1. O documento discute o trabalho como princípio educativo e sua dupla dimensão no capitalismo, considerando as perspectivas de Marx e outros autores marxistas.
2. Marx argumenta que o trabalho tem uma dimensão ontológica como atividade humana, mas no capitalismo se torna trabalho alienado onde o trabalhador é explorado.
3. Os autores analisam se o trabalho pode permanecer como princípio educativo no capitalismo considerando suas dimensões de emancipação versus adaptação.
O TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO E SUA DUPLA DIMENSÃO NO CAPITALISMO
1. 1
O TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO E SUA DUPLA DIMENSÃO
NO CAPITALISMO
Solange Toldo Soares1
Jussara das Graças Trindade2
Introdução
O princípio educativo do trabalho é uma temática muito debatida entre
estudiosos dedicados a estudar as relações entre Trabalho e Educação. As bases teórico-
metodológicas desta linha de investigação nos remetem ao trabalho como atividade
especificamente humana e sua dupla dimensão: ontológica, ou seja, de criação da vida
humana e histórica, pois é um processo e sua forma de organização em uma sociedade
traz transformações sociais específicas. Assim, o trabalho é uma forma de fazer o
homem pensar, portanto tem um princípio educativo.
Porém, na forma social do capitalismo o trabalho tornou-se mercadoria e o
trabalhador não é dono do produto do seu trabalho, ou seja, na sociedade capitalista o
trabalhador realiza um trabalho alienado. Assim, o trabalho pode permanecer no
capitalismo como princípio educativo? No sistema capitalista quando o trabalhador
percebe que é explorado, a própria condição de exploração o educa, porém propicia a
emancipação ou simplesmente a adaptação? Se o trabalho como princípio educativo não
é possível no capitalismo, qual é o sentido da tentativa da escola recuperar a relação
entre conhecimento e a prática do trabalho?
A partir desses questionamentos surgem duas hipóteses que orientaram esse
artigo3. Na primeira hipótese, o trabalho se institui como princípio educativo,
considerando a educação em sua dupla dimensão - de adaptação e de emancipação - por
ser práxis que comporta, como um de seus fundamentos, a integração entre ciência,
cultura e trabalho. Na segunda hipótese, o trabalho na formação social do capitalismo,
1
Mestranda em Educação, pela Universidade Federal do Paraná e bolsista pela CAPES. E-mail:
solange_tsoares@yahoo.com.br
2
Mestranda em Educação e professora substituta, pela Universidade Federal do Paraná. E-mail:
jussaratrindade@yahoo.com.br
3
Esse artigo é resultado de discussões realizadas na disciplina “O princípio educativo do trabalho”,
orientada pela professora Dra. Mônica Ribeiro da Silva, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Paraná, Mestrado, Linha de Pesquisa Mudanças no Mundo do Trabalho e
Educação, em 2007.
2. 2
ao se instituir como trabalho alienado, reforça o sentido da adaptação e impõe limites à
discussão emancipatória da educação. Ou seja, a primeira hipótese de investigação
considera a dimensão ontológica do trabalho, ligada à produção do conhecimento e a
segunda, considera a dimensão histórica específica da sociedade capitalista, onde o
trabalho assume a dimensão de alienação, pois o resultado do trabalho é a mercadoria
que não pertence ao trabalhador.
O objetivo é analisar o trabalho como princípio educativo, considerando os
desafios da formação humana na sociedade capitalista atual, que traz a dicotomia entre
educação e trabalho; considerando a dupla dimensão do trabalho capitalista: ontológica
e de alienação e, da educação: emancipação e adaptação.
Para alcançar esse objetivo, o procedimento metodológico foi a leitura e análise
de autores marxistas, investigando a possibilidade de pontuar as duas hipóteses em cada
texto analisado. Neste artigo fez-se um apanhado geral das principais contribuições de
autores clássicos como Marx (1983; 1989), Lukács (1981) e Gramsci (2001) e de
contemporâneos como Saviani (1994; 2007), Tumolo (2005), Gonzalez (2007) e Ramos
(2005).
O trabalho como princípio educativo e sua dupla dimensão no capitalismo
Para Marx, em uma sociedade genérica, o trabalho possui uma dimensão
ontológica, de criação da vida humana, considerando que o trabalho é um processo
histórico, através do qual o homem transforma a natureza e a si mesmo, torna-se
humano, aprende através do trabalho, pois:
... é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação
natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal de
metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida
humana, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente
comum a todas as suas formas sociais (MARX, 1983, p.153).
Com o surgimento do capitalismo, o trabalho passou a ter uma dimensão de
alienação. Para Marx no trabalho alienado o trabalhador tornou-se mercadoria, pois:
3. 3
Se a oferta excede por muito a procura, então parte dos trabalhadores cai na
penúria ou na fome. Assim, a existência do trabalhador encontra-se reduzido
às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O
trabalhador tornou-se uma mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar
um comprador (1989a, p. 102).
No texto do seu Primeiro Manuscrito, Marx faz uma análise do salário do
trabalho, que segundo ele é determinado pela luta amarga entre o capitalista e o
trabalhador. Relata que o lucro do capitalista é obtido sobre os salários dos
trabalhadores e sobre as matérias-primas. Debate sobre a renda de terra (o preço que se
paga pelo uso da terra) e por fim faz uma crítica ao trabalho alienado.
No trabalho alienado o produto não pertence ao trabalhador, existe a ausência de
controle sobre o produto e sobre o próprio trabalho que inclusive expropria o saber do
trabalhador. Assim pode-se evidenciar a segunda hipótese de orientação deste trabalho,
ou seja, a que se refere à dimensão de alienação do trabalho, pois:
... o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence a sua
natureza; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo,
não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas
e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito (...) Assim, o seu
trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado (1989a, p. 162).
E também “... o trabalho em si, não só nas presentes condições, mas
universalmente, na medida em que a sua finalidade se resume ao aumento da riqueza, é
pernicioso e deletério...” (1989a, p. 108).
Por outro lado, Marx considera o trabalho, de um ser genérico (homem) em uma
sociedade genérica, como produtor da vida humana, o homem tem um ato de vontade
que é elaborado, que o diferencia dos demais animais; então há espaço para apontar-se a
1ª hipótese de pesquisa deste artigo, aquela que se refere à dimensão ontológica:
De facto, o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece agora ao
homem como o único meio da satisfação de uma necessidade, a de manter a
existência física. A vida produtiva, porém, é a vida genérica. É vida criando
vida. No tipo de atividade vital reside todo o caráter de uma espécie, o seu
4. 4
caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constituiu o caráter genérico
do homem. A vida revela-se simplesmente como “meio de vida” (1989a, p.
164).
A partir do Primeiro Manuscrito de Marx, existe a possibilidade de afirmar
ambas as hipóteses, pois para ele, ao realizar uma atividade vital consciente, o homem
se distingue dos animais e torna-se um ser genérico, dessa forma sua atividade é livre,
referindo-se a dimensão ontológica. Mas o trabalho alienado transforma a atividade vital
do homem em simples meio de existência, o que é referente à dimensão histórica
específica do capitalismo: a alienação.
Seguindo o mesmo método de análise teórica, Marx no Segundo e no Terceiro
Manuscrito discorre ora sobre o trabalho na sua dimensão ontológica, ora como
instrumento de alienação no capitalismo.
No Segundo Manuscrito, Marx discorre sobre a relação da propriedade privada,
iniciando com pensamentos que podemos utilizar para apontar a 2ª hipótese, referente à
alienação, para ele: “... o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo e,
portanto, com necessidades, que em cada momento em que não trabalha perde os seus
juros e, por conseguinte, a existência” (1989b, p. 173). Ou seja, o trabalho está
diretamente relacionado com a existência do homem, mas o trabalho alienado torna o
homem uma mercadoria, e à medida que não trabalha, perde sua existência. A sua vida é
valorizada de acordo com a procura e a oferta, condicionada à Lei de Oferta e Procura
do Mercado, à medida que a existência do capital é a existência do homem, evidencia-se
a condição da dependência humana em relação ao capital.
Consequentemente o burlão, o ladrão, o pedinte, o desempregado, o faminto, o
miserável, ou seja, as pessoas excluídas da sociedade são consideradas como
inexistentes para o capitalismo, pois não estão produzindo lucro para o capitalista.
Quem não faz parte da classe dos trabalhadores não é gente, dessa forma:
“A produção não produz unicamente o homem como uma mercadoria, a
mercadoria humana, o homem sob a forma de mercadoria; de acordo com tal
situação, produ-lo ainda como um ser espiritual e fisicamente
desumanizado... Imoralidade, deformidade, hilotismo dos trabalhadores e
capitalistas... O seu produto é a mercadoria autoconsciente e activa... a
mercadoria humana” (1989b, p. 174).
5. 5
O capitalismo faz do homem mercadoria, e o desumaniza. Assim não é possível,
dentro desse sistema, uma condição de emancipação, fato que reforça a afirmação da 2ª
hipótese, que aponta a alienação, pois, o trabalhador no capitalismo não passa de mera
mercadoria.
Porém Marx, também se refere, no Segundo Manuscrito, ao trabalho como
atividade humana destacando a dimensão ontológica do mesmo, o que podemos utilizar
para defender a 1ª hipótese, o autor reconhece que além do capitalismo que transforma o
trabalho em produção de mercadoria, existe o trabalho humano na sua existência
concreta4.
“Por um lado, há a produção da actividade humana como trabalho, isto é,
como actividade que é estranha entre si, ao homem e à natureza, portanto,
alheia à consciência e à realização da vida humana; a existência abstrata do
homem como simples homem que trabalha, que por conseguinte todos os
dias mergulha a partir do seu nada realizado no nada absoluto, na sua não-
existência social e, portanto, real. Por outro, há a produção do objecto da
atividade humana como capital, no qual se dissolve toda a característica
natural e social do objecto, na qual a propriedade privada perdeu a sua
qualidade natural e social (e, por conseqüência, perdeu todos os disfarces
políticos e sociais e deixou de surgir mesclado com relações humanas)-no
qual também o mesmo capital permanece idêntico nas mais variadas
condições naturais e sociais, que já não têm qualquer relevância a respeito
do conteúdo real.” (1989b, p.175)
No Terceiro Manuscrito, Marx faz relatos sobre a propriedade privada e
trabalho, propriedade privada e comunismo, necessidades, produção e divisão do
trabalho, discorre sobre o dinheiro e finaliza fazendo uma crítica a filosofia de Hegel.
O autor inicia relatando o trabalho como negação da vida humana, pois a
propriedade privada determina a essência do homem, fato que reforça a afirmação da 2ª
hipótese, pois no capitalismo a valorização do ter impede a valorização do ser, então:
“Sob a aparência de um reconhecimento do homem, também a economia política, cujo
princípio é o trabalho, se manifesta apenas como a conclusão lógica da negação do
homem” (1989c, p. 184).
4
Trabalho humano concreto é aquele que tem como resultado o valor-de-uso e está ligado diretamente à
dimensão ontológica.
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Ou seja, a partir do momento que o trabalho no capitalismo desumaniza o
homem, isto é fato para continuarmos afirmando a 2ª hipótese.
Por outro lado, Marx considera o trabalho como energia do homem e, portanto
da vida e por constituir-se como atividade é um órgão de manifestação da vida: “A
actividade em directa associação com os outros tornou-se um órgão da manifestação de
vida e um modo da apropriação da vida humana” (1989c, p.198), fato que pode ser
utilizado para defender a 1ª hipótese.
O autor também afirma que a indústria é o livro aberto das faculdades humanas,
sendo o trabalho considerado como ato genérico do homem exercendo e usando suas
faculdades mentais, revelando assim o caráter ontológico do trabalho humano, ou seja:
... a ciência natural penetrou tanto mais praticamente na vida através da
indústria, transformou-a e preparou a emancipação da humanidade, muito
embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização
do homem (1989c, p.201).
Assim, podemos reforçar a afirmação da 1ª hipótese, pois, Marx reconhece que
aconteceu a desumanização no capitalismo, mas não deveria ser assim, o trabalho
humano é ontológico.
No capítulo V do “Capital”, Marx refere-se ao processo de trabalho e de
valorização da mercadoria. Para expor suas idéias, Marx utiliza um recurso
metodológico por categorias de análise. Ele abstrai a história e inicia sua exposição
considerando o trabalho em qualquer forma social determinada, ou seja, em uma
sociedade genérica. Faz isso para explicar a dimensão ontológica do trabalho, e depois
parte para a explanação sobre o trabalho alienado. Para Marx: “Antes de tudo, o
trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por
sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza” (1983a, p.
149).
Considerando que ao modificar a natureza o homem também se modifica, há
possibilidade de afirmação da 1ª hipótese, pois Marx explica que a diferença entre o
homem e os animais é o planejamento mental anterior ao trabalho e também as
ferramentas que constrói para auxiliá-lo. Assim:
7. 7
Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao
homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos
favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele constrói o favo em sua cabeça, antes de construí-lo
em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no
início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente
(MARX, 1983a, p. 149-150).
Por outro lado, Marx explica que o modelo de trabalho simples e concreto não
foi mais suficiente no capitalismo, pois o produto do trabalho precisa ter um valor de
troca. Assim, o produto não pertence mais ao trabalhador, é necessário calcular o
trabalho materializado no produto, o que reforça a exploração do trabalhador e o aliena.
É o que Marx denomina como processo de valorização da mercadoria, pois: “Quer
produzir não só um valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia”
(1983, p. 155). Ou seja, o capitalista economiza nos meios de produção ao forçar o
trabalhador a trabalhar cada vez mais pra obter a mais-valia, reforçando assim a
condição de alienação. A partir da explanação de Marx, sobre o processo de valorização
da mercadoria, há possibilidade de afirmação da 2ª hipótese.
No capítulo VIII do “Capital”, Marx faz uma análise sobre a jornada de trabalho,
expondo que o trabalhador precisa de seis horas diárias de trabalho para produzir seus
meios de subsistência. Porém conforme o trabalho é prolongado em uma, três, ou seis
horas, a mais-valia é produzida, ou seja, o lucro do capitalista é produzido através de
mais trabalho. Assim existe a possibilidade de afirmação da 2ª hipótese, pois no
capitalismo, o trabalhador é considerado o seu tempo de trabalho, as diferenças
individuais não existem para o capital:
O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros,
chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo
chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o
qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o
trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista
(1983b, p. 189).
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Porém, Marx nos lembra que, o trabalhador ao perceber que está sendo
explorado, luta por seus direitos, assim o trabalho o educa, possibilitando a afirmação
da 1ª hipótese. Isso acontece segundo Marx, na luta pela diminuição da jornada de
trabalho, o trecho a seguir relata o trabalhador falando com o capitalista: “Eu exijo,
portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo ao teu coração,
pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade” (1983b, p. 189).
Nos trechos lidos das obras de Marx, Primeiro, Segundo e Terceiro Manuscritos
e capítulos V e VIII do Capital, pode-se perceber a presença de referencial para
afirmação ora da 1ª hipótese, ligada a dimensão ontológica do trabalho, considerando o
trabalho como princípio educativo e ora da 2ª hipótese, ligada ao trabalho alienado que
impõe limites ao processo emancipatório. Para compreendermos a categoria princípio
educativo do trabalho é fundamental a reflexão dialética que Marx nos traz sobre o
trabalho no capitalismo, ou seja, sua dupla dimensão, mesmo que o objeto de estudo de
Marx não tenha sido o princípio educativo do trabalho.
Para compreensão do princípio educativo do trabalho consideraram-se obras de
Lukács (1981) e Gramsci (2001), pois se basearam nas obras de Marx para escrever as
suas. Lukács (1981) ocupou-se de escrever em “A ontologia do ser social” sobre a
dimensão ontológica do trabalho, ou seja, seu objeto de estudo no trecho estudado sobre
“O trabalho” foi exclusivamente a dimensão ontológica do trabalho, e
consequentemente pode-se afirmar, a partir destes seus escritos, somente a 1ª hipótese.
Para Lukács (1981), o trabalho nasce em meio à luta pela existência, sendo produto da
autoatividade do homem. Assim:
Considerando que nos ocupamos do complexo concreto da sociabilidade
como forma de ser, poder-se-ia legitimamente perguntar porque, ao tratar
deste complexo, colocamos o acento exatamente no trabalho e lhe
atribuímos um lugar tão privilegiado no processo e para o salto de sua
gênese” (LUKÁCS, 1981, p. 3).
Para Lukács (1981) o homem transforma a natureza e a natureza transforma o
homem biologicamente, só há ontologia porque o indivíduo reconhece em si o mundo,
pois:
9. 9
Essa separação tornada consciente entre sujeito e objeto é um produto
necessário do processo de trabalho e com isso a base para o modo de
existência especificamente humano. Se o sujeito enquanto separado na
consciência do mundo objetivo, não fosse capaz de observar e de reproduzir
no seu ser-em-si este último, jamais aquela posição do fim, que é o
fundamento do trabalho, mesmo do mais primitivo, poderia realizar-se
(LUKÁCS, 1981, p. 24).
Esta questão é fundamental para a discussão do princípio educativo do trabalho,
pois a dualidade do ser social, “sujeito e objeto”, possibilita ao homem sair do meio
animal, fato chamado por Lukács (1981) de “salto da gênese humana”. Para o autor, por
ser o trabalho resultado do que já estava na mente humana, imprimindo na natureza seu
próprio fim, o trabalho assume uma posição teleológica, que dá origem a uma nova
objetividade (ação do homem sobre a natureza a partir de uma ideação, teleologia). Para
Lukács (1981), somente o trabalho tem esse caráter ontológico e fora dele não existe
teleologia. O processo de tornar-se algo autônomo (a gênese do ser) se baseia no
trabalho, pois:
Antes de mais nada, a característica real decisiva da teleologia, isto é, o fato
de que ela só pode adquirir realidade quando for posta, recebe um
fundamento simples, óbvio, real: nem é preciso repetir Marx para entender
como qualquer trabalho seria impossível se ele não fosse precedido de um
tal por, que determine o processo em todas as suas fases. (...) Só é lícito falar
do ser social quando tivermos compreendido que a seu gênese, o seu
distinguir-se da sua própria base, o processo de tornar-se algo autônomo, se
baseiam no trabalho, isto é, na continuada realização de posições
teleológicas (LUKÁCS, 1981, p. 11).
Assim a dimensão ontológica do trabalho começa a partir da necessidade da
espécie em busca de algo, o pôr teleológico. Lukács (1981) considera que existe
desigualdade, mas a ontologia do trabalho sempre está presente. Mas o trabalho
alienado (no capitalismo) pode ser portador da dimensão emancipatória? Essa questão
não foi objeto de estudo de Lukács, ele estudou o processo de trabalho e sua dimensão
ontológica.
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Gramsci (2001) nos auxilia a responder esse questionamento, pois seu objeto de
estudo no caderno 12 “Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre
a história dos intelectuais” foi o princípio educativo do trabalho. Para Gramsci o
trabalho se institui como principio educativo, o processo de educação para emancipação
acontece tomando como princípio a ciência e a técnica, na formação de uma escola
unitária, rompendo assim com o fetiche da mercadoria para a formação de um ser
humano dirigente, cientista e político, em uma atividade teórico-prática, pois todos os
homens são intelectuais: “Por isso, seria possível dizer que todos os homens são
intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais...”
(GRAMSCI, 2001a, p. 18).
Dessa forma, a partir dos escritos de Gramsci no caderno 12 pode-se afirmar a 1ª
e negar a 2ª hipótese, pois:
Na verdade, o operário ou proletário, por exemplo, não se caracteriza
especificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas por este trabalho
em determinadas condições e em determinadas relações sociais (sem falar
no fato de que não existe trabalho puramente físico, e de que mesmo a
expressão de Taylor, do “gorila amestrado”, é uma metáfora para indicar um
limite numa certa direção: em qualquer trabalho físico, mesmo no mais
mecânico e degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um
mínimo de atividade intelectual criadora) (GRAMSCI, 2001, p. 18).
Assim o trabalho se institui como princípio educativo, por ser práxis que
comporta como um de seus fundamentos a integração entre ciência, cultura e trabalho,
pois:
A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A
complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser
objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua
hierarquização: quanto mais extensa for a “área” escolar quanto mais
numerosos forem os “graus” “verticais” da escola, tão mais complexo será o
mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado (GRAMSCI, 2001,
p. 19).
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O autor acredita que a escola reflete a divisão do trabalho que existe na
sociedade capitalista, porém acredita que se a escola integrar ciência, cultura e trabalho
em uma escola unitária, a crise da divisão do trabalho intelectual e manual poderá ser
amenizada, pois:
A tendência atual é a de abolir qualquer tipo de escola “desinteressada” (não
imediatamente interessada) e “formativa”, ou de conservar apenas um seu
reduzido exemplar, destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres
que não devem pensar em prepara-se para um futuro profissional, bem como
a de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas, nas quais
o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados. A crise terá
uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única
inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o
desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente,
industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho
intelectual (GRAMSCI, 2001, p. 33).
No caderno 22 “Americanismo e fordismo”, Gramsci faz uma explicação de
como foi o desenvolvimento da indústria no início do capitalismo, nos Estados Unidos,
que estava organizada no molde taylorista/ fordista. Ele relata que a Europa queria o
mesmo desenvolvimento industrial dos Estados Unidos, porém sem alterar sua estrutura
social. Para Gramsci os Estados Unidos foi educado através do modelo industrial que
surgiu e por não possuir uma estrutura social rígida isso aconteceu rapidamente:
Dado que existiam essas condições preliminares, já racionalizadas pelo
desenvolvimento histórico, foi relativamente fácil racionalizar a produção e
o trabalho, combinando habilmente força (destruição do sindicalismo
operário de base territorial) com a persuasão (altos salários, diversos
benefícios sociais, habilíssima propaganda ideológica e política) e
conseguindo centrar toda a vida do país na produção. A hegemonia nasce na
fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de
intermediários profissionais da política e da ideologia (GRAMSCI, 2001b,
p. 247-248).
Segundo Gramsci, para a Europa alcançar resultados semelhantes aos dos
Estados Unidos era necessário mais capitalismo, pois o industrialismo “domou” a
12. 12
animalidade do homem americano, deixando claro o princípio educativo do trabalho no
capitalismo:
A história do industrialismo foi sempre (e se torna hoje de modo ainda mais
acentuado e rigoroso) uma luta contínua contra o elemento “animalidade” do
homem, um processo ininterrupto, frequentemente doloroso e sangrento, de
sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a normas e
hábitos de ordem, de exatidão, de precisão sempre novos, mais complexos e
rígidos, que tornam possíveis as formas cada vez mais complexas de vida
coletiva, que são a conseqüência necessária do desenvolvimento do
industrialismo (GRAMSCI, 2001b, p. 262).
Gramsci reconhece a contraditória positividade do trabalho no capitalismo, pois
a imposição do modelo taylorista/ fordista foi brutal: “Até agora, todas as mudanças do
modo de ser e viver tiveram lugar através da coerção brutal...” (2001b, p. 262), porém a
partir do caderno 22 é possível afirmar a 1ª hipótese e negar em alguns trechos a 2ª
hipótese, mas é arriscado afirmar a 2ª hipótese através destes escritos, pois Gramsci não
relata que o trabalho no capitalismo impõe limites a discussão emancipatória da
educação, pelo contrário ele acredita em uma formação geral, tomando o trabalho como
princípio educativo.
Autores contemporâneos os quais desenvolvem pesquisas na área educação e
trabalho têm abordado a dupla dimensão do trabalho, sobretudo no que diz respeito às
mudanças trazidas pelo toyotismo. Tais mudanças apontam possibilidade de maior
articulação entre trabalho intelectual e instrumental, unificando as capacidades de
pensar e fazer. Como afirma Saviani (1994) a universalização da escola tem sido
colocada como uma exigência posta pelo próprio desenvolvimento do processo
produtivo, ou seja, o princípio educativo do trabalho é para o autor é norteador dos
processos de emancipação humana.
Para Gonzalez (2007) o trabalho humano é produtor de valores historicamente
produzidos nas sociedades capitalistas, que levam a emancipação por meio das relações
sociais. Neste caso, o trabalho é, portanto, elemento central na estrutura constitutiva do
ser social. Sendo assim, pode-se afirmar que o trabalho se institui como princípio
educativo.
13. 13
Em Ramos (2005) a produção da existência humana se faz mediada pelo
trabalho. Nesta perspectiva o trabalho pode ser considerado uma categoria ontológica,
inerente à espécie humana, o que reafirma a primeira hipótese apontada neste artigo.
Tumolo (2005) questiona a possibilidade da existência do trabalho como
princípio educativo no capitalismo, considerando que o conhecimento nasceu do
trabalho e o capitalismo trouxe a dicotomia entre teoria e prática, ao transformar o
trabalho e consequentemente a educação em mercadorias. Assim nos leva a refletir
sobre o princípio educativo do trabalho como uma categoria de crítica radical ao
capitalismo, possível somente fora desta sociedade capitalista.
Saviani (2007) considera que a base em que se assenta a estrutura do ensino
fundamental é o princípio educativo do trabalho, pois o modo como está organizada a
sociedade atual é referencia para organização da escola. E também pontua o papel
fundamental da escola de nível médio para recuperar a relação entre o conhecimento e a
prática do trabalho, afirmando que o princípio educativo do trabalho não só é possível
no capitalismo, como é inerente à organização da escola.
Conclusão
Esses apontamentos sobre o trabalho como princípio educativo e sua dupla
dimensão no capitalismo, tiveram a intenção de dialogar com as duas hipóteses
apresentadas: primeiro, a que reforça a dimensão ontológica, onde o trabalho
corresponde à mediação na produção de bens, conhecimento e cultura, e a segunda
hipótese que sinaliza a dimensão histórica, especificamente o trabalho no capitalismo,
com características do trabalho alienado, que se reduz à produção material. Ou seja, nos
autores estudados foi possível encontrar base teórica para sinalizar as duas hipóteses de
investigação.
Assim, o trabalho como princípio educativo é norteador dos processos de
humanização e de atualização histórica do próprio homem, por ser práxis que comporta
como um de seus fundamentos, a integração entre ciência, cultura e trabalho, mas ao
mesmo tempo, o trabalho na formação histórica do capitalismo impõe limites à
emancipação humana. Essa compreensão é possível através de estudos de autores
marxistas que trazem a contradição como metodologia de análise.
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Portanto, a categoria princípio educativo do trabalho, compreendida dentro do
capitalismo, determinada pelas bases materiais de produção, nos remete a pensar na sua
dupla face: a primeira contribui para a educação do trabalhador, onde desta forma ele
possa reconhecer-se no produto de sua obra, aprendendo a se organizar, reivindicar seus
direitos, desmistificar ideologias, dominar conteúdos do trabalho, compreender as
relações sociais e a função que nela desempenham; a segunda, o trabalho na formação
social do capitalismo, ao se instituir como alienação, reforça o sentido da adaptação e
impõe limites a emancipação humana.
Referências
FRIGOTTO G., CIAVATTA M., RAMOS M. (orgs). Ensino Médio Integrado:
concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.
GONZALEZ,J. L.C. Apontamentos para Investigação das Relações entre Trabalho
e Educação. www.estudosdotrabalho.org /2007.
GRAMSCI, A. Caderno 12: Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios
sobre a história dos intelectuais. In: _____ Cadernos do Cárcere. Trad. De Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001a.
GRAMSCI, A. Caderno 22: Americanismo e Fordismo. In: _____ Cadernos do
Cárcere. Trad. De Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001b.
LUKÁCS, G. O trabalho. In: ___Ontologia do ser social (Trad. de Ivo Toned). Roma:
Editori Riuniti, 1981.
MARX, K. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Lisboa: edições 70, 1989a. Primeiro
Manuscrito.
MARX, K. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Lisboa: edições 70, 1989b. Segundo
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MARX, K. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Lisboa: edições 70, 1989c. Terceiro
Manuscrito.
MARX, K. Processo de Trabalho e Processo de Valorização. In: ___ O Capital. São
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