Professores da Faculdade de Arquitetura da UFBA expressam preocupação com a proposta de construção de uma arena para 5 mil pessoas próxima à Praça Castro Alves em Salvador, Bahia. Eles apontam que a arena destruiria a escala e temporalidade do centro histórico, criaria um espaço privado ao lado da praça pública, e não está alinhada com nenhum plano para a área.
Manifesto professores Faufba sobre a arena Praça Castro Alves
1. Aos cidadãos de Salvador
Em defesa do Centro de Salvador:
Professores da Faculdade de Arquitetura da UFBA contra a arena proposta para o
entorno da Praça Castro Alves
Salvador, Bahia, 05 de fevereiro de 2013
Nós, professores, arquitetos e urbanistas que assinamos este documento, consideramos
inadequada e equivocada a proposta de construção de uma arena para cinco mil pessoas no
entorno imediato da Praça Castro Alves, tal como apresentada pela Secretaria de Turismo do
Estado da Bahia. A nosso ver, essa proposta é geradora de uma série de problemas para a
área e para a cidade, em função dos seguintes aspectos:
a) o equipamento proposto destrói a escala e a temporalidade nas quais se constituiu o centro
antigo de Salvador. Ao buscar fazer conviver um equipamento de turismo de massa para 5000
pessoas com as delicadezas do espaço ali existentes, constituídas ao longo de mais de 400
anos, confronta-se diretamente o próprio sentido de patrimônio histórico e cultural que ali vem
sendo investido desde os anos 30;
b) cria-se ainda, ao lado da Praça Castro Alves, a praça que `é do povo`, um espaço privado,
cujo acesso é controlado através de catracas, amesquinhando uma das portas de entrada do
centro antigo por seu caráter privado. Simbolicamente, um atentado!
c) por outro lado, uma arena para 5000 pessoas nunca havia sido aventada em nenhum dos
planos ou projetos trabalhados para a área central da cidade do Salvador, não estando, portanto,
articulada a nenhum tipo de pensamento mais estruturante para essa área em crise já há cerca
de 30 anos. A única justificativa que tem sido dada para o mesmo seria a existência de recursos
disponíveis no Ministério do Turismo, ou seja, a proposta toma o caráter de uma ação pontual e
casuística, que pensa no curtíssimo prazo e não avalia as consequências que ela pode gerar em
termos de vir a bloquear um lento processo de regeneração urbana em curso na área;
d) a escala do equipamento proposto – determinada pela capacidade anunciada de 5 mil
pessoas e por todas as funções urbanas dela decorrentes que se fazem necessárias – exige
portanto, no mínimo, a revisão do planejamento urbano para a região e sua interlocução com a
cidade. Ou seja, devem ser avaliados o trânsito de pessoas e de veículos, a dotação de infra-
estrutura geral, preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural, paisagem urbana, bem
como os impactos sociais, culturais e ambientais que uma arena desse porte gera em sua
vizinhança imediata e indiretamente em áreas conectadas pela mesma dinâmica de
funcionamento.
Ora, políticas públicas urbanas, bem como aquelas vinculadas às áreas da cultura, turismo e
lazer, devem sempre ser pensadas, em primeiro lugar, para o conjunto da cidade, em suas
diferentes escalas, inclusive a metropolitana, para depois serem feitas avaliações de viabilização
para grandes equipamentos e suas potenciais localizações.
2. Uma grande parte dos sérios problemas enfrentados por Salvador nos últimos anos decorre
exatamente da anulação das políticas em prol do bem comum e do abandono daquilo que
deveria ser um pacto coletivo – como o Plano Diretor Urbano e a Lei de Ordenamento, Uso e
Ocupação do Solo –, para favorecer ações individuais e interesses particulares de grande
prejuízo para a coletividade de um bairro, de um trecho da cidade ou dela como um todo. É
preciso parar com esta prática que nega e rompe com todos os mecanismos de planejamento
urbano, impedindo que a cidade possa conhecer um desenvolvimento mais harmonioso, mais
justo e mais próximo dos desejos dos seus cidadãos, em termos culturais, sociais, ambientais e
políticos.
Ou seja, a arena proposta não pode ser encaminhada como uma simples decisão
governamental, desconhecendo os instrumentos de regulação urbana já existentes e fechando
os olhos para os impactos que serão gerados em decorrência da mesma. A política da avestruz
não faz mais sentido na cidade contemporânea.
e) A aglomeração de cinco mil pessoas apenas no interior da arena proposta (fora os fluxos que
serão gerados, como já mencionado) traz implicações altamente negativas para o seu entorno.
Considerando a infra-estrutura atualmente instalada e acrescentando a anunciada na proposta
(148 vagas para automóveis), o funcionamento da arena poderá vir a prejudicar ainda mais as já
precárias condições de acesso ao entorno da Praça Castro Alves. Não somente as ligações
entre a cidade alta e a cidade baixa encontram-se em estado muito precário de funcionamento
(cabines deficitárias do Elevador Lacerda e planos inclinados fechados), como as ruas, tanto em
direção à cidade baixa como em direção ao terminal de passageiros na Lapa não apresentam
capacidade instalada com qualidade e segurança (largura e manutenção de calçadas,
iluminação pública nas rotas de acesso ao centro) para o fluxo extra de pedestres caso uma
arena deste porte viesse a ser construída. Além disto, o exíguo espaço previsto para um dos
acessos ao equipamento, situado na cota onde se encontram as ladeiras da Montanha e da
Conceição, por si só causaria uma série de transtornos ao tráfego de veículos na região,
podendo o número total de pessoas envolvidas em um show, em momentos de pico, vir a
inviabilizar o principal acesso ao Centro Histórico.
Diante disto, imaginar o uso de transporte motorizado e individual para o acesso à arena, seria
agravar ainda mais os problemas hoje enfrentados pelo centro da cidade: diante da
especificidade da conformação urbana do centro histórico, a relação entre a capacidade de
estacionamento e garagens hoje já instalados na periferia imediata da área tombada (Comércio,
Baixa dos Sapateiros), indica os claros limites deste tipo de deslocamento na região. Posto que
não há uma perspectiva real da criação de uma linha de metrô subterrânea que venha a servir a
área do centro a curto ou médio prazo, a região, a exemplo de outras cidades históricas do
mesmo porte, necessita claramente de um plano de transporte público e de acessibilidade não-
motorizada, fazendo com que o cidadão soteropolitano (e não somente o turista) sinta-se à
vontade para se locomover pela região.
Acreditamos que, somados ao investimento em transporte público de baixo impacto ambiental, a
arborização e o estabelecimento de rotas verdes e sombreadas irão criar um microclima
favorável para atração de pedestres em uma rede qualificada que incluiria a Ladeira da
Preguiça, Av. Sete de Setembro, Rua Carlos Gomes, Ladeira da Conceição, Ladeira da
Misericórdia, o Terminal de ônibus da Barroquinha (que poderia e deveria ser totalmente
reformado para servir como nova forma de acesso à região), e a Baixa dos Sapateiros.
f) a área indicada nas imagens fornecidas pela Secretaria do Turismo para a implantação da
arena encontra-se dentro da poligonal do Centro Histórico tombada pelo IPHAN e reconhecida
3. pela UNESCO como Patrimômio Cultural da Humanidade, podendo ser caracterizada por duas
situações distintas: a primeira, onde seria implantada a arena propriamente dita, corresponde à
faixa de verde que, na paisagem, demarca a distinção entre cidade baixa e alta, um dos
elementos cruciais da fundamentação para o tombamento do Centro Histórico. Sendo assim, tal
construção, ao agredir diretamente o frontispício da cidade do Salvador, afetaria um dos
elementos fundamentais que fazem do Centro Histórico um bem tombado, constituindo uma
ameaça à permanência do mesmo na Lista da UNESCO.
Além da ocupação da encosta em si, que eliminaria a faixa verde naquele trecho, vale ressaltar a
implantação equivocada do equipamento: de acordo com as imagens publicadas, cerca de 2/5
da construção estariam soltos do terreno, algo possível apenas se apoiada em estrutura de
concreto armado desarticulada da topografia, o que danificaria todo o entorno do ponto de vista
da paisagem. Também equivocada é a proposição para a área onde está prevista a
implementação de estacionamento, o segundo terreno, em cota superior ao que seria ocupado
pela arena. Embora o terreno já viesse sendo utilizado para tal fim nos últimos anos, ele
efetivamente mereceria uma atenção de recomposição arquitetônica dentro da configuração da
Praça Castro Alves como conjunto urbano. Observando, por exemplo, a dificuldade atual de
conexão entre o Museu de Arte Sacra e a Praça Castro Alves, é evidente que os esforços de
investimentos públicos na região deveriam priorizar as intervenções de baixo impacto
apropriadas às baixas velocidades de deslocamento, apontando para o estabelecimento de
condições que viessem a recuperar o caráter dinâmico do local e adequado às características
específicas e sensíveis do sítio histórico. Calcada na moradia de diversos segmentos sociais,
associada aos distintos usos de uma área central como comércio, hoteis, escritórios, bares,
feiras e mercados, cafés, restaurantes, centros culturais, a área poderia ter a capacidade de
atrair, agregar e realimentar a região, podendo assim instalar um ciclo virtuoso.
g) por fim, a viabilidade e a oportunidade de criação de um equipamento deste porte deveria ser
analisada dentro de uma política pública que levasse em conta o funcionamento dos diversos
equipamentos culturais já existentes no centro da cidade, articulados à rede de equipamentos
culturais como um todo. Desta maneira, não somente a concha acústica do TCA, que em escala
urbana é um equipamento próximo à área da Praça Castro Alves e cujo potencial de uso se
assemelha ao da proposta, mas também e principalmente o conjunto de museus, teatros,
cinemas, salas de música e concerto, galerias de arte instalados hoje entre o bairro da Graça e o
do Santo Antônio, deveriam ter identificadas suas capacidades instaladas, a eficiência de seu
funcionamento, bem como os projetos em fase de implementação (como é o caso da construção
do Palco Móvel do Pelourinho, do concurso recentemente realizado para os Largos do
Pelourinho e da reforma do Teatro Castro Alves) e os equipamentos em desuso no momento
(por exemplo, o Teatro Gregório de Matos ou os já arruinados cines Pax e Jandaia). Seriam
considerados, portanto, do ponto de vista da arquitetura e urbanismo, os desafios espaciais
ligados ao estabelecimento de uma espécie de múltiplos „corredores culturais“, postura essencial
e fundamental ao desenvolvimento de perspectivas de dinamização da rede de equipamentos
como um todo, buscando instaurar lógicas de complementaridade e de inter-dinamização,
possibilitando que os processos culturais na cidade ganhassem em horizontes, invenção e
liberdade.
Do ponto de vista político, é inaceitável que após 11 anos de aprovação do Estatuto da Cidade,
decisões imperiais ainda busquem se impor, desconhecendo processos democráticos de
proposições e debates de idéias e de perspectivas para a cidade e seus cidadãos. A ampla
participação da população irá sempre qualificar o complexo processo de identificação de
possibilidades de desenvolvimento urbano mais criativas, justas e belas.
4. Embora as presentes considerações tenham sido feitas a partir dos parcos dados do estudo
preliminar fornecidos pela Secretaria de Turismo do Estado da Bahia, a grande preocupação
com o estado atual do Centro da Cidade de Salvador e os compromissos éticos e profissionais
em relação à nossa cidade, nos fazem assumir desde já esta posição decididamente contrária a
tal empreendimento.
Ana Carolina Bierrenbach, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Ana Fernandes, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Angela Gordilho Souza, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA
Antonio Heliodorio Lima Sampaio, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Any Brito Leal Ivo, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Aruane Garzedin, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Ceila Cardoso, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Cione Fona Garcia, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Cláudio Lisias, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Eduardo Teixeira de Carvalho, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Elisabete Ulisses, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Elyane Lins Corrêa, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Fabiano MIkalausaks, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Fábio Velame, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Gilberto Corso Pereira, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Graça Gondim dos Santos Pereira, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Griselda Pinheiro Klüppel, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Guivaldo D’Alexandria Baptista, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Ida Matilde Pela, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Lorena Moreira, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Luciana Calixto Lima, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Luiz Antonio Fernandes Cardoso, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Luiz Carlos Botas Dourado, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Márcia Rebouças Freire, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Marcia Sant’Anna, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Márcio C. Campos, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Marcos Antonio Nunes Rodrigues, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Naia Alban Suarez, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Odete Dourado, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Pablo Florentino, Prof. IFBA, doutorando em Urbanismo no PPGAU-UFBA.
Sérgio Ekerman, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.
Solange Araujo, Prof. Faculdade de Arquitetura, UFBA.