Este documento resume um encontro entre poetas de Angola e Moçambique na casa do poeta Lopito Feijóo em Luanda. O evento transformou-se num sarau onde a poesia, música e dança se misturaram em um ritual para celebrar os deuses ancestrais. Vários poetas como David Capelenguela e José Luís Mendonça usaram suas vozes e instrumentos musicais para deleitar os presentes. A reunião fortaleceu os laços culturais entre os dois países irmãos.
1. Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 04 de Maio de 2012 | Ano II | N°28 | E-mail: r.literatas@gmail.com
DAVID CAPELENGUELA
REPORTAGEM
Poeta, cantador
de tradições “Nkaringana wa
angolanas. Pág 12 Nkaringa...” Pág 03
LANÇAMENTOS
Sérgio Vieira lança
em Xai-Xai.
Lurdes Breda lança
em Aveiro. Pág 05
O que Deus
não dá, Ela dá!
Deusa d’África
2. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 2
Editori@l
FICHA TÉCNICA
Quanto ganha um escritor por mês?
S
empre que se assinala o primeiro de Maio, dia Internacional
do Trabalhador, pelo menos em Moçambique acontece um
Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa
Direcção e Redacção movimento desusado de contestação sobre a difícil vida do
Centro Cultural Brasil - Mocambique trabalhador. Principalmente o operário e camponês (classe
Av. 25 de Setembro, N°1728, na altura tida como referência no discurso de Samora Machel, pri-
C. Postal: 1167, Maputo meiro presidente de Moçambique). Mas nunca, no primeiro de
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 Maio, vem-se entre as bandeirolas que flutuam nas mãos dos traba-
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117
117
Fax: +258 21 02 05 84
lhadores entre cânticos de reivindicação, um dístico dos escritores reivindicando ou
Fax: +258 21 02 05 84 agradecendo alguma coisa.
E-mail: kuphaluxa@sapo.mz
E-mail: kuphaluxa@sapo.mz
Blogue: literatas.blogs.sapo.mz Neste último dia 1 de Maio fui a Praça dos Trabalhadores para ver o desfie e nada de
Blogue: literatas.blogs.sapo.mz
algum dístico ou discurso de escritores. Li jornais durante a semana e nada. Apenas não
os perguntei mesmo por acanhamento, já que nem se quer já os ouvi a falar disso. Mas
DIRECTOR GERAL em silêncio não deixava de perguntar, será a actividade de escrita, um trabalho de que se
Nelson Lineu
(nelsonlineu@gmail.com)
pode gerar uma receita mensal, tal como outros trabalhos?
Cel: +258 82 27 61 184 Deusa d’África, a entrevistada desta edição não responde esta pergunta, se bem que, ape-
DIRECTOR COMERCIAL sar de ocupar-se mais na actividade literária, é trabalhadora no ramo contabilístico pelo
Japone Arijuane qual se formou. Desse mesmo emprego sacrifica um insuficiente salário para satisfazer
(jarijuane@gmail.com)
Cel: +258 82 35 63 201 as necessidades da sua arte, como escritora e activista cultural. Os saraus que a “sangue
EDITOR
frio” promove a nível da província de Gaza lhe tiram tudo o que ganha no fim do mês.
Eduardo Quive Estará Deusa, a trabalhar para a escrita ou apenas, pela escrita? E não é essa a situação de
(eduardoquive@gmail.com)
Cel: +258 82 27 17 645 muitos escritores neste país? Gostaria de ouvir um não, de quem quer que seja, para ale-
grar a minha vontade de que isso seja de facto uma mentira.
CHEFE DA REDACÇÃO
Amosse Mucavele Nesta edição destacamos esta mulher que diz-se viver da poesia, mas que no entanto,
(amosse1987@yahoo.com.br)
Cel: +258 82 57 03 750
esta mesma poesia lhe suga tudo que pode: o tempo, o lazer, a vida sexual, o dinheiro, a
liberdade e o coração. Lhe tira tudo ao mesmo tempo que, para si isso volta. Um verda-
REPRESENTANTES PROVINCIAIS
Dany Wambire—Sofala deiro desentendido mistério. Conheça o perfil da nossa Deusa. Deusa d’ África. Uma
Lino Sousa Mucuruza—Niassa nova/antiga escritora, sem nenhum livro ainda publicado.
Ainda neste número, uma história contada de Luanda. São ainda os ecos da Bienal Inter-
COLABORADORES FIXOS nacional de Poesia, concretamente, o que aconteceu de fora do cenário deste evento, no
Pedro Do Bois (Saranta Catarina-Brasil) ,
Victor Eustáquio (Lisboa — Portugal), dia 22 de Abril na casa do poeta Lopito Feijóo.
Mauro Brito
Um autêntico sarau para marcar o encontro de dois povos: Moçambique e Angola. Um
COLABORAM NESTA EDIÇÃO sarau em que a poesia não era uma regra sem excepção. Um sarau onde poetas bailavam,
João Tala - Angola
Lurdes Breda tocavam e dançavam. Deliravam nos ritmos por si mesmo produzidos. Na verdade, este é
Frederico Ningi - Angola o fim duma história real contada em exclusivo na nossa revista e que durante os próxi-
Filimone Meigos
David Bamo mos dias continuará nos moldes de quem a escreve. Um encontro onde o ser escritor não
António dos Santos - Angola
Lívia Natália - Brasil era o limite do convívio, o preço da entrada era apenas a amizade e a confraternização. A
Adelto Gonçalves - Brasil palavra era de graça.
Mesmo a propósito dos nomes envolvidos nessa reportagem, decidimos dar a conhecer
COLUNISTA um desses personagens. David Capelenguela, poeta angolano é a personagem desta edi-
Marcelo Soriano (Brasil)
ção. Conheça-o e navegue na sua poesia que exalta tradições africanas a patir do Namibe.
FOTOGRAFIA
Arquivo — Kuphaluxa Em fim, caro leitor, esta não será com certeza mais uma edição será uma edição. A única
Eduardo Quive dentre cada uma que já se passaram. Está convidado a mergulhar pelas linhas deste
órgão que não teme oceanos.
ARTE E DESIGN
Eduardo Quive
Eduardo Quive
PARCEIRO
Centro Cultural Brasil—Mocambique eduardoquive@gmail.com
3. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 3
Destaque Texto: Eduardo Quive | Foto: Frederico Ningi
Nkaringana wa Nkaringana...
Redacção
F
alegrar os deuses defuntos que moram no aquém, como os Homens.
oi no domingo, dia 22 de Abril de 2012, que o poeta Lopito Feijóo
Conclusão: não dissemos poesia, cantamos os hinos que a palavra nos
transformou sua casa, que se situa no Benfica, província de Luan-
levou a oferecer aos deuses. Evocamos os nossos defuntos que dança-
da, a beira-mar, num salão nobre ao serviço da poesia.
vam connosco ao som do batuque bem assegurados por David Cape-
Antes duas considerações importantes sobre os termos que usei
lenguela e José Luís Mendonça, dois verdadeiros tocadores, possuídos,
acima:
misteriosa-
Salão Nobre: no contexto africano, das tradições desde aos nossos ances-
mente, por
trais, em África salão nobre pode ser que exista, mas com outro nome, será
energias divi-
a casa dos deuses? Serão as rodas abertas de mãos a palmear furiosamen-
nas. Capelen-
te o ritmo de alegria entre cantos e
guela, dos
nkulunguanas, li-li-li’s de mulheres
seus deuses
e lu-lu-lu’s dos homens, com mulhe-
desde Huíla e
res vestidas de capulanas e outros
Namibe de
panos margaridas e homens sem
onde vem as
camisa timbrando os sons com
suas origens.
suas vozes tempestuosas, mas que
José Luís
sagram os hinos? Isso sim, pode
Mendonça ain-
ser. Conclusão: não estávamos
da cantarolava
num salão nobre, estávamos num
com o coração
palco improvisado por uma roda de
a exprimir de
gente vibrando deliradamente as
forma nostálgi-
alegrias da oralidade. Poesia africa-
ca canções da
na é isso. Canções dos povos e de
sua terra que
espíritos. Nostalgia cortante na sua
ele bem
narração.
conhece. Bem
E mesmo falando da oralidade,
ama e conser-
segunda consideração: Poesia – na
va. Preserva.
África a palavra poesia tem outro
Difunde e as
nome, pode ser que sejam estórias
canta com ale-
cantadas ou contadas. Esta África
gria contagian-
nossa, o berço da Humanidade é
te. Que o diga
tão entoativa nas suas falas. As
Lopito Feijóo
suas línguas são verdadeiras can-
quem não se
ções de embalar os corações e de
cabia de ale-
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gria. Estava na sua poesia rural.
terra, de costas ao Cantada
mar que sempre o pelos mais
acorda, agora, can- pacatos
tando por si e por cidadãos do
todos. Quibundo seu Namibe
Ombudo e outras que carrega
línguas vieram em com orgulho
sua memória, pela sua
incluindo o nosso escrita.
changana cá do sul Mas que
de Moçambique. canção o é
Despertaram. Des- sem ritmo
poletaram-se. Lopito nem dança?
Feijó lá vai rareriro- Minata vem
rucando o pau que com respos-
lhe dá o ritmo de ta “nenhum”.
alma. Canta e canta. Pega em si
Agora também cho- própria,
ra me abraçando. mulher afri-
Sente que o cora- cana que é,
ção não aguenta (Mamã Áfri-
tanta alegria. Anda ca) e mexe-
abraça-me poeta e se com
assegure-se de que energia dos deuses. Vibra ululosamente. Agora, dizer poesia é mesmo um
está vivo. Eis, em ritual. É necessário para a existência. É indispensável com o mhamba que
mim, o oxigénio da nos une aos deuses nossos. As mulheres e os filhos, os bebés gémeos do
vida eterna. Não é Décio, as jovens filhas do Carmo Neto, a filhota, já perto da juventude do Fra-
hora de morrer. Não derico Ningi, entre outros fazem a plateia. Luís Cezerilo resolve manter-se
há tão bom momen- sentado a acautelar uma possível convulsão poética da sua parte. Entende
to para viver se não que ainda é cedo para dizer a sua poesia. Acalma-se, no seu copo de uísque
o ritual dos deuses sufocado de gelo, enquanto todos outros nos matamos na santa Cuca. Todos
que aqui cantamos. com exclusão de Lopito que estava a tomar o sagrado vinho tinto. Mendonça
colado na sua Fanta laranja e David Capelenguela errante pelo nada que
tomava.
Mas é tudo um exercício de vãos. Cezerilo diz poesia e lembra-nos o José
Craveirinha, Eduardo White e a si. Enquanto Filimone Meigos, de camisa ver-
de, também vagueia na sua poesia. É tudo poesia. Canção dos deuses.
Vai Minata, você não é só jornalista das artes. Você é acima de tudo, esposa
de poeta. “Esposa de poeta é poetisa” afirma Lopito Feijóo enquanto embria-
ga-se no jeito encantador como
declama sua esposa.
É mesmo um dia sagrado este. A
esposa do Fredirico Ningi também
se resolve no canto. Canta comigo
nas tradicionais línguas angolanas
que me chegam de mansinho
enquanto para si, são mesmo as
vozes dos seus ancestrais.
Canta para depois reunir palavras
que educam, no silêncio de todos.
Era uma vez amigos. Era uma vez.
Aquele dia… era uma vez. Nkarin-
gana wa Nkaringana. Apenas lem-
Deuses nossos e deuses irmãos. Angola - Moçambique e vice-versa. branças, doces, nos restam. Aos
A cor não importa, não é verdade Mendonça? O Batuque é nosso, bran- não presentes aqui está o presente
cos e negros, pois não? Se te cansares entregue-o à esposa do Carmo do Frederico Ningi que silenciosa-
Neto, cujo nome a memória me nega. Ela também toca. Tchaia ao estilo mente procurava ilustrar com foto-
do nosso velho Zé quando diz “A ngoma grita”. E é ngoma esse batuque grafias o momento e, para o que já
em changana do sul. Levanta-te e dança por de trás dela. Chico Bengue-
esperava, dediquei estas pacatas
la vai, fique sem camisa a vontade que cá neste negro, branco e mulato
continente o corpo dos homens é que mantém a hierarquia existencial. letras minhas que não sabem man-
David Capelenguela, já nomeado “príncipe da poesia angolana” pelo ter segredo. Tu nkaringana.
mestre Lopito Feijóo não se vê vencido pelo silêncio e decide dizer a sua
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Livros & Leitores
“lua em flor” já pode ser lido
O
lançamento, como as imagens podem ilustrar, foi com
pompa e circunstância, apesar da tempestade que o
antecipou, enchendo de receio sobre o sucesso do even-
to.
A
conceituada escritora portuguesa Lurdes Breda tornou
público o seu mais recente trabalho intitulado “lua em flor” a Sérgio Vieira Lança em Xai-xai
dias no município de Aveiro.
A obra que conta com ilustrações da artista brasileira Ana
O autor Sérgio Vieira fez o lançou na última sexta-feira, dia 27 de
Luisa Kaminski, é uma composição de conto e poesia com vários textos
Abril, o livro “Participei por isso testemunho”. É a primeira vez que a
premiados, quer em Portugal, quer no Brasil harmoniosamente reparti-
obra é lançada naquela parcela do País depois de, no ano passado,
dos pelas quatro fases da lua. O registo poético da poesia, mas, tam-
ter sido lançada em Maputo.
bém, da prosa, contribui para a unidade estrutural da obra, conduzindo a
uma leitura envolvente. Esta iniciativa visa levar aos amantes da literatura da província de
A lua surge como um elemento vivo, e ao mesmo tempo metafísico, e Gaza o livro daquele autor que a nível de todo país é conhecido como
ainda como uma influência indelével na escrita da própria autora. São político.
páginas impregnadas de letras com luar e de luar com letras. “Lua em O evento teve maior afluência do público de Xai-xai, com maior desta-
Flor” exprime sensualidade, feminilidade, beleza e mistério em todo o que para a juventude. Aliás, foram os jovens da Associação Cultural
seu esplendor. Xitende que promoveram o evento, em parceria com a editora Ndjira.
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Cartas & Reflexões
Livros soltos ou leitores isolados? (2)
- Vagueio sobre a famosa frase “os jovens não lêem”
N
Eduardo Quive - Maputo o número anterior Por outro lado, tinha que haver
eduardoquive@gmail.com desta revista, do próprio governo, disponibili-
uma leitora de dade de recursos financeiros
quem tenho mui- para que este professor seja
to carinho como comunicadora e, desde já, como leitora, versou capaz de adquirir os livros
sobre o editorial que comportava este título (Revista Literatas – necessários para as suas
edição 26), por sinal da autoria de quem discursa por estas aulas. E tinha que se fazer exi-
linhas. gências para que a transmis-
são do gosto pela leitura seja
Na semana passada, estive por dois dias na província de Gaza,
possível.
cidade de Xai-xai no concreto. Andava no delírio do tempo, erran-
te pelo mundo que lá se vive, como sempre tenho feito com gos- Mas há aqui um paradoxo. A
to de quem pisa o chão dos seus antepassados. E voltei a lem- muito tempo, não se tinha tantos recursos de leitura,
brar-me do assunto dos livros e leitores. (ressalvo esta opinião) mas havia uma qualidade. Mas isto
porque os nossos pais tinham apenas um sonho para os
Visitei a biblioteca provincial, pena não ter conseguido uma con-
filhos: a alfabetização.
versa com o director da mesma e nem do director provincial da
Educação e Cultura, que no final das contas disse-me que teve Lembro-me de várias vezes que os meus
um assunto urgente por resolver. Em fim, os dirigentes são exí- pais diziam “estuda para ser alguém” e a
mios cumpridores de agendas, pois não!? missão nessa altura era que soubéssemos
Mas voltando ao centro do furacão. Eva Trindade, quem escre-
escrever, ler e falar correntemente a língua
veu-me sobre o editorial, levantou um aspecto importantíssimo
oficial, o português. Aliás, lembro-me ainda
ao meu entender: “acho que aqueles que deveriam cultivar esse
que batiam-nos sempre falássemos alguma
belíssimo hábito nos jovens, não estão a fazê-lo. Por exemplo
língua local, para o meu caso que podia
acho que os professores deveriam incentivar a leitura de livros
sofrer a influência de amigos vizinhos que
relacionados com as matérias, livros de escritores moçambica-
falavam changana, nem se quer deixavam-
nos deveriam ser incentivados nas aulas de português...eu como
me sair a rua. Essas foram medidas toma-
mãe, acho que tenho a responsabilidade de cultivar esse hábito
das para atingir a meta de nos tornar letra-
nos meus filhos (…) portanto, nós pais também temos algo a
dos. Assimilados. Cultos. Em fim.
fazer, vocês já estão a fazer a vossa parte.” Neste momento o que são necessárias são essas medidas.
Quando digo essas, não refiro-me a leis antigas, mas a leis
De facto o papel de incentivar os jovens para a que se adeqúem ao tempo que vivemos. O tempo da globali-
leitura, é multissectorial, isto é, cabe ao sector zação, o mundo aberto que vivemos nós, onde a informação
da educação, sector familiar, em fim, a todos está esporadicamente disponível em todos cantos e, conse-
níveis deve haver um esforço para se tornar quentemente, os menos estudados, acabam mal influencia-
possível o diálogo com as letras pelos mais dos.
novos.
Portanto, os pais em todos os tempos foram personagens
O Sistema Nacional de Ensino, deve deixar de fotocopiar algumas
indispensáveis no processo de ensino e aprendizagem. Se
páginas de livros (acto proibido e que constitui um crime porque viola
os direitos de autor) e adquirir os livros que sejam necessários para bem que a leitura é, acima de tudo, um meio para formar cul-
análise nas aulas, assim os próprios professores poderiam ler e incen- turalmente o cidadão. Esse poder tem muita influência sob a
tivar, consequentemente, os alunos a ir ao encontro dos livros. família.
Situações há, em que o professor fala de obras que nem se quer Mas como convencer ao pai moderno de hoje, que o melhor pre-
conhece a composição da capa. Professores que guiam-se em sente para o seu filho, é um livro de estórias ou poemetos e não
excertos que eles mesmos se quer conhecem o conteúdo inte- os Iped’s, brinquedos de pistolas, etc?
gral das obras. Como convencer o pai bom que é este de hoje, que contar
Situações há, em que os professores conhecem nomes de auto- uma estória/história ao seu filho depois do jantar não só significa
ser carinhoso e atencioso, mas significa, igualmente, ser forma-
res (os tais famosos como Mia Couto) e até chega a referi-los
dor da mente criativa em si, algo que lhe vai beneficiar em todas
nas aulas, mas que nunca leu nem se quer uma obra.
fazes da sua vida?
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NO FIM DAS TUAS PUPILAS
Poesia JOÃO TALA - Angola
parece um bosque de pétalas amarelas.
Bahiando moçambicanamente! o bosquímano tem um bosque verde
o poeta amareleceu. caótico. diga.
Deborah Menezes - Brasil & David Bamo - Moçambique
Em poesia on-line gemente. a luz. a gema.
no fim das tuas pupilas
Dos recônditos da história, a fervura ainda arde na pele amor vítreo. humor vítreo.
Prazeres e desejos imundos não se perdem com o tempo água ensolarada água. pálida. humor.
Ainda tatuam a memória, os hábitos, o tempo presente os teus olhos têm clara ideia do que eu peço
Ontem, hoje e para todo o sempre o ámen para beber?
é pela Bahia e Moçambique
duas histórias na margem da mágoa e do sonho ideário. amor. rio.
Percorremos oceanos e continentes e bahiamos só pode ser vulvar.
moçambicanamente de almas abraças.
Condenadas a ferro e fogo para sermos irmãos! um vulto. doce. partiturra.
na carne uma uva. ou aquário.
meus triste olhos tristes
não os peças que desmanchem
teu último corpo.
a ideia segue cega.
isto é: trapos de poesia.
UMA VEZ FOLHA SEMPRE FOLHA
Japone Arijuane - Moçambique Do Poemário FORNO FEMININO
INSPIRAÇÃO Natureza Submersa
Repugnante sina das folhas António dos Santos - Angola Lívia Natália - Brasil
nunca frutas serão
Ontem num barco a vela subi
quedam na veloz viuvez do mandato Insone na cama de areia e limo
sem saber o seu nome, porque
o Mar se move sem olhos para
de noite era dormir.
em extrema deriva extinta no destino.
Seus longos braços de dedos
Flores celebram-se futuras frutas Mergulhado na expectativa e
delgados em ondas,
com enormes ondas de emo- se movem no vazio dos ventos.
na óbvia sublimação do ciclo, ções, esqueci a bússola e,
Já sentado à beira de si,
mesmo assim, não hesitei
beijos e amores na língua eterna do povo. Ele se morde, como um cão,
devorando a dor na saliva dos dias.
Diante da percepção justa, real e
Arma e alma semente e pão na árvore do ser. A fina transparência das águas
objectiva do meu querer, naveguei
não dissimula seu desamparo:
O Mar, no salgado de suas ondas,
Quem pode travar o poder da imita o céu,
vontade do rei coração, nele se buscando.
coadjuvado pelo príncipe prazer
8. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 8
Entrevista Eduardo Quive| texto e foto
Deusa d’África
D
ércia Sara Feliciana. Deusa d’Á-
frica. Mulher, poetisa, dramatur-
ga, contabilista e entre outros
… seria normal que assim a des-
crevesse naquele Xai-xai que ela vive, no
meio duma sociedade que ainda está por se
acostumar com o seu perfil. Deusa d’África
é deusa porque assim o é. Porque assim os
deuses o querem. Quem pode ditar a assun-
ção de um deus? É Deusa e ponto.
Andei por Xai-xai, cidade capital da província de Gaza nos dois na
semana passada. Antes de mais, apraz-me dizer que naquelas terras
não sou viajante, sou anfitrião. Sou filho. “Gaza é meu útero” na hege-
monia do bem escrever do Amosse Mucavele, por isso, estar lá é um
autêntico ritual onde evoco os Xinhamukwasas que chacinaram os
meus avós desde tempos antepassados.
Mas desta vez foi diferente doutras. Embora não tenha pisado o túmulo
do Madala Djanse, ou por outra, Eduardo Chichava, pai da minha mãe
culpado por este nome que tenho e, consequentemente, pelo Ser que
sou, senti-me acarinhado pelos deuses.
e dizia que desta vez foi diferente… Tive engatado interesse de entrevistar entanto, Deusa, só aceitou a entrevista na condição de conversa e não
alguém que de entrevista. Porquê? “Porque não gosto de entrevistas. Somos amigos”,
muito significa respondeu.
para a cultura,
Portanto, escrevo esta entrevista neste mesmo género por si criado
em particular, a
“conversa”, afinal jornalista sou eu e não ela e também, aos deuses não
literatura a nível
se questiona.
daquela parcela
do país, como já Deusa d’África entra na literatura desde pequena. Escrevinhou desde a
tinha feito a escola primária, declamou e ganhou premiozitos nessa altura. Nem se
apresentação, quer entendia que ser se gerava dentro de si. “Eu declamava e todos
esse alguém é gostavam, lembro-me que ganhei prémios que incluíam bolachas, em fim.
Dércia Sara Sempre me senti bem fazendo isso. A poesia, sem me aperceber me
Feliciana, a entrou, diante de aplausos de muitos”.
Deusa d’África,
nome pelo qual Deusa vai enfrente no seu relato que se situa nesta conversa. Passou a
ascendeu a frequentar o ensino secundário, na Escola Secundária Joaquim Chissano
categoria de onde também não tinha silêncio para as suas palavras. Palavreou. Escre-
deus-mãe. veu poesia e declamou. Conquistou mais aplausos.
Nessa conversa Chegou a vez de vir a Maputo onde tinha que frequentar o nível superior,
que durou 37 na Universidade Pedagógica, onde se formou como contabilista, profis-
minutos e 25 são que lhe tem trazido conflitos com a poetiza que também é. no entan-
segundos, fala- to, é essa mesma profissão que a ajuda a realizar um dos seus maiores
mos dessa deu- sonhos – promover a cultura na província que conhece as suas origens.
sa que ela se Por conta disso, revitalizou o tradicional movimento cultural denominado
intitula ser e que Xitende, por onde saíram os nomes que hoje fazem a lista bibliográfica a
já é referência nível da província de Gaza. É o caso de Andes Chivangue e Dom Midó
em Gaza e até das Dores, seu irmão mais velho.
Maputo. No
9. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 9
Entrevista Eduardo Quive| texto e foto
siderar-me Deusa de África estou a seguir os
ensejos dos nossos ancestrais. Multiplicar os
deuses. Se defendo apenas mulheres, não é
verdade, embora tenha mais atenção para elas.
no entanto, porque Deusa d’África é nome que
pelo qual me identifico no mundo da escrita,
conta estórias em jeito de prosa e poesia. princi-
palmente poesia e a minha poesia não tem de
género”.
de facto Gaza é terra de heróis e heroínas. e já que no continente de
quem a Deusa é protectora não defuntos são deuses, pode-se afirmar.
Gaza é terra de deuses. Ngungunhana, o último imperador de Gaza,
Eduardo Chivambo Mondlane, arquitecto da unidade nacional dos
moçambicanos, Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçam-
bique, Josina Machel, mulher de quem se inspiram as mulheres de hoje
que lutam pela emancipação.
Dércia Sara, Deusa d’África, também tem uma luta “tudo isto faço por
amor à literatura e que quero ver a minha província a desenvolver-se
nesse aspecto e, para isso, estou disposta a continuar a usar o meu pró-
prio dinheiro para promover os eventos como tem sido. os poucos apoios
que temos caso continuem ficarei grata.”
Por último, não deixa de desabafar “ fico muito triste quando há eventos
políticos e não se dá espaço para actividades culturais. Eles falam,
falam, lêem páginas e páginas de discursos e esquecem de incluir o que
identifica o povo, a cultura. Isso ainda me dói. Mas creio que as coisas
vão mudar, porque pouco a pouco, já conseguimos meter na mente do
poder executivo a nível local, que a cultura tem valor, por isso que é nor-
mal nas nossas noites de poesia, encontrar directores provinciais e o
Ao revitalizar a Associação Cultural Xitende, Deusa pretendia não só voltar a próprio governador da província.”
dar vida um grupo tão histórico como Xitende, mas queria, acima de tudo,
voltar a ver Gaza na rota do fazer literário a nível nacional. Gaza esta, onde
moram as origens de Paulina Chiziane, por exemplo, Juvenal Bucuane, entre
outros.
“Durante a minha estadia em Maputo, andei por vários grupos literários que
até fazem noites de poesia. Convivi com esses grupos mas, mais tarde, deci-
di voltar para Xai-xai, onde é minha casa para fazer com que a juventude
daqui se faça expressar das mais diversas formas culturais. e é isto que se
vê hoje. O Xitende voltou a viver e tem promovido a cultura a nível da provín-
cia”
“Por aqui as coisas não são como no Maputo aonde a movimentação das
massas é grande. Aqui temos enfrentado ainda a problemática do cidadão
que ainda não tem em consciência que a cultura tem valor e que para tal, ele
deve participar nesse processo. Ainda não entendem a literatura e por isso
temos ainda enfrentado todas as dificuldades. Contudo, não paramos. Conti-
nuamos a promover as noites de poesia, homenagens a escritores e pes-
soas ligadas à cultura no geral, de modo que possamos criar uma identidade
própria.”
E perguntei à Deusa d’África o porquê de se intitular assim, “deusa”. Se seria
um contra-ataque aos homens que tem um deus? E o que então, se dedica
uma Deusa d’África? A proteger as mulheres?
“o colonizador nos ensinou
Para minha admiração Deusa disse
a adorar apenas um Deus. mas a África, nas suas
crenças, não tem apenas um deus, apesar de os
deuses que têm serem homens e defuntos. Ao con-
10. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 10
O passo certo
FILOSOFONIAS
no caminho errado Marcelo Soriano - Brasil
Nelson Lineu - Maputo
nelsonlineu@gmail.com
O Sobrado de Kafka
Assim falou Pantufa
Dei-me ao luxo de chegar até aquele lugar comum... E tocar nas paredes sólidas do
sobrado concreto... Sensação de lápide abstraída... Aqui e ali... Praga... Onde vivemos...
Gaspar interrompeu, quando o chefe de quarteirão falava, na reunião do E escrevemos... Ou vice versa... Kafka e todos nós que o evocamos enquanto o lemos...
bairro, era uma espécie de Polís como na Grécia, onde discutiam seus Amém.
problemas e juntos procuravam solucionar. O desrespeito passou
despercebido porque não era normal aquele acontecer, e quando
acontecia coisas da mesma insolitês, algo grave estava por se viver. A
última vez que algo parecido aconteceu, viu-se uma galinha rezar em
todas vozes de Deus, e deu uma chuva, que mais parecia a quantidade
de lágrima que cada um tinha, e ao terminarem no organismo a chuva
também parou. O que provou essa percepção foi o facto de ficarem um
ano, sem lágrimas fazerem das suas nos rostos e o dia em que elas
voltaram, foi dos olhos do Garpar Pantufa. Com isso passou a ser mais
Pensei em escrever...
respeitado, a sua opinião tinha um outro peso, quase que divino. Todos Na esquina torta,
em silêncio ouviam-lhe, era como se a sabedoria se fizesse nele, o sobrou-me sombra,
faltou-me altura.
nosso Zaratustra anunciara: Escrever não creio
- É urgente a mudança, não pela força ou fraqueza mas uma mudança seja coisa deste,
talvez vício de um outro,
radical, embora aqui discutamos sobre aspectos do bairro, eu quero me extremo mundo.
cingir dum aspecto mundial. Temos que mudar de rota para chegar-mos
a nós. Essa miséria, desigualidade, racismo, entre outros itens dessa
nosso universo consumismo, devem ser revolucionados, essa crise tem
dias contado.
Os outros ouviam com a devida atenção, com a ambição de querer
participar na história, não era para menos, um novo viver estava a ser
construido, atónitos continuavam a depositar confiança dos seus
ouvidos as palavras, daquele que naquele momento, em vez de super
Sobrou-lhe um sobrado.
homem, era encarado como super Deus, nenhuma vez naquele bairro E uma sombra assombra,
ouviu-se palavras com aquela dimensão. em plena luz do dia,
com sua frieza cotidiana.
- É urgente o novo mundo, onde acabemos com os vestigios desse,
embora nunca seja por completo, porque cada mudança leva sempre um
pouco do passado. A solução está nos livros, eles devem ser escritos
por crianças, elas é que nos traram esse o outro mundo. Dum lado elas
já nascem com algo do exterior através de vários fenómenos biológicos
e do outro trazem algo de novo, a pedra filosofal para esse hoje. O que
acontece é que os mais velhos, apenas fazem crescer o lado que os toca.
Os putos matam esse mundo que trazem, dando continuidade esses
nossos quatros cantos cansados. Ilucida-se pela vontade dos pais ao Imagens: Registro fotográfico coletado pessoalmente por este que vos escreve, em Praga - República Tcheca.
quererem que os filhos concretizem coisas que ele não conseguiram,
E Tenho Dito!
nesse caso os petizes tem como exemplo o fracasso dos país, já dá para
advinhar o fim que teram e com eles o mundo que nos canta,
desencantadamente.
Assim falou Pantufa.
11. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 11
Memória como repositório do nosso
passado, presente e futuro (1)
T
Filimone Meigos - Luanda* entativamente, vou falar da dário, na década de 70 do século passa-
memória do ponto de vista do. Tive que ler e ensinar sobre os mani-
do poeta que me reivindico. kongos. Por analogia, estudei e leccionei
Sendo que, estamos a falar conteúdos sobre os impérios do Benin,
da(s) memória(s) de que o poeta se socorre, então, não posso descurar Mali e Songhay; Méroe, Nok, Yuruba e
Daomé.
outros papéis e funções que fui exercendo, que povoam o imaginário Não é sem razão que encontrarão na
total deste poeta que julgo ser, pois a memória está intrínsicamente liga- minha poesia referência a Ana Nzinga.
da a operações mentais, onde a associação é fundamental. Não há Tal se deve à sua ousadia retratada
memória sem associação e, da mesma forma pode-se afirmar que não nos homens que se curvavam para ela sentar-se nos seus dorsos, tal era o
há associação sem memória. Então, estou a dizer que nunca desassocio seu poder!
-me dos lugares e das gentes que fui conhecendo ao longo dos tempos. O 4 de Fevereiro está funcionalmente ligado à Moçambique. Na província
Tão pouco esqueço-me das situações a que presenciei e formataram de Cabo Delgado onde a luta armada de libertação de Moçambique come-
esse nicho de recordações humanas e de memória que vão inundando a çou e se deu um dos maiores focos de resistência anti-colonial, vive o povo
minha poesia. Ora em forma de diálogo, ou, simplesmente palavras ditas da etnia Maconde, cuja origem, segundo constam os anais, provém de
por pessoas anónimas, ou bem próximas, essa arte baseada na lingua- Angola e tem relação de parentesco linguístico-psicológico cultural com os
gem que dá pelo nome de poesia vai acontecendo numa folha de papel Tchokwes de cá. Pois bem, foi proibido o uso da catana no Planalto de Mue-
branco, em forma de escrita memorável, umas vezes cor de rosa, outras, da por causa do 4 de Fevereiro angolano. Podem imaginar as consequên-
azul às riscas. cias disso para um povo que vive da catana, ora na machamba/lavra ora na
Não é sem razão, pois, “quem amiga aviso é”, embora haja quem diga que “as
sua labuta escultórica. Os macondes são os autores das famosas Ujamaa e
palavras leva-as o vento”. Por exemplo, a troca do “quem avisa amigo é” por
“quem amiga aviso é”, ouvi-a de um transeunte, algures na Beira, minha terra
Shitanis, obras de escultura muito famosas pela sua forma, temática , labor
natal, em Sofala. Achei tão bonito que não me importa se a formulação foi por e conteúdo.
acaso, verdade é que também faz sentido. Para além de que o “social” sucede Agostinho Neto é o poeta da Sagrada Esperança incluído na selecta literária
e faz sentido também por acaso. Tal como faz sentido o que ouvi dizer não me de 1974, que tive que estudar como leitura obrigatória, na disciplina de Lín-
recordo onde: “quem sai aos seus não é de Genebra” ao invés de “quem sai gua portuguesa, no quarto e quinto ano do liceu. Com a mesma obrigatorie-
aos seus não degenera”! Ou, isto é “uma almofada de ar fresco” ao invés de dade tive que ler Viriato Cruz, Alexandre Dáskalos, Luandino Vieira,
“uma lufada de ar fresco”. Todas estas formulações anónimas alimentam meu Wanhenga Xito, entre vários.
imaginário e enchem a minha memória, e fazem muito sentido. Posso usar a De um modo particular, meu compadre Wanhenga Xito remete-me ao Mes-
mesma estratégia para construir versos, ou, no caso de prosa, posso construir tre Tamoda e suas “falagens” ou “falamentos” inovadores na boca do juiz
personagens interessantes com falas do tipo Mestre Tamoda. embargador ou dele próprio, ou de Kaíto; Luandino, liga-me aos musseques
O conceito de memória tem a ver com imagens, representações e, já agora, luandenses e ao manejo da língua portuguesa como troféu de guerra.
captações do real que, por vezes, parecem irreais. Tais captações são impor-
tantes nas minhas operações mentais, como sejam a associação, a analogia, a
Não me esqueço, já agora, em jeito de parênteses, da materialização da
metonímia, a catáfora, a alegoria, a paródia, o absurdo como estratégia de nossa irmandade secular através destes seniores a que me referi. Estão na
escrita, a sinestesia a mimesis, e outras metáforas, portanto, imagens que são minha memória por via dos primeiros encontros entre a Associação dos Escritores
muito recorrentes na poesia que escrevo. Moçambicanos e a União de Escritores Angolanos, o que, diga-se em abono da
Se estamos de acordo, a poesia vive de imagens, isto é, de memórias e recor- verdade, remonta à Casa dos Estudantes do Império. Mas, no meu tempo, nesses
dações, mesmo que inverosímeis. É de senso comum, que a imagem socorre- anos oitenta e princípios dos noventas, nós então jovens irreverentes da Charrua,
se de vivências semânticas, praxis, lugares, tempos, saberes, pessoas, chei- convivemos de parceria com os jovens de cá, também irreverentes, da publicação
ros, formas, conteúdos, processos miméticos e outros que tais. Lavra e oficinas, se a memória não me trai, onde despontavam nomes como
Quer dizer que advogo que a imagem tem outras valências, outras variáveis Lopito Feijó. Isso foi feito por esses kotas, tipo passagem de testemunho.
passíveis de recordar, ou não, mas que são estruturantes para a nossa memó- Do nosso lado lembro-me do tio Zé, o famoso José Craveirinha, O Aníbal
ria, e, por conseguinte, para o acto da escrita. Aleluia, o Rui Nogar, o Albino Magaia, O Orlando Mendes, o Gulamo Khan,
Particularmente, no que me toca, carrego 52 anos de memória. Na verdade, a todos já falecidos; de Cabo Verde Corsino Fortes; de São Tomé a Alda do
memória, tal como a vida, tem os seus interstícios, coisas que ela própria não Espírito Santo e o Bragança. Sempre pela mão desses Kotas, tal é a minha
se recorda, se bem que a definição de memória passe, outrossim, pelo conceito memória.
de recordação. Voltando ao fio da meada, emblematicamente, para mim, Pepetela é Mayombe.
O que é, então, a memória para mim, que me reivindico poeta, que incarna o Comissário político que fui, reconheci-me, em cena, bem mesmo. E na geração da
sujeito poético que escreve a minha poesia? Utopia, sim nós os da British colony.
Em que medida o nicho das recordações humanas e da memória são pertinen- E a performance da Ondina? Quantas Ondinas palmilharam as nossas bases, e,
tes no exercício do poeta que me outorgo? por via disso o nosso imaginário poético?!
E decorrente disso, quão importante é tudo isso para a ocorrência da minha “Duo Ouro Negro” foi à banda que internacionalizou o clássico moçambicano
poesis? “Elisa Gomara Saia”, cujo ritmo, marrabenta, reivindico na minha escrita impregna-
É essa labiríntica abordagem que quero percorrer, um state of mind paper, da de sensualidade, sua metáfora rítmica, de entre muitos outros que existem de
onde privilegio a minha geração, a minha época, a minha socialização, a minha norte a sul de Moçambique.
história de vida, isto é, a minha experiência vivencial que é sensorial, cognitiva, “Os Piratas” foram a minha perdição desses anos 70 do século passado: “Aié
visual, auditiva, emotiva, olfactiva, portanto, é meu capital memorial. Helena aie helena aie helena Ndopinda Merengue: calcinhas da minha pita são fei-
Estou em Angola. Se a história de vida é uma espécie de tecido inconsútil, lem- tas de malha”; Manuel Rui é a cena do quem me dera ser onda, num contexto mui-
bro-me, que desenhei, nesse pano branco, entre outras coisas, sangue, sagra- to particular, igualzinho e correspondente ao nosso na mesma época: o porco e a
das esperanças, o Império dos Mani Kongos, Agostinho Neto, a Ilha e Fortaleza porquice nos prédios…
de Luanda, Ana Nzinga, as catanadas do 4 de Fevereiro, Mário Pinto de Andra- Falar de memória é falar das suas manifestações. Se nos referimos a memória
de, Manuel Rui, Wanhenga Xito, Pepetela, Fragata de Morais, Maria do Céu visual inscrevemos, por exemplo, a volúptia ou a sensualidade dum corpo feminino.
Reis, Savimbi, , Bonga, Daniel Chipenda… Estou a ouvir a voz duma Lurdes Van Dunen, por exemplo, que conheci num festi-
Lembro-me que aloquei nessa capulana, os Ngola Ritmo, e em consequência val de música da SADCC, em Harare, qual coligação de memória visual e auditiva.
disso, Liceu Vieira Dias. Ocorre-me o Viriato Cruz, Alexandre Dáskalos, Duo Se me quero referir a memórias olfactivas, também em coligação, lembro-me de
Ouro Negro, os Piratas, o Rui Mingas, o Filipe Mukenga, Kafala Brothers, Mar- qualquer coisa como seus “seios laranja, laranja do loge, eram sumauma cheiran-
cela Costa, Jaka Jamba, Kustuleta, As Zingas, Maya Cool, Eduardo Pain, Dinis do a Rosas… como o Maboque”, nossa massala, na voz de Rui Mingas ou Sérgio
( o do forte pontapé com o pé esquerdo), e por aí adiante. Godinho, texto escrito por Viriato Cruz.
Tudo isso, transporta-me para memórias emotivas, sinestesias imensuráveis que
Recordo-me também, do Dondo, de Benguela, Kwito Kwanavale, Katumbela, pululam meus textos, quanto menos não seja por processos mimético-imagéticos,
Kinaxixe, Huambo, Namibe… associações de recorrência inegáveis.
Essas lembranças remetem-me a semelhanças com gentílicos, topónimos e Kinaxixe era o nome do barco de Samora Machel oferecido por Agostinho Neto.
situações que me são muito familiares, lá em Moçambique. Dondo é um distrito da província de Sofala, onde cresci e convivi com muitos ango-
Quero, por conseguinte, fazer associações com esses nomes, topónimos, gen- lanos e cabo verdianos amigos de casa. Sei que há cá em Angola um Dondo. Tudo
tílicos e situações, estabelecendo relação funcional entre eles, a minha memó- isso está inscrito na minha história de vida com a malta da minha criação, tempos
ria a minha escrita poética, e claro, meu país. imemoriáveis. Tais são os casos dos Txitos, Dionísios, Osmanes, Orlando, Grá-
Comecemos pelos Mani Kongos.
cios, Chouriços, Manuchas, etc, lendo Viragem de Castro Soromenho, outro autor
O Império dos Mani kongos remete-me à minha condição de professor secun-
partilhado que chama o Zambeze de Cuama.
12. Foto: Frederico Ningi
David Capelenguela
Um poeta contador e cantador de tradições
EKWENDJE
Oh…
Ongunga ya sica kalye kulo…
Para encarregar a caminhada
Da parade do Ekwendje
A ansiedade plausível
Das mulheres do jango entoado…
Wéé - wéé - wéé - wéé - wéééé…
Wéé – wé wé wééleketééé…
Ulú – ulú – ulúúúú…
Wéé-kolondjaly… TATUAGEM
Wéé – kova akwendje
ha cinza
Wéé-komalã vetu…wééé… Com fe bres da min eu
amente m
Pinto amarg
genocídio agens BRISA BRANCA
minhas tatu
Escrito nas s evasivas
A honra da rítmica las serpente
Pe
Da sagrada enxovalhada Passa fina
Lisa
Dos Akwendjes do Ekwendje Refinada
s ondas
Canções da Tradição enxergam Gu io-me com a r
o amo
A intimidade dos Ovimbundu pitorescas d bre os gestos E desce a calçada
so
Navegando
Cansada
silêncio
Com os Ovingãngela mímicos do
De
N
tan
aturalizado no Namibe, onde passou a infância e adolescên-
cia, David Capelenguela nasceu na provincial da Huíla, em
Angola. to
Estudante do 4º ano de Direito na Universidade Agostinho gemer ao vento
Neto em Luanda, é jornalista de profissão, tendo iniciado o exercício
como colaborador da Rádio, ANGOP e Jornal de Angola na província do
Namibe. Passou também pela emissora provincial da Huíla, Rádio 2000 Linda rapariga
e actualmente é editor e apresentador do programa cultural na emisso- De dócil gesto
ra provincial do Cunene. Por um instante
Membro da União dos Escritores Angolanos e membro-fundador da Bri- gestante
gada Jovem de Literatura de Angola da província de Namibe exerceu,
de 1993 a 1998, a função de Secretário provincial daquela organização
juvenil literária, função que exerce actualmente na província do Cune- Passa pano fino
ne. frio
É membro de direcção e pesquisador do CEED – Centro de Estudos da no vem
Educação e Desenvolvimento da Diocese de Ondjica-Cunene. tre
É autor das obras, Acordanua (poesia, 2009, Editorial Nzila), Vozes traz
Ambíguas (poesia, 2004, Editorial Nzila), Rugir do Crivo (poesia, 1999, filho
BJLA-Namibe), O Enigma da Welwitschia (poesia, 1997, BJLA-Namibe) do frio
e, Planta da Sede (poesia, 1989, BJLA-Namibe). De pai plural
Faz parte das Antologias poéticas da BJLA da Huíla, O Sabor pegadiço das
impressões labiais (2003) e da BJLA do Namibe, Dunas de Klahari, editada
em Janeiro de 2008.
13. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 13
Ensaio
Cartas a um jovem escritor
Q
uem procurar saber nuou morando em Roma, até a sua morte. Sua poesia manteve-se finca-
Adelto Gonçalves (*) - Brasil
quem foi Carlos Maga- da nos ideais do parnasianismo, o que deve ter contribuído para o seu
lhães de Azeredo (1872 esquecimento.
-1963) na história da De valioso, o que deixou mesmo foram as cartas que não só trocou
Literatura Brasileira, dificilmente, com Machado de Assis como
haverá de encontrar referências com outros literatos, como Mário
mais aprofundadas. Afrânio Couti- de Alencar (1872-1925), filho de
nho em Brasil e brasileiros de hoje José de Alencar (1829-1877),
(Rio de Janeiro, Sul-Americana, outro amigo íntimo do bruxo do
1961) e Raimundo de Menezes em Cosme Velho, que hoje fazem
Dicionário Literário Brasileiro (Rio parte do acervo da Academia
de Janeiro, Livros Técnicos e Cien- Brasileira de Letras. Por essas car-
tíficos, 1978) citam-no e no portal tas, o pesquisador tem acesso à boa
digital da Academia Brasileira de parte da história literária e mesmo
Letras pode-se encontrar uma bre- do País, em razão das impressões
que os missivistas trocavam. Nas
ve biografia. Foi um dos fundadores
cartas que dirigiu a Azeredo, Macha-
da Casa e o acadêmico que mais
do de Assis, tal a intimidade entre
tempo ocupou sua cadeira: 66 anos.
ambos, fez confidências nunca registradas em crônicas.
Ainda que tenha tido vida longa e publicado uma série de livros – pelo
II
menos 17, de poemas, ensaios, contos e estudos – e imaginado tantos
Grande parte dessas cartas já havia sido reunida pelo pesquisador nor-
outros que, ao que parece, não vieram à luz, esteve, nos últimos 50 anos,
te-americano Carmelo Virgilio e publicada em 1969 pelo Instituto Nacio-
completamente esquecido. A última vez que seu nome foi citado com desta-
nal do Livro, mas, agora, é possível encontrá-las nos três tomos de Cor-
que nos jornais foi em 2003, quando o ex-presidente Itamar Franco, então
respondência de Machado de Assis, especialmente no III, que abrange o
ocupando o cargo de embaixador do Brasil em Roma, entregou à Academia
período de 1890 a 1900 (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras,
Brasileira de Letras originais do autor que encontrara entre os papeis da
2011). A correspondência entre os dois neste volume reúne 90 cartas e
Embaixada.
constitui um testemunho precioso de uma época conturbada bem como
De família abastada, nascido no Rio de Janeiro, Azeredo fizera os primeiros estu-
do ambiente cultural no Brasil e na Europa. E são as que oferecem maio-
dos no Porto, antes de retornar ao Brasil, morando em Itu, onde fez os estudos
res detalhes da vida privada de ambos e do ambiente cultural em que
complementares, antes de ingressar na Faculdade do Largo de São Francisco, em
São Paulo, pela qual se formou em Direito, em 1893. Dois anos depois, ingressou
viviam.
na vida diplomática, tendo ocupado vários cargos no exterior – no Uruguai, na Itália, No total, são 292 missivas, entre cartas, bilhetes e cartões, quantidade
em Cuba e na Grécia –, até que encerrou a carreira como representante do Brasil superior a toda a correspondência publicada nos tomos anteriores (1860-
no Vaticano em 1934. Por um tempo, exilou-se em Paris, voltando a Roma, cidade 1869 e 1870-1889), abrangendo 291 documentos. Como observa o aca-
de sua predileção. dêmico Sergio Paulo Rouanet na apresentação, há no tomo III uma parti-
De estilo caudaloso, para abrir caminho nos meios literários, valeu-se prin- cipação desproporcional de Magalhães de Azeredo, nome que já apare-
cipalmente da amizade com Machado de Assis (1839-1908), com quem tro- cera como responsável por três cartas no tomo II. A partir de 1892, as
cou cartas desde a precoce idade de 17 anos, embora o destinatário das cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador, assinala
epístolas já tivesse a essa altura mais de 50 anos e fosse nome consagrado Rouanet. De fato, até o final de 1900, são 58 cartas de Azeredo para
nas letras. É provável que relações familiares os tenham aproximado, pois Machado e 32 deste para Azeredo, ou seja, 30% do total das cartas reu-
Machado conhecera bem os pais de Azeredo, como se percebe a partir da nidas neste volume.
leitura das cartas que trocaram por 19 anos, até a morte do autor de Dom Pouco antes de morrer, Machado de Assis pediu a José Veríssimo
Casmurro. (1857-1916) que devolvesse ao autor os originais das cartas dele recebi-
Ao contrário do que vaticinava Machado de Assis, Azeredo, embora tenha das. Mais tarde, Azeredo doou esse acervo epistolar à Academia, o que
tido também intensa atuação da imprensa brasileira, foi sendo pouco a pou- explica a sua preservação, enquanto centenas de outras acabaram por
co esquecido e, praticamente, não exerceu influência nos meios literários se perder ou talvez resistam no arquivo de um ou outro colecionador ou
brasileiros, ainda que nunca tenha deixado de praticar a política literária, já alfarrabista. “E eis como um escritor pouco valorizado hoje em dia che-
que a sua morada em Roma transformou-se em ponto de encontro de inte- gou à posteridade pelo mero fato de ter tido o dom de relacionar-se com
lectuais em visita ao Velho Mundo. Mesmo depois de se aposentar, conti- o maior escritor do Brasil”, observa Rouanet.
14. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 14
Ensaio
III nota de rodapé.
Não se pode dizer que o estilo e o vocabulário de Azeredo ficas- Aliás, além da exaustiva apresentação de Rouanet, que ocupa 27
sem muito aquém das qualidades do mestre, mas, como diz Rouanet, o páginas, vale destacar não só o trabalho de edição e organização de Sílvia
que ressalta é a alta conta em que o jovem escritor se tinha, o que con- Eleutério e Irene Moutinho como as notas explicativas que apuseram às
trasta com a “sábia e calculada modéstia” de Machado. Sem contar que o cartas, trabalho minucioso de pesquisa e contextualização que facilita
jovem Azeredo fazia sobremaneira a vida do leitor deste século XXI, já tão distante de fatos que
incontáveis exi- gências e ocorreram há mais de um século.
reclamações, encarre- Não se pode dizer que só as cartas a Azeredo tenham importância
gando Machado de Assis neste volume, mas são as que merecem mais destaque, como aquelas em
de negociar con- dições que Machado de Assis reclama das vicissitudes por que passava como
com editores do Rio de funcionário público ou ainda se defende um ataque despropositado que
Janeiro para a publica- Sílvio Romero (1851-1914) fizera num estudo publicado em livro cujo título
ção de suas obras. É era o próprio nome do romancista seguido de um subtítulo – Estudo Com-
verdade que Machado, parativo de Literatura.
em suas respostas, também estimulava o ego do jovem poeta, augurando- Machado sentiu o golpe, mas logo se consideraria refeito, com
lhe um futuro brilhante no olimpo das letras nacionais que, aliás, nunca se algumas respostas que sairiam na imprensa, especialmente quatro artigos
deu. Além disso, está claro que a entrada de Azeredo na Academia deu- publicados no Jornal do Commercio no começo de 1898 pela pena de um
se apenas pela força política do padrinho. tal de Libieno, pseudônimo que escondia o nome do advogado e político
Se as cartas de Machado de Assis são mais sóbrias e mais buro- Lafaiete Rodrigues Pereira (1934-1917), o conselheiro Lafaiete, a quem no
cráticas, as de Azeredo compõem um painel variado da época, pois ele passado o próprio Machado havia feito alguns ataques. Foi o que motivou
fala de tudo o que o cerca, da política brasileira e dos países pelos quais uma carta de agradecimento a Lafaiete, embora a ação do advogado não
passa ou vive temporariamente, descendo a detalhes mundanos, talvez fosse tão altruísta assim, pois aproveitara a ocasião para desancar Sílvio
para dar ao mestre uma visão mais próxima daquilo que ele conheceria Romero, um velho desafeto. Para quem gosta destas questiúnculas perdi-
apenas por ler ou ouvir falar – até porque o mestre, quando saiu do Rio de das no tempo, este livro é especialmente saboroso.
Janeiro, o foi por poucos dias e para passeios por lugares próximos. ____________________________
Das cartas de Machado de Assis, entre muitas confidências, res- CORRESPONDÊNCIA DE MACHADO DE ASSIS, tomo III – 1890-1900. Coorde-
nação e orientação: Sergio Paulo Rouanet, reunida, organizada e comentada por
salta a avaliação que faz de Eça Queirós (1845-1900) em carta a Azeredo Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras,
no começo de 1898, ao dizer que começara a ler A Ilustre Casa de Rami- 2011, 658 págs., R$ 50,00.
___________________
res seguido de um comentário elogioso, o que significa uma alteração
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
substancial na apreciação que fizera da obra de Eça em 1878, a propósito Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
da publicação de O Primo Basílio, como assinala Sílvia Eleutério numa Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
? Imagina….
15. SEXTA-FEIRA, 04 DE MAIO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 15
Croniconto O assalto ao comandante
dos até ao momento. Os jovens, mal viram o senhor Maventura Campes-
Dany Wambire - Beira
tre, se chegaram a ele, falando-lhe:
E
ra o tempo de matrículas, gente se alvo- ― Pai, não vai mais adiante, lá em frente estão uns gatunos.
raçando em tudo o que é escola desta ― Aonde mesmo? ― Quis melhor saber Maventura Campestre, já
nostálgica cidade ― muitos têm saudade assarapantado.
dela, mas poucos a querem habitar. O Respostas nenhumas lhe vieram. Apenas um pau já lhe tinha visita-
camarada Maventura saiu, bastante cedo, às 2 horas da madrugada, para do a região da nuca, principiando-lhe a agressão. No seguido, uma rastei-
ser uma das primeiras pessoas da fila, e vencer automaticamente uma ra mal aplicada quase lhe deixava lamber a terra. E ele se conservou em
vaga das escassas existentes. silêncio, incrédulo. Estaria ele perante salteadores nocturnos? Tratar-se-ia
Aqui, na verdade, as infra-estruturas escolares são tão poucas, que de acidente de percurso daqueles jovens, outrora conselheiros? Valeu que
cabem apenas as moscas, por causa de sua pequenez e da capacidade os jovens lhe tenham dado uma bofetada a lhe confirmar o assalto. E o
de partilha espacial de que dispõem. E não se sabe de quem é o proble- comandante desatou a gritar, exigindo auxílio dos que o podiam ouvir.
ma. Talvez seja das autoridades governamentais, como apregoa o meu ― Socorrooooo!
avô. Contentaram-se com as exíguas escolas herdadas do colonialismo, e Estava assim a suplicar por socorro, quando, de inopinado, avistou
agora edificando uma a uma, como se não se exigisse pressa. Talvez seja uma gigante pedra tremeluzindo entre os capins. Se debruçou a apanhá-
do próprio povo, que se multiplicou de forma exagerada, longe do controle la, e atirou-a de encontro ao rosto de um dos salteadores. A acção da
das autoridades governamentais. pedra foi tão forte, que o efeito se fez sentir até nos não atingidos, que
Nessa manhã, segundo dia do mês de Janeiro, o vizinho Maventura fugiram todos em debandada.
madrugou, pois, a cumprir a bicha. Mas antes de percorrer por completo o E, em diminutos minutos, cumpriu o céu o seu dever de cor, cla-
perímetro do seu quarteirão, foi surpreendido por três jovens, desconheci- reando o dia. As escassas pessoas que haviam saído para socorrer
Maventura, admoestaram-no a ir participar a ocorrência à polícia. Que fos-
se informar à polícia que um dos gatunos, ainda a monte, cedo ou tarde
procuraria por serviços hospitalares, pois levou com pedra na cara, convo-
cando terrível sangramento. Era urgente ir no encalço deste gatuno!
Naquele mesmo dia, decerto, o gatuno se apresentou num hospi-
tal. Não foi ao do bairro. Lá seria descoberto, pensou ele. Foi ao regional.
Chegado lá, os enfermeiros se atentaram nas explicações do doente,
sobre a forma como ele contraíra o terrífico sangramento:
― Eram cinco gatunos que me atacaram a caminho do serviço. ―
Explicou o paciente. ― Estavam munidos de armas, sei lá se eram bran-
cas, pretas ou azuis! ― Concluiu.
No seguido, os enfermeiros aconselharam-no a participar a ocor-
rência ao polícia ali próximo, em serviço naquele hospital regional. Para
seu azar, todos os polícias já estavam informados da presumível vinda de
um paciente sangrando no rosto. Bastava, de resto, o local do sangramen-
to e o local da ocorrência, para permitir o seguimento das investigações
policiais.
Destacaram um polícia para assistir ao tratamento do queixoso. E o
jovem, ingénuo, pensou estar a ser protegido ― como vitima de assalto, é
claro. Terminado o tratamento, um carro policial estava à sua espera, para
o apresentar no posto policial da zona, onde ele supostamente fora saltea-
do. E era neste posto policial que estava aguardando o meu comandante,
o verdadeiro ofendido.
O oficial da polícia em serviço ouviu, no seguido, a explicação do
recém-chegado queixoso. O jovem se explicou, como já fizera no hospital
regional, enquanto o oficial o acompanhava, circunspecto. Depois sucedeu
o inesperado por parte do jovem recém-adentrado pela esquadra policial.
O oficial mandou chamar o comandante Maventura Campestre, até ao
momento ocultado, e perguntou seguidamente ao jovem:
― Este é o senhor que te assaltou?