1. MODOS DE LEMBRAR, DE NARRAR E DE
ESCREVER: A ELABORAÇÃO DE MEMÓRIAS
Maria Lúcia Ferreira de Figueirêdo Barbosa –
CEEL – UFPE
Memórias e Identidade Profissional
“Fazer dos professores narradores de suas
histórias poderá nos ajudar a compreender
não só como pensam, agem e se
desenvolvem profissionalmente, mas também
a conhecer melhor o contexto em que vivem, a
analisar de um outro ângulo o ambiente
educacional. Ao focalizarmos vidas individuais
de professores em suas singularidades
estaremos também identificando temas
coletivos que atravessam suas trajetórias e
refletem a estrutura social nas quais suas vidas
individuais estão imersas”. (FREITAS, 1998, p.
76).
2. As narrativas são instrumento:
de construção e reconstrução de
identidades sociais no próprio ato de
narrar.
de preservação e de (re)significação da
memória individual e coletiva
de diálogo entre presente e passado.
• É por meio da narrativa que “nos
construímos como parte do meio em que
vivemos”. (BROCKMEIER e HARÉ, 1997, p.
279).
Como narradores reconstruímos
discursos e nos reconstruirmos como
sujeitos do discurso.
• O ato de narrativizar a nossa história de
vida implica constante posicionamento e
reposicionamento em relação ao que está
sendo narrado, em relação aos
interlocutores e em relação a nós mesmos.
• É com base nesse posicionar-se e
reposicionar-se que construímos as nossas
histórias conjuntamente à construção das
nossas identidades, com nossos
interlocutores.
3. • Para Bamberg (1999, p. 220 – 222), o
posicionamento dá-se em três níveis:
Como os personagens são
posicionados dentro da narrativa: sua
caracterização, a relação que
estabelecem entre si e como eles são
construídos no desenrolar da narrativa;
Como o narrador se posiciona frente
aos interlocutores por meio de um
discurso específico;
Conseqüentemente como o narrador se
posiciona frente a ele mesmo.
4. • Quanto mais relatos fazemos , mais rica
fica nossa história e mais forte fica a
importância de determinada escolha
profissional para o narrador e seu
interlocutor. (LINDE, 1983).
Que concepção temos de narrativa?
• Tempo do relógio/Cronológico
• Tempo narrativo/Experiencial
A ordem temporal não é suficiente para a
narrativizar as memórias.
Uma narrativa deve ser mais do que uma
sucessão linear de instantes.
O tempo narrativo/experiencial é fundamental
para a maneira como uma memória é
estruturada e entendida.
5. As Memórias na Formação de Professores e
Professoras
MEMÓRIA:
• revivescimento auditivo, visual, gustativo e
sensorial;
• revivescimento de experiências passadas;
• possibilidades, condições e limites da fixação
da experiência, reconhecimento e evocação.
• Relato feito por alguém a partir de
conheimentos históricos dos quais participou ou
foi testemunho, ou a partir de sua vida
particular.
6. As Memórias de Maria Corina (ex-
alfabetizadora do Brasil Alfabetizado Recife –
UFPE)
Não lembro das histórias que meus pais
contavam, mas lembro da minha tia, Judite (hoje
falecida) sentada num tamborete e nós ao seu
redor ouvindo-a contar historias. Era uma mulher
batalhadora, gostava de aventuras amorosas, era
namoradeira e gostava de festas, em especial as
de São João que se dançava muito forró. Seu
meio de locomoção freqüente era um cavalo bem
celado. Tinha um físico gordinho, de estatura
mediana e pele branca, um rosto arredondado e
olhos castanhos claros. Sua personalidade era
forte, era determinada e ágil. Ela não usava livros
para contar histórias, pois também não sabia ler.
Mas contava histórias de ouvir de outras pessoas.
Não lembro dos seus gestos, só dos sons teatrais,
7. que dava aos personagens, entre eles os da
historia de João e Maria.
Recordo-me também de outros sons da
minha infância. Dos sons dos passarinhos e
das cigarras na primavera, das músicas de
forró, das músicas românticas, dos aboios, das
cantorias repentistas, (essas eu não gostava
da parte que envolvia a platéia nos versos
para que ela participasse com dinheiro e se o
citado não tivesse dinheiro ou a quantia fosse
pouca, era motivo de “chacota”. E eu achava
aquilo constrangedor, uma imposição, uma
coação. Então, às vezes, eu evitava ir para
esse tipo de festa). E os sons das galinhas
cantando quando botavam ovos (que eu
adorava ouvir, só para procurar seus ninhos
cheios de ovos); das vacas; dos cavalos; dos
cachorros; dos trovões (que eu morria de
medo, em conseqüência do relampejar); da
sinfonia dos sapos quando dava as primeiras
8. chuvas; das águas da lagoa, quando alguém
pulava dentro; era o sinal de que havia alguém
da turma lá. Era hora de irmos tomar banho,
hora da brincadeira, de quem pulava mais alto,
quem mergulhava mais fundo, quem prendia a
respiração por mais tempo, quem nadava mais
rápido. E o som do vento, o som do silêncio.
Aaaaa......., e o som da gaita do meu primo,
que eu pegava escondido dele, para tocar,
sentada em cima de uma pedra a beira da
estrada. Eu ia tirando alguns sons imaginando
que eu estava fazendo música, eu pensava
em compor músicas com essa gaita, mais não
sabia como, não importava, eu continuava
fazendo de conta.
9. A IMPORTÂNCIA DO TEXTO MEMORÍSTICO NA
EXPERIÊNCIA HUMANA
....... O resgate das lembranças, de valores pessoais de
diferentes classes sociais e gerações, a comparação de
experiências vividas no passado com modos de vida do
presente.
Os contos eram muito interessantes, eles
falavam dos mitos ou invenções dos adultos, como
lobisomem, alma do outro mundo, árvores e lugares
encantados (onde apareciam almas, animais ou vultos),
“cumade fulozinha”, mãe d’água, e casas
“malassombradas”. Esses contos eram horripilantes, de
deixar qualquer criança assustada. Mesmo sendo
assustador, adorávamos ouvir, pois brincávamos até
com coisas do outro mundo, com os monstros criados
por nós mesmos ou por adultos que nos queriam sob o
seu poder através dos medos. Tínhamos um vizinho
que se chamava Xando, esse adorava fazer pegadinhas
e contava história de terror e fazia medo às crianças e
adultos. Na noite escura ele escondia-se atrás das
10. árvores para assustar as pessoas, numa das vezes meu
tio quase o mata com a faca por causa do susto.
E as cantigas então, eram estimulantes e
criativas. Muitas delas eram de rimar e outras de fazer
versos, o que acabava numa competição saudável e
inteligente, além de ter todo um poder de sedução entre
machos e fêmeas. Competia-se para saber quem tirava
o verso mais bonito e mais criativo ou fazer uma
declaração de amor para alguém, e nessa brincadeira
passávamos a noite cantando e festejando.
Cantávamos bastantes cantigas de roda, mazurca,
coco, cirandas, músicas de tirar versos e fazíamos
muitos jogos de: o que é o que é?
Um dia muito importante foi quando fizemos o
casamento da minha boneca. A festa foi organizada
com antecedência com direito a cerimônia, convidados,
muita comida e a dança da mazurca. Minha tia que
costumava contar história era a mais animada. Foi um
evento importante, até os adultos participaram e foi
muito elogiado por eles.
11. As Diferentes Dimensões da Memória
..... Pessoal: crenças; valores; interesses; visões de
mundo; capacidade de autonomia.
Ao voltar pra casa toda feliz, meu pai perguntou:-
Mandou sua tia comprar o livro? Olhei-o e respondi: tia
já tinha ido embora, mandei Cencinha (minha
professora) comprar. Ele tirou a bainha em couro da
faca de doze polegadas, que carregava na cintura, me
“lapeando” falou: eu disse que era para sua tia comprar
e não outra pessoa. Eu nunca esqueci de ter apanhado
por ter tomado uma atitude. Até hoje não esquecei do
ato injusto que ele cometeu. Penso que esse foi dos
motivos pelos quais tenho tanta cede de justiça em
todas as dimensões da relação humana.
.....Social: origem socioeconômica e cutural;
idelogias; posicionamentos políticos, engajamentos.
Na escola fiz muitas amizades e no segundo
ano, conheci o movimento estudantil e logo me envolvi
nas atividades do grêmio e da Associação Recifense
12. dos Estudantes Secundaristas –ARES, (da qual fui
Tesoureira) e da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas -UBES (fui vice-presidente/NE). A
maioria dos professores sempre me apoiou, nunca fui
reprovada, conciliava estudo, movimento estudantil e as
lavagens de roupa do meu primo para pagar a escola.
Tentei vestibular para o curso de serviço social
no ano seguinte na UNICAP, mas não passei. Já estava
matriculada no curso cientifico do colégio Oliveira Lima.
Surgiu a oportunidade de ir a Cuba, fazer um curso de
formação de quadro, na escola da juventude. Era um
curso oferecido pela juventude cubana, onde eles
recebiam várias delegações de vários países de todo
mundo para permanecer naquele país por um ano.
Recebíamos uma bolsa de duzentos pesos. As eram de
segunda a sexta, das oito da manhã às doze horas,
estudando História, Filosofia, oratória, economia
política, participávamos de trabalhos voluntários, entre
outras coisas foi uma experiência incrível. Nós fomos a
última turma da escola, pois a crise que Cuba
enfrentava no momento, a escola fechou para essa
finalidade e foi trans formada numa escola de esportes
13. Tive dificuldades em filosofia, então quando
voltei, me inscrevi para concorrer a uma vaga para o
curso de Filosofia na universidade católica e pra minha
surpresa passei. Matriculei-me, mas não conclui o
primeiro semestre, por dois motivos: o primeiro por que
eu estava militando em uma organização política, que
exigia vinte e quatro horas do meu tempo, viajava muito
e não podia frequentar as aulas, nem realizar as
avaliações. Eu estava entre estudar e militar.
......Profissional: processos de formação,
desenvolvimento profissional, formação inicial e
continuada, identidade profissional; participação em
organizações profissionais.
Chegar a ser professora não foi bem uma escolha, foi
conseqüência da realidade que sempre me jogava pra
área de educação, a começar pelo curso, que é única
oportunidade de trabalho, e que ainda é muito escasso.
14. ......Pedagógica: práticas pedagógicas; projetos
educativos; metodologias utilizadas; concepções de
ensino-aprendizagem avaliação.
A imagem que eu tinha da Universidade era de
um espaço mais aberto e menos preconceituoso, mais
consciente e revolucionário. Foi um sofrimento pra mim,
momentos muito angustiantes. Encontrei professores
reacionários e no mundo das nuvens, discutindo o sexo
dos anjos. Eu não conseguia acompanhar aquelas
discussões, eu esperava que a leitura que estava
fazendo pudesse me ajudar a entender a realidade,
mas não, aquilo me confundia ainda mais. Quando
perguntava, os professores diziam que eu não podia
fazer a leitura como eu queria. Eu tinha que superar
“viajar” numa realidade subjetiva incompatível com a
realidade objetiva. Isso me custou muita angustia e
alguns momentos de profunda depressão, a ponto de
querer desistir, mas minha persistência é maior do que
minha desistência. Dos professores que marcaram
minha vida na Universidade, estão os de Psicologia 6 e
7 e a professora de Alemão. Os fatos mais marcantes,
foram quando entrei na Universidade e quando me
15. formei, pois trago comigo uma frase do professor de P6
que dizia “É importante que se cumpra os rituais, pois é
um circulo que se fecha e logo se abre
outro”.Estávamos falando da importância dos rituais na
nossa vida, da etapa que é concluída e logo se abre
outra. Eu estava vivendo esse processo, pois era o ano
da minha formatura.
Um fato que me deixou triste foi o
comportamento do Departamento que não queria que
fizéssemos a formatura e boicotaram, negando-se a
colaborar, mas nós não desistimos e fizemos a
formatura com tudo o que tínhamos direito.
Acho uma pena as escolas não terem Filosofia em seus
currículos. Assim não correríamos o risco de acontecer,
como aconteceu comigo, concluir o ensino médio
completamente analfabeta em Filosofia. Mas na minha
vida nada foi fácil nem linear, tudo foi cheia de
interrupções, mais estou feliz por ter ultrapassado os
obstáculos.
16. ....Institucional: condições para o exercício profissional;
regimes de trabalho; vínculos institucionais;
reconhecimento profissional.
Só falta-me acertar um emprego seguro, que me
garanta um salário todo mês. Isso, a educação ainda
não concedeu.