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Maria Keil



                               Artista ou
                               operária?
                                    “Menina, não é com a espátula que se pinta. É
                                    com o pincel”, disse-lhe um dia Abel Manta. Mas
                                    Maria Keil não sabia fazer de outra maneira. Nem
                                    queria. Perfil de uma artista invulgar a quem
                                    pagaram como operária. Texto de Rita Pimenta
                                    Fotografia de Nuno Ferreira Santos




60 • 01 Abril 2007 • Pública                                               Pública • 01 Abril 2007 • 61
I
                 lustrou, pintou, escreveu,         deste tipo irão repetir-se ao longo da entrevista,
                 desenhou móveis, cenários e        ora incomodada com o gravador ora com os
                 figurinos para bailados. Fez       disparos do fotógrafo Nuno Ferreira Santos. De
                 publicidade e criou imagens        vez em quando, lembra-nos também que não
                 para selos, mas foi no inova-      gosta de conversar. A estes “protestos” segue-
                 dor trabalho de azulejaria,        se sempre uma curta e afável gargalhada. Até
                 presente em nove estações de       que pergunta: “O que é que vão fazer com
                 metro de Lisboa, que Maria         isto?” Antes de qualquer resposta, conclui,
                 Keil mais oposição encontrou.      num encolher de ombros: “Se eu fosse mais
                 “Isso não se faz. Uma pintora      nova ralava-me, agora já não me ralo.” Esta-
não se rebaixa a isso”, diziam-lhe os “grandes”,    mos a falar de alguém que nasceu há quase
como lhes chama. “Agora, o azulejo é um negó-       93 anos (a 9 de Agosto de 1914) e não faz ceri-
cio da China.”                                      mónia com a vida.
   Veio de Silves por indicação de um profes-          Na inauguração da exposição (Auditório
sor de Desenho da Escola Industrial. “Ele disse     Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro)
ao meu pai que eu tinha jeitinho e lá vim para      Maria Keil tinha afi rmado que sem os ami-
as Belas-Artes de Lisboa, nem sabia para onde       gos não conseguiria fazer o que fez. “Os
é que vinha”, conta Maria Keil à Pública num        amigos ajudavam-me através das conver-
encontro com a presença dos comissários da          sas, do ambiente. Mas não era fácil viver
exposição “A Arte de Maria Keil” — Ju Godinho       das artes. Era preciso lutar muito. Fui fazer
e Eduardo Filipe.                                   publicidade. Apareceu aí um tipo, fugido da
   Mas não foi em Belas-Artes que aprendeu          guerra, [Alfred] Kradolfer, o Fred Kradolfer.
o que hoje sabe: “Em três anos que lá estive,       Fantástico, trazia um grafismo moderno. Na
parece, nunca vi um livro de pintura, de repro-     escola não se via nada, não havia coisas para
duções. Não se aprendia nada, nadinha.” Per-        se aprender e ver o que se fazia lá fora.”
cebeu imediatamente que as raparigas que               Se acaso tivesse vivido noutro país, não
andavam em Belas-Artes tinham como único            sabe se o seu trabalho seria mais reconhecido.
objectivo “tirar um diploma e governar a vida,      Aliás, diz nem sequer saber se ele merece ser
queriam ser professoras”. Maria não.                reconhecido: “Vocês é que sabem. Eu faço o
   “Depois apareceu lá aquele menino bonito,        que posso.” E pode muito. Da ilustração de
que foi o meu marido [Francisco Keil do Ama-        livros para a infância, aos painéis de azulejo
ral], que me disse: ‘Anda cá para fora que aí não   (estações de metro de Areeiro, Picoas, Palhavã,
se aprende nada.” E terá sido cá fora, já casada    Intendente, Entrecampos, Campo Pequeno,
(1933), que aprendeu tudo, com pessoas que          Rotunda, Rossio, Parque, painel da Av. Infante
continua a considerar formidáveis: “Um grupo        Santo), à escrita, ao desenho de móveis e aos
de gente, mesmo, mesmo, da frente — pintores,       anúncios publicitários, Maria Keil tem um
gráficos. Era um mundo aberto. Íamos ali para        leque muito alargado de formas de expressão.
a Brasileira com os grandes: o Manta, o Diogo       Muitos leitores se recordarão das imagens que
Macedo, essas pessoas importantes. Ali é que        acompanhavam os livros da escola primária
se aprendia. E tratavam-me bem.”                    (como então se chamava). Mas diz que se tor-
   Depois destas afirmações, aponta para o gra-      nou artista plástica porque “calhou”.
vador e pergunta: “Isto está a gravar? Ai que          Muito exigente quanto ao trabalho produ-
desgraça, não gosto nada disto.” Expressões         zido, vai recordando como “os grandes” não


                                                    Íamos para a Brasileira
                                                    com os grandes. Ali
                                                    é que se aprendia. E
                                                    tratavam-me bem




                                                                                                         Ilustração para “Marcha quási fúnebre”,
                                                                                                         de Carlos Queiroz; duas ilustrações
                                                                                                         de “Histórias da minha rua”,
                                                                                                         de Maria Cecília Correia (1953)




62 • 15 Julho 2007 • Pública
apoiavam o seu método e estilo. Porém, parece
acabar por interiorizar as críticas que em tem-
pos lhe dirigiam. Eis a expressão que mais
repete perante obras que menos lhe agradam:
“Isto é demasiado gráfico.” E foi justamente no
grafismo inovador que se revelou e distinguiu
o talento de Maria Keil. O responsável também
por ter sido tão criticada.
   Ao pedido de que olhasse para a sua obra
como se pertencesse a outra pessoa, responde:
“Há uns trabalhos que não prestam para nada.
Há outros assim-assim. Esta época [de imagens
depuradas e linhas simples] não gosto nada
dela, era muito dura. Era isto que se fazia. Hoje
já não faria assim, era um bocadinho gráfico
de mais.”
   Conta então como era vista pelos pintores:
“Era uma época muito gráfica. Os chefes, os
mestres daquele tempo, não apoiavam isto.
Mas era o que eu sabia fazer. Apanhei muita
pancada. Por exemplo, o Manta uma vez disse-
me: ‘Menina, olhe que não é com a espátula
que se pinta. É com o pincel.’ O meu retrato
é quase todo feito com espátula, não tem pin-
cel quase nenhum. ‘Não é assim que se faz.’
Zangava-se comigo. Mas eu não sabia fazer de
outra maneira.”
   Quando se lhe pergunta se fez alguma coisa
que preferia não ter feito, surpreende-nos:
“Todas. Tudo aquilo estava mal feito para
mim.” Mudava o seu passado? “Claro que
mudava. Então alguém está satisfeito com o
que fez? Tristes as pessoas que estão satisfeitas
com o que fizeram. É muito mau.”
   No presente, consertava os olhos, pois quase
não vê. “Tiraram-me uma catarata e queriam
tirar o outro lado e eu disse: ‘Não. Já estragaram
um, já estragaram.’ Não vejo quase nada. Mas
também tenho 92 anos, já estou aqui a abusar
um bocadinho...”
   O segredo para estar bem é o de ser “sim-
plória”. Traduzindo: “É o não ter grandes
ambições de ser importante. Não há nada mais




Auto-retrato, Óleo
sobre tela, Prémio
Amadeo Souza-
Cardoso (1941)




                     Pública • 15 Julho 2007 • 63
triste do que ver uma pessoa a armar-se em         Em “A Arte de Maria Keil”, dá-se a conhe-
importante. Dá vontade de rir.” Ao dizermos       cer três vertentes da sua obra: a ilustração de
que Maria é importante, faz-nos saber que não     livros para crianças, a pintura e o trabalho de
acredita. E ri-se.                                azulejaria. Originais dos livros e de algumas
                                                  ilustrações, assim como os estudos para os pai-
As pessoas boas                                   néis do metropolitano de Lisboa estão expos-
transformam-se em ouro                            tos até dia 31 de Julho, no Barreiro (das 17h às
“A vida é uma coisa complicada mas ao mesmo       20h). Além da Câmara Municipal do Barreiro,
tempo é simples. Cada um é como é. Acho que       a mostra e a produção dos catálogos contaram
não se pode fabricar, senão... A coisa fun-       com a colaboração da Biblioteca Nacional, do
damental é nós sermos honestos connosco           Museu Nacional do Azulejo e do Metropolitano
mesmo. Não fazer batota connosco. Não é fácil.    de Lisboa.
Fundamental é ter-se respeito a si próprio. Não      Modesta, a artista plástica responde assim à
acha? A gente vai pela vida fora, vai fazendo     pergunta sobre se gosta da exposição: “Eu não
coisas quando vem a propósito. Tem cuidado        gosto, eu acho que é mal empregada em mim.
para não ser chata para os outros. Dá muito       Está boa de mais. Está uma coisa linda, nunca
trabalho. E depois chega-se ao fim e a gente       pensei. Foram buscar aquilo ali às gavetas. Há
vai-se embora. Depois começa-se a pensar: o       que tempos que aquilo estava ali fechado. Está
que é que vai ser de mim debaixo do chão? Vou-    bonita, está. Está muito bem.”
me transformar em qualquer coisa. Não sei em         Parceira de autoria desde cedo com Matilde
quê, mas aquilo tudo junto, se calhar há ouro     Rosa Araújo, considera que ilustrar livros
por causa disso, das pessoas boas que foram       para crianças não tem segredo: “Ilustrar para
enterradas. Transformaram-se em ouro. Para        as crianças era fazer conforme o que estava
que é que lhes servia ser boas? Para alguma       escrito. Para que é que nós ilustramos as coi-
coisa havia de ser. O ouro, as pedras preciosas   sas? É para ilustrar o que está escrito. Não tem
são as pessoas boas que morreram e se trans-      segredo nenhum, nem procura nenhuma, fazia
formaram. As outras desaparecem.”                 o que tinha de fazer. Por exemplo, aquele livro
   Agora, é Keil quem faz as perguntas: “O        da construção [“Pau de Fileira”]. De manhã,
que é que acha que foi feito das valas comuns     levantava-me, ia para a janela da cozinha e lá
do Hitler? Que material é que lá ficou dentro,     em baixo havia um fosso enorme, que eles
daqueles milhares de pessoas? Com certeza         iam escavando para fazer um prédio. Achei
não se perderam. O que é que ficou? Uma pasta      que valia a pena aproveitar, não tinha outra
que com o tempo se vai transformando em cris-     ocasião de ver fazer um prédio. Fiz aquilo tudo
tal de rocha, coisas bonitas, de vez em quando    e bateu certo.”
aparece uma ametista. Deve ser. Pelo menos, é        Sobre o livro mais recente que publicou,
o que compensa de andar no mundo e pensar         com texto de João Paulo Cotrim, “A Árvore
que aquilo serviu para alguma coisa.”             Que Dava Olhos”, revela mais uma vez a sua
   Sugere-se: porque não ilustra esta ideia que   generosidade: “Não me fale nisso. Eu dei-lhe
tão bem descreveu? “Tenho mais que fazer!”        uns desenhos para ele deitar fora e ele fez
Acaba por dizer depois que a tem escrita e        aquele livro que está tão jeitoso. Aquilo foram
guardada.                                         eles que fizeram, não fui eu. Aumentaram os


Imagens de “As
cançõezinhas da
Tila”, Matilde
Rosa Araújo
(Civilização, 1998)




64 • 15 Julho 2007 • Pública
Ilustrar para as crianças
era conforme o que
estava escrito. Não tem
segredo nenhum

desenhos.” Maravilha-se com as possibilida-
des técnicas actuais, mas também com o tra-
balho em conjunto: “O que se está a fazer hoje
é lindo, dantes não havia trabalho de equipa.
O computador é milagroso, mas já não está ao
meu alcance.”
    Relativamente a um outro livro lançado no
final de 2006, “Anjos de Pijama”, continua na
mesma linha: “Não fui eu que fiz. Foi aquele
grupinho que, com um computador, fez tudo.
A Matilde [Rosa Araújo] entregou-me um con-
junto de folhas. Era assim: ‘O menino caiu, fez
um dói-dói e tu-tu-tu-tu...’ Que é que eu vou
fazer a isto? Isto é muito bonito, mas como é
que se monta? Desenhei uma folhinha, um
alecrim, uma mosca e depois pensei: vai-se
somando, acrescentando e, depois, no fim,
faz-se uma apoteose com os bichos todos. E
aquele grupinho fez aquele livro, que é lindo.
Pegaram numa gaivota e fizeram uma gaivota
com duas páginas. Que linda que está a gaivota!
Mas não fui eu, foram eles.”


Fazer azulejo era desprezível
Maria Keil conta em seguida como começou a
trabalhar azulejo numa altura em que era con-
siderado um material menor. “O meu marido
[Francisco Keil do Amaral] era o arquitecto do
metropolitano. Quando chegou a altura de fazer
os cais de embarque, o director, engenheiro Melo
e Castro, disse-lhe: ‘Não tenho dinheiro’.”




                    Pública • 15 Julho 2007 • 65
Desolado por não querer que as estações
ficassem com o chão em cimento e as paredes         As minhas estações
em alvenaria, Francisco Keil chegou a ponde-
rar não avançar com o trabalho: “Então, eu vou
                                                   não são bonitas nem
fazer nove estações, a primeira vez que se faz o   feias. Mas ninguém fez
metro e vão ficar de cimento armado? O que é
que eu faço? Eu não faço esta obra.”
                                                   o trabalho que eu fiz
   Juntos, em conversa no atelier, ainda puse-
ram a hipótese de usar evinel, um mosaico de
pasta de vidro: “Eram aqueles quadradinhos
de vidro, que não prestam para nada, sujavam-
se muito, embora fosse um material lavável.        balho deste tamanho”, diz, fazendo um gesto
Pelo menos podíamos pôr nas entradas.”             de pequenez com os dedos. “Dantes, fazer
   Foi então que se lembraram dos azule-           azulejo era desprezível. Agora, é um negócio
jos. “Ele era amigo dos donos da fábrica de        da China.”
Lamego [Fábrica Cerâmica Viúva Lamego]                “Tem de pensar que estava muito à frente”,
e eles ficaram encantados. Não havia enco-          sugere a Maria Keil a comissária da exposição
mendas, era só para casas de banho. Apanhei        Ju Godinho, que pensa que provavelmente
pancada, não me pagaram nada. Não havia            os responsáveis pela segunda fase do metro
dinheiro, a fábrica é que me pagou como se         desconheciam a assinatura do trabalho da
paga a um operário. Mas, como eram muitas          primeira fase, “não se cultiva a memória nas
encomendas, ainda se fez assim um monti-           empresas”.
nho [de notas]. Apanhei pancada de toda a             Maria Keil continua: “As minhas estações
gente. ‘Ó menina, isso não se faz. Uma pintora     não são bonitas nem feias. Mas ninguém fez o
não se rebaixa a isso.’ Os pintores grandes, os    trabalho que eu fiz, revestir tudo. Fazem um
mestres, não concordavam com aquilo.”              bonitinho aqui, fazem outro bonitinho ali. São
   Ao tentar perceber-se quais as fontes de        artistas! Mas eu não era, era operária. E um dia,
inspiração para criar os painéis, fala-nos         quando foi a segunda parte, chamaram-me do
de pragmatismo e eficácia: “A gente não se          metro. Eu fiquei contente, palavra que fiquei
inspira assim em nada de especial, a gente         contente. Depois chamei-me parva 50 vezes.”
mete-se no assunto, para fazer o nosso tra-           Afinal, não era para lhe darem uma esta-
balho. Era preciso revestir as paredes, não        ção, queriam que desenhasse o retrato do
podia fazer só um bocadinho. Porque a caliça       engenheiro Melo e Castro, entretanto falecido:
sujava-se muito.” Foram anos de grande             “Estavam a fazer uma sala grande de recepções
aprendizagem: “Aprendi uma coisa muito             e queriam pôr os retratos dos presidentes.
estranha. Porque é que tinha acabado o azu-        Como eu tinha conhecido o engenheiro Melo
lejo na arquitectura. Porque é que foi? Por-       e Castro, deram-me um molho de fotografias.
que a arquitectura era nova, era o [Le] Cor-       Eu pensei que era para me darem uma esta-
busier, eram aqueles edifícios enormes, não        ção. Estavam a chamar tudo quanto era gente
se podiam revestir com azulejos. O azulejo é       grande. Artistas com um A deste tamanho”
uma coisa pequenina e frágil, a arquitectura       (abre os braços, expressiva).
não comportava o azulejo. E então o azulejo           Adora contar esta história e pede para que
caiu. Depois, como havia umas paredes bai-         escutemos os pormenores: “Deixe-me contar
xinhas, foi um desabrochar. Uma pouca-ver-         do retrato. Telefonaram-me do metro, se eu
gonha!”, conclui divertida.                        podia ir. O presidente queria falar comigo. Ai
   Uns anos depois, fez-se a segunda parte do      que bom, vão dar-me uma estação. Falou-se
metropolitano, com novas estações: “Nessa          de tudo quanto havia, menos do metro. E eu
altura já era outra gente, já não era o enge-      comecei a pensar: ‘Vou comer o almoço, o
nheiro Melo e Castro. Chamaram os grandes          restaurante é muito bom. Mas não hão-de ter
artistas para fazer azulejo, não me chamaram       ocasião de falar de coisa nenhuma. Conversá-
a mim. Não me deram um bocadinho de tra-           mos, conversámos, até chegar a hora de irmos

                                                                                                       Estudo para painel
                                                                                                       de refeitório de
                                                                                                       colónia de férias de
                                                                                                       Palmela (1954)




66 • 15 Julho 2007 • Pública
embora. Tínhamos de ir para o escritório. Vim
                                    para casa a roer as unhas, fiquei sem saber.
                                    Comi o almoço. Vim para casa danada. Pas-
                                    sado tempo convidaram-me outra vez, outro
                                    almoço. Então para que era? Para pintar o
                                    retrato do engenheiro.”
                                       A dificuldade em pintar o rosto de Melo e Cas-
                                    tro é uma outra história deliciosa e reveladora
                                    de uma sensibilidade e honestidade comoven-
                                    tes: “Pintei o senhor, mas o senhor já não estava
                                    aqui, estavam fotografias. Pintei um retrato
                                    grande, era um senhor nobre com brasões. Mas
                                    não se parecia nada com ele, era uma desgraça.
                                    Ele não estava vivo, não estava ali. Como é que
                                    eu havia de fazer a cara dele com vida? Então,
                                    telefonei para a filha: ‘Passa-se isto assim.’ Para
                                    ela vir cá dizer o que tem a dizer. ‘Eu não consigo
                                    fazer o retrato do seu pai’.”
                                       A filha foi a casa de Maria Keil e confirmou:
                                    “Isto não se parece nada com o meu pai.”
                                    Depois de conversarem um pouco, Maria
Azulejos para                       convidou-a a ficar mais uns instantes: “‘Olhe,
estações do Metro                   sente-se aí.’ Ela sentou-se e eu pintei o retrato
de Alvalade,                        com os olhos da filha, ficou parecido. É que os
Intendente e                        olhos não se podem inventar, não é? Não se
Rossio                              pode inventar a vida das pessoas.”
                                       A entrevista terminou, mas Maria faz ques-
                                    tão de mostrar esse retrato. Das gavetas e
                                    prateleiras vão surgindo obras lindas e ines-
               “O rosto, o corpo,   peradas, reconhecemos algumas dos manuais
               os espelhos, o       da nossa infância, outras não. “Vocês gostam
               resto”               dessa porcaria?”, vai dizendo com sinceridade.
                                    De repente, aparece a imagem de um homem
                                    dentro de um tronco de árvore. “Isto é o Aqui-
                                    lino [Ribeiro]. Pediram que se fizesse o perfil
                                    do Aquilino. Fizeram perfis, um sorriso aqui.
                                    Nomes bons. Não era assim, o Aquilino era uma
                                    árvore. O livro está estragado por causa do meu
                                    desenho. Ninguém desceu a ver o que era o
                                    Aquilino. Era uma árvore, um sobreiro.”
                                       Não conseguiu mostrar o retrato do enge-
                                    nheiro. Não faz mal. “A pessoa não é a cara que
                                    tem. É a vida.” A de Maria Keil, uma provável
                                    ametista. a

                                    “A Arte de Maria Keil”
                                    Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro
                                    (Parque da Cidade)
                                    Até 31 de Julho (das 17h às 20h)
                                    Marcação para escolas (telef. 21-2141319 – 9h30-
                                    12h30, 14h-17h30)




                                                          Pública • 15 Julho 2007 • 67

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Maria Keil em entrevista

  • 1. Maria Keil Artista ou operária? “Menina, não é com a espátula que se pinta. É com o pincel”, disse-lhe um dia Abel Manta. Mas Maria Keil não sabia fazer de outra maneira. Nem queria. Perfil de uma artista invulgar a quem pagaram como operária. Texto de Rita Pimenta Fotografia de Nuno Ferreira Santos 60 • 01 Abril 2007 • Pública Pública • 01 Abril 2007 • 61
  • 2. I lustrou, pintou, escreveu, deste tipo irão repetir-se ao longo da entrevista, desenhou móveis, cenários e ora incomodada com o gravador ora com os figurinos para bailados. Fez disparos do fotógrafo Nuno Ferreira Santos. De publicidade e criou imagens vez em quando, lembra-nos também que não para selos, mas foi no inova- gosta de conversar. A estes “protestos” segue- dor trabalho de azulejaria, se sempre uma curta e afável gargalhada. Até presente em nove estações de que pergunta: “O que é que vão fazer com metro de Lisboa, que Maria isto?” Antes de qualquer resposta, conclui, Keil mais oposição encontrou. num encolher de ombros: “Se eu fosse mais “Isso não se faz. Uma pintora nova ralava-me, agora já não me ralo.” Esta- não se rebaixa a isso”, diziam-lhe os “grandes”, mos a falar de alguém que nasceu há quase como lhes chama. “Agora, o azulejo é um negó- 93 anos (a 9 de Agosto de 1914) e não faz ceri- cio da China.” mónia com a vida. Veio de Silves por indicação de um profes- Na inauguração da exposição (Auditório sor de Desenho da Escola Industrial. “Ele disse Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro) ao meu pai que eu tinha jeitinho e lá vim para Maria Keil tinha afi rmado que sem os ami- as Belas-Artes de Lisboa, nem sabia para onde gos não conseguiria fazer o que fez. “Os é que vinha”, conta Maria Keil à Pública num amigos ajudavam-me através das conver- encontro com a presença dos comissários da sas, do ambiente. Mas não era fácil viver exposição “A Arte de Maria Keil” — Ju Godinho das artes. Era preciso lutar muito. Fui fazer e Eduardo Filipe. publicidade. Apareceu aí um tipo, fugido da Mas não foi em Belas-Artes que aprendeu guerra, [Alfred] Kradolfer, o Fred Kradolfer. o que hoje sabe: “Em três anos que lá estive, Fantástico, trazia um grafismo moderno. Na parece, nunca vi um livro de pintura, de repro- escola não se via nada, não havia coisas para duções. Não se aprendia nada, nadinha.” Per- se aprender e ver o que se fazia lá fora.” cebeu imediatamente que as raparigas que Se acaso tivesse vivido noutro país, não andavam em Belas-Artes tinham como único sabe se o seu trabalho seria mais reconhecido. objectivo “tirar um diploma e governar a vida, Aliás, diz nem sequer saber se ele merece ser queriam ser professoras”. Maria não. reconhecido: “Vocês é que sabem. Eu faço o “Depois apareceu lá aquele menino bonito, que posso.” E pode muito. Da ilustração de que foi o meu marido [Francisco Keil do Ama- livros para a infância, aos painéis de azulejo ral], que me disse: ‘Anda cá para fora que aí não (estações de metro de Areeiro, Picoas, Palhavã, se aprende nada.” E terá sido cá fora, já casada Intendente, Entrecampos, Campo Pequeno, (1933), que aprendeu tudo, com pessoas que Rotunda, Rossio, Parque, painel da Av. Infante continua a considerar formidáveis: “Um grupo Santo), à escrita, ao desenho de móveis e aos de gente, mesmo, mesmo, da frente — pintores, anúncios publicitários, Maria Keil tem um gráficos. Era um mundo aberto. Íamos ali para leque muito alargado de formas de expressão. a Brasileira com os grandes: o Manta, o Diogo Muitos leitores se recordarão das imagens que Macedo, essas pessoas importantes. Ali é que acompanhavam os livros da escola primária se aprendia. E tratavam-me bem.” (como então se chamava). Mas diz que se tor- Depois destas afirmações, aponta para o gra- nou artista plástica porque “calhou”. vador e pergunta: “Isto está a gravar? Ai que Muito exigente quanto ao trabalho produ- desgraça, não gosto nada disto.” Expressões zido, vai recordando como “os grandes” não Íamos para a Brasileira com os grandes. Ali é que se aprendia. E tratavam-me bem Ilustração para “Marcha quási fúnebre”, de Carlos Queiroz; duas ilustrações de “Histórias da minha rua”, de Maria Cecília Correia (1953) 62 • 15 Julho 2007 • Pública
  • 3. apoiavam o seu método e estilo. Porém, parece acabar por interiorizar as críticas que em tem- pos lhe dirigiam. Eis a expressão que mais repete perante obras que menos lhe agradam: “Isto é demasiado gráfico.” E foi justamente no grafismo inovador que se revelou e distinguiu o talento de Maria Keil. O responsável também por ter sido tão criticada. Ao pedido de que olhasse para a sua obra como se pertencesse a outra pessoa, responde: “Há uns trabalhos que não prestam para nada. Há outros assim-assim. Esta época [de imagens depuradas e linhas simples] não gosto nada dela, era muito dura. Era isto que se fazia. Hoje já não faria assim, era um bocadinho gráfico de mais.” Conta então como era vista pelos pintores: “Era uma época muito gráfica. Os chefes, os mestres daquele tempo, não apoiavam isto. Mas era o que eu sabia fazer. Apanhei muita pancada. Por exemplo, o Manta uma vez disse- me: ‘Menina, olhe que não é com a espátula que se pinta. É com o pincel.’ O meu retrato é quase todo feito com espátula, não tem pin- cel quase nenhum. ‘Não é assim que se faz.’ Zangava-se comigo. Mas eu não sabia fazer de outra maneira.” Quando se lhe pergunta se fez alguma coisa que preferia não ter feito, surpreende-nos: “Todas. Tudo aquilo estava mal feito para mim.” Mudava o seu passado? “Claro que mudava. Então alguém está satisfeito com o que fez? Tristes as pessoas que estão satisfeitas com o que fizeram. É muito mau.” No presente, consertava os olhos, pois quase não vê. “Tiraram-me uma catarata e queriam tirar o outro lado e eu disse: ‘Não. Já estragaram um, já estragaram.’ Não vejo quase nada. Mas também tenho 92 anos, já estou aqui a abusar um bocadinho...” O segredo para estar bem é o de ser “sim- plória”. Traduzindo: “É o não ter grandes ambições de ser importante. Não há nada mais Auto-retrato, Óleo sobre tela, Prémio Amadeo Souza- Cardoso (1941) Pública • 15 Julho 2007 • 63
  • 4. triste do que ver uma pessoa a armar-se em Em “A Arte de Maria Keil”, dá-se a conhe- importante. Dá vontade de rir.” Ao dizermos cer três vertentes da sua obra: a ilustração de que Maria é importante, faz-nos saber que não livros para crianças, a pintura e o trabalho de acredita. E ri-se. azulejaria. Originais dos livros e de algumas ilustrações, assim como os estudos para os pai- As pessoas boas néis do metropolitano de Lisboa estão expos- transformam-se em ouro tos até dia 31 de Julho, no Barreiro (das 17h às “A vida é uma coisa complicada mas ao mesmo 20h). Além da Câmara Municipal do Barreiro, tempo é simples. Cada um é como é. Acho que a mostra e a produção dos catálogos contaram não se pode fabricar, senão... A coisa fun- com a colaboração da Biblioteca Nacional, do damental é nós sermos honestos connosco Museu Nacional do Azulejo e do Metropolitano mesmo. Não fazer batota connosco. Não é fácil. de Lisboa. Fundamental é ter-se respeito a si próprio. Não Modesta, a artista plástica responde assim à acha? A gente vai pela vida fora, vai fazendo pergunta sobre se gosta da exposição: “Eu não coisas quando vem a propósito. Tem cuidado gosto, eu acho que é mal empregada em mim. para não ser chata para os outros. Dá muito Está boa de mais. Está uma coisa linda, nunca trabalho. E depois chega-se ao fim e a gente pensei. Foram buscar aquilo ali às gavetas. Há vai-se embora. Depois começa-se a pensar: o que tempos que aquilo estava ali fechado. Está que é que vai ser de mim debaixo do chão? Vou- bonita, está. Está muito bem.” me transformar em qualquer coisa. Não sei em Parceira de autoria desde cedo com Matilde quê, mas aquilo tudo junto, se calhar há ouro Rosa Araújo, considera que ilustrar livros por causa disso, das pessoas boas que foram para crianças não tem segredo: “Ilustrar para enterradas. Transformaram-se em ouro. Para as crianças era fazer conforme o que estava que é que lhes servia ser boas? Para alguma escrito. Para que é que nós ilustramos as coi- coisa havia de ser. O ouro, as pedras preciosas sas? É para ilustrar o que está escrito. Não tem são as pessoas boas que morreram e se trans- segredo nenhum, nem procura nenhuma, fazia formaram. As outras desaparecem.” o que tinha de fazer. Por exemplo, aquele livro Agora, é Keil quem faz as perguntas: “O da construção [“Pau de Fileira”]. De manhã, que é que acha que foi feito das valas comuns levantava-me, ia para a janela da cozinha e lá do Hitler? Que material é que lá ficou dentro, em baixo havia um fosso enorme, que eles daqueles milhares de pessoas? Com certeza iam escavando para fazer um prédio. Achei não se perderam. O que é que ficou? Uma pasta que valia a pena aproveitar, não tinha outra que com o tempo se vai transformando em cris- ocasião de ver fazer um prédio. Fiz aquilo tudo tal de rocha, coisas bonitas, de vez em quando e bateu certo.” aparece uma ametista. Deve ser. Pelo menos, é Sobre o livro mais recente que publicou, o que compensa de andar no mundo e pensar com texto de João Paulo Cotrim, “A Árvore que aquilo serviu para alguma coisa.” Que Dava Olhos”, revela mais uma vez a sua Sugere-se: porque não ilustra esta ideia que generosidade: “Não me fale nisso. Eu dei-lhe tão bem descreveu? “Tenho mais que fazer!” uns desenhos para ele deitar fora e ele fez Acaba por dizer depois que a tem escrita e aquele livro que está tão jeitoso. Aquilo foram guardada. eles que fizeram, não fui eu. Aumentaram os Imagens de “As cançõezinhas da Tila”, Matilde Rosa Araújo (Civilização, 1998) 64 • 15 Julho 2007 • Pública
  • 5. Ilustrar para as crianças era conforme o que estava escrito. Não tem segredo nenhum desenhos.” Maravilha-se com as possibilida- des técnicas actuais, mas também com o tra- balho em conjunto: “O que se está a fazer hoje é lindo, dantes não havia trabalho de equipa. O computador é milagroso, mas já não está ao meu alcance.” Relativamente a um outro livro lançado no final de 2006, “Anjos de Pijama”, continua na mesma linha: “Não fui eu que fiz. Foi aquele grupinho que, com um computador, fez tudo. A Matilde [Rosa Araújo] entregou-me um con- junto de folhas. Era assim: ‘O menino caiu, fez um dói-dói e tu-tu-tu-tu...’ Que é que eu vou fazer a isto? Isto é muito bonito, mas como é que se monta? Desenhei uma folhinha, um alecrim, uma mosca e depois pensei: vai-se somando, acrescentando e, depois, no fim, faz-se uma apoteose com os bichos todos. E aquele grupinho fez aquele livro, que é lindo. Pegaram numa gaivota e fizeram uma gaivota com duas páginas. Que linda que está a gaivota! Mas não fui eu, foram eles.” Fazer azulejo era desprezível Maria Keil conta em seguida como começou a trabalhar azulejo numa altura em que era con- siderado um material menor. “O meu marido [Francisco Keil do Amaral] era o arquitecto do metropolitano. Quando chegou a altura de fazer os cais de embarque, o director, engenheiro Melo e Castro, disse-lhe: ‘Não tenho dinheiro’.” Pública • 15 Julho 2007 • 65
  • 6. Desolado por não querer que as estações ficassem com o chão em cimento e as paredes As minhas estações em alvenaria, Francisco Keil chegou a ponde- rar não avançar com o trabalho: “Então, eu vou não são bonitas nem fazer nove estações, a primeira vez que se faz o feias. Mas ninguém fez metro e vão ficar de cimento armado? O que é que eu faço? Eu não faço esta obra.” o trabalho que eu fiz Juntos, em conversa no atelier, ainda puse- ram a hipótese de usar evinel, um mosaico de pasta de vidro: “Eram aqueles quadradinhos de vidro, que não prestam para nada, sujavam- se muito, embora fosse um material lavável. balho deste tamanho”, diz, fazendo um gesto Pelo menos podíamos pôr nas entradas.” de pequenez com os dedos. “Dantes, fazer Foi então que se lembraram dos azule- azulejo era desprezível. Agora, é um negócio jos. “Ele era amigo dos donos da fábrica de da China.” Lamego [Fábrica Cerâmica Viúva Lamego] “Tem de pensar que estava muito à frente”, e eles ficaram encantados. Não havia enco- sugere a Maria Keil a comissária da exposição mendas, era só para casas de banho. Apanhei Ju Godinho, que pensa que provavelmente pancada, não me pagaram nada. Não havia os responsáveis pela segunda fase do metro dinheiro, a fábrica é que me pagou como se desconheciam a assinatura do trabalho da paga a um operário. Mas, como eram muitas primeira fase, “não se cultiva a memória nas encomendas, ainda se fez assim um monti- empresas”. nho [de notas]. Apanhei pancada de toda a Maria Keil continua: “As minhas estações gente. ‘Ó menina, isso não se faz. Uma pintora não são bonitas nem feias. Mas ninguém fez o não se rebaixa a isso.’ Os pintores grandes, os trabalho que eu fiz, revestir tudo. Fazem um mestres, não concordavam com aquilo.” bonitinho aqui, fazem outro bonitinho ali. São Ao tentar perceber-se quais as fontes de artistas! Mas eu não era, era operária. E um dia, inspiração para criar os painéis, fala-nos quando foi a segunda parte, chamaram-me do de pragmatismo e eficácia: “A gente não se metro. Eu fiquei contente, palavra que fiquei inspira assim em nada de especial, a gente contente. Depois chamei-me parva 50 vezes.” mete-se no assunto, para fazer o nosso tra- Afinal, não era para lhe darem uma esta- balho. Era preciso revestir as paredes, não ção, queriam que desenhasse o retrato do podia fazer só um bocadinho. Porque a caliça engenheiro Melo e Castro, entretanto falecido: sujava-se muito.” Foram anos de grande “Estavam a fazer uma sala grande de recepções aprendizagem: “Aprendi uma coisa muito e queriam pôr os retratos dos presidentes. estranha. Porque é que tinha acabado o azu- Como eu tinha conhecido o engenheiro Melo lejo na arquitectura. Porque é que foi? Por- e Castro, deram-me um molho de fotografias. que a arquitectura era nova, era o [Le] Cor- Eu pensei que era para me darem uma esta- busier, eram aqueles edifícios enormes, não ção. Estavam a chamar tudo quanto era gente se podiam revestir com azulejos. O azulejo é grande. Artistas com um A deste tamanho” uma coisa pequenina e frágil, a arquitectura (abre os braços, expressiva). não comportava o azulejo. E então o azulejo Adora contar esta história e pede para que caiu. Depois, como havia umas paredes bai- escutemos os pormenores: “Deixe-me contar xinhas, foi um desabrochar. Uma pouca-ver- do retrato. Telefonaram-me do metro, se eu gonha!”, conclui divertida. podia ir. O presidente queria falar comigo. Ai Uns anos depois, fez-se a segunda parte do que bom, vão dar-me uma estação. Falou-se metropolitano, com novas estações: “Nessa de tudo quanto havia, menos do metro. E eu altura já era outra gente, já não era o enge- comecei a pensar: ‘Vou comer o almoço, o nheiro Melo e Castro. Chamaram os grandes restaurante é muito bom. Mas não hão-de ter artistas para fazer azulejo, não me chamaram ocasião de falar de coisa nenhuma. Conversá- a mim. Não me deram um bocadinho de tra- mos, conversámos, até chegar a hora de irmos Estudo para painel de refeitório de colónia de férias de Palmela (1954) 66 • 15 Julho 2007 • Pública
  • 7. embora. Tínhamos de ir para o escritório. Vim para casa a roer as unhas, fiquei sem saber. Comi o almoço. Vim para casa danada. Pas- sado tempo convidaram-me outra vez, outro almoço. Então para que era? Para pintar o retrato do engenheiro.” A dificuldade em pintar o rosto de Melo e Cas- tro é uma outra história deliciosa e reveladora de uma sensibilidade e honestidade comoven- tes: “Pintei o senhor, mas o senhor já não estava aqui, estavam fotografias. Pintei um retrato grande, era um senhor nobre com brasões. Mas não se parecia nada com ele, era uma desgraça. Ele não estava vivo, não estava ali. Como é que eu havia de fazer a cara dele com vida? Então, telefonei para a filha: ‘Passa-se isto assim.’ Para ela vir cá dizer o que tem a dizer. ‘Eu não consigo fazer o retrato do seu pai’.” A filha foi a casa de Maria Keil e confirmou: “Isto não se parece nada com o meu pai.” Depois de conversarem um pouco, Maria Azulejos para convidou-a a ficar mais uns instantes: “‘Olhe, estações do Metro sente-se aí.’ Ela sentou-se e eu pintei o retrato de Alvalade, com os olhos da filha, ficou parecido. É que os Intendente e olhos não se podem inventar, não é? Não se Rossio pode inventar a vida das pessoas.” A entrevista terminou, mas Maria faz ques- tão de mostrar esse retrato. Das gavetas e prateleiras vão surgindo obras lindas e ines- “O rosto, o corpo, peradas, reconhecemos algumas dos manuais os espelhos, o da nossa infância, outras não. “Vocês gostam resto” dessa porcaria?”, vai dizendo com sinceridade. De repente, aparece a imagem de um homem dentro de um tronco de árvore. “Isto é o Aqui- lino [Ribeiro]. Pediram que se fizesse o perfil do Aquilino. Fizeram perfis, um sorriso aqui. Nomes bons. Não era assim, o Aquilino era uma árvore. O livro está estragado por causa do meu desenho. Ninguém desceu a ver o que era o Aquilino. Era uma árvore, um sobreiro.” Não conseguiu mostrar o retrato do enge- nheiro. Não faz mal. “A pessoa não é a cara que tem. É a vida.” A de Maria Keil, uma provável ametista. a “A Arte de Maria Keil” Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro (Parque da Cidade) Até 31 de Julho (das 17h às 20h) Marcação para escolas (telef. 21-2141319 – 9h30- 12h30, 14h-17h30) Pública • 15 Julho 2007 • 67