O documento discute as formas de religiosidade no Brasil. Ele descreve como os brasileiros têm intimidade com santos e orixás que os protegem, e mantêm relações complementares entre as diversas tradições religiosas. A religião oficial legitima eventos da vida, mas a religião popular permite uma comunicação mais pessoal e íntima com Deus através de milagres e respostas individuais às súplicas.
2. O QUE FAZ O brasil, BRASIL?
Roberto da Matta
CÁPÍTULO 8
OS CAMINHOS PARA DEUS
3. Nós, brasileiros, marcamos certos espaços como referências
especiais de nossa sociedade. Assim como a casa em que
moramos, nossa rua, bairro e nosso trabalho, onde vivemos com
parentes, amigos e colegas , temos outro referencial de espaço, um
espaço do outro mundo demarcado por igrejas, capelas, centros
espíritas, sinagogas, terreiros – é a nossa religião – um mundo
habitado por mortos,fantasmas, almas, santos, anjos,orixás, deuses,
Deus,Virgem Maria e Jesus Cristo, para onde todos vão e de onde
ninguém retorna, ou pelos menos retorna com facilidade.
Aqui nosso modo de relacionamento é diferente, a comunicação com
o além e seus habitantes é formalizado e suplicante, feito de preces,
rezas e súplicas: ao invés de discursar, rezamos; de ordenar,
pedimos.
4. Existem formas individuais e coletivas de se falar com Deus.
Coletivamente, o mais comum é através da cantoria, onde
reúnem-se vários pedidos num só que deve “subir” aos céus,
levado pelas harmonias das vozes que o entoam.
Nosso modo de conceber o espaço religioso, a linha vertical e
hierarquizada, que relaciona o céu com a terra e o alto com o
baixo, é algo dominante e crítico : o “alto” tudo que é superior, mais
nobre, mais forte, mais poder. É lá que moram os anjos, santos e
todas as entidades que podem nos proteger. O “baixo” é a terra em
que vivemos: vale de lágrimas onde sofremos, trabalhamos e
finalmente morremos.
A reza, a festividade religiosa e o canto coletivo, são meios de se
chegar até essas regiões superiores, ligando o aqui e agora com o
além e o infinito.
5.
6. As formas individuais seriam normalmente as mais fracas, embora
a fé, a esperança e a caridade de cada um sejam também
elementos importantes no atendimento de suas súplicas ou
preces.
Promessas, oferendas e sacrifícios, são naturalmente mais fortes
que um pedido verbal, muitas vezes incidindo gastos financeiros
para tal. A promessa é um pacto que obriga os dois lados a uma
ação positiva para solucionar o problema apresentado .
( Se eu peço uma graça e logo em seguida me sacrifico com a
oferta de algo precioso para o santo(ou santa) de minha devoção,
a lógica social faz com que ele (ou ela) também se obrigue a
resolver meu problema, atendendo cortesmente meu pedido.
7. As respostas são muitas, mas um fator sociológico básico, é que
existe a necessidade de construir esse grande espelho a que
chamamos religião para dar a todos e a cada um de nós,um
sentimento de comunhão com o universo como um todo, nos
permitindo uma relação globalizada não só com os deuses, mas
com todos os homens e seres vivos.
RELIGIÃO – a palavra deriva do latim: laço, aliança, pacto,
contrato e relação que deve nortear os elos entre deuses e
homens entre si. Um modo de ordenar o mundo, facultando nossa
compreensão para coisas complexas, como a ideia de tempo, de
eterno, de perda e desaparecimento: o homem é o único ser que
tem consciência de sua própria morte.
8. •A religião explica os infortúnios de nossas vidas (acidentes e
doenças); o porquê de alguém ligado a nós ter sofrido um acidente
ou ter ficado doente, por exemplo.
•“Falamos também de religião quando estamos pensando no modo
pelo qual a sociedade precisa legitimar ou justificar a sua
organização, a sua maneira de ser e os seus estilos de fazer” – A
religião pode explicar de modo mais satisfatório que a ciência ou a
filosofia, por que existem ricos e pobres, fortes e fracos, doentes e
sãos; por que temos neste mundo sofrimento, calamidade, doença
injustiça e aflição.
•A religião marca momentos importantes da vida: nascimentos,
batizados, crismas, comunhões, casamentos, funerais, com rituais
e cerimônias específicas para cada situação – legitima com o aval
divino algo convencionado.
9. Até 1890 o Catolicismo Romano foi a religião oficial no Brasil e se
mantém até hoje dominante. Porém essa denominação religiosa é
acompanhada de outras que a ela estão referidas, que diferem
pela forma de culto, teologia, tipo de sacerdócio e atitudes gerais.
A variedade de experiências religiosas brasileiras é ampla e
limitada ao mesmo tempo:
Ampla – ao Catolicismo Romano somam-se várias
denominações Protestantes, outras variações de religiões orientais
e ocidentais, além das variedades brasileiras de cultos de
possessão.
10. Temos de um lado a África dos escravos, com seus terreiros,
tambores, idiomas secretos, orixás e ritos de sacrifício
(Umbanda). De outro, há o Espiritismo Kardecista, em que o culto
dos mortos é uma forma dominante e o ritual se faz sem cantos
nem tambores.
11. Limitada - em todas as formas de religiosidade brasileiras, há
uma enorme e densa ênfase na relação entre este mundo e o
outro, de modo que a domesticação da morte e do tempo é
elemento fundamental em todas essas variedades e jeitos de se
chegar a Deus.
12. A COMUNICAÇÃO COM DEUS
•Sempre através de um elo pessoal;
Nós, brasileiros, temos intimidade com certos santos protetores e
padroeiros; do mesmo modo,temos como guias certos orixás ou
espíritos do além, que são nossos protetores.
Uma relação fundada na simpatia e na lealdade dos
representantes deste mundo e do outro.
Somos fiéis devotos de santos do Catolicismo, por exemplo, e
também cavalos de santo de orixás, e com cada um deles nos
entendemos bem – por meio de preces, promessas, oferendas,
despachos, súplicas e obrigações, que mesmo tendo diferenças
aparentes, constituem um código de comunicação com o além
que é obviamente comum e brasileira.
13. Assim como temos pais, padrinhos e patrões, temos também
entidades sobrenaturais que nos protegem. E elas podem ser de
tradições religiosas divergentes.
O que pode parecer singular no caso brasileiro, é que cada uma
dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras,
mantendo com elas uma relação de plena complementaridade.
A Igreja Romana legitima eventos em nossa vida: nascimento,
batizado, casamento, morte. Funciona como uma forma básica
de religião.
Por outro lado, suas regras fixas e ritos conduzem a uma certa
impessoalidade nossa relação com Deus.
Mas ao lado dessas formas impessoais e socialmente aceitas de
comportamento religioso, existem formas e estilos pessoais de
ligação com o outro mundo, tão populares como o milagre.
14. O milagre nada mais é que uma resposta dos deuses a uma
súplica desesperada dos homens, na forma de um atendimento
pessoal . Essa pessoalidade é única no catolicismo popular.
Parece produzir , no plano religioso, enorme ênfase nas relações
pessoais que dão um sentido profundo ao nosso mundo social.
É clara essa forma de comunicação familiar e íntima, direta e
pessoal entres homens e deuses, no caso brasileiro.
Assim, em vez de opor a religião popular à religião oficial ou
erudita, entende-se que suas relações complementam-se: como
as faces de uma mesma moeda.
O oficial contém tudo que pode legalizar, atuando a partir de fora.
(atendendo às aparências).
15. Mas o popular contém todas as formas que lidam com as
emoções em estado vivo, atuando por dentro (atende aos
sentimentos propriamente ditos).
Num caso, a relação com Deus ´”limpa”, educada. No outro, a
comunicação é sensível, concreta e dramática. O milagre para
nós, brasileiros, é a não exclusão de qualquer dessas formas
como necessárias à vida religiosa.
Mas a adoção de ambas como modos legítimos de se chegar a
Deus.
16. No mundo real não posso ter dois sexos, duas mulheres,dois
partidos políticos ao mesmo tempo..., no caminho para Deus e
na relação com o outro mundo posso juntar muita coisa: posso
ser católico e umbandista ou devoto de Ogum e São Jorge, por
exemplo.Tudo se funde, revelando, talvez, que no sobrenatural
nada seja impossível.
A linguagem religiosa no nosso país permite a um povo
destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus
representantes legais, FALAR, SER OUVIDO E RECEBER os
deuses em seu próprio corpo.
17. Somos um povo que acredita num outro mundo: onde não
haveria sofrimento, miséria, poder e impessoalidades
desumanas;
Leis universais como “quem dá recebe e quem faz algum mal
recebe esse mal”, seriam válidas para todos, pois todos teriam
valor na sua fé e sinceridade.
18. “ O OUTRO MUNDO TEM MUITAS FORMAS E SÃO
VÁRIOS OS CAMINHOS DE SE CHEGAR ATÉ ELE
NO BRASIL. MAS, POR DETRÁS DE TODAS AS DI-FERENÇAS,
SABEMOS QUE LÁ, NESSE CEU À
BRASILEIRA, É POSSÍVEL UMA RELAÇÃO
PERFEITA DE TODOS OS ESPAÇOS.
ESSA, PELO MENOS,É A ESPERANÇA QUE SE
IMPRIME NAS FORMAS MAIS POPULARES DE
RELIGIOSIDADE...”