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Ano XVIII - Número 263 - fevereiro de 2005
Atualidade da utopia
Uma recente pesquisa feita a 17 supergerentes de empresas nacionais e
internacionais sobre o trabalhador atualizado mostra que o principal atributo do
profissional eficiente é a utopia, fonte da criatividade.
No ano 2005, o mundo comemora o Quarto Centenário da obra El Ingenioso Hidalgo
Don Quixote de la Mancha, publicada em Madri, pela primeira vez, em 1605.
Esta obra, a mais famosa de todos os tempos, manifesta o sentido do conceito utopia,
atributo de pessoa habilitada. Por quê?
Porque a vida e as obras de Dom Quixote fazem a diferença, porque um homem
comum de classe média da sociedade renascentista - um fidalgo - soube colocar e
usar seus bens e as pessoas de sua relação social para serem diferentes de todas as
que o cercavam na sua cidade e poder chegar, gloriosa e tragicamente, a descobrir a
verdade de sua vida como pode ser percebido nitidamente nessas memoráveis
palavras do fim de sua existência: ... quot;Eu fui louco e já sou sensato: fui Dom Quixote de
la Mancha, e sou agora, Alonso Quijano, o Bomquot;.
Um ser humano qualquer que, ao fim de sua vida, pôde se conhecer, percebendo
todos os seus erros e valorizando o que existe de bom dentro de si, verdadeiramente
cumpriu a missão e o objetivo de ser gente e de ter identidade própria.
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é o protótipo do herói atualizado e vivente,
capaz de traduzir os valores e anseios dos tempos modernos e pós-modernos até as
alturas da transcendência.
Ele é modelo eterno de utopia, porque soube interiorizar, representar e superar as
mensagens escritas nos livros da cultura popular do passado. Porque soube mudar
de comportamento mediante as leituras que fazia dos livros de cavalaria do seu tempo,
atualizando-os pela imaginação e vontade. Na vida prática, soube experimentar tudo o
que sentia em seu interior e soube comunicar aos outros seus pensamentos e seguir
seus ideais.
Para viver tudo o que pensava e desejava, Dom Quixote teve de enfrentar familiares,
amigos, autoridades, turbas, desprezos, humilhações, lutas, fome, desamor, louvores,
fracassos, amores, loucuras. Era grande nos fracassos e pequeno nas vitórias e
triunfos. Suas histórias, de modo humorístico, guiavam o leitor para o riso, o prazer e
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a admiração. Seu ideal e aventuras se fundamentavam na luta pela justiça e em
divulgar o amor para com os humildes e marginalizados, os quais queria promover.
Como Abraão, teve coragem de deixar a família, a terra, os bens e seguir a trilha
escolhida da liberdade. Soube viver o passado, o presente e o futuro, criando a
complexa e artística realidade e, a partir disso, aprender a descobrir e a viver as
realidades transcendentes a fim de quot;contemplar as belezas do céu, passos com que
caminha a alma para sua primeira moradaquot; (Cervantes, 1992: 106).
Cervantes, com a obra Dom Quixote de la Mancha, indica o rumo à eternidade, porém a
partir das realidades terrestres e humanas. A eternidade está em todo lugar e em cada
pessoa que se manifesta ao próximo.
Descobre-se Dom Quixote sempre que se investiga, reflete e se contempla, extasiado,
a complexidade da vida. O personagem dirige as pessoas até o âmago da plenitude
das coisas e fenômenos da vida de cada dia, de cada hora e de cada instante. A leitura
de Dom Quixote faz conhecer e relacionar as pessoas concretas que se aproximam e
convivem na família, no trabalho e na sociedade.
De mãos dadas a Dom Quixote, vive-se o dinamismo presente nos objetos e nas
relações que estruturam a sociedade moderna. Com ele, aprende-se a esperar, a
confiar e a ser mais otimista e irônico. Sabe-se usar o necessário e vital relaxamento
ante as inúmeras tensões que oprimem as pessoas no percurso da fictícia vida
moderna.
Reflexão
Concluo essa pequena reflexão, que inicia as muitas e universais manifestações
durante o Quarto Centenário da obra do genial Cervantes, com as célebres palavras
do pensador espanhol Miguel de Unamuno, um dos grandes críticos de Dom Quixote:
quot;O que nos deixou Dom Quixote? Eu vos digo que ele deixou a si mesmo, e que um
homem vivo e eterno vale por todas as filosofias... É todo um método, toda uma
epistemologia, toda uma estética, toda uma lógica, toda uma ética, toda uma religião, e,
sobretudo, toda uma economia do que seja eterno e divino, toda uma esperança no
absurdo racionalquot; (Unamuno, 1967: 290-291).
Sem dúvida, o Brasil, no ano 2005, mostrará, como no passado, a herança cervantina
presente na novela quixotesca da literatura brasileira: Quincas Borba, de Machado de
Assis; o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, passando pelo
jornal Dom Quixote, de Angelo Agostini, porta-voz dos simpatizantes da Revolução
Federalista (1892 -1893), até o genial Guimarães Rosa nas façanhas dos heróis dos
sertões do Brasil; e o criativo Portinari que, na pintura da figura de Dom Quixote,
levanta os humanos até o infinito. Os profissionais da produção do conhecimento
revelarão seus atributos de utopia cruzando as áreas da emoção e as da razão.
A efeméride está aí.
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Jorge Solivellas Perelló
Filósofo
Professor da
PUC Minas
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