As três frases resumem o documento da seguinte forma:
1) Os dados da pesquisa mostram que a maioria dos jovens de Belo Horizonte se declara católica, porém há um crescimento dos evangélicos, sem religião e outras religiões.
2) Embora a família ainda seja a principal influência na escolha da religião, um número significativo de jovens escolhe sua fé por motivos pessoais, indicando maior autonomia individual.
3) As crenças religiosas dos jovens que se declaram
A Face Oculta Da TransferêNcia De Renda Para Jovens No Brasil
Religião e juventude: modulações e articulações na pesquisa com jovens de Belo Horizonte
1. DA RELIGIÃO E DE JUVENTUDE:
MODULAÇÕES E ARTICULAÇÕES
Léa Freitas Perez
As minhas palavras surpreendem-me a mim próprio
e me ensinam o meu pensamento.
Merleau-Ponty
As temáticas da religião e da juventude têm assumido nos
tempos atuais uma inusitada centralidade1. Afinal, acreditava-se
que o mundo havia sido desencantado e que, assim, a religião
estava ou bem morta ou bem reduzida a um assunto de foro ínti-
mo. Acreditava-se igualmente que o jovem, imaginado segundo
a figura do contestador cultural e/ou militante político dos anos
1960-1970, não se interessava por religião, mas por política.
Ora, o que se vê hoje é o flagrante desmentido dessas cren-
ças (pois trata-se de suposições calcadas em modos de pensa-
mento e em regimes de verdade, tomados como habituais, logo
não contestados e, no mais da vezes, desapercebidos) por um
inesperado retour des choses2.
A religião mostra estar bem viva e atuante, tanto na esfera
privada como na esfera pública, situando-se, para surpresa de
muitos, entre o civil e os fins últimos. Ser jovem (belo e malhado)
é um valor cardinal na cultura de consumo3. Seu papel na socie-
dade é objeto de reflexões e de polêmicas. A juventude, desdo-
brada em “problema social” e em “questão sociológica” recebe
especial atenção das políticas públicas e também das ciências
1 Para um revisão da literatura sobre juventude e religião veja-se Tavares e Ca-
murça, 2004.
2 Vale relembrar a arguta observação de Otávio Velho segundo a qual “boa parte
das crenças (em sentido amplo) com que lidamos em nossa sociedade e so-
bretudo em nossa época não possui a solidez dos manuais pois (e isso é da or-
dem da impossibilidade) não podem se manter imunes às vicissitudes da histó-
ria concreta” (1995, p. 176, 177).
3 Para uma história da noção de juventude e seu papel na modernidade, entre
outros: Ariès, 1986.
2. 2 Léa Freitas Perez
sociais, nas quais os estudos sobre juventude têm constituído
um campo em franca expansão. Os jovens (para espanto de mui-
tos que ainda insistem em pensar que juventude é mera rebeldia
sem causa ou agência de utopias e de projetos de tansforma-
ção) demonstram um vivo interesse pela religião, que, diga-se
de passagem, muitos persistem em tratar como alienação en-
clausurante. O fato é que a juventude contemporânea interes-
sa-se muito mais por religião do que pela política.
Queiramos ou não, é preciso pensar tanto a religião quanto
a juventude, quer em separado, quer em par, visto que ambos os
temas, cada vez mais, marcam presença na vida e nos debates
contemporâneos. Mas, afinal, do que estamos falando quando
nos referimos à religião e à juventude? Que modulações e articu-
lações esse par compõe? É sobre isso que este pequeno exercí-
cio, de caráter assumidamente experimental, quer tecer algu-
mas observações conceituais a partir do diálogo com dados em-
píricos oriundos da pesquisa “Pesquisa Religião, Cultura e Políti-
ca entre a Juventude de Minas Gerais”4.
*
Os dados da pesquisa apontam fatos e indicam tendências
muito interessantes, que possibilitam indagações a respeito de
algumas modulações e articulações entre o par juventude-reli-
gião. Peço, então, a complacência do leitor para apresentar
algumas evidências empíricas.
Em primeiro lugar, cabe observar que os resultados gerais
da pesquisa confirmam em suas linhas gerais as tendências ob-
servadas no último Censo, bem como o de outras pesquisas so-
bre juventude e religião5.
Em termos de pertencimento religioso, o grupo pesquisa-
do, formado por estudantes do terceiro ano do ensino médio da
rede pública estadual de Belo Horizonte, é majoritariamente ca-
tólico (67,4%). Todas as outras confissões somadas perfazem
32,5%6.
4 Sobre a pequisa e seus primeiros resultados, consulte-se: Tavares et alli, 2004
e Perez et alli, 2004.
5 Sobre outras pesquisas sobre juventude e religião veja-se, entre outros: Novais,
2002 e 2004; e Debates do Ner, 2001.
6 O grupo belohorizontino embora seja majoritariamente católico, o é em percen-
tual menor do que o do Estado de Minas como um todo: 79,40%. Para o Esta-
do, todas as outras confissões somadas atingem 18,3%. Segundo o Censo de
2000, 77,3% dos brasileiros são católicos, uma diminuição percentual em rela-
ção ao Censo de 1991, no qual declaram-se católicos 83,76%. Entre os minei-
ros, de acordo com o Censo de 2000, 78,89% são católicos, sendo Minas o
Estado mais católico da região sudeste. Na pesquisa “Perfil da juventude brasi-
leira”, 65,0% dos entrevistados em todo o país declararam-se católicos (Novais,
2004).
3. Cadernos IHU Idéias 3
Além da prevalência do catolicismo, em Belo Horizonte, ob-
servam-se três outras tendências evidenciadas para o Brasil: o
crescimento do campo evangélico, dos sem religião e de outras
religiões. Na declaração de pertencimento religioso de nossos
jovens, o segundo lugar é ocupado pelos protestantes (12,0%) e
o terceiro pelos pentecostais (9,0%)7. Os sem religião são 8,9%8.
Entre os jovens metropolitanos, 6,4% declaram-se de outras reli-
giões9. Mesmo que haja um crescimento dos sem religião, a
maioria desses jovens tem religião: 91,1%10.
Esses números apontam para algumas das características
mais salientes do campo religioso na contemporaneidade: sua
composição nitidamente diversa, o evidente declínio da hege-
monia católica, mas sem perda de sua franca preponderância, e
a maior expressão dos sem religião.
Os dados indicam uma diminuição do número de católicos
relativamente ao aumento do tamanho das cidades, o inverso
acontecendo com outras religiões, notadamente o protestantis-
mo e o pentecostalismo11. Como bem observam Fátima Tavares
e Marcelo Camurça, os jovens mineiros comprovam que Minas
Gerais “e, mais marcadamente seu interior ainda é um reduto da
Religião Católica” (Tavares et alli, 2004, p. 65).
Ainda no campo do pertencimento religioso, nota-se diver-
sidade também na transmissão religiosa. Para 53,2% dos jovens
da capital, os pais são a influência mais marcante em termos de
escolha da religião12. Registre-se ainda que a família é a institui-
ção apontada como a mais importante em suas vidas (82,0%),
seguida pelo trabalho (57,6%) e pela religião (56,1%)13. No en-
tanto, é bastante expressiva a escolha da religião por motivos
pessoais: 37,8%14.
7 No Estado, cai o percentual de jovens protestantes (7,70%) e de jovens pente-
costais (6,0%). Na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, 22,0% dos jovens
declararam-se evangélicos, sendo 25,0% pentecostais (Novais, 2004). Segun-
do o último Censo 15,4% dos brasileiros são evangélicos.
8 Caindo para 5,1% no Estado. Segundo os Censos, em 1980, 1,6% dos brasilei-
ros não tinha religião, percentual que aumenta vigorosamente, atingindo a cifra
de 7,3% em 2000. De acordo com a pesquisa “Perfil da juventude brasileira”,
11,0% dos jovens entrevistados no Brasil declarou-se sem religião (Novais,
2004).
9 Entre jovens os mineiros como um todo, os de outras religiões são 4,3%. Se-
gundo o Censo de 2000, 3,5% dos brasileiros têm outras religiões.
10 94,9% dos jovens no Estado declaram ter religião.
11 A este respeito consulte-se Tavares et alli, 2004.
12 Para 61,1% dos jovens do Estado, a família é a maior influência na escolha da
religião. Para os jovens cariocas esse percentual é de 58,1% (Novais e Mello,
2002).
13 Para o Estado, a ordem é a seguinte: família (83,1%); religião (59,8%º) e traba-
lho (56,1%).
14 Para o Estado, 31,5% escolheram a religião por motivos pessoais.
4. 4 Léa Freitas Perez
Sobre a importância da família e da religião um jovem evan-
gélico, atuante em sua religião, assim se expressou15:
Minha religião é muito assim, a base da minha vida, sabe,
além da minha família.
Sobre a escolha da religião dois depoimentos são ilustrativos:
Meus pais também são cristãos, vão à Igreja Metodista tam-
bém, mas foi escolha própria eu ter começado a ir à igreja,
porque meus pais já iam, eles nunca me obrigaram a ir na
igreja. Foi escolha própria, entendeu?
Sou católica. Vou à igreja sempre, ajuda muito a igreja. Já
conheci outras religiões, já fui na igreja evangélica...
Gostei muito lá porque eles louvam, essas coisas... e não
fica naquela mesmice, então eu gosto. Mas eu gosto mes-
mo da minha religião e me sinto bem. […] Meu pai, ele não
pratica, mas ele acredita em Deus. Minha mãe é católica e
não aceita que eu mude de religião. Já falei que essa esco-
lha é minha e que ela não tem nada com isso.
Os dados sugerem que estamos diante de uma outra mo-
dulação de transmissão religiosa, mesmo em um Estado nitida-
mente religioso e fundamentalmente católico como Minas Gerais.
Não se pode negar que se trata aqui da ação pedagógica da fa-
migerada “tradicional família mineira”, em articulação com o ca-
tolicismo em sua face de “religião da família brasileira” (Novais,
2004, p. 277). Entretanto, igualmente não se pode negar que,
para os nossos jovens, a religião já não é mais exclusivamente
uma herança familiar, isto é, a escolha individual tem um peso
que não é negligenciável. Todavia, é ainda inegável que esses
jovens escolhem sua religião em um campo religioso plural e
competitivo e mantêm-se majoritariamente católicos, seguindo a
religião de seus pais. Vale dizer, portanto, que tradição familiar e
religiosa modulam-se com autonomia individual, evidenciando
os marcos sociológicos nos quais se insere a vivência da religião
pela juventude contemporânea.
Um outro conjunto de dados sugestivos diz respeito às
crenças religiosas dos jovens belorizontinos. Quando se cruza
crença com ter ou não religião, evidencia-se que se declarar sem
religião não necessariamente implica ausência de crenças reli-
giosas, pelo contrário. Pode-se mesmo delimitar, tomando de
empréstimo a expressão de Regina Novais, um claro segmento
de “religiosos sem religião” (2004, p. 272). O quadro de crenças
dos sem religião é nitidamente menos católico, mais variado,
15 Todos os depoimentos de jovens aqui transcritos foram obtidos durante a reali-
zação de grupos focais com estudantes do terceiro ano do ensino médio da
rede pública estadual de Belo Horizonte.
5. Cadernos IHU Idéias 5
sincrético mesmo16. O quadro de crenças dos que declaram ter
religião, embora seja mais católico, não o é em exclusividade17.
Quando se cruza crença e pertencimento religioso, o que
desde logo sobressai é a sintonia entre crença e religião confes-
sada. Esses jovens sabem do que estão falando quando falam
em/de religião. Posicionam-se ativamente e criticamente em re-
lação ao corpo doutrinal de suas religiões, que deixa rastros in-
deléveis em certas opiniões acerca de temas da atualidade, nota-
damente aqueles que dizem respeito à moral e à sexualidade. Fá-
tima Tavares e Marcelo Camurça notam, com razão, que nesses
campos “a religião é uma variável importante” (2004, p. 16).
Uma jovem auto-declarada kardecista assim se posicionou
relativamente à homossexualidade:
Com a minha religião, não concordo com isso. Porque não
é errado. A pessoa vai casar com uma mulher, viver o resto
da vida infeliz, porque a sociedade ou alguma religião fala
que é errado!
Argumenta ela:
A minha, como a maioria das religiões, fala que se nasceu
homem, se nasceu mulher, é pra procriar entendeu? Então
homem com homem não vai procriar, então não tem jeito
deles se relacionarem. É meio complicado explicar isso.
Mas eles acham errado mulher com mulher, homem com
homem. Na minha religião se fala que isso é errado. É uma
coisa que eu não concordo, entendeu?
A relação crítica com sua religião modula-se-se com experi-
mentalismo. Uma jovem católica declarou:
Eu gosto de outras religiões. Já ouvi muitas coisas sobre o
espiritismo. Eu acho bastante interessante esse negócio de
reencarnação. Já ouvi algumas coisas sobre isso. Mas, as-
sim, tem certas coisas na minha religião com as quais eu
não concordo.
Um evangélico disse:
Gosto muito de conhecer outras religiões, sabe? Informa-
ção para mim nunca é demais. Gosto muito de conhecer a
opinião de outras pessoas, o que elas pensam, entendeu?
Não tenho nada contra as outras religiões, nada, nada
mesmo...
16 Virgem Maria e santos, crenças nitidamente católicas, ocupam posições infe-
riores, respectivamente 7º e 8º lugares em Belo Horizonte; 6º e 7º para o Esta-
do. O 1º lugar em Belo Horizonte e no Estado, entre os sem religião, é ocupado
pela crença em anjos/demônios.
17 Tanto na capital quanto no Estado, entre os que têm religião, a crença em mila-
gres vem em 1º lugar. Opera-se uma interessante mudança nos 2º e 3º lugares.
No Estado, temos Virgem Maria em 2º e santos em 3º. Em Belo Horizonte, an-
jos/demônios vêm em 2º, Virgem Maria aparecendo em 3º, enquanto os santos
ficam no 4º lugar.
6. 6 Léa Freitas Perez
No que tange ainda à sintonia crença-religião, é nítida, por
exemplo, a diminuição do percentual de crença na Virgem Maria
entre os protestantes (14,4%) e pentecostais (9,9%), bem como
a proximidade entre católicos (88,9%) e afro-brasileiros (83,3%)
quanto dela se trata. O que não elimina que eles operem outras
outras articulações que extrapolam o núcleo duro de crenças de
sua religião, como, por exemplo, a prevalência, em todas as reli-
giões consideradas, com variações, é claro, da crença em anjo/
demônios e em milagres18. Ou o percentual de crença nos san-
tos ligeiramente maior entre os que se declaram afro-brasileiros
(83,3%) do que entre os católicos (80,2%).
Trata-se certamente de uma refração no campo das cren-
ças do declínio da hegemonia do catolicismo, da sua crescente
romanização, bem como do crescimento do pentecostalismo,
mas também de outras modulações entre pertencimento e senti-
mento religioso19. O primeiro mais institucional e formal; o se-
gundo mais poroso e difuso. Assim tem-se tanto uma clara proxi-
midade (partilha sincrética) entre católicos e afro-brasileiros,
quanto um afastamento (polaridade contrastiva) entre católicos
e protestantes/pentecostais20.
**
Com relação à juventude, Regina Novais, como sempre, diz
o essencial. Ela nos relembra não somente que “toda experiên-
cia geracional é inédita”, como também que – e isto é fundamen-
tal para o que aqui se propõe – “a compreensão das experiên-
cias dos jovens de hoje desafia velhas classificações”, entre as
quais quero destacar aquelas que colocam em posições antitéti-
cas juventude e religião, sobretudo a reificação da religião como
ópio e da juventude como agente da revolução, dois evidentes
anacronismos relativamente à juventude de hoje (Novais, 2004,
p. 264). Precisamos levar a sério a observação de Regina Novais
para não ficarmos escandalizados com o fato evidente de que os
jovens de hoje têm uma relação positiva com a religião, que ela
18 A crença em milagres é o 1º lugar no ranking de afro-brasileiros, protestantes e
pentecostais. Vem em 2º tanto para católicos quanto para de outras religiões. A
única exceção é entre os espíritas, para os quais ela ocupa o último lugar. A
crença em anjos/demônios vem em 1º lugar para protestantes e de outras reli-
giões e em 2º para pentecostais e afro-brasileiros. Diminui entre os católicos
(4º) e espíritas (6º).
19 Inspirada em Mauss (1968, p. 99), trato refração como o processo de contínua
gestação da vida religiosa, pelo qual e no qual ela se segmenta e se dissemina
diferencialmente nas sociedades, em diferentes pontos do tempo, em termos
seja de atração, de entusiasmo, seja de difusão ou de negação, de repulsa e de
afastamento. Vale dizer que uma religião dada é percebida de um certo ponto
de vista e praticada de um certo modo.
20 Como se sabe, a devoção aos santos é associada ao catolicismo popular, nú-
cleo por excelência do sincretismo religioso em nosso país.
7. Cadernos IHU Idéias 7
diz mais a eles do que a política. O que não quer dizer, como
quer uma certa doxa, que a juventude atual é conservadora e alie-
nada. Precisamos levar em conta os marcos sociológicos da ex-
periência geracional de nossos jovens.
Essa juventude nasceu num mundo globalizado, mediáti-
co, tecnológico. Vivem em tempos de intensa efervescência,
numa sociedade que passa por profundas modificações nas for-
mas de constituição do vínculo e nas modalidades do estar jun-
to. O avanço tecnológico praticamente aboliu a morte, criando o
padrão da eterna juventude, afetando drasticamente nossas no-
ções usuais de duração da vida e de seus ciclos. A cultura de
consumo pauta no par juventude-beleza como um estilo de vida
altamente valorizado e almejado. Os jovens que “ficam com” nas
baladas são os mesmos que defendem com vigor a fidelidade.
Vivem em famílias de composições heterodoxas relativamente
ao clássico padrão nuclear. Em seu cotidiano mais imediato
convivem, entre outros, com os dilemas das reconfigurações do
dito mundo do trabalho e com a morte prematura causada pela
dita violência urbana. Têm a sua disposição um mercado religio-
so, no qual abundam ofertas de salvação de toda ordem. Em sín-
tese, é esse mundo efetivamente tornado aldeia global, em
tempos de incerteza generalizada e de hibridações inesperadas,
que compõem os marcos sociológicos, nos quais se insere a
experiência geracional da juventude de hoje.
Todos concordam com o sintoma. No entanto, o mesmo
não acontece com o diagnóstico, para usar uma velha, mas ain-
da produtiva, alegoria clínica. Tudo se passa como se na com-
preensão do mundo contemporâneo esquecêssemos da histó-
ria que o engendrou, na qual a religião ocupa um lugar de desta-
que. Lembremos, então, en passant, dois fatos das complexas
relações entre religião e modernidade.
Max Weber nos mostrou como o racionalismo “destronou o
politeísmo em proveito do ‘Único de que temos necessidade’”,
tornando a religião “uma rotina quotidiana” e o mundo, desen-
cantado. No entanto, pontua ele, quando “confrontado com a rea-
lidade da vida interior e exterior”, o racionalismo se vê constran-
gido a realizar compromissos e acomodações, de modo tal que
[…] a multidão dos deuses antigos sai de suas tombas, sob
a forma de potências impessoais porque desencantadas, e
se esforçam novamente, retomando suas lutas eternas,
para fazer nossas vidas regressarem a seus poderes (We-
ber, 1986, p. 85, 91).
Trata-se do politeísmo dos deuses que é também (et pour
cause) o politeísmo dos valores. Logo, não se pode negar que,
na modernidade, a secularização é um fato.
Weber também nos ensinou acerca da relação matricial en-
tre cidade e religião. Em seu plano de estudo sobre a formação
8. 8 Léa Freitas Perez
da economia ocidental moderna, analisa a significação e a fun-
ção da cidade no desenvolvimento do processo de racionaliza-
ção. Segundo ele, uma das características definidoras da cidade
é a de ser uma “comunidade” que, enquanto “comunidade urba-
na”, só aparece como fenômeno massivo no Ocidente (Weber,
1982, p. 37). Como comunidade, a cidade é “uma associação
fraternal”, isto é, uma “associação cultual”, que possui símbolos
religiosos correspondentes como, por exemplo, um culto de
união dos cidadãos por meio do deus da cidade ou de seu santo
padroeiro, das festas religiosas oficiais próprias à cidade, assim
como a sua igreja (Weber, 1982, p. 55, 63). A religião não é,
portanto, estrangeira nem incompatível com o desenvolvimento
urbano moderno, pelo contrário: é um fator privilegiado.
A contextualização que Weber faz das condições de vivên-
cia da religião na modernidade nos possibilita ver de modo mais
acurado o que tem se chamado de retorno do religioso, que
atestaria que secularização não implica em absoluto o fim ou a
invisibilidade da religião, mas sim uma outra forma de refração,
pela qual a religião mantém-se viva e atuante, exatamente por
causa dela. Secularização que seria mais apropriadamente en-
tendida se articulada com o pluralismo dos valores e como, nos
termos de Gianni Vattimo, relação de proveniência de um núcleo
sagrado do qual ocorre um afastamento, mas que permanece
ativo, ainda que decaído, distorcido, reduzido a termos pura-
mente mundanos (1998, p. 9). Proselitismo religioso à parte, o
posicionamento dos jovens evangélicos em relação à Virgem
Maria vai nessa direção. Entre eles notou-se uma clara tendência
em enfatizar a não sacralidade de Maria, considerada uma mulher
como outra qualquer:
Geralmente as pessoas acham que evangélico critica muito
Maria, mas na verdade não é que critica Maria; a gente só
não vê ela como santa. É uma visão que a gente tem de que
Maria é uma mulher, que ela é virgem... é, mas ela não é
santa, ela não é ela, não foi melhor do que ninguém; a gente
não vê ela como mediadora entre nós e Deus. Só Jesus.
Em síntese, nas condições de secularização de uma socie-
dade globalizada e profundamente urbanizada, e nos quadros de
uma cultura de consumo, a religião se dissipa em “complexos sig-
nificativos” (que podem ser quase-religiosos e até mesmo não-re-
ligiosos) e se acomoda no mercado de consumo ao lado de ou-
tros complexos significativos (Featherstone, 1995, p. 157)21.
21 Vale dizer que “o consumismo continua a sustentar uma dimensão religiosa”,
uma vez que na “cultura de consumo, o sagrado é capaz de se manter fora da
religião organizada” (Featherstone, 1995, p. 159, 174).
9. Cadernos IHU Idéias 9
***
Com base nos dados empíricos e nas considerações concei-
tuais acima expostas, quero aqui propor que pensemos a expe-
riência geracional de nossos jovens como sendo pautada pelo
que, na falta de uma expressão clara e distinta (graças aos deu-
ses, felizmente), chamarei de duplo efeito cidade/secularização.
Esse duplo efeito tem como propriedade refratar-se em di-
ferentes modulações e em permanente articulação com o espíri-
to da época. No plano da urbanidade (simultaneamente e a um
só tempo, como diria Mauss), opera no sentido do cosmopolitis-
mo, do afrouxamento dos laços tradicionais, da autonomia, do
individualismo, da diversidade e da heterogeneidade. No plano
da religião, opera no sentido da diversidade e da porosidade,
sem, no entanto, provocar seu desaparecimento. O pertenci-
mento religioso escapa da clausura do exclusivismo das crenças
e práticas tradicionais, tornando-se difuso e aberto à experimen-
tação e à hibridação.
A tendência à autonomia individual na escolha da religião
entre os jovens mineiros, como viu-se, não implica necessaria-
mente o rompimento com os pertencimentos tradicionais, uma
vez que eles no geral seguem a mesma religião dos pais, mas se
relacionam com ela de um modo outro, evidenciando, assim, o
quanto “nenhum de nós”, na cultura ocidental – “e se calhar em
qualquer cultura – começa do zero na questão da fé religiosa”
(Vattimo, 1998, p. 8). A composição entre tradição e modernida-
de, que esses jovens realizam em termos de escolha religiosa,
contraria frontalmente as clássicas teorias da secularização, se-
gundo as quais a escolha individual apontaria para a privatiza-
ção da religião, seu confinamento ao domínio do foro íntimo e,
assim, levaria ao rompimento com os pertencimentos comunitá-
rios, logo para o desencantamento do mundo. Ao contrário, é
graças à secularização, e por intermédio dela, que podem rela-
cionar-se de outro modo com a religião. Ir à igreja e/ou ao culto,
ou participar de associações e atividades religiosas, é, para mui-
tos dos jovens entrevistados, elemento fundamental de sociali-
dade, de sua agitada rotina. Ou seja, são coisas que eles gostam
de fazer. Neste plano, religião é lazer, insere-se entre outras refe-
rências culturais, como atestam os conteúdos religiosos em le-
tras de certos segmentos de rap e de hip-hop, que tanto sucesso
fazem entre eles.
O que quero pontuar é que, para o jovens mineiros pesqui-
sados, a religião continua a atuar sobre a vida, a ser fonte de sen-
tido e de experiência, mas não necessária e unicamente sob a
forma exclusivamente formal da religião institucional e tradicio-
nal ou do mero produto de consumo. Ela faz parte das referên-
cias culturais mais imediatas desses jovens. Talvez fosse mes-
mo apropriado dizer que não se trata mais da Religião, mas de
10. 10 Léa Freitas Perez
religiosidades, ou, mais ainda, de sensibilidades religiosamente
fundadas que acionam o sagrado, sobretudo em sua proprieda-
de de colocar coisas e/ou idéias antes separadas em contigüida-
de, criando um amplo campo de possibilidades de modulações
e articulações.
Gostaria, para terminar, de sugerir que se faz necessário re-
pensarmos nossas definições usuais da religião e de juventude.
Não se trata, todavia, de rejeitá-las em bloco, pois são não so-
mente necessárias, mas também incontornáveis de nosso pen-
samento. Trata-se de, como bem disse Jacques Derrida de “pôr
em evidência a solidariedade sistemática e histórica de concei-
tos e gestos de pensamento que, freqüentemente, se acredita
poder separar inocentemente” (1973, p. 15).
Na clausura de nossas idéias claras e distintas, tratamos ju-
ventude e religião como entes universais, como coisas sociolo-
gicamente configuradas e claramente delimitadas, ou seja, ten-
do referências empíricas objetivas, unas, fechadas e coerentes,
dotadas de essência e de sentido naturais e originais. O ponto
aqui é que uma tal visão participa de um modo de pensamento e
de uma época – refiro-me ao logocentrismo e à metafísica da
presença (herdeiros e tributários da onto-teologia judaico-cristã)
–, e como tal designa as condições de inteligibilidade e de plau-
sibilidade daquilo a que se refere. Não se trata, no entanto, de
perguntar ao nosso nominalismo logocêntrico o que juventude e
religião significam, ou de buscar seus verdadeiros sentidos ocul-
tos sobre a camada das representações. No caso de juventude,
não se trata, sobretudo, de colocar no mesmo plano heurístico o
“problema” social (delinqüência, violência, trabalho etc.) e o
“problema sociológico” (fase da vida liminar, moratória), termos
aos quais muito frequëntemente a juventude é reduzida e aprisio-
nada. No caso da religião, não se trata de buscar uma definição
única que abarque a diversidade religiosa contemporânea.
Como foi acontecer de o mal-entendido revelar-se produti-
vo, trata-se de perguntar o quanto juventude e religião podem
significar, mas desde uma perspectiva que não apele à presença
do ente, ao significante transcendental, mas que as pense como
signos/rastros imotivados, como operadores de ligação, aos
quais variadas significações podem ser agregadas. Oxímoros
reveladores que observamos em certas enunciações de nossos
jovens entrevistados, como por exemplo, ateísmo concomitante
com crença em Deus, ficar com e fidelidade, aceitação do aborto
e defesa da pena de morte, não deveriam ser considerados úni-
ca e exclusivamente como contradição ou como desinformação,
enfim, “coisa de jovem” (o que podem mesmo ser, sem dúvida),
mas também como expressões de articulações e modulações
outras, enunciados outros, que não encontram necessariamente
equivalentes em nossa linguagem corrente relativamente ao par
religião-juventude.
11. Cadernos IHU Idéias 11
Os jovens estudantes do 3º ano do Ensino Médio da rede
pública estadual de Belo Horizonte nos dizem de uma vivência
intensa da religião, mas de uma religião secularizada, profunda-
mente humanizada, em sintonia com o espírito da época, na
qual o acento é dado no estar junto e na possibilidade sempre
ampliada de experimentação. A religião “funciona” para eles tan-
to como “marco socializador” de práticas sociais quanto como
linguagem por meio da qual podem expressar suas opiniões e
inquietações (Novais, 1994). Ou seja, é a religião como religare,
algo fundamental para eles, nesse momento de suas vidas, em
que se não são (e não querem ser) crianças, também não são (e
nem querem ser) adultos. Nem crianças nem adultos, mas que
se vêem confrontados com o futuro, representado pelo vestibu-
lar e querem se abrir ao mundo, “aproveitar a vida”, como nos
disse um dos jovens entrevistados. Ou como a jovem que decla-
rou: “Eu adoro ser adolescente, porque é a fase que você mais
descobre as coisas”. Descoberta matizada por outra:
Quando a gente é criança, a gente não tem maldade, a gen-
te é muito ingênuo e nessa idade a gente começa a ver as
maldades do mundo; a gente começa a ver a podridão
toda, entendeu? Então, isso machuca muito, porque é de
uma vez assim, não é aos poucos; é de uma vez que aquela
sua ingenuidade é quebrada entendeu? E isso, sei lá, é mui-
to ruim, deixa a gente triste, pelo menos me deixa triste.
Aproveitar a vida, descobrir as coisas, mas cheios de temor,
pois, como informou um de nossos estudantes “Belo Horizonte
hoje em dia é difícil, né? Você vai sair, o cara assalta você, você
pode morrer por coisa boba”.
Parafraseando Lévi-Strauss, sempre ele: juventude é bom
para pensar, sobretudo quando se modula e se articula com reli-
gião, pois coloca em pauta e em discussão temas cardinais da
modernidade, entre os quais vida/morte, razão/emoção, cor-
po/espírito, duração/fim etc., em seu confronto com a vida tal
como ela é.
Referências bibliográficas
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13. Léa Freitas Perez (1957) é natural de Porto Alegre/RS. É graduada em
História (1980) e mestre em Antropologia Social (1985) pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É doutora em Anthropologie
Sociale et Ethnologie pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
– EHESS, Paris, França (1993), com a tese La ville au Brésil: formation et
développement (XVIe- XIXe siècle). Atualmente, é professora no Departa-
mento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Membro
do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Antropologia – ABA.
Algumas publicações da autora
From a writing lesson (com REINHARDT, B. M. N). Horizontes Antropológi-
cos, v. 1, p. 1-15, 2006.
Conflito religioso e politeísmo dos valores em tempos de globalização.
In: Religião e violência em tempos de globalização (Organizado com
PEREIRA, Mabel Salgado; SANTOS, Lyndon de A.). São Paulo: Paulinas,
2004. p. 53-75.
Passagem de milênio e pluralismo religioso na sociedade brasileira (Or-
ganizado com VARGAS, E. V.; QUEIROZ, R. C.). Belo Horizonte: UFMG, 2003.
v. 1. 181p.
Dionísio nos trópicos: festa religiosa e barroquização do mundo – por
uma antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro (Org.).
A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 15-58.
Pour une poétique du syncrétisme tropical. Les cahiers de l’imaginaire,
Paris, v. 13, p. 9-16, 1996.