1. Carta para Belém
MENINO JESUS
BELÉM-JUDÁ.
Doce Menino Jesus de cabelos de oiro e de olhos azuis
parecidinho com o Zézinho do Sr. Doutor. Eu sou o Nel da «Mula»,
filho da Maria «Perita» e do Augusto pescador. Moro com os meus
pais e irmãos, ao todo «semos» dez, naquela casa pintada de
branco, a última ao cabo do bairro dos pescadores.
Havias de ver, Menino, quando a maré subiu, a gente todos
molhados a pingar, a pingar e a água sempre a correr pela rua fora
vinda do lado do cais... Eu fiquei sem a minha bola de capão que o
Ricardo me deu, mas gostei de ver aquela água toda...
Parecia mesmo que ia acabar o Mundo! A grande coisa!... Não
me importava nada... Sabes porquê? Ontem fui à porta da tasca do
Toino da Ribeira espreitar a televisão e ouvi dizer a dois colegas que
moravam lá para a vila que todas as pessoas que morrem vão para a
tua beira... Ah! Pá!... Onde haviam de meter tudo? Ah! Se é verdade
que é assim, tu que és do tamanho da nossa Zeza pequena, dize-me
se não tinhas medo de ter aí no Céu, ao pé de Ti, a Tisuda, a Benta
tola e aqueles homens todos que se zangam e batem uns aos outros
no fim do futebol... Havias de ver... Sabes, que à porta da tasca
também ouvi dizer que todos os anos pões uma prenda nos sapatos
dos rapazes da Escola.
Eu não tenho sapatos mas também ando na escola. Gostar
muito, não gosto, mas... Anda a gente lá, zuca que zuca, matuta que
matuta e, no fim, somos sempre apanhados... Eu não sei se
compreendes... Mas um dia, quando fores para a Escola, vais
perceber...
Não sei se ficas triste com os meus desabafos como a nossa
professora, mas a verdade é que a Escola devia ser à semana para os
ricos e ao domingo para os pobres... À semana o pai manda-me à
isca e a mãe toma conta dos meninos... Apareço na escola ao sábado
porque é só até às três horas... E fazemos desenho, caligrafia e
2. problemas. Eh! Que disso é que eu gosto!... O meu pai diz que a
Senhora não é boa «peça», que tem a mania de mandar papeizinhos
a falar de multas, mas eu não acredito nisso. Ela é boa pessoa, isso
é... Havias de ver, Menino!... Quando se zanga connosco bate com a
régua na mesa e diz: - «Ó meus filhos! Aqui é assim...» E ás vezes,
zás!... Quem merece castigo, recebe castigo... Isto é só quando
descobre que o João rouba cigarros ao pai, que o Jorge bateu no
Rui, que o Nando rasgou um livro ao Zé Rolhas... E outras coisas...
Outras coisas... Depois... Ri-se... Quando se ri é parecida com aquele
retrato da tua mãe que está na Igreja... E diz que gosta tanto de nós
como nós gostamos de Ti, Doce Menino! Se o meu pai um dia
falasse com ela nunca mais batia com os punhos em cima da
cómoda, a gritar: «- Eh! Denho de moço! Eh! Calhau duma figa!
Arruma-me com essas papeladas todas, senão vai naco...»
Se puderes, Menino, se a tua casa não ficar longe da minha,
anda pôr-me na chaminé umas botas altas como as dos polícias,
para não andar descalço pelo lodo à procura da isca... Se não
puderes, manda então outra maré para a gente ficar a perigar, a
perigar e a pensar que o Mundo vai morrer...
Se não compreenderes a letra, Doce Menino, pede à Nossa
Senhora que leia a carta e que te explique que há muitos rapazes
como eu no bairro, pobres, tristes, esfomeados e marotos. Sim,
porque nós somos marotos quando nos juntamos. A brincar
corremos atrás da Benta tola e partimos as flores do jardim... Os
nossos pais ralham connosco e chamam-nos nomes feios, porque a
miséria é grande, negra e feia.
Sabes, Doce Menino! Se não me deres as botas altas, vou ver se
posso roubar no monte de lixo da Ribeira um bocado de cabedal e
pintá-lo com giz branco.
Talvez consiga fazer dele umas sandálias como aquelas que
levava o Miguel, quando foi para junto de Ti. Vestia o fato de
marinheiro do Zézinho do Sr. Doutor e pedia a uma gaivota grande,
que me costuma roubar a isca, que me levasse sobre o mar até
desaparecer no Céu. Depois, tirava-te as estrelas mais pequeninas e
mandava-as ao meu pai para trocar por roupas, sapatos, casas e
botas altas. E... e nunca, e nunca mais chegava tarde ou faltava à
Escola para ir à isca...
Ó Menino, que a estrela maior era para a nossa professora!!!
Não te zangavas, pois não? Então... então manda-me, este
Natal, umas botas altas.
3. Dá saudades à Nossa Senhora e recordações a S. José.
Recebe um abraço do teu amigo
Nel da Mula
Casa branca de janelas verdes
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.
Data da conclusão da edição no blogue – 22 de junho de 2012
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