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Auto-retrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,


Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
                                                    Bocage
                                         Poesias de Bocage
                          Lisboa, Comunicação, 1992 (4ª ed.)




           Auto-retrato
           Provinciano que nunca soube

           Escolher bem uma gravata;

           Pernambucano a quem repugna

           A faca do pernambucano;




           Poeta ruim que na arte da prosa

           Envelheceu na infância da arte,

           E até mesmo escrevendo crônicas

           Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico

Falhado (engoliu um dia

Um piano, mas o teclado

Ficou de fora); sem família,




Religião ou filosofia;

Mal tendo a inquietação de espírito

Que vem do sobrenatural,

E em matéria de profissão

Um tísico profissional.

               Manuel Bandeira, poeta brasileiro




POEMA AUTOBIOGRÁFICO

Quando eu nasci,
Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs...
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador...

Ouvi o ritmo das máquinas,
E o borbulhar das caldeiras...
Obedeci ao chamado das sirenes...
Morei num mucambo do ""Bode"",
E hoje moro num barraco na Saúde...

Não mudei nada...

                                 Solano Trindade (Poeta pernambucano, nascido
                                 em 1908)

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  • 1. Auto-retrato Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos, por taça escura, De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades, Eis Bocage em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento. Bocage Poesias de Bocage Lisboa, Comunicação, 1992 (4ª ed.) Auto-retrato Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província;
  • 2. Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional. Manuel Bandeira, poeta brasileiro POEMA AUTOBIOGRÁFICO Quando eu nasci, Meu pai batia sola, Minha mana pisava milho no pilão, Para o angu das manhãs... Portanto eu venho da massa, Eu sou um trabalhador... Ouvi o ritmo das máquinas, E o borbulhar das caldeiras... Obedeci ao chamado das sirenes... Morei num mucambo do ""Bode"", E hoje moro num barraco na Saúde... Não mudei nada... Solano Trindade (Poeta pernambucano, nascido em 1908)