1. Entrevista ADRIANA BARBOSA DANIELA GOMES E MARIANA ANAST ÁCIO
A Feira não é um gueto
A organizadora de eventos afirma que 97% do público que freqüenta a Feira Preta é
negro, mas a proposta é atrair outras etnias
C
oordenadora da maior Feira de
Cultura Negra da América Latina,
Adriana Barbosa, 33 anos,
resolveu empreender em um
evento que pretende tornar-se vitrine para
toda a sociedade. A paulistana formada em
Gestão de Eventos pela Universidade
Anhembi Morumbi ini-ciou sua carreira como
divulgadoramusical. Ao ser demitida e passar
por dificuldades financeiras, decidiu montar
o Brechó da Troca em feiras de rua. Motivada
a ampliar o projeto, criou em 2002 a Feira
Preta, um evento totalmente voltado para a
cultura negra. Após abaixo-assinado e vítima
de racismo por parte da Associação de mora-
dores da Praça Benedito Calixto, a festa que
reúne negros e brancos foi migrando até fixar-
se no Espaço Imigrantes. Nessa entrevista,
Adriana revela como é gratificante respirar
cultura negra.
Como surgiu a idéia de criar a
Feira Preta? A dificuldade econômica
me impulsionou a montar um brechó com
minhas roupas e assessórios usados em
uma feira de rua comum. Depois de ser
vítima de um arrastão, resolvi criar meu
próprio projeto, um empreendimento
cultural. A proposta era ter um formato
muito parecido com as feiras de rua, mas
segmentado para a cultura negra. Começou
na Praça Benedito Calixto, longe da
periferia. Era um evento gratuito, ao ar
livre, com expositores, palco, cinema. Na
medida em que o evento foi crescendo, a
“É nítido que ainda
Associação de moradores local começou a existe
se incomodar com nossa música e
costumes; um clássico de racismo. Foi feito um abismo entre o
um abaixo-assinado que nos obrigou a sair
daquele local. Mesmo com a mobilização mundo
de mais de três mil assinaturas, não
dos negros e o mundo
MARIANA ANASTÁCIO
conseguimos permanecer. Fomos migrando
para outros espaços, até chegar ao
Anhembi em 2006, onde a Feira deixou de dos brancos”
ser de rua, para ser feira de pavilhão. O
fomato mudou, mas o conceito
permaneceu. Hoje estamos no Espaço
Imigrantes que tem uma estrurura melhor
para o nosso público.
veja/universidade cruzeiro do sul I 26 DE MAIO, 2011 I 17
2. Entrevista ADRIANA BARBOSA
No formato de feira de rua “Em 10 anos
havia apoio da Prefeitura? No contemplado pelo Programa de Ação
primeiro ano tínhamos o apoio da aconteceram muitas Cultural da Secretaria de Estado da
Prefeitura de São Paulo e Cultura de São Paulo, juntamente com
Coordenadoria dos Assuntos transformações para o a subvenção da Embaixada da
Especiais da População Negra Espanha e Rede AECID e foram
(CONE). Quando fomos para o movimento negro: realizadas 10 edições mensais na Casa
Anhembi nós não conseguimos das Caldeiras, FNAC Pinheiros e
isenção do pagamento do espaço. as cotas, o Barack Centro Cultural São Paulo com entrada
Não haviam patrocinadores e a gratuita em todas as edições e locais,
prefeitura era incapaz de manter essa Obama, e a Feira reunindo um público médio por edição
estrutura. Tivemos que encontrar
formas para que a Feira pudesse se
sustentar financeiramente. Hoje ela se
foi acompanhando ” de 300 pessoas..
Como é o processo para trazer
auto mantém em 60, 70%. Os outros 30 expositores? Mapeamos
ou 40%, nós buscamos fora. expositores que tenham o perfil
desejado: produtos voltados pra uma
Como é a divulgação do estética negra. O expositor não
projeto? Deixamos um espaço precisaria ser necessariamente negro,
aberto para que o público decida mas sim trabalhar com a temática
quem e o que quer ver, assim, todos negra. Alguns deles estão conosco
estão diretamente ligados ao sucesso desde o ínicio.
do evento. Muitas das 14 mil pessoas
O Instituto já foi lesada por
vieram por conta do boca a boca e tentamos trazer elementos para que as algum patrocinador? Em 2010 a
das redes sociais. Isso é uma pessoas da terceira idade venham e Fundação Palmares se comprometeu a
particularidade dos eventos negros. possam contar as esperiências das arcar com a programação cultural da
Você não vê nas grandes mídias, na gerações delas. Exposição da Barbie Black e até agora
Globo. Nós temos parceria com a
não recebemos. Quem ajudou a pagar
revista Raça, compramos mídia da
O sucesso da Feira Preta foi a exposição foi o publico. Até foi feito
Rádio 105, da Transcontinental, mas
imediato? Quando houve a um acordo para antecipar o
para atrair outros públicos, também
necessidade de dedicar-se pagamento da exposição, mas só
deveríamos comprar na Nova FM, na
integralmente ao projeto? Logo conseguimos pagar depois do evento.
Eudorado, na Folha de São Paulo, e
no primeiro ano tivemos um público
isso nós ainda não temos recurso Quais as expectativas para a
de cinco mil pessoas que queriam
para investir. conhecer nossa proposta. Começou a próxima Feira Preta? Esse ano
tomar uma dimensão muito grande, são 10 anos de Feira Preta. Estamos
Qual o obejtivo do Instituto
então houve a necessidade de buscar na expectativa em relação ao espaço,
Feira Preta? É nossa sede e espaço
cada vez mais novidades para atrair ao conteúdo, de fazer uma
cultural de difusão e preservação retrospectiva. Teve um público que
artística da cultura negra, na Vila mais pessoas e mais expositores.
Desde 2007 me dedico integralmente à amadureceu com a Feira Preta, que foi
Madalena. Temos artesanato, moda,
Feira e ao Insituto. na primeira e tem 10 anos de história
música, saraus, cursos livres na área
dentro do evento. Nós queremos dar
de gestão cultural e eventos. São
O que são as Pílulas de a voz, deixar o microfone aberto para
várias as atividades que concentram-
Cultura? São ações de cultura negra, o público falar. Temos um projeto
se no Insituto. É aberto ao público, realizadas ao longo do ano, em tramitando na Lei de Incentivo à
expositores e artistas, para que parceria com a Casa das Caldeiras. O Cultura, caso seja aprovado, vamos
possam comprar e expor produtos
intuito do projeto é levar lançar um livro com imagens, um
voltados para a estética negra. manifestações artísticas, voltadas para documentário e uma exposição que
a cultura negra contemporânea que descreverão toda a nossa história. Na
Existe a preocupação apenas normalmente não estão presentes nos última década aconteceram muitas
com o público jovem ou o grandes circuitos culturais e ao transformações para o movimento
evento é voltado para todas as mesmo tempo provocar uma reflexão negro: as cotas, Barack Obama, e a
idades? Em mais de100 anos a sobre o espaço que a cultura negra Feira Preta foi acompanhando.
realidadefinalmente mudou. Quem era tem ocupado na sociedade brasileira.
escravo conquistou a liberdade. Nós No ano passado esse projeto foi Qual foi o maior desafio
veja/universidade cruzeiro do sul I 26 DE MAIO, 2011 I 18
3. enfrentado durante os 10 anos
“A Feira é um espaço na área de cultura, mas também na
de Feira Preta? Por ser um projeto de libertação área de empreendedorismo. Existem
que gera somente 60% do orçamento,
muitas micro empresas e micro
nós investimos grande parte do
tempo pensando em formas de
dos nossos empresários que surgiram na Feira
Preta. Em relação à cultura, os artistas
captação de recursos. Existe todo um
processo de negociação com o
antepassados, sabem que têm uma vitrine para se
apresentar. Muitos deles se
expositor, de comunicação, precisa de
equipe. Na Feira Preta hoje, 97% do
das nossas dores. descobriram depois da Feira. As
pessoas se mostram, colocam suas
publico é negro. Isso não é ruim, quer
dizer que o negro se apropriou de uma
É um espaço que a melhores roupas, seus melhores
cultura que é peculiar a ele. Mas
também queremos trazer outras etnias, gente é o que é ” penteados. Isso é um passo muito
importante de afirmação, de
identidade, de orgulho em dizer que é
se não se transforma em um gueto,
que não é a proposta da Feira Preta. negro, de enfrentamento, de
Queremos ser vitrine para toda a posicionamento. Quem vai pela
sociedade. Além disso, na medida em primeira vez observa tudo aquilo e se
que atraímos outras etnias, temos pergunta onde estão aqueles negros .
mais patrocinadores, afinal, o lindos. Eles estão camuflados com
expositor não quer atrair apenas um suas roupas e cabelos sem vida. É na
grupo expecífico de pessoas. nossa festa que acontece a libertação.
Qual o diferencial da Feira
O preconceito ainda fecha Preta em relação aos outros
muitas portas para o projeto? que nós ficamos endividados e só eventos de cultura negra?
As empresas ainda estão despertando conseguimos terminar de pagar no Existem poucas similares à Feira Preta
para esse segmento. As pessoas têm outro ano. Algumas pessoas e as que existem são baseadas no
seus preconceitos e cabe à raça negra reclamam por ter que pagar para entrar nosso projeto. Ao contrário dos
mostrar seu valor. Muitos negaram na Feira, mas existe toda uma outros, o nosso é contínuo. Mas o
.
por ser um evento de preto. um estrutura para ser montada: aluguel grande diferencial é a disponibilidade
processo de reeducação, de do espaço, seguro, expositores, em estar pensando nela 24 horas.
amadurecimento. Nós trabalhamos em comunicação, artistas. São dez horas Fomos nós que criamos o primeiro
conscientização. Por mais que não de múltiplas manifestações que empreendimento voltado para o
queiram patrocinar, nós mostramos o envolvem um grande planejamento. público negro.
projeto, as peculiaridades do negro e Eu adoraria fazê-la de graça, mas hoje
qual nossa proposta de inclusão. não temos um governo local que dê Qual a maior motivação para
Nossa vivência e percepção do isso ao público negro. prosseguir com o projeto? É um
mundo faz a diferença no mercado. projeto que propicia a troca de
relações. Os negros são donos da sua
De que forma a Feira preta Como é a negociação com os
própria historia, do seu próprio
tenta diminuir o preconceito artistas que se apresentam na
destino. O que me move a fazer a Feira
mútuo? Na medida em levamos Feira? Alguns apresentam-se de
é saber o quanto isso impacta na vida
artistas, intelectuais, pesquisadores, graça, mas temos que garantir pelo
das pessoas. Muitos casais se
para falar dessa temática, estamos menos o básico: alimentação e
formaram a partir da Feira, crianças
abrindo para a sociedade, falando transporte. Outros se propõem a
nasceram, laços de amizade se
vamos para de estereótipo, vamos cobrar menos para que não seja
formaram, artistas se descobriram. É o
viver de uma forma normal. Dentro necessário aumentar o valor da
momento de afirmação.
das nossas estratégias de bilheteria. É uma preocupação garantir
comunicação, nós tentamos nos a qualidade do que está sendo Qual frase definiria a Feira
comunicar com o público não negro. apresentado no evento. É um Preta? É o encontro de gerações, de
ivestimento que custa muito para nós,
sonhos, de libertação. A Feira é um
Houve algum ano em que não mas seria insignificante para o poder
público. espaço de libertação dos nossos
foi possível realizar a Feira
Preta? Todos os anos nós temos antepassados, das nossas dores. É
dificuldades e dá vontade de desistir, A Feira Preta trouxe muitas um espaço que a gente é o que é. Tem
mas é pelo nosso comprometimento mudanças na Cultura Negra? uma energia que acontece lá e que é
que nós continuamos. Já teve ano Influenciou e ainda influencia não só muito forte.
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