “Nós frequentamos a missa toda semana”, respondeu Carla. “Ah! religião é algo bom”, comentava o professor, “pero é necessário saber buscar as coisas boas dela. Ser crítico quanto a sua utilização, e sempre procurar lutar contra a falta de informações.” “Uhum!", concordaram “E os seus pais, professor, mora com eles?", perguntou Carla “Não, não... eles moram no interior, moro só”, respondeu Joaquim. “Tem namorada?”, questionou Maria. “Tenho sim”, Joaquim respondeu num sorriso. “O que ela faz?", perguntou Carla “Dá aula em faculdade, de sociologia”, respondeu. “Deve ser inteligente”, disse Carla aparentando inveja. “É sim. Só gosto de pessoas inteligentes, por isso estou aqui com vocês”, respondeu Joaquim num argumento esperto. Ficaram contentes, sorriram, e Maria sugeriu, “Vamos indo?” 39
  • 40. Logo levantaram-se e foram para o estacionamento... apesar de velho o carro dele tinha bom motor, forte e duradouro, eram um daqueles automóveis com um porta malas espaçoso, ótimo para as compras do mês. Sentaram-se e as rodas partiram, espalhando o cascalho, “Por onde?”, perguntou Joaquim olhando dos dois lados antes de tomar a avenida. “Entre aqui e vá reto”, ensinou Carla. “Agora tome esta rua debaixo até o final e vire à esquerda”, Maria o direcionou mais tarde. “Esta aqui?”, perguntou o professor. “Sim”, responderam juntas, e o carro andou por alguns minutos. “Nesta rua”, disse Carla, “A casa com portão preto”, completou Maria indicando com o dedo. “Obrigada, professor.” “Obrigada, professor”, falou Carla “De nada, nos vemos na escola, tchau...” “Tchau”, responderam juntas. Joaquim ficou parado em frente ao sobrado com jardim, garagem e uma casinha para santo que havia ao lado da porta de ferro com vidraça colorida, até que as meninas entraram, acenando com a mão. Não viu ninguém, será que elas estavam sós, ou os pais as esperavam para almoçar? Se esperavam, sempre esperavam? Ou era aquela uma situação especial? É raro uma família ser unida a ponto de almoçarem juntos nos dias atuais, ainda mais com adolescentes, esses adultos em miniaturas que brigavam por liberdade e independência. E se havia uma garagem por que não havia carro? E se tem carro por que não pediram para os pais irem as buscar?, Joaquim pensava, O pai delas poderia estar usando o carro no trabalho, deixando-as sozinhas com a mãe que as esperava para almoço, isso se fossem casados, se alguém as esperava em casa por que abriram a porta com a própria chave que levaram consigo pro colégio? não via necessidade, a mãe bem podia abrir a porta feliz. O treino de handball da escola costuma ser de noite, ao pôr do sol, e alimentação delas deveria ser pontual, não havendo assim motivo para chegarem mais tarde ou mais cedo da aula, Joaquim chegou a uma conclusão, estavam então à sós. As borboletas estavam sozinhas, solitárias... bem haviam dito que sabiam cozinhar. E tem mais, queriam que ele as levasse para casa? o cartão não estava mesmo a funcionar? Sabiam que ele havia ido de carro para o colégio?, Joaquim imaginava, A distância daqui para a escola não é tão longa, pero o sol faria a caminhada ser cansativa por demais, além de torrar a pele, que com o tempo apresentaria manchas e envelheceria, Tomaram atitude certa, pensou. E agora sabia onde moravam... não distante dele, talvez tudo ao redor do centro fosse perto. Vamos embora Poirot. CAPÍTULO XVIII FINDAVA A TARDE e começava a noite fresca e de tortura. Joaquim pensava na escola, e nas gêmeas, o que elas haviam dito a ele, a conversa, a sorveteria. Percebeu 40
  • 41. que elas dele gostavam, será porque era apenas um bom professor? Ou havia algo implícito? Alguma malícia que ainda não tivera percebido? Lembrou que em toda sua infância e adolescência fora um menino bobo, avoado, lunático. Que papeava mais com os livros e com os escritores que já haviam morrido, como se eles fossem seus amigos, e quanto ao diálogo coloquial que tinha com as pessoas, parecia-lhe rebuscados demais, as gírias a ele eram vistas como termos herméticos de química. Aprendera palavras de baixo calão com Gregório de Matos e Graciliano Ramos, pero congeladas pelo tempo, enquanto que os meninos da sua época estavam sempre evoluindo. Depois de ter chamado um colega de classe de escroque porque o mesmo havia furtado-lhe a caneta, e o colega não sabia a diferença de furto e roubo... ele se recolheu em seu quarto. Passando cada dia mais perdido nos livros, como alguém que se perdesse em drogas. A sociedade a seu ver era tola demais, burra demais. Tinha razão. Porém a questão era socializar-se melhor. Não conseguiu. Já chamou a professora de literatura de jumenta pois havia dito bobagens sobre Machado de Assis, e o de português de macaco analfabeto porque errou a metrificação de uns versos de Alberto de Oliveira. Odiava os professores, e por este motivo tornou-se um. Muito devaneio, pouco trabalho. Havia percebido que não iria escrever nada. Foi quando bateram-lhe a porta com afobação, Quem será? Abriu e pulou para trás, “Parado aí!", Um homem careca de olhos azuis o apontava uma arma. Depois este mesmo a pôs na mão de Joaquim. Era um revolver calibre XXXVIII, cano curtíssimo, brilhava sem oxidação alguma, de muito boa fabricação e marca. Pesado de sentir-se o poder em mãos, pero leve e pequeno para ser guardado em qualquer lugar. Cheirou, e tinha cheiro de loja. “Quanto quer por ele?", perguntou Joaquim ao amigo da polícia civil. “900”, respondeu o careca. “Qual a procedência?” “Tiramos da mão de um vagabundo, trazia do Paraguai.” “E a munição?”, disse Joaquim, recebendo uma sacola de balas. “Você pode deixar aqui, pero não tenho o dinheiro agora, só na sexta.” “Tudo bem então”, disse o careca, “Coloca uma camisa, vamos sair pra beber.” “Pera aí”, disse Joaquim, “Você quer alguma coisa?” “Mijar” “Você sabe onde é o banheiro”, respondeu Joaquim e o amigo foi em frente. Joaquim vestiu-se e estavam prontos para sair da casa quando o careca disse, “Você sabe que se não me pagar sexta eu te mato, não é?” Joaquim fez pouco caso e argumentou, “Você não mataria o professor do seu filho, deixaria ele na mão de pessoas incompetentes.” “Tem razão, hahaha.” José, XXXIV, viera do Rio de Janeiro com a família, ainda carregava o forte sotaque com todos os xis rasgados. Vestia sempre uma camisa regata para mostrar os braços fortes tatuados, e andar desequilibrado, também tinha todo jeito de bandido e a falta de educação dos cariocas. Com a calça jeans caída ora tampava a pistola na cintura, ora deixava mostrar a coronha. 41