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                                                                       /SP   /Aid
                                                               V idda D S T
                                                          Pela        CRT
                                                      upo x u a i s (
                                                  Gr nse
                                           D-
                                       (CR            Tra
                                 id ade v e s t i s e
                              ers a Tra
                          Div        r
                    i a da egral pa
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              fe úd
         e Re     a
   t ro d io de S
Cen ulatór
   b
Am




  A orientação sexual e a
  identidade de gênero são fatores
  determinantes para a saúde, não
  apenas por implicarem em práticas
  sexuais e sociais específicas, mas
  também porque podem significar
  o enfrentamento cotidiano de
  preconceitos e violações de
  direitos humanos. O Centro de
  Referência e Treinamento
  DST/Aids, sede da Coordenação
  Estadual DST/Aids-SP,                                        A relação entre a epidemia da
  inaugurou em junho de 2009, em                               aids e a exclusão social precisa ser
  suas dependências, o primeiro                                melhor compreendida e enfrentada.
  ambulatório de saúde do Brasil                               É com esse propósito que o Grupo
  dedicado exclusivamente a                                    Pela Vidda/SP está à frente do
  travestis e transexuais. Este                                Centro de Referência da
  serviço foi criado para facilitar o                          Diversidade (CRD), desde 2008,
  acesso de populações vulneráveis                             em parceria com a Prefeitura
  ao Sistema Único de Saúde,                                   de São Paulo. Iniciativa pioneira,
  possibilitando a elas sua inserção                           oferece assistência, capacitação,
  social e o direito integral à saúde.                         geração de renda, convivência e
  Maria Clara Gianna e                                         cultura para profissionais do sexo,
  Artur Kalichman                                              gays, lésbicas, travestis, transexuais
  Coordenação Estadual DST/Aids-SP
                                                               e pessoas que vivem com HIV e
                                                               aids em situação de vulnerabilidade
                                                               e risco social. Com a porta
                                                               aberta para a realidade, buscamos
                                                               resgatar a dignidade, a cidadania e
                                                               melhores condições de vida para
                                                               tantas pessoas historicamente
                                                               esquecidas e discriminadas.
                                                               Mário Scheffer e Irina Bacci
                                                               Grupo Pela Vidda/SP
                                                               Centro de Referência da Diversidade
REALIZAÇÃO
Grupo Pela Vidda/SP
Presidente: Mário Scheffer
Coordenadora do CRD: Irina Bacci
Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP
Coordenadora: Maria Clara Gianna
Coordenador-adjunto: Artur Kalichman

COLABORAÇÕES
Nossos agradecimentos aos entrevistados: Ana Maria
Costa, Elaine Maria Frade Costa, Gustavo Menezes, Jalma
Jurado, Jovanna Baby e Tereza Rodrigues Vieira.
Grupo Pela Vidda/SP: Abel Corino da Fonseca Neto,
Douglas Galiazzo, Flavio A. Rodrigues, Luis Francisco dos
Santos, Marcos Ferreira Marinho, Maria Hiroko Watinaga,
Michele Aparecida Morais Santos, Murilo Bezerra Duarte,
Rogério de Jesus Ribeiro e Silvia Regina Carvalho.
Centro de Referência da Diversidade: Alessandra Saraiva,
Andreza Barbosa Trindade, Claudia Coca (in memorian), Fernanda
Maria Munhoz Salgado, Fernando Henrique da Silva Settanni,
João Batista Pereira, Maria Cristina Santos, Paulo Rogério da Silva,
Renato Mathias, Selma da Silva Leal Montervan, Taís Diniz Souza,
Thaís di Azevedo e Thatiane Di Risio dos Santos.
CRT DST/Aids-SP: Angela Maria Peres, Denise Mallet, Emi
Shimma, Judit Lia Busanello, Maria Filomena Cernichiaro, Marta
Omya e Ricardo Barbosa Martins.

AGRADECIMENTOS
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS/PMSP)
– CRAS/Sé e CAS/Centro-Oeste: Idalina Helena Villas Boas
Menezes, Lia Déborah Sztulman, Margarida Yoshie Iwakura
Yuba, Maria Inês Cordeiro Gabriel, Marilisa Jorge Ayres, Nívea
de Simone da Silva e Sueli Chohfe Stelzer.
Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual –
CADS (SMPP/PMSP)
Projeto de Inclusão Social Urbana Nós do Centro
Pelo incentivo e apoio: Ana Paula Alberico, Cássio Rodrigo,
Floriano Pesaro, Gilberto Natalini, José Carlos Ferreira, Leilah
Rios, Luca Santoro, Marcelo Garcia, Marina Morena Barbosa,
Nacime Salomão Mansur, Norberto Bossolani, Renato de
Paula Marin e Vicente Roberto Hortega.

APOIOS
Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais
do Ministério da Saúde
Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura de São Paulo (SMAS/PMSP)
Programa Municipal de DST/Aids de São Paulo (SMS/PMSP)

EQUIPE DE PRODUÇÃO
Reportagens e textos: Aureliano Biancarelli
Fotografia: Osmar Bustos
Edição e revisão: Fernando Fulanetti
Arte e diagramação: José Humberto de S. Santos
Produção gráfica: Márcia Costa
Impressão: Gráfica Stampatto
Tiragem: 2.000 exemplares

São Paulo, outubro de 2010
SUMÁRIO

 4   O amor na diversidade

     Um tema estigmatizado e ignorado                6
10   Acolhimento e atenção integral à diversidade

     Transexuais e travestis.
     Respeito e direitos em adequação               15
20   CRD. O acolhimento como “porta de entrada”

     Ambulatório para travestis e transexuais.
     A busca pela saúde integral                    25
     Transexuais têm maior escolaridade
32   e inserção no trabalho

     Abrigo, trabalho e acolhimento                 34
     “Não sou doente mental”,
41   diz ex-presidente da Parada GLBT de São Paulo
     Brasil tem quatro centros
     públicos para a cirurgia                       44
     Terças-Trans.
50   Um espaço de dúvidas e aprendizados

     A batalha pelo direito ao nome e ao sexo       54
     “Abertura” do Judiciário
56   facilita nova identidade
     Nome afasta transexuais e travestis
     da escola e serviços de saúde                  60
63   Mudança no documento é prioridade

     Visita às avenidas e guetos onde se
     oferecem as profissionais do sexo              67
72   A “festa” dos craqueiros anestesiados e esquecidos

     Jovens e determinadas. Maioria das travestis
      diz não “precisar” de cuidados médicos        76
PREFÁCIO




                                             O AMOR NA
                                             DIVERSIDADE
                                                                     Aureliano Biancarelli



                                  á esperava ouvir relatos de humilhações e maus-    panheiro com quem vai se casar quando se preparava




                         J
                                  tratos sofridos pela população LGBT, especial-     para a cirurgia de redesignação sexual. Os pais do casal
                                  mente por parte das travestis e transexuais. A     já foram apresentados.
                                  angústia de gays que abandonaram a casa dos            A descoberta do amor nesse universo marginal sur-
                                  pais depois de agredidos e foram morar na rua.     giu ao longo das muitas entrevistas. A solidariedade e a
                                  Garotas travestis que fugiram de suas famílias e   troca de cuidados, como gestos de amor, estão presen-
                         se aventuraram sozinhas em busca de hormônio e de           tes em quase todos os relatos. Já se imaginava um uni-
                         clientela. Só não esperava que o amor e o com-              verso de preconceito mas o amor não estava na pauta,
                         panheirismo sobrevivessem com tanta força entre esses       nem na lista de preocupações dessa publicação.
                         personagens. No Centro de Referência da Diversidade             A proposta foi deixar que contassem suas histó-
                         é comum ver casais de mãos dadas, ela travesti, ele         rias. Reunir relatos descritos a partir do olhar de quem
                         heterossexual, os dois morando na rua. Em todos os          se encontra na rua ou dependente da rua, onde seu
                         relatos, em meio a histórias de maus-tratos, abandono       sexo, definido ou imaginado, é a razão das atenções
                         e discriminação, há sempre uma história de amor             e discriminações. Muitas vezes desejadas e fantasia-
                             Mikaela é capaz de quebrar um bar se alguém mal-        das, travestis e transexuais são objetos de desejos es-
                         trata uma de suas colegas travestis. Na “vida real”, ima-   condidos – ou revelados – nas escapadas noturnas
                         gina uma casinha onde possa trabalhar no computa-           de “clientes” em avenidas e esquinas pouco ilumina-
                         dor, ao lado do “esposo” que diz amar. Luiza Santos         das da cidade. Na lista dos clientes estão garotos com
                         vive há 14 anos com o companheiro e sonha com o dia         carro emprestado dos pais e homens à procura de
                         em que poderá presenteá-lo com uma vagina, sem a            companhia.
                         necessidade de esconder o pênis atrofiado. Ele nunca            A proposta dos textos que se seguem é reproduzir
                         se queixou, diz ela. Alexsandro, um homem trans, teve       as histórias dessas travestis e transexuais. Falar das
A DIVERSIDADE REVELADA




                         várias parceiras heterossexuais. A família da atual na-     barreiras que separam essas personagens dos serviços
                         morada prepara o casamento. Rodrigo já foi michê e          públicos, principalmente aqueles de saúde. A publi-
                         agora, portador do HIV, troca cuidados com a compa-         cação dedica cuidado diferenciado e esperançoso a dois
                         nheira que é travesti e sofre com um câncer. Marciano       serviços recentes que buscam olhares e atenção ino-
                         ganhou dinheiro como cafetão, até cair no crack e ado-      vadores para essa população. Trata-se do CRD, o
                         ecer com câncer e aids. Em nenhum momento antes e           Centro de Referência da Diversidade, parceria da
                         depois da doença, ele conta, foi abandonado por com-        ONG Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São
                         panheiras, travestis e mulheres, que estiveram ao seu       Paulo. E do Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
                         lado. A travesti Camila, no entusiasmo dos seus 20 anos,    vestis e Transexuais, do Centro de Treinamento e
                         deixou o albergue e passou a morar nas ruas por “amor       Referência DST/Aids-SP, serviço da Secretaria de
  4                      ao esposo”. A transexual Alessandra conheceu o com-         Estado da Saúde de São Paulo.
Aos olhos dessa publicação, estes locais revelam-se   xúria”, não de uma modificação que necessitasse de
pontos de encontro com um universo marginal e estig-      cuidados médicos. A oferta dos serviços públicos, só
matizado, mal compreendido e subavaliado. A depen-        agora regulamentada, não dá conta de uma ínfima
dência pelo crack e a infecção pelo HIV, altamente        parcela das transexuais. A maioria, mesmos nos “tem-
presentes nessa população, são duas ameaças para as       pos modernos”, morrerá embalando o sonho de ter o
quais a sociedade e a saúde pública ainda não presta-     pênis trocado por uma vagina. Aos homens trans, não
ram a devida atenção. Os custos produzidos pela vio-      há sequer a perspectiva de implantação de um pênis,
lência desse vulcão silencioso, os gastos com saúde, as   técnica ainda experimental.
perdas de vidas e o sofrimento dos sobreviventes só           O resultado desta publicação é ainda uma via-
serão conhecidos quando a conta chegar. E ela chega-      gem superficial num território outrora batizado
rá com acréscimos nem sempre possíveis de bancar.         equivocadamente de “terceiro sexo”, ignorado pela
     Convidado a produzir os textos dessa publicação,     maioria heterossexual. Já começou o milênio onde
me senti à vontade para reunir relatos que ilustram a     homens e mulheres serão superados por um sexo que
vida de personagens e dados sobre serviços de saúde,      não será nem masculino nem feminino, fantasiam
procedimentos médicos e legislações. A cirurgia de        alguns militantes LGBT.
redesignação sexual para transexuais foi oficializada         Verdade ou fantasia, o livro revela que pouco se
no Brasil em 2002, um atraso de meio século quando        sabe sobre esse outro universo. E que poucos cuida-
se compara com países desenvolvidos. A Justiça tam-       dos vêm sendo dispensados para aqueles que vivem
bém empacou nos seus códigos, e a mudança de nome         entre a marginalidade e a sobrevivência. O que se sabe,
– e especialmente de sexo – ainda requer uma longa e      é que eles vêm abandonando o ninho e ganhando voz
cara ação individual. O cenário vem mudando, mas a        no meio social.
desesperança na fila das cirurgias – agravada com a           Enquanto a sociedade não presta atenção nem cui-
                                                                                                                    A DIVERSIDADE REVELADA




falta de transparência – e as dificuldades na mudança     dados, travestis, transexuais e michês se protegem di-
de nome fazem parte de quase todos os relatos.            vidindo solidariedade e se juntando em casais. A im-
    A discriminação e a pouca atenção dedicadas a         pressão que salta dos relatos é a de que o amor na
travestis e transexuais se arrastam ao longo de sécu-     diversidade é mais generoso e menos opressivo do que
los. Um dia alguém ainda escreverá sobre o sofri-         entre casais heterossexuais. O preço que se paga, no
mento dessa população, ignorada e estigmatizada.          entanto, continua muito alto.
Historiadores e antropólogos ainda não deram a devida         A grande maioria das entrevistas foi feita entre
atenção a esses personagens.                              março e junho de 2010, nos espaços do CRD e do
    Até décadas atrás, a medicina tinha pouco a fazer.    ambulatório. Algumas poucas foram feitas por telefone.
Agora que tem, limita a atenção a uma minúscula           Todos os entrevistados e entrevistadas concordaram
minoria de transexuais, como se tratasse de uma “lu-      com a publicação de seus nomes e de suas fotos.               5
INTRODUÇÃO




                                        UM TEMA
                                    ESTIGMATIZADO
                                      E IGNORADO
                         “Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz o
                          cirurgião que mais fez cirurgias de redesignação sexual no Brasil.
                           Muito além dos bisturis, o desafio está em adequar as mentes
                                  heterossexuais à convivência com a diversidade.



                                    elatos de personagens de uma chamada           reúne essa população. Mesmo reduzidas a um décimo




                         R
                                    “diversidade” estão registrados nos capítu-    desse número, não há estrutura nos serviços públicos
                                    los desta publicação. São mulheres trans –     capaz de atender sequer uma parcela dessa população.
                                    que nasceram com corpo de homem e se               Sem a pretensão de ordenar temas ou de explo-
                                    sentem mulheres. E de homens trans, que        rar todas as dificuldades da população LGBT, os tex-
                                    conservam os órgãos femininos, mas pen-        tos que se seguem nesta publicação tratam das ques-
                         sam e agem como homens. O respeito e os cuidados          tões da legalidade, do direito ao nome, dos serviços
                         psicológicos e médicos a essa população dependem          de saúde e do reconhecimento desse grupo. Espe-
                         de um amadurecimento da sociedade. Vai do conhe-          cialistas do direito e da saúde, e ativistas transexuais,
                         cimento e da atenção médica, que inclui cirurgias         expõem seus pontos de vistas e falam de suas expe-
                         complexas e reordenações do serviço público, aos          riências com essa população.
                         avanços em termos da legislação e até mesmo às in-            Os depoimentos das pessoas entrevistadas ilustram
A DIVERSIDADE REVELADA




                         terpretações do Judiciário.                               um cenário desconhecido e ignorado mesmo pelos
                              Nos códigos prevalentes, não há espaço para um       profissionais que deveriam estar de olhos mais atentos
                         “terceiro sexo”, por isso a mudança do nome e do          para a evolução dos conceitos. “Não mudamos nada,
                         sexo depende de demorados e complexos processos           apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz Jalma Ju-
                         na Justiça. Medicina e Judiciário estão décadas atrás     rado, o cirurgião plástico brasileiro que diz já ter feito
                         de um processo de readequação do sexo que há sé-          800 cirurgias de redesignação sexual. A grande maio-
                         culos aparece em relatos, em todas as civilizações e      ria dos profissionais ainda terá de amadurecer antes
                         em todas as épocas.                                       de pensar como ele.
                              Camufladas e escondidas no meio social, as traves-       A seguir, falas resumidas de alguns e algumas das
                         tis seriam 800 mil no Brasil e 400 mil as transexuais,    personagens, cujas histórias em detalhe podem ser vis-
  6                      segundo estimativas da Antra, articulação nacional que    tas ao longo desta publicação.
AGNES traz entre os seios uma         procedimentos – e a abertura do                  “O CRD para mim é uma
tatuagem com seu nome, uma cruz e            Ambulatório de Saúde Integral para        clínica, nenhum outro tratamento me
uma borboleta. Fez isso quando tinha         Travestis e Transexuais, ela retomou      mudaria tanto, porque aqui me deram
23 anos. Deprimida, tinha decidido se        as esperanças. “Só não me suicidei        responsabilidades, tive o apoio e a
matar, mas não se conformava com o           porque tirar a vida por uma condição      confiança de toda a equipe. Para
fato de que na lápide ficaria gravado        que Deus me deu, seria cometer o          desviar da droga, o drogado tem que
seu nome masculino. Com a                    maior pecado. Mas ainda espero que        ter uma responsabilidade. Então o
tatuagem, saberiam que estavam               com a cirurgia encontrarei o              contrato aqui com o CRD mudou
enterrando uma mulher, ela                   casamento e a felicidade.”                tudo, virou um projeto de vida, mais
imaginava. Desistiu do suicídio, mas                                                   do que um trabalho. É uma luta
se inquieta ao pensar que se morrer                 NO PARQUE DA LUZ, o mais           constante. Eu era 100% drogada, hoje
antes da cirurgia e da mudança nos           pobre e triste ponto de prostituição da   posso dizer que sou 20%. Um tempo
documentos trocarão suas roupas por          cidade, Bernadete é considerada           atrás eu jamais estaria aqui, estaria
um paletó de homem e na lápide               jovem perto das senhoras de mais de       roubando, indo atrás de droga.”
ficará seu nome masculino.                   80 anos que fazem programa ali.           Claudia Coca, 42 anos, é uma travesti
                                             “Vivem de clientes antigos, ou de         contratada como educadora de rua.
       ALEXSANDRO já teve quatro             rapazes maníacos com fixação na mãe       Percorre pontos de prostituição
casamentos com mulheres                      ou na avó”, ela interpreta. “Os           embaixo de viadutos, onde só uma
heterossexuais e diz que sempre              clientes idosos, com os cabelos           travesti seria recebida. Quem vê
cumpriu suas “funções de homem e             branquinhos, são tão sozinhos quanto      aquela negra atraente, de cabelos
marido”. Agora está diante de um             elas. Usam três cuecas, quando uma        curtos, cintura torneada e seios
dilema: os pais da atual namorada            suja, colocam outra por cima, depois      empinados, não imagina que já foi
esperam um casamento na igreja e de          outra.” Bernardete Vicente de Souza,      drogada, prostituída, presidiária,
papel passado. Só que ele é um homem         58 anos, faz a ponte entre as             bombadeira. É um dos exemplos mais
trans, tem barba e traços masculinos,        “meninas” da Luz e o CRD. “Digo a         marcantes de “travestis marginais”
mas disfarça os seios e esconde uma          elas que é um jeito de não ficar          que mudaram de vida ao encontrar o
vagina. E nos documentos traz o nome         sozinha. Porque ficar sozinha nesta       CRD e que, infelizmente, faleceu
de mulher. Sua esperança é conseguir         vida é perigoso.”                         antes de ver essa publicação.
uma cirurgia para a retirada dos seios, já
que substituir a vagina por um pênis é              CAMILA ROCHA, 18 anos, é uma              A CABELEIREIRA Débora Zaidan
uma possibilidade remota. E mudar o          travesti forte, bonita, com traços e      reuniu R$ 30 mil com a ajuda da família
nome depende de um processo lento            seios que chamam a atenção. Dorme         e em 2006 fez a cirurgia de
na Justiça. A data do casamento está se      na rua “por amor”, ela conta. O           redesignação sexual com um cirurgião
aproximando.                                 “marido” morria de ciúmes sabendo         particular. Os vizinhos e clientes
                                             que estava num albergue numa ala          sabem que hoje ela é uma “mulher
       ANDRÉIA FERRARESI carrega na          com 120 homens. “Não dava para            operada”, embora sempre tenha sido
pasta repleta de papéis um laudo de          ficar separados. Decidimos os dois        respeitada como mulher. Débora diz
1977 informando que é portadora de           dormir na rua.” Camila encontrou          que teve companheiros antes e depois
transexualismo e que está apta para a        socorro no CRD e no Ambulatório de        da cirurgia, e descobriu que o sexo não
cirurgia de adaptação de genitais. Só        Saúde Integral para Travestis e           era o mais importante na relação.
                                                                                                                                 A DIVERSIDADE REVELADA




25 anos depois, em 2002, o Conselho          Transexuais quando o HIV já estava        “Hoje vivo muito mais tranqüila com
Federal de Medicina viria a autorizar        roubando as energias e as drogas          meu sexo, mas descobri que o prazer
o procedimento nos hospitais públicos        afastando os clientes. Sua vida de rua    é psicológico. Tive muito prazer com
e privados. Nesse quarto de século,          e prostituição começou aos 10 anos na     alguns homens, e não tive nada com
Andréia viveu de terapias e sonhos.          praia de Iracema, em Fortaleza. “Em       outros, sem vagina e com vagina, assim
Ainda continua sonhando. Aos 67              São Paulo descabelei, orgia, bebida,      como qualquer mulher.”
anos, ela se diz uma mulher                  droga. O cliente oferece crack, paga
injustiçada, mas se recusa a falar em        mais e não quer camisinha. Não vou              “A MUDANÇA de sexo é uma
desistência. Com a nova portaria do          contar que tenho aids. Estou              coisa que hoje não me incomoda
SUS de 2008 – incluindo a cirurgia de        deixando essa vida, mas ainda preciso     tanto, mas já sofri muito
redesignação sexual entre seus               de dinheiro.”                             afetivamente. Você conhece um                 7
homem e ele pensa que você é              marquises no centro de Osasco, até         Demônio, que conserva até hoje.
                         biologicamente mulher, e você não         conhecer o CRD e ser encaminhada a         Alta, forte e “babadeira”, ela se
                         é... Fica com medo de contar e ser        um albergue. Diz que ainda não             impunha onde estivesse. Um cliente
                         rejeitada, como acontecia lá atrás. O     encontrou ajuda nos serviços de saúde      ou estranho que humilhasse uma
                         medo de se identificar vai virando um     e naqueles voltados para a população       colega, ela quebrava uma garrafa na
                         trauma. Hoje já me pega menos.            LGBT, onde esperava uma reinserção         mesa e o bar virava um silêncio. Era a
                         Estou conseguindo gostar de mim           no trabalho. “Meu relato é uma             mais respeitada. Aos 40 anos,
                         mesma.” Kleos Marine Guedes, 45           história de perdas e de um auto-           “exausta, acabada, sem saída”,
                         anos, produtora de eventos e artesã.      conhecimento solitário. Perda do           passou um dia pela calçada do CRD e
                                                                   emprego, da casa, da identidade            dediciu entrar. “Ali mostraram que
                                “MEU NOME social é Leo             sexual, da família. Aos 26 anos contei a   minha vida podia ser diferente, e eu
                         Moreira, tenho 52 anos, sou um            meus pais o que eles sempre                comecei a mudar.” Dali passou a ser
                         homem trans, tenho essa barba e cara      souberam. Meu pai disse, ‘eu aceito        cuidada pelo Ambulatório de Saúde
                         de homem, mas ainda carrego seios e       você assim, só não estou preparado         Integral para Travestis e Transexuais.
                         uma vagina. Estive preso por cinco        para participar’. Era justamente o que     Mikaela está se mudando para uma
                         anos em vários presídios por conta de     esperava ouvir. Esse foi o momento         casa na periferia da Zona Sul com o
                         drogas, me casei três vezes nas           definitivo. Meu pai e minha mãe            “esposo”, que tem emprego no
                         cadeias, nas alas femininas, porque       morreram logo depois.”                     programa Travessia Segura, da
                         para o sistema eu era a Lourdes                                                      Prefeitura. Diz que aprendeu tudo de
                         Helena Moreira Santos, era a sapatão             MARCIANO Alves Fernandes, 29        informática e quer fazer faculdade de
                         mais disputada pelas presidiárias.        anos, conserva a elegância dos tempos      tecnologia da informação. Ganhará
                         Com metade do curso de sociologia         que mantinha R$ 300 mil em conta           tanto que voltará a usar seu perfume
                         na USP, virei professor na cadeia,        bancária e chefiava 30 meninas numa        preferido, Bulgary black, e só
                         antes já tinha sido militante feminista   das ruas de Ravenna, na Itália. Foi para   trabalhará em casa, “pelada, com
                         e baterista do grupo As Mercenárias.      rua com 12 anos quando o pai adotivo       meu namorado”.
                         Fui casado de papel com a travesti        lhe bateu na cara e ele prometeu que
                         Gabriela Bionda, eu com meu nome          homem nenhum voltaria a fazer isso                MILA não quer mais que a
                         de mulher, ela com o nome de              com ele. Fugitivo de casa, dormiu em       chamem de Mila Citroen, apelido que
                         homem, era o casal mais badalado do       cima de árvores, foi cuidado por           ganhou porque os carros que
                         mundo gay. Quando sai da cadeia, não      travestis, até se tornar cafetão           “sequestrava” para tirar dinheiro de
                         tinha mais nada, nem amigos nem           respeitado e patrocinador de festas        caixas eletrônicos eram sempre da
                         referências sexuais. O CRD me deu         com as mulheres mais bonitas. Hoje se      marca Citroen. “Sou outra Mila”, ela
                         essa força. Hoje sou ator na peça         trata da aids, de diabetes e de um         diz. Mila Alves dos Santos, 30 anos, já
                         “Hipóteses para o Amor de                 câncer. Trocou as contas em banco          foi prostituta, assaltante, presidiária,
                         Verdade”, que conta um pedaço da          por um salário contado como                drogada, “fazia programa por R$ 5 só
                         minha história, e que está no espaço      segurança e agente de prevenção do         para comprar pedra”. Entrou no
                         Satyros 1. Vocês estão convidados.”       CRD. “Plantei espinhos, estou              CRD convidada por uma amiga e
                                                                   colhendo espinhos”, diz, sem perder a      desde então diz que sua vida está
                                MARCELLE MIGUEL, 37 anos, tem      dignidade. “O crack me pegou e me          mudando. “Hoje não sou mais
                         traços femininos, cabelos sobre os        destruiu em dois anos. Mas ainda vou       clandestina, vivo com meu parceiro, o
A DIVERSIDADE REVELADA




                         ombros, olhos verdes, usa blusa regata    sair dessa.” Em todos os momentos,         Igor, todo mundo no bairro sabe”.
                         preta, calça unisex e sandália de dedo.   sempre teve uma mulher do seu lado,        Igor é ajudante de carga e descarga,
                         Chama a atenção pela aparente             travesti ou transexual. “Quando você       estava noivo quando se decepcionou
                         timidez, a conversa tranquila, as         para com a droga, fica muito carente.      e encontrou Mila, “esta é história que
                         palavras medidas, as frases construídas   Agora vivo com Bianca, na periferia.       ele me conta”, diz. “A droga ainda
                         com cuidado. Já foi “técnico” de          Um cuida do outro.”                        me tenta, mas estou vivendo como
                         informática em grandes empresas                                                      auxiliar de cabeleireira e faço
                         antes de abandonar os trajes                    NOS 20 ANOS que se prostituiu,       supletivo. Vivo fugindo das
                         masculinos e se assumir como mulher       quando se animava com drogas e             tentações. Costumava carregar R$ 3
                         trans. O preço foi o desemprego e a       álcool, a travesti Mikaela Rossini         mil na bolsa, oferecia drogas e bebidas
  8                      rua. Viveu vários períodos sob            ganhou o apelido de Mikaela                para as colegas. Hoje o dinheiro para
viver me deixa feliz. No ambulatório,     com um trabalho e um espaço que           prostitutas, é voluntária num serviço de
estou treinando com a fonoaudióloga       possa dividir com Fernanda. “Ela tem      DST-Aids, e faz o primeiro ano numa
para afinar a voz.”                       dois yorkshires, precisamos de uma        faculdade de Serviço Social. É
                                          casinha com quintal.”                     acompanhada pelo ambulatório para
       ELA É A ESTRELA das noites                                                   travestis e transexuais do CRT DST/
paulistanas nos bares que reúnem                  “UMA TRAVESTI com silicone e      Aids-SP. Vanessa diz que nunca ouviu
gays, lésbicas e travestis. É uma das     próteses pode ganhar até R$ 500 por       uma “gracinha, um psiu, uma
raras drag queens que não dubla e que     noite, as outras ganham a metade. O       provocação”, referindo-se a seus trajes
coleciona elogios da crítica como         silicone industrial é perigoso, mas não   e comportamento como mulher. “Se
intérprete da música popular              vim de Belém para ficar no meio do        você quer respeito, tem que ter
brasileira. Cria suas coreografias e      caminho. Assim que fizer as               respeito, tem que impor. Não pode
destila um humor picante, sempre          aplicações e juntar dinheiro, vou para    botar um bustiê, um sutiã, e querer ir
intercalado com poemas. Seu próximo       a Itália.” Suzielen S., 19 anos, se diz   ao açougue ao meio-dia”, ela diz.
CD é dedicado a Noel Rosa. Ela é          travesti e transexual. Frequenta as
Renata Perón, mas já foi o cantor         Terças-Trans do CRD e faz                        O PROFESSOR de inglês Victor
Sérgio, em Juazeiro, Bahia. Em São        acompanhamento no Ambulatório de          de Abreu, 27 anos, é um homem
Paulo foi cabeleireira, manequim,         Saúde Integral para Travestis e           trans que já fez cirurgia da mama e
trabalhou em teatro, cinema e novela      Transexuais. Mesmo orientada,             agora embala um sonho com a
de TV. Nas tardes de quarta-feira,        percorre a rota sonhada por milhares      namorada com quem vive há quatro
pode ser vista entre o grupo que          delas, “modelar” o corpo e ganhar         anos: retirar um dos seus óvulos e
frequenta as oficinas de canto do         dinheiro lá fora.                         guardá-lo congelado numa clínica de
CRD. “A música é sempre um                                                          inseminação para que no futuro possa
momento de reflexão e autoestima,                “O TERCEIRO milênio é o            ser fecundado e colocado no útero da
para noiados ou não.” Foi o Centro de     milênio da mente, e a mente tem um        companheira. Assim, o filho nasceria
Combate à Homofobia, da Prefeitura,       terceiro sexo. Vai chegar um              de um óvulo seu e seria gerado na
e o CRD que a acolheram quando foi        momento que o homossexual terá            “barriga” da namorada. Victor é
agredida por um grupo de rapazes na       muito orgulho em ser homo, porque é       paciente do Ambulatório de Saúde
praça da República e perdeu um rim.       capaz de gerar coisas lindas,             Integral para Travestis e Transexuais.
Renata é uma travesti, mas nos shows      fabulosas.” Thaís di Azevedo, que faz
que agora faz no Hábeas Copus se          essa “previsão”, traz a experiência de            ALEXANDRE SANTOS, o Xande,
identifica como drag queen. “A            uma travesti que aos 60 anos              38 anos, é um homem trans que já
sociedade não aceita que haja travestis   coleciona uma história de vitórias e      comandou a Parada do Orgulho GLBT
com alguma dignidade e inteligência.”     conquistas que superam as                 de São Paulo, a maior manifestação de
                                          humilhações. Thaís é hoje a               gays, lésbicas, travestis, transexuais e
       QUASE TODOS os dias Fernanda       recepcionista do CRD, aprovada em         simpatizantes do mundo. Tem uma
sai de Guarulhos e vai à região central   concurso. Combina a elegância com a       filha, hoje com 19 anos, que nasceu
de São Paulo para ver Rodrigo. Ela é      amabilidade e a habilidade necessárias    ainda em sua “fase” lésbica. Nas
travesti, já foi auxiliar de              para manter a ordem num espaço            relações seguintes, as companheiras
enfermagem, agora luta contra um          onde se misturam moradores de rua e       foram sempre heterossexuais, como
câncer e batalha pela aposentadoria       travestis em busca de ajuda, às vezes     Débora, sua atual parceira. Xande
                                                                                                                               A DIVERSIDADE REVELADA




que tem direito. Rodrigo de Souza         ainda sob o efeito de drogas. “A falta    ainda não conseguiu a retirada dos
Ventura, 30 anos, percorreu várias        de informação e o preconceito             seios e dos órgãos femininos internos,
cidades antes de chegar a São Paulo e     paralisam todos nós”, diz. As cadeiras    embora seja um procedimento comum
se assumir como michê profissional.       dispostas ao lado de sua mesa nunca       em mulheres, por necessidades
Animado pelo crack, chegava a fazer       estão vazias. Tem sempre alguém           médicas. “A menstruação é uma coisa
20 programas em 24 horas nos              querendo ouvir suas idéias.               terrível para mim”, ele diz, cobrando
principais cinemas pornôs do centro                                                 um direito que considera fundamental.
de São Paulo. Doente e com os                    VANESSA PAVANELLO, 41 anos,        Militante em tempo integral, Xande
sintomas da aids, foi em busca de         mãe de um filho adotivo, é uma mulher     lamenta a invisibilidade dos homens
ajuda no CRD, onde encontrou              trans. Trabalha como agente social da     trans e faz críticas à imposição do
amigos e o gosto pela pintura. Sonha      Prefeitura, coordena reuniões com         padrão heterossexual.                          9
Acolhimento e atenção
                                     INTEGRAL À
                                     DIVERSIDADE
                          Os públicos são muito parecidos, o que facilitou a aproximação e a
                           sinergia dos trabalhos realizados pelo Centro de Referência da
                          Diversidade e pelo Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
                         Transexuais do CRT DST/Aids-SP A experiência dos dois serviços
                                                            .
                               traz a perspectiva de dias melhores à população LGBT   .




                                      Centro de Referência da Diversidade, o      do Centro de Referência da Diversidade, o CRD.




                         O
                                      CRD, já se firmou como porta aberta para    “‘Tem um lanche da tarde e tevê’, Baby disse. Des-
                                      a população LGBT em situação de             cobri que tinha muito mais, tinha gente para con-
                                      vulnerabilidade e risco social. Em outra    versar e que se preocupava comigo. Minha vida co-
                                      frente, o Ambulatório de Saúde Integral     meçou a mudar ali.” Foi o CRD que encaminhou
                                      para Travestis e Transexuais do Centro      Mila para o Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
                         de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT             vestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP. Encon-
A DIVERSIDADE REVELADA




                         DST/Aids-SP) já é referência como serviço de saúde       trou lá não só endocrinologista, proctologista,
                         voltado para essa população. Oferece, inclusive, o       psicólogo, mas também uma fonoaudióloga. “Mi-
                         acompanhamento psicológico necessário para a cirur-      nha voz não era assim, era uma voz grossa.”
                         gia de redesignação sexual. As duas iniciativas estão        Camila Rocha, também travesti, fez caminho se-
                         revelando formas diferenciadas e criativas de oferecer   melhante. Divide visitas ao CRD com o ambulatório
                         acolhimento, escuta especializada e realizar ações de    do CRT DST/Aids-SP onde passa por consultas e
                         prevenção junto a esta população.                        monitora a carga viral da infecção pelo HIV. A
                             A travesti Mila Alves dos Santos viveu nove anos     transexual Verônica Freitas conheceu o CRD no fi-
                         entre prostituição, drogas, assaltos e cadeias. Lem-     nal de 2009 e meses depois tinha suas consultas
                         bra-se da tarde de setembro de 2009 quando Baby,         agendadas no ambulatório. Quer participar do grupo
10                       uma amiga, insistiu para que entrassem na porta aberta   de psicoterapia e sonha com uma cirurgia. Taís Diniz
Os sofás do saguão do CRD são o primeiro espaço de acolhimento para quem está chegando da rua


Souza, transexual e assistente social do CRD, retirou        O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
o silicone industrial que a incomodava depois que pas-   Transexuais foi pensado para oferecer na área da saú-
sou a freqüentar o ambulatório.                          de a atenção especializada que os serviços da rede pú-
    O CRD fica na rua Major Sertório, entre a Rego       blica não contam ou não estão capacitados a oferecer.
Freitas e a Amaral Gurgel, certamente a calçada do       Até então, travestis não passavam por endocrinologistas
Centro da cidade mais freqüentada por travestis e toda   (embora abusem do uso de hormônio), homens trans
sorte de desassistidos da noite. O Ambulatório de Saú-   não contavam com ginecologistas (embora biologica-
de Integral para Travestis e Transexuais, por sua vez,   mente sejam mulheres), e mulheres trans não viam
ocupa várias salas dentro do Centro de Referência e      urologistas – embora conservem a próstata, mesmo
Treinamento DST/Aids-SP, na rua Santa Cruz, na Vila      depois de operadas. Homens trans com jeito másculo
Mariana, Zona Sul. A entrada fica na calçada em frente   e barba no rosto não ficavam à vontade numa sala de
à Igreja Nossa Senhora da Saúde, próximo do metrô,       espera de um ginecologista. Travestis ainda evitam
do Colégio Marista Arquidiocesano e de um shopping       serviços de saúde para não serem chamadas em voz
center. Seu entorno é agitado por milhares de pessoas.   alta pelo nome do registro civil.
Para muitos usuários, é conhecido como o ambulatório         Nas saídas noturnas, quando educadores sociais do
da Santa Cruz.                                           CRD entregam camisinha e gel para profissionais do
    O Centro de Referência da Diversidade foi inau-      sexo, as travestis mais jovens dizem que nunca procu-
gurado em março de 2008. O Ambulatório de Saú-           raram ajuda médica com medo de serem humilhadas.
de Integral para Travestis e Transexuais começou a       Agora, além de especialistas e de profissionais prepa-
funcionar em junho de 2009. Os dois serviços se          rados para essas usuárias, o ambulatório oferece ses-
completam. Marcam um passo inovador na forma             sões de fonoaudiologia, para que suas vozes sejam
de fazer prevenção e oferecer cuidados a uma             moduladas como seus corpos são modelados.
população habituada à discriminação, ao pouco caso           Os dois centros buscam oferecer mais que o acolhi-
e à inabilidade das políticas públicas.                  mento e o atendimento. Pretendem ser modelos para
                                                                                                                    A DIVERSIDADE REVELADA




    O CRD é a porta de entrada para travestis,           que outros serviços sejam abertos no país, por isso são
transexuais, prostitutas, lésbicas, gays e michês que    centros de referência. Capacitar profissionais da saúde
se encontram em situação de risco – vulneráveis à        para que, num futuro, travestis e transexuais não neces-
droga, à violência, ao HIV/aids e ao abandono com-       sitem recorrer a um ambulatório diferenciado.
pleto. É um espaço de acolhimento, convivência e             A gestão do CRD é feita pelo Grupo Pela Vidda/
intervenção na trajetória social. O maior desafio é o    SP, uma ONG que trabalha com HIV/aids há mais
aumento constante de usuários de crack e a reinserção    de 20 anos, em parceria com a Secretaria Municipal
no trabalho. Cerca de metade dos freqüentadores se       de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. No
dizem desempregados, e outra parte, profissionais do     início, o CRD integrava o Projeto Inclusão Social
sexo. Para dar conta dessa tarefa, o CRD fez uma         Urbana – Nós do Centro, com recursos da União
série de parcerias públicas e não governamentais.        Europeia. O Ambulatório de Saúde Integral para             11
rência da Diversidade ilustra o nível de risco em que
                                                                                       se encontram. Entre os usuários que procuraram o
                                                                                       CRD até maio de 2010, 57% se auto-classificavam
                                                                                       como travestis e apenas 5% como transexuais. Os ou-
                                                                                       tros disseram ser gays, heterossexuais, bissexuais ou
                                                                                       lésbicas. No grupo todo, 40% viviam com HIV e 46%
                                                                                       não realizavam teste há mais de três anos, embora
                                                                                       relatassem situação de exposição. A metade se dizia
                                                                                       desempregada e 35%, profissionais do sexo. Um terço
                                                                                       deles era morador de rua.
                                                                                           Trata-se de uma população bastante diferencia-
                                                                                       da daquela que procura o ambulatório do CRT
                                                                                       DST/Aids-SP, o que é compreensível pela própria
                                                                                       proposta do serviço. De uma amostra inicial
                                                                                       cadastrada no ambulatório, 68,2% se auto-definiram
                                                                                       como transexuais e a demanda principal era a cirur-
                                                                                       gia de redesignação sexual e tratamento hormonal.
                                                                                       As travestis eram 35,3% e procuravam sobretudo pela
                                                                                       hormonoterapia e pela retirada de silicone industrial.
                                                                                           Partiu do então secretário estadual da Saúde, Luiz
                                                                                       Roberto Barradas Barata, morto em 17 de julho de 2010,
                                                                                       o pedido para que o CRT DST/Aids-SP colocasse em
                                                                                       andamento um programa voltado para travestis e
                                                                                       transexuais. “As condições estavam dadas, havia planos
                         À espera de atendimento no CRT DST/Aids-SP: antes do
                                                                                       nacionais e estaduais dizendo que tínhamos de trabalhar
                         gênero, do nome e do sexo, o mais importante é o respeito     com essa questão, e havia a clareza de nossa parte de
                                                                                       que a vulnerabilidade dessa população precisava de
                               Travestis e Transexuais, por sua vez, é um serviço do   respostas diferenciadas e concretas – e que essas respostas
                               CRT DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da Saúde       passavam pelo acesso aos serviços de saúde. Para aquelas
                               de São Paulo, o primeiro centro voltado ao tratamento   que são soropositivas, o serviço permite melhor acom-
                               e prevenção da aids, ainda no início dos anos 1980.     panhamento. Com as outras, podemos trabalhar a pre-
                                    “Participamos desde o início da construção desse   venção”, diz Maria Clara Gianna, coordenadora do Pro-
                               ambulatório, por isso somos um parceiro prioritário”,   grama Estadual DST/Aids-SP.
                               diz Irina Bacci, que coordena o CRD. No cadastro que        Se oferecesse apenas um acolhimento diferenciado,
                               preenchem quando da chegada de um novo usuário,         o ambulatório não atrairia nem teria a fidelidade que
                               vários itens tratam da saúde. “Sabemos há quanto tem-   tem das usuárias. “A saúde integral, como o ambulató-
                               po não passam por um médico, se são soropositivas, se   rio promete, inclui necessidades que vão da Atenção
                               injetaram silicone e se fazem uso indiscriminado de     Básica à hormonoterapia, à fonoaudiologia, passando
                               hormônio. Quando é o caso, ligamos e agendamos uma      por psicoterapia preparatória para a operação, no caso
                               consulta no ambulatório”, diz Irina.                    das transexuais”, diz a médica. As travestis, por exemplo,
A DIVERSIDADE REVELADA




                                   O caminho para os serviços de saúde não preci-      não iriam ao ambulatório se não contassem com um
                               saria, em princípio, passar pelo CRD, mas para al-      acompanhamento hormonal e se não pudessem receber
                               guns é o único atalho. “Muita gente está vindo aqui     cuidados no caso de danos provocados por silicone
                               porque não consegue acessar os serviços de urgên-       industrial. Uma parceria com o Hospital Estadual de
                               cia e emergência”, diz Irina. “Estavam tão mal que      Diadema, na Grande São Paulo, vem cuidando daquelas
                               pronto-socorro não aceita, Samu não resgata. Então      cujo silicone migrou para outras partes do corpo,
                               nós levamos para o ambulatório, e na fase seguinte      causando deformações e inchaços. Em uma amostra
                               ele encaminha para dentro da rede. Essa é outra im-     de 72 travestis atendidas no ambulatório, 15 foram em
                               portância do ambulatório, abrir a porta da rede de      busca de tratamento para o silicone industrial implantado.
                               saúde para essa população.”                             E quase todas procuraram o serviço para acompanha-
12                                 O perfil dos frequentadores do Centro de Refe-      mento hormonal.
Rodrigo de Souza Ventura, 30 anos
QUASE TODOS os dias Fernanda sai de
Guarulhos e vai à região central de São
Paulo para ver Rodrigo. O trajeto toma
                                                                                   “
                                                                                   Eu me prostituia
                                                                                   e usava crack
quase uma hora. Fernanda tem 45 anos,                                              porque não
é travesti, já foi auxiliar de enfermagem
                                                                                   queria morrer
por 20 anos, é portadora do HIV e agora
se trata de um câncer enquanto aguarda
a aposentadoria. Rodrigo de Souza Ven-
tura, 30 anos, também tem HIV, foi
michê em Maringá onde nasceu, depois
                                                                                                              ”
                                                                                       ceu na Praça da República, quatro me-
                                                                                       ses atrás, eu estava pesando 49 quilos,
                                                                                       dez meses antes tinha descoberto que
em Curitiba e São Paulo. Chegou a fa-                                                  estava com HIV, foi julho de 2009. Co-
zer 20 programas por dia, dentro ou fora                                               mecei o tratamento e parei, achava que
dos cinemas da São João, cobrando R$                                                   minha vida não tinha mais sentido. Todo
30 por saída. Desde que conheceu o                                                     dia eu me prostituía, todo o dinheiro que
CRD vem fazendo cursos e sonha com                                                     eu pegava ia para o crack. Mesmo sa-
uma casa pequena onde possa morar           Curitiba, daí para São Paulo. “Estava      bendo que tinha HIV, eu saia para noi-
com Fernanda e seus dois yorkshires.        decidido a sair dessa vida.” Era maio de   te. Eu já freqüentava o CRD há um ano
   “Foi no CRD que comecei a acredi-        2007 e ao desembarcar em São Paulo,        e meio, mas continuava fazendo pro-
tar que havia um outro caminho”, ele        conta que roubaram os R$ 1.800 que         gramas, o dinheiro ia todo para o crack,
diz. “Aqui me sinto seguro, meu sonho       trazia e a saída foi retomar o caminho     porque eu não aceitava que estava com
é trabalhar aqui, mostrar aos outros que    da prostituição. “Conheci as termas        aids. Os clientes não sabiam que eu ti-
sempre há uma saída.” Foi um colega         Lagoa, a Fragata, a Praça da República,    nha aids, nem queriam saber.”
de albergue, já nas primeiras noites em     rua do Arouche, os ‘cinemão’ pornôs,         Foi nos contatos no Centro de Refe-
São Paulo, que falou do CRD, um pon-        que naquele tempo eram muitos. Foi         rência da Diversidade, e com o círculo
to de encontro onde teria lanche à tar-     num desses que me apresentaram o           de amigos que foi formando, que Rodrigo
de, Internet, tevê e até mesmo a ajuda      crack, minha decadência começou aí.”       fez as primeiras tentativas de deixar a
de um psicólogo e a atenção de uma            Usava tanto que num momento co-          droga e a prostituição. “Aqui é a minha
assistente social. Isso foi no ano passa-   meçou a vender o que tinha e a se          primeira casa, porque nos albergues
do, 2009. Rodrigo continua morando          envolver com todos os personagens          você não tem um espaço seu, só tem
em albergue e fazendo tratamento no         da noite, travestis, gays, prostitutas.    horários para cumprir, até às 8 da noite
SAE de Campos Elíseos. Trabalho ain-        “No cine Saci, quando funcionava, eu       para entrar, 10 minutos para tomar ba-
da não conseguiu.                           cheguei a fazer R$ 480 reais com pro-      nho, às 6 da manhã as luzes são acesas,
   Rodrigo nasceu em São Jorge do Ivaí,     gramas de R$ 20, R$ 30 reais. Saí          você tem até às 8 para sair. Mas foi a
no Paraná. Logo a família foi para          mais de 20 vezes em menos de 24            Fernanda, minha namorada, que me
Maringá, e quando perdeu o pai, atro-       horas, o corpo destruído. Tinha o Las      ajudou a mudar de vida. Ela sofreu mui-
pelado e bêbado, foi internado num or-      Vegas, que foi desativado. O pessoal       to, se envolveu com traficantes, com
                                                                                                                                   A DIVERSIDADE REVELADA




fanato. Tinha cinco anos e ficou lá até     deixava usar os banheiros, era crack       usuários que já tentaram matá-la. O cân-
os 18. Na saída, trabalhou como vigi-       e sexo dentro do cinema também.            cer dela é de pulmão. A gente vive cui-
lante no centro da cidade, ruas que reu-    Havia duas escadas laterais, duas sa-      dando um do outro. Nesses cinco me-
niam prostitutas e michês. “A farda e o     las de cinema e uma sala menor onde        ses que estamos juntos, ela só não veio
cassetete chamavam a atenção e os ho-       tinha uma tevê e o pessoal fumava          me ver três dias. Hoje ela me deixou
mens começaram a se envolver comi-          crack direto, e fazia sexo, não preci-     aqui na porta, é ela que cuida de mim,
go. Ganhava até R$ 80 por programas         sava nem ir para hotel. O cinema era       da minha roupa. Largou o trabalho de
que rendiam R$ 200 por noite. Come-         só fachada, lá dentro se fazia de tudo,    enfermagem depois que pegou o cân-
cei a freqüentar saunas, conheci a ma-      fechou alguns meses atrás.”                cer, e ainda não conseguiu uma aposen-
conha e a cocaína.”                           Fernanda, sua namorada, é quem tem       tadoria. Perdeu todo o cabelo que ti-
   Com dinheiro no bolso, foi para          dado força, diz ele. “A gente se conhe-    nha, não pode mais trabalhar na noite.”     13
Débora Zaidan, 49 anos

                         O SALÃO DA cabeleireira Débora Zaidan
                         é um dos mais conhecidos numa das
                         principais avenidas de Diadema, na
                         Grande São Paulo. Seus clientes e vi-
                         zinhos sabem que Débora já foi uma
                         “mulher com corpo de homem”, e que
                                                                     “
                                                                     Eu já mudei
                                                                     o sexo, mas
                         hoje é uma “mulher operada”, como           ainda não
                         eles costumam dizer. Em 2006, fez
                         uma cirurgia de transgenitalização na
                                                                     consegui mudar
                         clínica particular do cirurgião Jalma Ju-   o nome
                         rado. O médico construiu uma vagina
                         valendo-se do tecido do pênis, como
                         se fosse uma luva ao contrário, uma
                         técnica aprimorada por ele e que diz
                                                                                     ”
                         preservar a sensibilidade.                  homens, e não tive nada com outros,         15 anos, só um pouquinho, mas nunca
                            Para pagar os R$ 30 mil que custou a     sem vagina e com vagina, assim como         fiz uma avaliação. No ambulatório
                         cirurgia com a enfermagem e todos os        qualquer mulher.”                           estou passando por todos esses médi-
                         procedimentos, Débora afirma que               Depois da cirurgia, Débora teve um       cos. Nunca tinha recebido essa atenção.
                         economizou durante anos. “Foi a úni-        relacionamento que durou pouco mais         Também percebo que estou encon-
                         ca forma que encontrei para sair da fila    de um ano. “Hoje estou com outro            trando gente como eu, coisa difícil,
                         do HC, onde aguardei por cinco anos         companheiro, uma relação muito              porque ficava isolada no salão.”
                         sem nenhuma perspectiva”, ela diz.          tranquila, cada um em sua casa, eu em          Débora conta que se descobriu
                         Débora tem 49 anos e desde os 25 vem        Diadema, ele em Itaquera.” Filhos, ela      transexual desde muito menina. “Eu
                         tentando a cirurgia, sempre carregan-       pensa em adotar mais tarde, quando um       percebia que era diferente dos outros,
                         do culpas quando um relacionamento          dia tiver mais tempo e voltar para a ter-   porque sentia aquele arrepio só quan-
                         terminava. “Achava que os namorados         ra de onde veio, Fortaleza, no Ceará.       do via os meninos, não as meninas.
                         iam embora porque eu não tinha uma             Débora soube do Ambulatório de           Quando eu via as meninas eu me sentia
                         vagina. Aquilo sempre me deprimia.”         Saúde Integral para Travestis e Tran-       igual, só que eu notava que nas partes
                            Hoje Débora diz entender que a ci-       sexuais do CRT DST/Aids-SP quando           genitais eu era diferente. Na minha
                         rurgia, embora um direito fundamen-         procurou o serviço do HC e não              época, lá no Ceará, tudo era mais com-
                         tal para as transexuais, não é tudo no      conseguiu consulta com o endocri-           plicado, demorou muito para a eu en-
                         relacionamento. “Tive vários namora-        nologista “porque tinha sido operada        tender essas coisas.”
                         dos, até casada já fui. Morei com um        em clínica particular”. “Eu precisava de       Débora conseguiu ganhar um lugar
                         companheiro por 11 anos antes da ci-        um acompanhamento hormonal porque           na fila, juntar dinheiro e fazer a cirur-
                         rurgia, ele nunca falou em operação. Eu     sempre tomei remédio por conta, e           gia, conquistou o respeito de seus
A DIVERSIDADE REVELADA




                         achava que sexo segurava alguém, mas        com a idade chegando os riscos aumen-       clientes e vizinhos como mulher trans,
                         hoje vejo diferente, o sexo não impor-      tam. Foi aí que alguém do posto de          mas ainda não conseguiu mudar sua
                         ta. A cirurgia veio para me completar,      saúde aqui do bairro me falou do            documentação. “Estou com todos os
                         isso sim. A insegurança que eu tinha,       ambulatório da Santa Cruz.”                 laudos e papéis num serviço gratuito
                         hoje não tenho mais, me sinto tranquila,       Débora marcou uma consulta pelo          aqui de Diadema, mas está demoran-
                         a tensão do relacionamento terminou.        telefone e vem passando pelos médi-         do muito.” No caso da transexua-
                         Quando me olho no espelho, não me           cos desde o final de 2009. “Eu nunca        lidade, como em vários outros, a me-
                         vejo mais como alguém com o sexo            tinha ido antes a um ginecologista. Não     dicina andou mais rápido que a Justi-
                         deformado. Mas para mim o prazer não        estava mais fazendo psicoterapia, nem       ça. Se morrer, Débora será enterrada
                         depende só do sexo, porque ele é psi-       ia ao endocrinologista. Também tenho        com corpo de mulher e na lápide esta-
14                       cológico. Tive muito prazer com alguns      uma aplicação de silicone industrial faz    rá escrito seu nome de homem.
TRANSEXUAIS
                                E TRAVESTIS
Respeito e direitos em adequação
                                Travestis e transexuais formam o grupo mais
                                estigmatizado e por isso o mais afastado e
                                incompreendido nos serviços de saúde. O
                                acolhimento proporcionado pelo CRD-Pela
                                Vidda/SP e a atenção à saúde oferecida pelo
                                ambulatório do CRT DST/Aids-SP são
                                exemplos de iniciativas bem-sucedidas que se
                                empenham para mudar esse cenário.




Q
            uem observa a sala de espera do Ambula-      gestos masculinos, mas que são biologicamente do sexo
            tório de Saúde Integral para Travestis e     feminino. Têm tudo de homem, mas escondem uma
            Transexuais, na Vila Mariana, em São Pau-    vagina, disfarçam os seios e seus corpos carregam útero
            lo, vai notar ali homens e mulheres, como    e ovários. São os homens trans.
            se vê em qualquer sala de espera de um           Entre esses homens trans está Alexandre Santos, o
            serviço de saúde. Trata-se, no entanto, de   Xande, ex-presidente da Associação da Parada do Or-
um espaço onde sexo e gênero não obedecem à divi-        gulho GLBT de São Paulo, a maior manifestação do
são convencional entre masculino e feminino. Algu-       gênero no mundo, que ainda não se livrou da mens-
mas das presentes são travestis, pessoas que nasceram    truação. Espera pela cirurgia para a retirada do ovário
do sexo masculino e que optaram por desenvolver os       e da mama. O promotor de eventos Alexsandro San-
                                                                                                                   A DIVERSIDADE REVELADA




traços e as atitudes das mulheres, porque é assim que    tos Silva, que há cinco anos é acompanhado em cen-
se sentem. A maioria ali são transexuais. Parte são      tros de referência e que deseja se casar até o final do
mulheres trans que se apresentam como mulheres,          ano – desde que retire a mama e mude o nome nos
pensam como mulheres, agem e têm cérebro de mu-          papéis. Há também o professor de idiomas Victor de
lheres, mas que biologicamente são homens. Podem         Abreu, que vive com a companheira e sonha em guar-
ser bonitas, elegantes, a voz com a modulação das        dar um óvulo para um futuro filho, antes que o uso de
vozes das mulheres, mas conservam o órgão sexual         hormônios o deixe estéril.
masculino. São chamadas de mulheres trans porque             Na mesma sala de espera está Andréia Ferraresi,
estão se adequando ao gênero feminino, ao qual per-      67 anos, que nasceu biologicamente do sexo mascu-
tencem. Entre elas, nessa sala de espera, há uns pou-    lino e há quatro décadas cobra o direito a uma cirur-
cos homens, voz grossa, alguns com barba no rosto,       gia que readequaria sua genitália em uma vagina.          15
Recepção do ambulatório do CRT DST/Aids-SP: porta de acesso para a atenção integral à saúde

                         E Luiza Claudia Santos, que vive com um compa-                  Os decretos recentes estão garantindo o nome
                         nheiro há 14 anos e que ainda sonha em exibir a ele         social em alguns serviços públicos para travestis e
                         uma vagina, em lugar de esconder o pênis.                   transexuais. Mas a mudança do nome e do sexo nos
                             São alguns dos dramas e sonhos que se escondem          documentos, fato que mais trauma provoca nas pes-
                         debaixo dos lençóis e que estão ali silenciosos na sala     soas trans, só é concedida mediante uma ação na
                         de espera. Na rua, nas escolas, no mercado de traba-        Justiça, e diante de laudos que comprovem a cirur-
                         lho, ou quando procuram um serviço de saúde, as             gia, um sonho distante para muitas delas.
                         pessoas transexuais e travestis amargam a discrimina-           Não há levantamentos que quantifiquem essa po-
                         ção e o preconceito. O que vale é o nome no docu-           pulação, nem estimativas sobre sua prevalência. A
                         mento, não a aparência, os gestos, os cuidados.             Antra, Associação Nacional das Travestis e
                             Depois de décadas de humilhações, o Estado de           Transexuais, estima que sejam 1,2 milhão no país –
                         São Paulo aprovou no início de 2010 uma lei que             800 mil travestis e 400 mil transexuais. Possivel-
                         garante aos transexuais e travestis o direito de serem      mente um número de difícil comprovação, mas en-
                         chamados pelo nome social nos serviços públicos. Nos        quanto o governo não considerar essa população
                         últimos meses, cerca de 12 Estados e vários municípios      nos censos demográficos, é o número que continua-
                         baixaram decretos garantindo o mesmo direito na edu-        rá valendo. Mesmo reduzindo esse número a um
                         cação e nos serviços de saúde. Atendem a uma reco-          décimo, as transexuais seriam 40 mil. Consideran-
                         mendação da 1ª Conferência Nacional LGBT, de 2008,          do que todas desejam a cirurgia de redesignação
                         e a uma antiga reivindicação dos ativistas. Uma lei         sexual, seriam necessários 50 hospitais fazendo 40
                         paulista, existente desde 2001, pune quem pratica qual-     cirurgias por ano ao longo de 20 anos. Em 2008,
                         quer ato discriminatório contra homossexuais, bissexuais,   uma portaria do SUS incluiu a operação entre seus
                         travestis e transexuais em todo estabelecimento público     procedimentos e definiu quatro centros de referên-
A DIVERSIDADE REVELADA




                         – de delegacias, hospitais a lanchonetes e empresas.        cia para a sua realização. Um deles, o Hospital das
                         Mas apenas em março de 2010 um decreto dispôs so-           Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, passou
                         bre as penalidades.                                         em junho de 2010 a fazer 12 cirurgias por ano. Até
                             Ser chamado publicamente pelo nome que não              então vinha fazendo duas.
                         corresponde à aparência é o desrespeito responsável             A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,
                         pela fuga de milhares de travestis dos serviços de saú-     por meio do Ambulatório de Saúde Integral para
                         de. É também a causa da evasão de mais da metade            Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP, busca
                         das travestis dos bancos escolares. Em todas as situa-      uma parceria para a abertura de mais um serviço no
                         ções de convívio com a sociedade, elas são a parcela        Estado. Quando a intenção se concretizar, o Estado
                         da população LGBT mais estigmatizada e com me-              de São Paulo deve fazer 30 cirurgias por ano, somadas
16                       nor índice de escolaridade.                                 as do HC com a do futuro serviço.
Foram 50 anos de olhos fechados, paralisando avanços da
         medicina e atrofiando milhares de vidas
    As cirurgias de transgenitalização vêm sendo reali-         Dentro de alguns anos, uma ou duas décadas tal-
zadas no mundo desde a década de 1950, especial-           vez, quando a idade “aposentá-las” como profissio-
mente em mulheres trans – pessoas que nasceram do          nais do sexo, o abuso de drogas pesar, o silicone in-
sexo masculino, mas que na verdade são mulheres,           dustrial mostrar seus efeitos e a aids afastá-las das
nas quais o pênis é retirado e uma vagina é construída.    ruas, o mesmo Estado que as ignorou não saberá o
No Brasil, no entanto, só em 1997 o Conselho Fe-           que fazer. Assim como a legião de usuários do crack,
deral de Medicina autorizou esses procedimentos            as travestis descartadas serão um peso enorme para
como experimentais e em ambientes universitários.          uma rede pública e uma sociedade que não sabem,
Em 2002, a cirurgia foi liberada em qualquer hospi-        nem nunca souberam, como lidar com elas. A
tal, apenas em mulheres trans, e seguindo um proto-        desconsideração será cobrada em dobro.
colo do CFM. Foram 50 anos de olhos fechados para               Algumas iniciativas públicas e não-governamentais
essa população, o que resultou numa carência abso-         começam a mudar esse cenário. Uma delas é o Cen-
luta de cirurgiões especializados e em milhares de         tro de Referência da Diversidade, o CRD, parceria do
vidas “atrofiadas”. Muitos serviços de psicoterapia        Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São Paulo.
para transexuais foram fechados. Ou interromperam          A outra é o Ambulatório de Saúde Integral para Tra-
novas inscrições, uma forma de camuflar o tamanho          vestis e Transexuais do Centro de Referência e Trei-
das filas e de evitar que mais transexuais apostassem      namento DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da
suas vidas numa cirurgia que não viria nunca. Aos 67       Saúde. A primeira é a porta aberta para aqueles em
anos, Andréia exibe o primeiro laudo indicando-a           maior situação de risco e abandono entre a população
como apta para uma “cirurgia de plástica dos genitais”     LGBT. É nesse primeiro socorro, que antes da con-
e assinado ainda em 1977 por médicos do HC. Três           versa com a assistente social e a psicóloga oferece um
outros laudos foram feitos em anos e décadas seguin-       sofá para um cochilo, que muitos estão encontrando
tes. Agora matriculada no Ambulatório de Saúde             um caminho para sair da rua e das drogas. O segundo
Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/          é um ambulatório especializado onde travestis e
Aids-SP, Andréia ainda não perdeu a esperança. “Não        transexuais são cuidadas na sua saúde integral e nas
passa pela cabeça dos médicos e diretores de hospitais     suas necessidades diferenciadas. A maioria dos servi-
quanto sofre um transexual”, diz.                          ços da rede de saúde limita sua atenção ao masculino
    Enquanto as transexuais aparecem como vítimas,         e ao feminino. Pessoas em fase de adequação de sexo
dignas de piedade e necessitadas de cuidados médi-         não cabem nos seus protocolos, nem são considera-
cos – sentimentos e abordagem que elas rejeitam –          das nas suas práticas de assistência.
as travestis são mostradas como “sem vergonhas” e               A proposta e o cotidiano desses dois serviços apa-
marginais, que modificam o corpo para ganhar di-           recem nos relatos de quase vinte transexuais, traves-
nheiro. Em número muito maior que o das                    tis e michês ouvidos nesta publicação. Ao lado deles,
transexuais, elas são as principais vítimas da discrimi-   um número significativo de profissionais foi entre-
nação da sociedade e da desconsideração dos servi-         vistado. O resultado é um retrato de dupla face. De
ços públicos. Jovens e saudáveis na sua maioria, não       um lado, revela o abandono e as dificuldades que
                                                                                                                     A DIVERSIDADE REVELADA




procuram nem sentem necessidade da rede de saú-            enfrentam essa população. De outro, o empenho dos
de. Muitas, devido ao preconceito, se envolvem com         profissionais e a surpreendente volta por cima de
drogas e álcool e abusam do silicone industrial e de       pessoas já tidas como irrecuperáveis.
hormônios para modelar o corpo mais depressa.                   É o que mostram depoimentos de personagens
    Mostram-se pessoas divertidas quando são vistas        que estão conseguindo escapar ao destino da rua,
nas esquinas das avenidas escuras, seminuas e convi-       das drogas e da doença. Como Claudia Coca, travesti
dativas. Mas formam o grupo que mais sofre violên-         que já foi prostituta, drogada, presidiária, e que ao
cia – nos primeiros meses de 2010, 28 foram assassi-       encontrar o CRD descobriu suas habilidades como
nadas no país. E constituem um dos grupos de maior         educadora social. A travesti Mikaela Rossini, que
vunerabilidade para a infecção pelo HIV. Entre as que      encontrou no CRD uma saída para sua vida de pros-
procuram o CRD, cerca de 40% estão infectadas.             tituta e drogada “babadeira”. Agora se prepara para       17
fazer faculdade de tecnologia da informação. Marcia-
                         no Alves Fernandes, que já foi cafetão e dependente
                         de crack, e que agora trabalha e cuida da saúde.
                                                                                    Por uma
                              Por sua vez, relatos colhidos no Ambulatório de
                         Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT
                                                                                    gramática
                         DST/Aids-SP demonstram a importância de um ser-
                         viço de saúde integral e especializado. Muitos
                         transexuais que sonham com a cirurgia de redesig-
                                                                                    transexual
                         nação sexual encontraram ali a única porta para se         Uma das dificuldades dessa
                         integrar a um grupo de psicoterapia como fase pre-         publicação foi adequar o
                         paratória. A transexual Vanessa Pavanello, agente          gênero e a sexualidade dos
                         social e universitária, é uma das que estão começan-       personagens ao gênero
                         do no grupo e passando por consultas médicas.              estabelecido pela gramática.
                         Vanessa tem 41 anos, viveu 12 com um companhei-
                                                                                    Não há, nas cartilhas,
                         ro e nunca tinha encontrado um
                                                                                    referência a um “terceiro
                         serviço especializado. O transe-
                                                                                    sexo”, por isso optou-se por
                         xual Alexsandro Santos Silva vem             A escola      deixar de lado essa
                         do interior de São Paulo a cada
                         15 dias para participar das con-             poderia       preocupação. De acordo com
                         sultas e terapias.                                         a gramática, onde há pelo
                              Dez anos atrás, travestis e
                                                                     contribuir
                                                                                    menos um elemento
                         transexuais também não tinham               para uma       masculino, o gênero que
                         a quem recorrer quando se sen-
                         tiam abusadas e discriminadas.            nova relação     predomina é o masculino,
                         Hoje vários Estados contam com                             embora grupos ativistas
                         mecanismos e instrumentos de
                                                                      entre as      reivindiquem, corretamente, a
                         proteção, embora a maioria ain-            pessoas se      referência sempre aos dois
                         da não passe de intenções no pa-                           gêneros. O correto seria dizer
                         pel. Ainda falta o sentimento de          ensinasse aos    “os” transexuais e “as”
                         que o importante está na educa-
                         ção. Uma escola que ensine aos
                                                                      alunos o      transexuais, por exemplo. Mas
                                                                                    como se referir a uma mulher
                         alunos a respeitar uma travesti ou          respeito à     trans, que na verdade é
                         uma pessoa transexual colega de
                         classe estará contribuindo para            diversidade     biologicamente homem (do
                         que uma nova relação se estabe-                            sexo masculino)? Ou a um
                         leça entre as pessoas. A maioria                           homem trans, cujo nome é
                         das travestis e transexuais ouvidas nesse trabalho rela-
                                                                                    feminino? Se ainda faltam
                         ta humilhações sofridas nas escolas. Depois da famí-
                                                                                    definições sociais e médicas
                         lia, a escola e o local de trabalho têm sido o principal
                         palco das discriminações. Os sentimentos, os fatos, os     para esse “gênero em
A DIVERSIDADE REVELADA




                         julgamentos e as sugestões, podem ser extraídos dos        adequação”, é natural que a
                         depoimentos colhidos.                                      gramática nada tenha a dizer a
                              Em abril de 2010, o Governo Federal e repre-          respeito. Decidiu-se, portanto,
                         sentantes de movimentos de travestis lançaram a cam-       que os textos desta publicação
                         panha “Sou Travesti – Tenho Direito de Ser Quem
                                                                                    usariam o masculino ou
                         Sou”, voltada aos serviços de saúde. “Esta é a de-
                         manda mais importante das travestis, que têm o di-
                                                                                    feminino dentro dos
                         reito de cuidar de sua saúde. Elas têm problemas           contextos, facilitando a leitura
                         específicos e o sistema de saúde tem que atender às        e a compreensão.
                         suas singularidades”, afirmou à época o ministro da
18                       Saúde José Gomes Temporão.
Agnes Prado dos Santos, 28 anos

AGNES traz entre os seios uma tatua-
gem com seu nome, uma cruz e uma
borboleta. Fez isso quando tinha 23
anos. Deprimida, tinha decidido se ma-
tar, mas não se conformava com o fato
                                                                                    “Não me
                                                                                     enterrem como
de que na lápide ficaria gravado seu
                                                                                     homem
nome masculino. Com a tatuagem, sa-
beriam que estavam enterrando uma
mulher, pensava. O pior da crise pas-
sou, ela desistiu do suicídio, mas a tatua-
gem entre os seios permanece como
                                                                                                   ”
                                                                                         lésbica, o que a torna sujeita a um du-
uma forma de dizer que não é homem,                                                      plo preconceito. “Apesar de ter a mi-
nem nunca quis ser. Agnes ainda espe-                                                    nha identidade feminina, eu gosto de
ra mudar seu nome na Justiça, mas se                                                     mulheres, assim como existem transe-
vê muito longe de uma cirurgia de                                                        xuais gays, homens trans que gostam
transgenitalização por conta das filas de                                                de homens. Imagine minha alegria quan-
espera. Tudo que faz é o acompanha-                                                      do senti que não era a única. É muito
mento terapêutico no Hospital das Clí-        se a chefia. “Use o banheiro unisex”,      complicado para as pessoas entende-
nicas há um ano, e o comparecimento           um banheiro que ficava escondido e qua-    rem que eu me identifico mais como
fiel às Terças-Trans, promovidas pelo         se desativado. Agnes conta que escre-      uma mulher lésbica do que com uma
CRD, o Centro de Referência da Di-            veu para a superintendência, que res-      mulher trans.”
versidade. Se morrer atropelada – ela         pondeu autorizando o uso de roupas fe-        Agnes nasceu biologicamente ho-
imagina – trocarão suas roupas femini-        mininas e o banheiro das moças. Mas logo   mem, mas se sentia mulher. Em lugar
nas por um paletó de homem e na lápi-         aconteceram protestos de funcionárias,     de gostar de homem, porém, sentia
de irá seu nome masculino, que ela não        a proibição voltou e ela ainda aguarda     atração por outras mulheres. “Quando
quer pronunciar nem revelar. Será que         uma decisão da superintendência para       era criança era uma doideira com-
alguém notará a Agnes tatuada no colo         usar o banheiro e um crachá feminino.      preender tudo isso, na minha cabeça
dos seios?, ela pergunta.                        Agnes conta que conheceu o CRD          eu não era gay, não era travesti, não
    Agnes Prado dos Santos, 28 anos,          dois anos atrás, em 2008, quando pro-      era trans, nem nada... Aquela coisa de
pode ser vista nos corredores do Insti-       curava grupos de transexuais na Inter-     menino gostar de menina, não valia para
tuto de Psiquiatria do Hospital das Clí-      net e soube das “terças-trans”. “Pro-      mim, eu não me sentia menino, e como
nicas, onde é “funcionário administrati-      curava pessoas que tinham o mesmo          menina eu deveria gostar de menino,
vo”, traja uma jaqueta masculina da ins-      desejo que eu, que me orientassem a        mas eu queria gostar de menina como
tituição disfarçando blusa e calças femi-     fazer um tratamento. Aqui no ‘terça-       menina, isso não batia. Custou para eu
ninas. Tem os cabelos na altura dos om-       trans’, quando ouço outros relatos, vejo   descobrir que identidade de gênero e
                                                                                                                                    A DIVERSIDADE REVELADA




bros, encaracolados, quem a vê no tra-        que minha vida foi até tranquila. Sem-     sexualidade são coisas distintas.”
balho não consegue saber se é homem           pre acredito que vou acrescentar algu-        O nome Agnes, que ela traz no pei-
ou mulher. Fora dali, Agnes só usa rou-       ma coisa. É também um pouco de             to, veio ainda da infância quando assis-
pas femininas, e quase sempre pretas.         militância, eu quero fazer algo pelo       tia desenhos japoneses como Jaspion,
Foi assim que se vestiu quando compa-         movimento. E queria contar coisas que      Flashion e Jirai. “Em um dos episódios
receu ao Instituto de Psiquiatria depois      não conseguia dizer na psicoterapia do     havia uma ninja que se chamava Agnes.
de ter passado em um concurso do Hos-         HC, porque lá me sinto presa a um ró-      Uma mulher ninja que enfrenta todos
pital das Clínicas, dois anos atrás. “Quan-   tulo de transexual.”                       os perigos, eu quero ser assim, quero
do viram que eu me vestia como mu-              O que imaginava ser um segredo só        ser forte assim. E fiquei com aquele
lher, não sabiam o que fazer comigo”,         seu, revelou-se um sentimento com-         nome na cabeça... Acho que tinha uns
conta. “Você vai ter que disfarçar”, dis-     partilhado por várias colegas. Agnes é     sete ou oito anos.”                        19
CRD
                         O acolhimento
                         como “porta de
                            entrada”
                           Entre 2009 e 2010, o número de
                          atendimentos mensais aumentou
                              em 115%. A população em
                          situação de rua e usuária de crack
                           tem sido a principal causa desse
                              crescimento. Entre os que
                          procuraram o CRD em 2010, um
                              terço era morador de rua.

                                     espaço do Centro de Referência da Di-            As paredes do Centro estão tomadas por grafites e




                         O
                                     versidade, com a porta aberta para a cal-    quadros pintados pelos próprios usuários durante as
                                     çada da rua Major Sertório, é um lugar       sessões de arteterapia. Três computadores ficam à dis-
                                     que convida a entrar. Nenhum obstáculo       posição e a concorrência entre os usuários exige ins-
                                     separa a porta dos sofás vermelhos mo-       crição no livro sobre a mesa da recepcionista Thaís.
                                     rango dispostos diante de uma tevê sem-      Nas salas no fundo ficam Taís Diniz Souza, a assistente
                         pre ligada. A mesa da recepcionista Thaís di Azeve-      social, e Fernanda Maria Munhoz Salgado, a psicóloga.
                         do fica discreta à direita da sala, e o segurança do     Um pequeno quadro indica se estão disponíveis ou
                         espaço é instruído para cuidar da ordem, não con-        não, mas a janela de vidro permite que se observe de
                         trolar a entrada. Quem quiser chegar e apenas esti-      fora, e as pessoas podem entrar sem bater.
A DIVERSIDADE REVELADA




                         car-se no sofá não será incomodado. Alguns chegam            “Queríamos fugir da cara de equipamento públi-
                         ali ainda “bodeados”, outros dormiram na rua. Ti-        co burocrático”, diz Irina Bacci, que passou a dirigir
                         ram um cochilo antes de se animar para uma con-          a segunda fase do CRD, voltada sobretudo para o
                         versa, ou antes da chegada de dona Selma, oferecen-      acolhimento. “Fizemos uma recepção confortável,
                         do lanche e um suco. Na tarde da sexta-feira, 16 de      com sofá, tevê, com livros, colocamos uns computa-
                         julho, um dos dias mais frios do ano, havia pelo me-     dores, mesmo que só para entrar no Orkut, Facebook.
                         nos 30 pessoas no espaço, entre travestis, transexuais   O importante era despertar outros interesses que não
                         e michês. Muitos se apertavam no sofá. Parte deles       fosse só a droga, deixá-los menos bodeados.” A pró-
                         iria para algum albergue no início da noite, outros      pria tevê, mesmo que não componha um espaço ideal
                         dormiriam na rua. Nas noites de frio, os pernoites       para a inclusão, os leva a prestarem atenção na pro-
20                       em albergues são mais disputados.                        gramação, a discutirem sobre canais. “Às vezes
folheiam um livro, não ficam com aquele olhar vazio
com que costumam chegar”, diz Irina. “Isso é im-
portante para nós, como equipe, observar o despertar
deles. Ver qual tipo de ajuda estão pedindo.”
    O sofá é “nossa porta de entrada”, diz a psicóloga
Fernanda. “É um espaço aconchegante para dizer ‘eu
estou aqui, eu preciso ficar aqui’. Depois começamos
um convencimento, pode ser eu mesma, ou qualquer
outro educador social do CRD, porque todos ali te-
mos essa função. ‘Olha, quando precisar venha falar
comigo, estou naquela salinha’, a gente diz. No se-
gundo dia passamos de novo para um olá. Assim tem
sido com muitos, alguns dias ou uma semana depois
estão fazendo parte das oficinas. Outros não apare-
cem mais. Mas a porta continua aberta.”
    Os números e o perfil dos usuários do CRD mos-
tram a dimensão do desafio. Desde que foi aberto
até setembro de 2010, um total de 1.486 pessoas pas-
saram pelo Centro, e dessas 1.276 foram cadastradas.
O número total de atendimentos em 2009 foi de 9.539;
de janeiro a setembro de 2010 os atendimentos
somaram 15.406. A média mensal passou de 795 em
2009 para 1.712 em 2010. Um aumento de mais de
115%, demanda que já deixou o CRD no seu limite.
    O crack vem sendo o responsável pelo crescimento
brusco dessa população, que na sua maioria já é desem-
pregada, vive na rua ou é profissional do sexo, diz Irina.
Essa é uma demanda não só do CRD, mas em todos os
serviços de assistência social de São Paulo e de muitas
cidades. Passou a ser uma prioridade de saúde pública
com a qual o governo não sabe ainda lidar.
    “O crack está matando nossos moradores de rua,
especialmente travestis e gays”, diz Irina, “talvez mais
do que já matou a aids”. Agora, as duas “epidemias”
estão associadas. Travestis e michês relatam o convite
freqüente de clientes para dividirem a droga nos quar-
tos de hotel, quando antes era apenas o álcool. Neste
cenário, a camisinha costuma ser deixada de lado. “Uma
vez que você começa, não para mais”, diz Rodrigo de
Souza Ventura, agora um assíduo frequentador do CRD
                                                             A DIVERSIDADE REVELADA




e em fase de tratamento. Rodrigo já foi michê e se ini-
ciou no crack convidado por clientes.
    “A rede social e de saúde vê o usuário de droga
meio como um criminoso, um cara que não tem mais
jeito. Isso preocupa muito, porque hoje é o nosso
maior público”, diz Irina. A exclusão, que pode le-
var à droga e à rua, começa lá atrás, “quando a socie-
dade discrimina, coloca fora de casa”. O roteiro é
conhecido: a expulsão da família, a “pista”, da “pis-
ta” à construção do corpo com silicone industrial, a
droga e o álcool na noite, até que a “pista” já não          21
A diversidade revelada
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A diversidade revelada
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A diversidade revelada

  • 1.
  • 2. ) ) s -SP /SP /Aid V idda D S T Pela CRT upo x u a i s ( Gr nse D- (CR Tra id ade v e s t i s e ers a Tra Div r i a da egral pa rênc e Int fe úd e Re a t ro d io de S Cen ulatór b Am A orientação sexual e a identidade de gênero são fatores determinantes para a saúde, não apenas por implicarem em práticas sexuais e sociais específicas, mas também porque podem significar o enfrentamento cotidiano de preconceitos e violações de direitos humanos. O Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, sede da Coordenação Estadual DST/Aids-SP, A relação entre a epidemia da inaugurou em junho de 2009, em aids e a exclusão social precisa ser suas dependências, o primeiro melhor compreendida e enfrentada. ambulatório de saúde do Brasil É com esse propósito que o Grupo dedicado exclusivamente a Pela Vidda/SP está à frente do travestis e transexuais. Este Centro de Referência da serviço foi criado para facilitar o Diversidade (CRD), desde 2008, acesso de populações vulneráveis em parceria com a Prefeitura ao Sistema Único de Saúde, de São Paulo. Iniciativa pioneira, possibilitando a elas sua inserção oferece assistência, capacitação, social e o direito integral à saúde. geração de renda, convivência e Maria Clara Gianna e cultura para profissionais do sexo, Artur Kalichman gays, lésbicas, travestis, transexuais Coordenação Estadual DST/Aids-SP e pessoas que vivem com HIV e aids em situação de vulnerabilidade e risco social. Com a porta aberta para a realidade, buscamos resgatar a dignidade, a cidadania e melhores condições de vida para tantas pessoas historicamente esquecidas e discriminadas. Mário Scheffer e Irina Bacci Grupo Pela Vidda/SP Centro de Referência da Diversidade
  • 3. REALIZAÇÃO Grupo Pela Vidda/SP Presidente: Mário Scheffer Coordenadora do CRD: Irina Bacci Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP Coordenadora: Maria Clara Gianna Coordenador-adjunto: Artur Kalichman COLABORAÇÕES Nossos agradecimentos aos entrevistados: Ana Maria Costa, Elaine Maria Frade Costa, Gustavo Menezes, Jalma Jurado, Jovanna Baby e Tereza Rodrigues Vieira. Grupo Pela Vidda/SP: Abel Corino da Fonseca Neto, Douglas Galiazzo, Flavio A. Rodrigues, Luis Francisco dos Santos, Marcos Ferreira Marinho, Maria Hiroko Watinaga, Michele Aparecida Morais Santos, Murilo Bezerra Duarte, Rogério de Jesus Ribeiro e Silvia Regina Carvalho. Centro de Referência da Diversidade: Alessandra Saraiva, Andreza Barbosa Trindade, Claudia Coca (in memorian), Fernanda Maria Munhoz Salgado, Fernando Henrique da Silva Settanni, João Batista Pereira, Maria Cristina Santos, Paulo Rogério da Silva, Renato Mathias, Selma da Silva Leal Montervan, Taís Diniz Souza, Thaís di Azevedo e Thatiane Di Risio dos Santos. CRT DST/Aids-SP: Angela Maria Peres, Denise Mallet, Emi Shimma, Judit Lia Busanello, Maria Filomena Cernichiaro, Marta Omya e Ricardo Barbosa Martins. AGRADECIMENTOS Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS/PMSP) – CRAS/Sé e CAS/Centro-Oeste: Idalina Helena Villas Boas Menezes, Lia Déborah Sztulman, Margarida Yoshie Iwakura Yuba, Maria Inês Cordeiro Gabriel, Marilisa Jorge Ayres, Nívea de Simone da Silva e Sueli Chohfe Stelzer. Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual – CADS (SMPP/PMSP) Projeto de Inclusão Social Urbana Nós do Centro Pelo incentivo e apoio: Ana Paula Alberico, Cássio Rodrigo, Floriano Pesaro, Gilberto Natalini, José Carlos Ferreira, Leilah Rios, Luca Santoro, Marcelo Garcia, Marina Morena Barbosa, Nacime Salomão Mansur, Norberto Bossolani, Renato de Paula Marin e Vicente Roberto Hortega. APOIOS Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo (SMAS/PMSP) Programa Municipal de DST/Aids de São Paulo (SMS/PMSP) EQUIPE DE PRODUÇÃO Reportagens e textos: Aureliano Biancarelli Fotografia: Osmar Bustos Edição e revisão: Fernando Fulanetti Arte e diagramação: José Humberto de S. Santos Produção gráfica: Márcia Costa Impressão: Gráfica Stampatto Tiragem: 2.000 exemplares São Paulo, outubro de 2010
  • 4. SUMÁRIO 4 O amor na diversidade Um tema estigmatizado e ignorado 6 10 Acolhimento e atenção integral à diversidade Transexuais e travestis. Respeito e direitos em adequação 15 20 CRD. O acolhimento como “porta de entrada” Ambulatório para travestis e transexuais. A busca pela saúde integral 25 Transexuais têm maior escolaridade 32 e inserção no trabalho Abrigo, trabalho e acolhimento 34 “Não sou doente mental”, 41 diz ex-presidente da Parada GLBT de São Paulo Brasil tem quatro centros públicos para a cirurgia 44 Terças-Trans. 50 Um espaço de dúvidas e aprendizados A batalha pelo direito ao nome e ao sexo 54 “Abertura” do Judiciário 56 facilita nova identidade Nome afasta transexuais e travestis da escola e serviços de saúde 60 63 Mudança no documento é prioridade Visita às avenidas e guetos onde se oferecem as profissionais do sexo 67 72 A “festa” dos craqueiros anestesiados e esquecidos Jovens e determinadas. Maioria das travestis diz não “precisar” de cuidados médicos 76
  • 5. PREFÁCIO O AMOR NA DIVERSIDADE Aureliano Biancarelli á esperava ouvir relatos de humilhações e maus- panheiro com quem vai se casar quando se preparava J tratos sofridos pela população LGBT, especial- para a cirurgia de redesignação sexual. Os pais do casal mente por parte das travestis e transexuais. A já foram apresentados. angústia de gays que abandonaram a casa dos A descoberta do amor nesse universo marginal sur- pais depois de agredidos e foram morar na rua. giu ao longo das muitas entrevistas. A solidariedade e a Garotas travestis que fugiram de suas famílias e troca de cuidados, como gestos de amor, estão presen- se aventuraram sozinhas em busca de hormônio e de tes em quase todos os relatos. Já se imaginava um uni- clientela. Só não esperava que o amor e o com- verso de preconceito mas o amor não estava na pauta, panheirismo sobrevivessem com tanta força entre esses nem na lista de preocupações dessa publicação. personagens. No Centro de Referência da Diversidade A proposta foi deixar que contassem suas histó- é comum ver casais de mãos dadas, ela travesti, ele rias. Reunir relatos descritos a partir do olhar de quem heterossexual, os dois morando na rua. Em todos os se encontra na rua ou dependente da rua, onde seu relatos, em meio a histórias de maus-tratos, abandono sexo, definido ou imaginado, é a razão das atenções e discriminação, há sempre uma história de amor e discriminações. Muitas vezes desejadas e fantasia- Mikaela é capaz de quebrar um bar se alguém mal- das, travestis e transexuais são objetos de desejos es- trata uma de suas colegas travestis. Na “vida real”, ima- condidos – ou revelados – nas escapadas noturnas gina uma casinha onde possa trabalhar no computa- de “clientes” em avenidas e esquinas pouco ilumina- dor, ao lado do “esposo” que diz amar. Luiza Santos das da cidade. Na lista dos clientes estão garotos com vive há 14 anos com o companheiro e sonha com o dia carro emprestado dos pais e homens à procura de em que poderá presenteá-lo com uma vagina, sem a companhia. necessidade de esconder o pênis atrofiado. Ele nunca A proposta dos textos que se seguem é reproduzir se queixou, diz ela. Alexsandro, um homem trans, teve as histórias dessas travestis e transexuais. Falar das A DIVERSIDADE REVELADA várias parceiras heterossexuais. A família da atual na- barreiras que separam essas personagens dos serviços morada prepara o casamento. Rodrigo já foi michê e públicos, principalmente aqueles de saúde. A publi- agora, portador do HIV, troca cuidados com a compa- cação dedica cuidado diferenciado e esperançoso a dois nheira que é travesti e sofre com um câncer. Marciano serviços recentes que buscam olhares e atenção ino- ganhou dinheiro como cafetão, até cair no crack e ado- vadores para essa população. Trata-se do CRD, o ecer com câncer e aids. Em nenhum momento antes e Centro de Referência da Diversidade, parceria da depois da doença, ele conta, foi abandonado por com- ONG Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São panheiras, travestis e mulheres, que estiveram ao seu Paulo. E do Ambulatório de Saúde Integral para Tra- lado. A travesti Camila, no entusiasmo dos seus 20 anos, vestis e Transexuais, do Centro de Treinamento e deixou o albergue e passou a morar nas ruas por “amor Referência DST/Aids-SP, serviço da Secretaria de 4 ao esposo”. A transexual Alessandra conheceu o com- Estado da Saúde de São Paulo.
  • 6. Aos olhos dessa publicação, estes locais revelam-se xúria”, não de uma modificação que necessitasse de pontos de encontro com um universo marginal e estig- cuidados médicos. A oferta dos serviços públicos, só matizado, mal compreendido e subavaliado. A depen- agora regulamentada, não dá conta de uma ínfima dência pelo crack e a infecção pelo HIV, altamente parcela das transexuais. A maioria, mesmos nos “tem- presentes nessa população, são duas ameaças para as pos modernos”, morrerá embalando o sonho de ter o quais a sociedade e a saúde pública ainda não presta- pênis trocado por uma vagina. Aos homens trans, não ram a devida atenção. Os custos produzidos pela vio- há sequer a perspectiva de implantação de um pênis, lência desse vulcão silencioso, os gastos com saúde, as técnica ainda experimental. perdas de vidas e o sofrimento dos sobreviventes só O resultado desta publicação é ainda uma via- serão conhecidos quando a conta chegar. E ela chega- gem superficial num território outrora batizado rá com acréscimos nem sempre possíveis de bancar. equivocadamente de “terceiro sexo”, ignorado pela Convidado a produzir os textos dessa publicação, maioria heterossexual. Já começou o milênio onde me senti à vontade para reunir relatos que ilustram a homens e mulheres serão superados por um sexo que vida de personagens e dados sobre serviços de saúde, não será nem masculino nem feminino, fantasiam procedimentos médicos e legislações. A cirurgia de alguns militantes LGBT. redesignação sexual para transexuais foi oficializada Verdade ou fantasia, o livro revela que pouco se no Brasil em 2002, um atraso de meio século quando sabe sobre esse outro universo. E que poucos cuida- se compara com países desenvolvidos. A Justiça tam- dos vêm sendo dispensados para aqueles que vivem bém empacou nos seus códigos, e a mudança de nome entre a marginalidade e a sobrevivência. O que se sabe, – e especialmente de sexo – ainda requer uma longa e é que eles vêm abandonando o ninho e ganhando voz cara ação individual. O cenário vem mudando, mas a no meio social. desesperança na fila das cirurgias – agravada com a Enquanto a sociedade não presta atenção nem cui- A DIVERSIDADE REVELADA falta de transparência – e as dificuldades na mudança dados, travestis, transexuais e michês se protegem di- de nome fazem parte de quase todos os relatos. vidindo solidariedade e se juntando em casais. A im- A discriminação e a pouca atenção dedicadas a pressão que salta dos relatos é a de que o amor na travestis e transexuais se arrastam ao longo de sécu- diversidade é mais generoso e menos opressivo do que los. Um dia alguém ainda escreverá sobre o sofri- entre casais heterossexuais. O preço que se paga, no mento dessa população, ignorada e estigmatizada. entanto, continua muito alto. Historiadores e antropólogos ainda não deram a devida A grande maioria das entrevistas foi feita entre atenção a esses personagens. março e junho de 2010, nos espaços do CRD e do Até décadas atrás, a medicina tinha pouco a fazer. ambulatório. Algumas poucas foram feitas por telefone. Agora que tem, limita a atenção a uma minúscula Todos os entrevistados e entrevistadas concordaram minoria de transexuais, como se tratasse de uma “lu- com a publicação de seus nomes e de suas fotos. 5
  • 7. INTRODUÇÃO UM TEMA ESTIGMATIZADO E IGNORADO “Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz o cirurgião que mais fez cirurgias de redesignação sexual no Brasil. Muito além dos bisturis, o desafio está em adequar as mentes heterossexuais à convivência com a diversidade. elatos de personagens de uma chamada reúne essa população. Mesmo reduzidas a um décimo R “diversidade” estão registrados nos capítu- desse número, não há estrutura nos serviços públicos los desta publicação. São mulheres trans – capaz de atender sequer uma parcela dessa população. que nasceram com corpo de homem e se Sem a pretensão de ordenar temas ou de explo- sentem mulheres. E de homens trans, que rar todas as dificuldades da população LGBT, os tex- conservam os órgãos femininos, mas pen- tos que se seguem nesta publicação tratam das ques- sam e agem como homens. O respeito e os cuidados tões da legalidade, do direito ao nome, dos serviços psicológicos e médicos a essa população dependem de saúde e do reconhecimento desse grupo. Espe- de um amadurecimento da sociedade. Vai do conhe- cialistas do direito e da saúde, e ativistas transexuais, cimento e da atenção médica, que inclui cirurgias expõem seus pontos de vistas e falam de suas expe- complexas e reordenações do serviço público, aos riências com essa população. avanços em termos da legislação e até mesmo às in- Os depoimentos das pessoas entrevistadas ilustram A DIVERSIDADE REVELADA terpretações do Judiciário. um cenário desconhecido e ignorado mesmo pelos Nos códigos prevalentes, não há espaço para um profissionais que deveriam estar de olhos mais atentos “terceiro sexo”, por isso a mudança do nome e do para a evolução dos conceitos. “Não mudamos nada, sexo depende de demorados e complexos processos apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz Jalma Ju- na Justiça. Medicina e Judiciário estão décadas atrás rado, o cirurgião plástico brasileiro que diz já ter feito de um processo de readequação do sexo que há sé- 800 cirurgias de redesignação sexual. A grande maio- culos aparece em relatos, em todas as civilizações e ria dos profissionais ainda terá de amadurecer antes em todas as épocas. de pensar como ele. Camufladas e escondidas no meio social, as traves- A seguir, falas resumidas de alguns e algumas das tis seriam 800 mil no Brasil e 400 mil as transexuais, personagens, cujas histórias em detalhe podem ser vis- 6 segundo estimativas da Antra, articulação nacional que tas ao longo desta publicação.
  • 8. AGNES traz entre os seios uma procedimentos – e a abertura do “O CRD para mim é uma tatuagem com seu nome, uma cruz e Ambulatório de Saúde Integral para clínica, nenhum outro tratamento me uma borboleta. Fez isso quando tinha Travestis e Transexuais, ela retomou mudaria tanto, porque aqui me deram 23 anos. Deprimida, tinha decidido se as esperanças. “Só não me suicidei responsabilidades, tive o apoio e a matar, mas não se conformava com o porque tirar a vida por uma condição confiança de toda a equipe. Para fato de que na lápide ficaria gravado que Deus me deu, seria cometer o desviar da droga, o drogado tem que seu nome masculino. Com a maior pecado. Mas ainda espero que ter uma responsabilidade. Então o tatuagem, saberiam que estavam com a cirurgia encontrarei o contrato aqui com o CRD mudou enterrando uma mulher, ela casamento e a felicidade.” tudo, virou um projeto de vida, mais imaginava. Desistiu do suicídio, mas do que um trabalho. É uma luta se inquieta ao pensar que se morrer NO PARQUE DA LUZ, o mais constante. Eu era 100% drogada, hoje antes da cirurgia e da mudança nos pobre e triste ponto de prostituição da posso dizer que sou 20%. Um tempo documentos trocarão suas roupas por cidade, Bernadete é considerada atrás eu jamais estaria aqui, estaria um paletó de homem e na lápide jovem perto das senhoras de mais de roubando, indo atrás de droga.” ficará seu nome masculino. 80 anos que fazem programa ali. Claudia Coca, 42 anos, é uma travesti “Vivem de clientes antigos, ou de contratada como educadora de rua. ALEXSANDRO já teve quatro rapazes maníacos com fixação na mãe Percorre pontos de prostituição casamentos com mulheres ou na avó”, ela interpreta. “Os embaixo de viadutos, onde só uma heterossexuais e diz que sempre clientes idosos, com os cabelos travesti seria recebida. Quem vê cumpriu suas “funções de homem e branquinhos, são tão sozinhos quanto aquela negra atraente, de cabelos marido”. Agora está diante de um elas. Usam três cuecas, quando uma curtos, cintura torneada e seios dilema: os pais da atual namorada suja, colocam outra por cima, depois empinados, não imagina que já foi esperam um casamento na igreja e de outra.” Bernardete Vicente de Souza, drogada, prostituída, presidiária, papel passado. Só que ele é um homem 58 anos, faz a ponte entre as bombadeira. É um dos exemplos mais trans, tem barba e traços masculinos, “meninas” da Luz e o CRD. “Digo a marcantes de “travestis marginais” mas disfarça os seios e esconde uma elas que é um jeito de não ficar que mudaram de vida ao encontrar o vagina. E nos documentos traz o nome sozinha. Porque ficar sozinha nesta CRD e que, infelizmente, faleceu de mulher. Sua esperança é conseguir vida é perigoso.” antes de ver essa publicação. uma cirurgia para a retirada dos seios, já que substituir a vagina por um pênis é CAMILA ROCHA, 18 anos, é uma A CABELEIREIRA Débora Zaidan uma possibilidade remota. E mudar o travesti forte, bonita, com traços e reuniu R$ 30 mil com a ajuda da família nome depende de um processo lento seios que chamam a atenção. Dorme e em 2006 fez a cirurgia de na Justiça. A data do casamento está se na rua “por amor”, ela conta. O redesignação sexual com um cirurgião aproximando. “marido” morria de ciúmes sabendo particular. Os vizinhos e clientes que estava num albergue numa ala sabem que hoje ela é uma “mulher ANDRÉIA FERRARESI carrega na com 120 homens. “Não dava para operada”, embora sempre tenha sido pasta repleta de papéis um laudo de ficar separados. Decidimos os dois respeitada como mulher. Débora diz 1977 informando que é portadora de dormir na rua.” Camila encontrou que teve companheiros antes e depois transexualismo e que está apta para a socorro no CRD e no Ambulatório de da cirurgia, e descobriu que o sexo não cirurgia de adaptação de genitais. Só Saúde Integral para Travestis e era o mais importante na relação. A DIVERSIDADE REVELADA 25 anos depois, em 2002, o Conselho Transexuais quando o HIV já estava “Hoje vivo muito mais tranqüila com Federal de Medicina viria a autorizar roubando as energias e as drogas meu sexo, mas descobri que o prazer o procedimento nos hospitais públicos afastando os clientes. Sua vida de rua é psicológico. Tive muito prazer com e privados. Nesse quarto de século, e prostituição começou aos 10 anos na alguns homens, e não tive nada com Andréia viveu de terapias e sonhos. praia de Iracema, em Fortaleza. “Em outros, sem vagina e com vagina, assim Ainda continua sonhando. Aos 67 São Paulo descabelei, orgia, bebida, como qualquer mulher.” anos, ela se diz uma mulher droga. O cliente oferece crack, paga injustiçada, mas se recusa a falar em mais e não quer camisinha. Não vou “A MUDANÇA de sexo é uma desistência. Com a nova portaria do contar que tenho aids. Estou coisa que hoje não me incomoda SUS de 2008 – incluindo a cirurgia de deixando essa vida, mas ainda preciso tanto, mas já sofri muito redesignação sexual entre seus de dinheiro.” afetivamente. Você conhece um 7
  • 9. homem e ele pensa que você é marquises no centro de Osasco, até Demônio, que conserva até hoje. biologicamente mulher, e você não conhecer o CRD e ser encaminhada a Alta, forte e “babadeira”, ela se é... Fica com medo de contar e ser um albergue. Diz que ainda não impunha onde estivesse. Um cliente rejeitada, como acontecia lá atrás. O encontrou ajuda nos serviços de saúde ou estranho que humilhasse uma medo de se identificar vai virando um e naqueles voltados para a população colega, ela quebrava uma garrafa na trauma. Hoje já me pega menos. LGBT, onde esperava uma reinserção mesa e o bar virava um silêncio. Era a Estou conseguindo gostar de mim no trabalho. “Meu relato é uma mais respeitada. Aos 40 anos, mesma.” Kleos Marine Guedes, 45 história de perdas e de um auto- “exausta, acabada, sem saída”, anos, produtora de eventos e artesã. conhecimento solitário. Perda do passou um dia pela calçada do CRD e emprego, da casa, da identidade dediciu entrar. “Ali mostraram que “MEU NOME social é Leo sexual, da família. Aos 26 anos contei a minha vida podia ser diferente, e eu Moreira, tenho 52 anos, sou um meus pais o que eles sempre comecei a mudar.” Dali passou a ser homem trans, tenho essa barba e cara souberam. Meu pai disse, ‘eu aceito cuidada pelo Ambulatório de Saúde de homem, mas ainda carrego seios e você assim, só não estou preparado Integral para Travestis e Transexuais. uma vagina. Estive preso por cinco para participar’. Era justamente o que Mikaela está se mudando para uma anos em vários presídios por conta de esperava ouvir. Esse foi o momento casa na periferia da Zona Sul com o drogas, me casei três vezes nas definitivo. Meu pai e minha mãe “esposo”, que tem emprego no cadeias, nas alas femininas, porque morreram logo depois.” programa Travessia Segura, da para o sistema eu era a Lourdes Prefeitura. Diz que aprendeu tudo de Helena Moreira Santos, era a sapatão MARCIANO Alves Fernandes, 29 informática e quer fazer faculdade de mais disputada pelas presidiárias. anos, conserva a elegância dos tempos tecnologia da informação. Ganhará Com metade do curso de sociologia que mantinha R$ 300 mil em conta tanto que voltará a usar seu perfume na USP, virei professor na cadeia, bancária e chefiava 30 meninas numa preferido, Bulgary black, e só antes já tinha sido militante feminista das ruas de Ravenna, na Itália. Foi para trabalhará em casa, “pelada, com e baterista do grupo As Mercenárias. rua com 12 anos quando o pai adotivo meu namorado”. Fui casado de papel com a travesti lhe bateu na cara e ele prometeu que Gabriela Bionda, eu com meu nome homem nenhum voltaria a fazer isso MILA não quer mais que a de mulher, ela com o nome de com ele. Fugitivo de casa, dormiu em chamem de Mila Citroen, apelido que homem, era o casal mais badalado do cima de árvores, foi cuidado por ganhou porque os carros que mundo gay. Quando sai da cadeia, não travestis, até se tornar cafetão “sequestrava” para tirar dinheiro de tinha mais nada, nem amigos nem respeitado e patrocinador de festas caixas eletrônicos eram sempre da referências sexuais. O CRD me deu com as mulheres mais bonitas. Hoje se marca Citroen. “Sou outra Mila”, ela essa força. Hoje sou ator na peça trata da aids, de diabetes e de um diz. Mila Alves dos Santos, 30 anos, já “Hipóteses para o Amor de câncer. Trocou as contas em banco foi prostituta, assaltante, presidiária, Verdade”, que conta um pedaço da por um salário contado como drogada, “fazia programa por R$ 5 só minha história, e que está no espaço segurança e agente de prevenção do para comprar pedra”. Entrou no Satyros 1. Vocês estão convidados.” CRD. “Plantei espinhos, estou CRD convidada por uma amiga e colhendo espinhos”, diz, sem perder a desde então diz que sua vida está MARCELLE MIGUEL, 37 anos, tem dignidade. “O crack me pegou e me mudando. “Hoje não sou mais traços femininos, cabelos sobre os destruiu em dois anos. Mas ainda vou clandestina, vivo com meu parceiro, o A DIVERSIDADE REVELADA ombros, olhos verdes, usa blusa regata sair dessa.” Em todos os momentos, Igor, todo mundo no bairro sabe”. preta, calça unisex e sandália de dedo. sempre teve uma mulher do seu lado, Igor é ajudante de carga e descarga, Chama a atenção pela aparente travesti ou transexual. “Quando você estava noivo quando se decepcionou timidez, a conversa tranquila, as para com a droga, fica muito carente. e encontrou Mila, “esta é história que palavras medidas, as frases construídas Agora vivo com Bianca, na periferia. ele me conta”, diz. “A droga ainda com cuidado. Já foi “técnico” de Um cuida do outro.” me tenta, mas estou vivendo como informática em grandes empresas auxiliar de cabeleireira e faço antes de abandonar os trajes NOS 20 ANOS que se prostituiu, supletivo. Vivo fugindo das masculinos e se assumir como mulher quando se animava com drogas e tentações. Costumava carregar R$ 3 trans. O preço foi o desemprego e a álcool, a travesti Mikaela Rossini mil na bolsa, oferecia drogas e bebidas 8 rua. Viveu vários períodos sob ganhou o apelido de Mikaela para as colegas. Hoje o dinheiro para
  • 10. viver me deixa feliz. No ambulatório, com um trabalho e um espaço que prostitutas, é voluntária num serviço de estou treinando com a fonoaudióloga possa dividir com Fernanda. “Ela tem DST-Aids, e faz o primeiro ano numa para afinar a voz.” dois yorkshires, precisamos de uma faculdade de Serviço Social. É casinha com quintal.” acompanhada pelo ambulatório para ELA É A ESTRELA das noites travestis e transexuais do CRT DST/ paulistanas nos bares que reúnem “UMA TRAVESTI com silicone e Aids-SP. Vanessa diz que nunca ouviu gays, lésbicas e travestis. É uma das próteses pode ganhar até R$ 500 por uma “gracinha, um psiu, uma raras drag queens que não dubla e que noite, as outras ganham a metade. O provocação”, referindo-se a seus trajes coleciona elogios da crítica como silicone industrial é perigoso, mas não e comportamento como mulher. “Se intérprete da música popular vim de Belém para ficar no meio do você quer respeito, tem que ter brasileira. Cria suas coreografias e caminho. Assim que fizer as respeito, tem que impor. Não pode destila um humor picante, sempre aplicações e juntar dinheiro, vou para botar um bustiê, um sutiã, e querer ir intercalado com poemas. Seu próximo a Itália.” Suzielen S., 19 anos, se diz ao açougue ao meio-dia”, ela diz. CD é dedicado a Noel Rosa. Ela é travesti e transexual. Frequenta as Renata Perón, mas já foi o cantor Terças-Trans do CRD e faz O PROFESSOR de inglês Victor Sérgio, em Juazeiro, Bahia. Em São acompanhamento no Ambulatório de de Abreu, 27 anos, é um homem Paulo foi cabeleireira, manequim, Saúde Integral para Travestis e trans que já fez cirurgia da mama e trabalhou em teatro, cinema e novela Transexuais. Mesmo orientada, agora embala um sonho com a de TV. Nas tardes de quarta-feira, percorre a rota sonhada por milhares namorada com quem vive há quatro pode ser vista entre o grupo que delas, “modelar” o corpo e ganhar anos: retirar um dos seus óvulos e frequenta as oficinas de canto do dinheiro lá fora. guardá-lo congelado numa clínica de CRD. “A música é sempre um inseminação para que no futuro possa momento de reflexão e autoestima, “O TERCEIRO milênio é o ser fecundado e colocado no útero da para noiados ou não.” Foi o Centro de milênio da mente, e a mente tem um companheira. Assim, o filho nasceria Combate à Homofobia, da Prefeitura, terceiro sexo. Vai chegar um de um óvulo seu e seria gerado na e o CRD que a acolheram quando foi momento que o homossexual terá “barriga” da namorada. Victor é agredida por um grupo de rapazes na muito orgulho em ser homo, porque é paciente do Ambulatório de Saúde praça da República e perdeu um rim. capaz de gerar coisas lindas, Integral para Travestis e Transexuais. Renata é uma travesti, mas nos shows fabulosas.” Thaís di Azevedo, que faz que agora faz no Hábeas Copus se essa “previsão”, traz a experiência de ALEXANDRE SANTOS, o Xande, identifica como drag queen. “A uma travesti que aos 60 anos 38 anos, é um homem trans que já sociedade não aceita que haja travestis coleciona uma história de vitórias e comandou a Parada do Orgulho GLBT com alguma dignidade e inteligência.” conquistas que superam as de São Paulo, a maior manifestação de humilhações. Thaís é hoje a gays, lésbicas, travestis, transexuais e QUASE TODOS os dias Fernanda recepcionista do CRD, aprovada em simpatizantes do mundo. Tem uma sai de Guarulhos e vai à região central concurso. Combina a elegância com a filha, hoje com 19 anos, que nasceu de São Paulo para ver Rodrigo. Ela é amabilidade e a habilidade necessárias ainda em sua “fase” lésbica. Nas travesti, já foi auxiliar de para manter a ordem num espaço relações seguintes, as companheiras enfermagem, agora luta contra um onde se misturam moradores de rua e foram sempre heterossexuais, como câncer e batalha pela aposentadoria travestis em busca de ajuda, às vezes Débora, sua atual parceira. Xande A DIVERSIDADE REVELADA que tem direito. Rodrigo de Souza ainda sob o efeito de drogas. “A falta ainda não conseguiu a retirada dos Ventura, 30 anos, percorreu várias de informação e o preconceito seios e dos órgãos femininos internos, cidades antes de chegar a São Paulo e paralisam todos nós”, diz. As cadeiras embora seja um procedimento comum se assumir como michê profissional. dispostas ao lado de sua mesa nunca em mulheres, por necessidades Animado pelo crack, chegava a fazer estão vazias. Tem sempre alguém médicas. “A menstruação é uma coisa 20 programas em 24 horas nos querendo ouvir suas idéias. terrível para mim”, ele diz, cobrando principais cinemas pornôs do centro um direito que considera fundamental. de São Paulo. Doente e com os VANESSA PAVANELLO, 41 anos, Militante em tempo integral, Xande sintomas da aids, foi em busca de mãe de um filho adotivo, é uma mulher lamenta a invisibilidade dos homens ajuda no CRD, onde encontrou trans. Trabalha como agente social da trans e faz críticas à imposição do amigos e o gosto pela pintura. Sonha Prefeitura, coordena reuniões com padrão heterossexual. 9
  • 11. Acolhimento e atenção INTEGRAL À DIVERSIDADE Os públicos são muito parecidos, o que facilitou a aproximação e a sinergia dos trabalhos realizados pelo Centro de Referência da Diversidade e pelo Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP A experiência dos dois serviços . traz a perspectiva de dias melhores à população LGBT . Centro de Referência da Diversidade, o do Centro de Referência da Diversidade, o CRD. O CRD, já se firmou como porta aberta para “‘Tem um lanche da tarde e tevê’, Baby disse. Des- a população LGBT em situação de cobri que tinha muito mais, tinha gente para con- vulnerabilidade e risco social. Em outra versar e que se preocupava comigo. Minha vida co- frente, o Ambulatório de Saúde Integral meçou a mudar ali.” Foi o CRD que encaminhou para Travestis e Transexuais do Centro Mila para o Ambulatório de Saúde Integral para Tra- de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT vestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP. Encon- A DIVERSIDADE REVELADA DST/Aids-SP) já é referência como serviço de saúde trou lá não só endocrinologista, proctologista, voltado para essa população. Oferece, inclusive, o psicólogo, mas também uma fonoaudióloga. “Mi- acompanhamento psicológico necessário para a cirur- nha voz não era assim, era uma voz grossa.” gia de redesignação sexual. As duas iniciativas estão Camila Rocha, também travesti, fez caminho se- revelando formas diferenciadas e criativas de oferecer melhante. Divide visitas ao CRD com o ambulatório acolhimento, escuta especializada e realizar ações de do CRT DST/Aids-SP onde passa por consultas e prevenção junto a esta população. monitora a carga viral da infecção pelo HIV. A A travesti Mila Alves dos Santos viveu nove anos transexual Verônica Freitas conheceu o CRD no fi- entre prostituição, drogas, assaltos e cadeias. Lem- nal de 2009 e meses depois tinha suas consultas bra-se da tarde de setembro de 2009 quando Baby, agendadas no ambulatório. Quer participar do grupo 10 uma amiga, insistiu para que entrassem na porta aberta de psicoterapia e sonha com uma cirurgia. Taís Diniz
  • 12. Os sofás do saguão do CRD são o primeiro espaço de acolhimento para quem está chegando da rua Souza, transexual e assistente social do CRD, retirou O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e o silicone industrial que a incomodava depois que pas- Transexuais foi pensado para oferecer na área da saú- sou a freqüentar o ambulatório. de a atenção especializada que os serviços da rede pú- O CRD fica na rua Major Sertório, entre a Rego blica não contam ou não estão capacitados a oferecer. Freitas e a Amaral Gurgel, certamente a calçada do Até então, travestis não passavam por endocrinologistas Centro da cidade mais freqüentada por travestis e toda (embora abusem do uso de hormônio), homens trans sorte de desassistidos da noite. O Ambulatório de Saú- não contavam com ginecologistas (embora biologica- de Integral para Travestis e Transexuais, por sua vez, mente sejam mulheres), e mulheres trans não viam ocupa várias salas dentro do Centro de Referência e urologistas – embora conservem a próstata, mesmo Treinamento DST/Aids-SP, na rua Santa Cruz, na Vila depois de operadas. Homens trans com jeito másculo Mariana, Zona Sul. A entrada fica na calçada em frente e barba no rosto não ficavam à vontade numa sala de à Igreja Nossa Senhora da Saúde, próximo do metrô, espera de um ginecologista. Travestis ainda evitam do Colégio Marista Arquidiocesano e de um shopping serviços de saúde para não serem chamadas em voz center. Seu entorno é agitado por milhares de pessoas. alta pelo nome do registro civil. Para muitos usuários, é conhecido como o ambulatório Nas saídas noturnas, quando educadores sociais do da Santa Cruz. CRD entregam camisinha e gel para profissionais do O Centro de Referência da Diversidade foi inau- sexo, as travestis mais jovens dizem que nunca procu- gurado em março de 2008. O Ambulatório de Saú- raram ajuda médica com medo de serem humilhadas. de Integral para Travestis e Transexuais começou a Agora, além de especialistas e de profissionais prepa- funcionar em junho de 2009. Os dois serviços se rados para essas usuárias, o ambulatório oferece ses- completam. Marcam um passo inovador na forma sões de fonoaudiologia, para que suas vozes sejam de fazer prevenção e oferecer cuidados a uma moduladas como seus corpos são modelados. população habituada à discriminação, ao pouco caso Os dois centros buscam oferecer mais que o acolhi- e à inabilidade das políticas públicas. mento e o atendimento. Pretendem ser modelos para A DIVERSIDADE REVELADA O CRD é a porta de entrada para travestis, que outros serviços sejam abertos no país, por isso são transexuais, prostitutas, lésbicas, gays e michês que centros de referência. Capacitar profissionais da saúde se encontram em situação de risco – vulneráveis à para que, num futuro, travestis e transexuais não neces- droga, à violência, ao HIV/aids e ao abandono com- sitem recorrer a um ambulatório diferenciado. pleto. É um espaço de acolhimento, convivência e A gestão do CRD é feita pelo Grupo Pela Vidda/ intervenção na trajetória social. O maior desafio é o SP, uma ONG que trabalha com HIV/aids há mais aumento constante de usuários de crack e a reinserção de 20 anos, em parceria com a Secretaria Municipal no trabalho. Cerca de metade dos freqüentadores se de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. No dizem desempregados, e outra parte, profissionais do início, o CRD integrava o Projeto Inclusão Social sexo. Para dar conta dessa tarefa, o CRD fez uma Urbana – Nós do Centro, com recursos da União série de parcerias públicas e não governamentais. Europeia. O Ambulatório de Saúde Integral para 11
  • 13. rência da Diversidade ilustra o nível de risco em que se encontram. Entre os usuários que procuraram o CRD até maio de 2010, 57% se auto-classificavam como travestis e apenas 5% como transexuais. Os ou- tros disseram ser gays, heterossexuais, bissexuais ou lésbicas. No grupo todo, 40% viviam com HIV e 46% não realizavam teste há mais de três anos, embora relatassem situação de exposição. A metade se dizia desempregada e 35%, profissionais do sexo. Um terço deles era morador de rua. Trata-se de uma população bastante diferencia- da daquela que procura o ambulatório do CRT DST/Aids-SP, o que é compreensível pela própria proposta do serviço. De uma amostra inicial cadastrada no ambulatório, 68,2% se auto-definiram como transexuais e a demanda principal era a cirur- gia de redesignação sexual e tratamento hormonal. As travestis eram 35,3% e procuravam sobretudo pela hormonoterapia e pela retirada de silicone industrial. Partiu do então secretário estadual da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata, morto em 17 de julho de 2010, o pedido para que o CRT DST/Aids-SP colocasse em andamento um programa voltado para travestis e transexuais. “As condições estavam dadas, havia planos À espera de atendimento no CRT DST/Aids-SP: antes do nacionais e estaduais dizendo que tínhamos de trabalhar gênero, do nome e do sexo, o mais importante é o respeito com essa questão, e havia a clareza de nossa parte de que a vulnerabilidade dessa população precisava de Travestis e Transexuais, por sua vez, é um serviço do respostas diferenciadas e concretas – e que essas respostas CRT DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da Saúde passavam pelo acesso aos serviços de saúde. Para aquelas de São Paulo, o primeiro centro voltado ao tratamento que são soropositivas, o serviço permite melhor acom- e prevenção da aids, ainda no início dos anos 1980. panhamento. Com as outras, podemos trabalhar a pre- “Participamos desde o início da construção desse venção”, diz Maria Clara Gianna, coordenadora do Pro- ambulatório, por isso somos um parceiro prioritário”, grama Estadual DST/Aids-SP. diz Irina Bacci, que coordena o CRD. No cadastro que Se oferecesse apenas um acolhimento diferenciado, preenchem quando da chegada de um novo usuário, o ambulatório não atrairia nem teria a fidelidade que vários itens tratam da saúde. “Sabemos há quanto tem- tem das usuárias. “A saúde integral, como o ambulató- po não passam por um médico, se são soropositivas, se rio promete, inclui necessidades que vão da Atenção injetaram silicone e se fazem uso indiscriminado de Básica à hormonoterapia, à fonoaudiologia, passando hormônio. Quando é o caso, ligamos e agendamos uma por psicoterapia preparatória para a operação, no caso consulta no ambulatório”, diz Irina. das transexuais”, diz a médica. As travestis, por exemplo, A DIVERSIDADE REVELADA O caminho para os serviços de saúde não preci- não iriam ao ambulatório se não contassem com um saria, em princípio, passar pelo CRD, mas para al- acompanhamento hormonal e se não pudessem receber guns é o único atalho. “Muita gente está vindo aqui cuidados no caso de danos provocados por silicone porque não consegue acessar os serviços de urgên- industrial. Uma parceria com o Hospital Estadual de cia e emergência”, diz Irina. “Estavam tão mal que Diadema, na Grande São Paulo, vem cuidando daquelas pronto-socorro não aceita, Samu não resgata. Então cujo silicone migrou para outras partes do corpo, nós levamos para o ambulatório, e na fase seguinte causando deformações e inchaços. Em uma amostra ele encaminha para dentro da rede. Essa é outra im- de 72 travestis atendidas no ambulatório, 15 foram em portância do ambulatório, abrir a porta da rede de busca de tratamento para o silicone industrial implantado. saúde para essa população.” E quase todas procuraram o serviço para acompanha- 12 O perfil dos frequentadores do Centro de Refe- mento hormonal.
  • 14. Rodrigo de Souza Ventura, 30 anos QUASE TODOS os dias Fernanda sai de Guarulhos e vai à região central de São Paulo para ver Rodrigo. O trajeto toma “ Eu me prostituia e usava crack quase uma hora. Fernanda tem 45 anos, porque não é travesti, já foi auxiliar de enfermagem queria morrer por 20 anos, é portadora do HIV e agora se trata de um câncer enquanto aguarda a aposentadoria. Rodrigo de Souza Ven- tura, 30 anos, também tem HIV, foi michê em Maringá onde nasceu, depois ” ceu na Praça da República, quatro me- ses atrás, eu estava pesando 49 quilos, dez meses antes tinha descoberto que em Curitiba e São Paulo. Chegou a fa- estava com HIV, foi julho de 2009. Co- zer 20 programas por dia, dentro ou fora mecei o tratamento e parei, achava que dos cinemas da São João, cobrando R$ minha vida não tinha mais sentido. Todo 30 por saída. Desde que conheceu o dia eu me prostituía, todo o dinheiro que CRD vem fazendo cursos e sonha com eu pegava ia para o crack. Mesmo sa- uma casa pequena onde possa morar Curitiba, daí para São Paulo. “Estava bendo que tinha HIV, eu saia para noi- com Fernanda e seus dois yorkshires. decidido a sair dessa vida.” Era maio de te. Eu já freqüentava o CRD há um ano “Foi no CRD que comecei a acredi- 2007 e ao desembarcar em São Paulo, e meio, mas continuava fazendo pro- tar que havia um outro caminho”, ele conta que roubaram os R$ 1.800 que gramas, o dinheiro ia todo para o crack, diz. “Aqui me sinto seguro, meu sonho trazia e a saída foi retomar o caminho porque eu não aceitava que estava com é trabalhar aqui, mostrar aos outros que da prostituição. “Conheci as termas aids. Os clientes não sabiam que eu ti- sempre há uma saída.” Foi um colega Lagoa, a Fragata, a Praça da República, nha aids, nem queriam saber.” de albergue, já nas primeiras noites em rua do Arouche, os ‘cinemão’ pornôs, Foi nos contatos no Centro de Refe- São Paulo, que falou do CRD, um pon- que naquele tempo eram muitos. Foi rência da Diversidade, e com o círculo to de encontro onde teria lanche à tar- num desses que me apresentaram o de amigos que foi formando, que Rodrigo de, Internet, tevê e até mesmo a ajuda crack, minha decadência começou aí.” fez as primeiras tentativas de deixar a de um psicólogo e a atenção de uma Usava tanto que num momento co- droga e a prostituição. “Aqui é a minha assistente social. Isso foi no ano passa- meçou a vender o que tinha e a se primeira casa, porque nos albergues do, 2009. Rodrigo continua morando envolver com todos os personagens você não tem um espaço seu, só tem em albergue e fazendo tratamento no da noite, travestis, gays, prostitutas. horários para cumprir, até às 8 da noite SAE de Campos Elíseos. Trabalho ain- “No cine Saci, quando funcionava, eu para entrar, 10 minutos para tomar ba- da não conseguiu. cheguei a fazer R$ 480 reais com pro- nho, às 6 da manhã as luzes são acesas, Rodrigo nasceu em São Jorge do Ivaí, gramas de R$ 20, R$ 30 reais. Saí você tem até às 8 para sair. Mas foi a no Paraná. Logo a família foi para mais de 20 vezes em menos de 24 Fernanda, minha namorada, que me Maringá, e quando perdeu o pai, atro- horas, o corpo destruído. Tinha o Las ajudou a mudar de vida. Ela sofreu mui- pelado e bêbado, foi internado num or- Vegas, que foi desativado. O pessoal to, se envolveu com traficantes, com A DIVERSIDADE REVELADA fanato. Tinha cinco anos e ficou lá até deixava usar os banheiros, era crack usuários que já tentaram matá-la. O cân- os 18. Na saída, trabalhou como vigi- e sexo dentro do cinema também. cer dela é de pulmão. A gente vive cui- lante no centro da cidade, ruas que reu- Havia duas escadas laterais, duas sa- dando um do outro. Nesses cinco me- niam prostitutas e michês. “A farda e o las de cinema e uma sala menor onde ses que estamos juntos, ela só não veio cassetete chamavam a atenção e os ho- tinha uma tevê e o pessoal fumava me ver três dias. Hoje ela me deixou mens começaram a se envolver comi- crack direto, e fazia sexo, não preci- aqui na porta, é ela que cuida de mim, go. Ganhava até R$ 80 por programas sava nem ir para hotel. O cinema era da minha roupa. Largou o trabalho de que rendiam R$ 200 por noite. Come- só fachada, lá dentro se fazia de tudo, enfermagem depois que pegou o cân- cei a freqüentar saunas, conheci a ma- fechou alguns meses atrás.” cer, e ainda não conseguiu uma aposen- conha e a cocaína.” Fernanda, sua namorada, é quem tem tadoria. Perdeu todo o cabelo que ti- Com dinheiro no bolso, foi para dado força, diz ele. “A gente se conhe- nha, não pode mais trabalhar na noite.” 13
  • 15. Débora Zaidan, 49 anos O SALÃO DA cabeleireira Débora Zaidan é um dos mais conhecidos numa das principais avenidas de Diadema, na Grande São Paulo. Seus clientes e vi- zinhos sabem que Débora já foi uma “mulher com corpo de homem”, e que “ Eu já mudei o sexo, mas hoje é uma “mulher operada”, como ainda não eles costumam dizer. Em 2006, fez uma cirurgia de transgenitalização na consegui mudar clínica particular do cirurgião Jalma Ju- o nome rado. O médico construiu uma vagina valendo-se do tecido do pênis, como se fosse uma luva ao contrário, uma técnica aprimorada por ele e que diz ” preservar a sensibilidade. homens, e não tive nada com outros, 15 anos, só um pouquinho, mas nunca Para pagar os R$ 30 mil que custou a sem vagina e com vagina, assim como fiz uma avaliação. No ambulatório cirurgia com a enfermagem e todos os qualquer mulher.” estou passando por todos esses médi- procedimentos, Débora afirma que Depois da cirurgia, Débora teve um cos. Nunca tinha recebido essa atenção. economizou durante anos. “Foi a úni- relacionamento que durou pouco mais Também percebo que estou encon- ca forma que encontrei para sair da fila de um ano. “Hoje estou com outro trando gente como eu, coisa difícil, do HC, onde aguardei por cinco anos companheiro, uma relação muito porque ficava isolada no salão.” sem nenhuma perspectiva”, ela diz. tranquila, cada um em sua casa, eu em Débora conta que se descobriu Débora tem 49 anos e desde os 25 vem Diadema, ele em Itaquera.” Filhos, ela transexual desde muito menina. “Eu tentando a cirurgia, sempre carregan- pensa em adotar mais tarde, quando um percebia que era diferente dos outros, do culpas quando um relacionamento dia tiver mais tempo e voltar para a ter- porque sentia aquele arrepio só quan- terminava. “Achava que os namorados ra de onde veio, Fortaleza, no Ceará. do via os meninos, não as meninas. iam embora porque eu não tinha uma Débora soube do Ambulatório de Quando eu via as meninas eu me sentia vagina. Aquilo sempre me deprimia.” Saúde Integral para Travestis e Tran- igual, só que eu notava que nas partes Hoje Débora diz entender que a ci- sexuais do CRT DST/Aids-SP quando genitais eu era diferente. Na minha rurgia, embora um direito fundamen- procurou o serviço do HC e não época, lá no Ceará, tudo era mais com- tal para as transexuais, não é tudo no conseguiu consulta com o endocri- plicado, demorou muito para a eu en- relacionamento. “Tive vários namora- nologista “porque tinha sido operada tender essas coisas.” dos, até casada já fui. Morei com um em clínica particular”. “Eu precisava de Débora conseguiu ganhar um lugar companheiro por 11 anos antes da ci- um acompanhamento hormonal porque na fila, juntar dinheiro e fazer a cirur- rurgia, ele nunca falou em operação. Eu sempre tomei remédio por conta, e gia, conquistou o respeito de seus A DIVERSIDADE REVELADA achava que sexo segurava alguém, mas com a idade chegando os riscos aumen- clientes e vizinhos como mulher trans, hoje vejo diferente, o sexo não impor- tam. Foi aí que alguém do posto de mas ainda não conseguiu mudar sua ta. A cirurgia veio para me completar, saúde aqui do bairro me falou do documentação. “Estou com todos os isso sim. A insegurança que eu tinha, ambulatório da Santa Cruz.” laudos e papéis num serviço gratuito hoje não tenho mais, me sinto tranquila, Débora marcou uma consulta pelo aqui de Diadema, mas está demoran- a tensão do relacionamento terminou. telefone e vem passando pelos médi- do muito.” No caso da transexua- Quando me olho no espelho, não me cos desde o final de 2009. “Eu nunca lidade, como em vários outros, a me- vejo mais como alguém com o sexo tinha ido antes a um ginecologista. Não dicina andou mais rápido que a Justi- deformado. Mas para mim o prazer não estava mais fazendo psicoterapia, nem ça. Se morrer, Débora será enterrada depende só do sexo, porque ele é psi- ia ao endocrinologista. Também tenho com corpo de mulher e na lápide esta- 14 cológico. Tive muito prazer com alguns uma aplicação de silicone industrial faz rá escrito seu nome de homem.
  • 16. TRANSEXUAIS E TRAVESTIS Respeito e direitos em adequação Travestis e transexuais formam o grupo mais estigmatizado e por isso o mais afastado e incompreendido nos serviços de saúde. O acolhimento proporcionado pelo CRD-Pela Vidda/SP e a atenção à saúde oferecida pelo ambulatório do CRT DST/Aids-SP são exemplos de iniciativas bem-sucedidas que se empenham para mudar esse cenário. Q uem observa a sala de espera do Ambula- gestos masculinos, mas que são biologicamente do sexo tório de Saúde Integral para Travestis e feminino. Têm tudo de homem, mas escondem uma Transexuais, na Vila Mariana, em São Pau- vagina, disfarçam os seios e seus corpos carregam útero lo, vai notar ali homens e mulheres, como e ovários. São os homens trans. se vê em qualquer sala de espera de um Entre esses homens trans está Alexandre Santos, o serviço de saúde. Trata-se, no entanto, de Xande, ex-presidente da Associação da Parada do Or- um espaço onde sexo e gênero não obedecem à divi- gulho GLBT de São Paulo, a maior manifestação do são convencional entre masculino e feminino. Algu- gênero no mundo, que ainda não se livrou da mens- mas das presentes são travestis, pessoas que nasceram truação. Espera pela cirurgia para a retirada do ovário do sexo masculino e que optaram por desenvolver os e da mama. O promotor de eventos Alexsandro San- A DIVERSIDADE REVELADA traços e as atitudes das mulheres, porque é assim que tos Silva, que há cinco anos é acompanhado em cen- se sentem. A maioria ali são transexuais. Parte são tros de referência e que deseja se casar até o final do mulheres trans que se apresentam como mulheres, ano – desde que retire a mama e mude o nome nos pensam como mulheres, agem e têm cérebro de mu- papéis. Há também o professor de idiomas Victor de lheres, mas que biologicamente são homens. Podem Abreu, que vive com a companheira e sonha em guar- ser bonitas, elegantes, a voz com a modulação das dar um óvulo para um futuro filho, antes que o uso de vozes das mulheres, mas conservam o órgão sexual hormônios o deixe estéril. masculino. São chamadas de mulheres trans porque Na mesma sala de espera está Andréia Ferraresi, estão se adequando ao gênero feminino, ao qual per- 67 anos, que nasceu biologicamente do sexo mascu- tencem. Entre elas, nessa sala de espera, há uns pou- lino e há quatro décadas cobra o direito a uma cirur- cos homens, voz grossa, alguns com barba no rosto, gia que readequaria sua genitália em uma vagina. 15
  • 17. Recepção do ambulatório do CRT DST/Aids-SP: porta de acesso para a atenção integral à saúde E Luiza Claudia Santos, que vive com um compa- Os decretos recentes estão garantindo o nome nheiro há 14 anos e que ainda sonha em exibir a ele social em alguns serviços públicos para travestis e uma vagina, em lugar de esconder o pênis. transexuais. Mas a mudança do nome e do sexo nos São alguns dos dramas e sonhos que se escondem documentos, fato que mais trauma provoca nas pes- debaixo dos lençóis e que estão ali silenciosos na sala soas trans, só é concedida mediante uma ação na de espera. Na rua, nas escolas, no mercado de traba- Justiça, e diante de laudos que comprovem a cirur- lho, ou quando procuram um serviço de saúde, as gia, um sonho distante para muitas delas. pessoas transexuais e travestis amargam a discrimina- Não há levantamentos que quantifiquem essa po- ção e o preconceito. O que vale é o nome no docu- pulação, nem estimativas sobre sua prevalência. A mento, não a aparência, os gestos, os cuidados. Antra, Associação Nacional das Travestis e Depois de décadas de humilhações, o Estado de Transexuais, estima que sejam 1,2 milhão no país – São Paulo aprovou no início de 2010 uma lei que 800 mil travestis e 400 mil transexuais. Possivel- garante aos transexuais e travestis o direito de serem mente um número de difícil comprovação, mas en- chamados pelo nome social nos serviços públicos. Nos quanto o governo não considerar essa população últimos meses, cerca de 12 Estados e vários municípios nos censos demográficos, é o número que continua- baixaram decretos garantindo o mesmo direito na edu- rá valendo. Mesmo reduzindo esse número a um cação e nos serviços de saúde. Atendem a uma reco- décimo, as transexuais seriam 40 mil. Consideran- mendação da 1ª Conferência Nacional LGBT, de 2008, do que todas desejam a cirurgia de redesignação e a uma antiga reivindicação dos ativistas. Uma lei sexual, seriam necessários 50 hospitais fazendo 40 paulista, existente desde 2001, pune quem pratica qual- cirurgias por ano ao longo de 20 anos. Em 2008, quer ato discriminatório contra homossexuais, bissexuais, uma portaria do SUS incluiu a operação entre seus travestis e transexuais em todo estabelecimento público procedimentos e definiu quatro centros de referên- A DIVERSIDADE REVELADA – de delegacias, hospitais a lanchonetes e empresas. cia para a sua realização. Um deles, o Hospital das Mas apenas em março de 2010 um decreto dispôs so- Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, passou bre as penalidades. em junho de 2010 a fazer 12 cirurgias por ano. Até Ser chamado publicamente pelo nome que não então vinha fazendo duas. corresponde à aparência é o desrespeito responsável A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, pela fuga de milhares de travestis dos serviços de saú- por meio do Ambulatório de Saúde Integral para de. É também a causa da evasão de mais da metade Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP, busca das travestis dos bancos escolares. Em todas as situa- uma parceria para a abertura de mais um serviço no ções de convívio com a sociedade, elas são a parcela Estado. Quando a intenção se concretizar, o Estado da população LGBT mais estigmatizada e com me- de São Paulo deve fazer 30 cirurgias por ano, somadas 16 nor índice de escolaridade. as do HC com a do futuro serviço.
  • 18. Foram 50 anos de olhos fechados, paralisando avanços da medicina e atrofiando milhares de vidas As cirurgias de transgenitalização vêm sendo reali- Dentro de alguns anos, uma ou duas décadas tal- zadas no mundo desde a década de 1950, especial- vez, quando a idade “aposentá-las” como profissio- mente em mulheres trans – pessoas que nasceram do nais do sexo, o abuso de drogas pesar, o silicone in- sexo masculino, mas que na verdade são mulheres, dustrial mostrar seus efeitos e a aids afastá-las das nas quais o pênis é retirado e uma vagina é construída. ruas, o mesmo Estado que as ignorou não saberá o No Brasil, no entanto, só em 1997 o Conselho Fe- que fazer. Assim como a legião de usuários do crack, deral de Medicina autorizou esses procedimentos as travestis descartadas serão um peso enorme para como experimentais e em ambientes universitários. uma rede pública e uma sociedade que não sabem, Em 2002, a cirurgia foi liberada em qualquer hospi- nem nunca souberam, como lidar com elas. A tal, apenas em mulheres trans, e seguindo um proto- desconsideração será cobrada em dobro. colo do CFM. Foram 50 anos de olhos fechados para Algumas iniciativas públicas e não-governamentais essa população, o que resultou numa carência abso- começam a mudar esse cenário. Uma delas é o Cen- luta de cirurgiões especializados e em milhares de tro de Referência da Diversidade, o CRD, parceria do vidas “atrofiadas”. Muitos serviços de psicoterapia Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São Paulo. para transexuais foram fechados. Ou interromperam A outra é o Ambulatório de Saúde Integral para Tra- novas inscrições, uma forma de camuflar o tamanho vestis e Transexuais do Centro de Referência e Trei- das filas e de evitar que mais transexuais apostassem namento DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da suas vidas numa cirurgia que não viria nunca. Aos 67 Saúde. A primeira é a porta aberta para aqueles em anos, Andréia exibe o primeiro laudo indicando-a maior situação de risco e abandono entre a população como apta para uma “cirurgia de plástica dos genitais” LGBT. É nesse primeiro socorro, que antes da con- e assinado ainda em 1977 por médicos do HC. Três versa com a assistente social e a psicóloga oferece um outros laudos foram feitos em anos e décadas seguin- sofá para um cochilo, que muitos estão encontrando tes. Agora matriculada no Ambulatório de Saúde um caminho para sair da rua e das drogas. O segundo Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/ é um ambulatório especializado onde travestis e Aids-SP, Andréia ainda não perdeu a esperança. “Não transexuais são cuidadas na sua saúde integral e nas passa pela cabeça dos médicos e diretores de hospitais suas necessidades diferenciadas. A maioria dos servi- quanto sofre um transexual”, diz. ços da rede de saúde limita sua atenção ao masculino Enquanto as transexuais aparecem como vítimas, e ao feminino. Pessoas em fase de adequação de sexo dignas de piedade e necessitadas de cuidados médi- não cabem nos seus protocolos, nem são considera- cos – sentimentos e abordagem que elas rejeitam – das nas suas práticas de assistência. as travestis são mostradas como “sem vergonhas” e A proposta e o cotidiano desses dois serviços apa- marginais, que modificam o corpo para ganhar di- recem nos relatos de quase vinte transexuais, traves- nheiro. Em número muito maior que o das tis e michês ouvidos nesta publicação. Ao lado deles, transexuais, elas são as principais vítimas da discrimi- um número significativo de profissionais foi entre- nação da sociedade e da desconsideração dos servi- vistado. O resultado é um retrato de dupla face. De ços públicos. Jovens e saudáveis na sua maioria, não um lado, revela o abandono e as dificuldades que A DIVERSIDADE REVELADA procuram nem sentem necessidade da rede de saú- enfrentam essa população. De outro, o empenho dos de. Muitas, devido ao preconceito, se envolvem com profissionais e a surpreendente volta por cima de drogas e álcool e abusam do silicone industrial e de pessoas já tidas como irrecuperáveis. hormônios para modelar o corpo mais depressa. É o que mostram depoimentos de personagens Mostram-se pessoas divertidas quando são vistas que estão conseguindo escapar ao destino da rua, nas esquinas das avenidas escuras, seminuas e convi- das drogas e da doença. Como Claudia Coca, travesti dativas. Mas formam o grupo que mais sofre violên- que já foi prostituta, drogada, presidiária, e que ao cia – nos primeiros meses de 2010, 28 foram assassi- encontrar o CRD descobriu suas habilidades como nadas no país. E constituem um dos grupos de maior educadora social. A travesti Mikaela Rossini, que vunerabilidade para a infecção pelo HIV. Entre as que encontrou no CRD uma saída para sua vida de pros- procuram o CRD, cerca de 40% estão infectadas. tituta e drogada “babadeira”. Agora se prepara para 17
  • 19. fazer faculdade de tecnologia da informação. Marcia- no Alves Fernandes, que já foi cafetão e dependente de crack, e que agora trabalha e cuida da saúde. Por uma Por sua vez, relatos colhidos no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT gramática DST/Aids-SP demonstram a importância de um ser- viço de saúde integral e especializado. Muitos transexuais que sonham com a cirurgia de redesig- transexual nação sexual encontraram ali a única porta para se Uma das dificuldades dessa integrar a um grupo de psicoterapia como fase pre- publicação foi adequar o paratória. A transexual Vanessa Pavanello, agente gênero e a sexualidade dos social e universitária, é uma das que estão começan- personagens ao gênero do no grupo e passando por consultas médicas. estabelecido pela gramática. Vanessa tem 41 anos, viveu 12 com um companhei- Não há, nas cartilhas, ro e nunca tinha encontrado um referência a um “terceiro serviço especializado. O transe- sexo”, por isso optou-se por xual Alexsandro Santos Silva vem A escola deixar de lado essa do interior de São Paulo a cada 15 dias para participar das con- poderia preocupação. De acordo com sultas e terapias. a gramática, onde há pelo Dez anos atrás, travestis e contribuir menos um elemento transexuais também não tinham para uma masculino, o gênero que a quem recorrer quando se sen- tiam abusadas e discriminadas. nova relação predomina é o masculino, Hoje vários Estados contam com embora grupos ativistas mecanismos e instrumentos de entre as reivindiquem, corretamente, a proteção, embora a maioria ain- pessoas se referência sempre aos dois da não passe de intenções no pa- gêneros. O correto seria dizer pel. Ainda falta o sentimento de ensinasse aos “os” transexuais e “as” que o importante está na educa- ção. Uma escola que ensine aos alunos o transexuais, por exemplo. Mas como se referir a uma mulher alunos a respeitar uma travesti ou respeito à trans, que na verdade é uma pessoa transexual colega de classe estará contribuindo para diversidade biologicamente homem (do que uma nova relação se estabe- sexo masculino)? Ou a um leça entre as pessoas. A maioria homem trans, cujo nome é das travestis e transexuais ouvidas nesse trabalho rela- feminino? Se ainda faltam ta humilhações sofridas nas escolas. Depois da famí- definições sociais e médicas lia, a escola e o local de trabalho têm sido o principal palco das discriminações. Os sentimentos, os fatos, os para esse “gênero em A DIVERSIDADE REVELADA julgamentos e as sugestões, podem ser extraídos dos adequação”, é natural que a depoimentos colhidos. gramática nada tenha a dizer a Em abril de 2010, o Governo Federal e repre- respeito. Decidiu-se, portanto, sentantes de movimentos de travestis lançaram a cam- que os textos desta publicação panha “Sou Travesti – Tenho Direito de Ser Quem usariam o masculino ou Sou”, voltada aos serviços de saúde. “Esta é a de- manda mais importante das travestis, que têm o di- feminino dentro dos reito de cuidar de sua saúde. Elas têm problemas contextos, facilitando a leitura específicos e o sistema de saúde tem que atender às e a compreensão. suas singularidades”, afirmou à época o ministro da 18 Saúde José Gomes Temporão.
  • 20. Agnes Prado dos Santos, 28 anos AGNES traz entre os seios uma tatua- gem com seu nome, uma cruz e uma borboleta. Fez isso quando tinha 23 anos. Deprimida, tinha decidido se ma- tar, mas não se conformava com o fato “Não me enterrem como de que na lápide ficaria gravado seu homem nome masculino. Com a tatuagem, sa- beriam que estavam enterrando uma mulher, pensava. O pior da crise pas- sou, ela desistiu do suicídio, mas a tatua- gem entre os seios permanece como ” lésbica, o que a torna sujeita a um du- uma forma de dizer que não é homem, plo preconceito. “Apesar de ter a mi- nem nunca quis ser. Agnes ainda espe- nha identidade feminina, eu gosto de ra mudar seu nome na Justiça, mas se mulheres, assim como existem transe- vê muito longe de uma cirurgia de xuais gays, homens trans que gostam transgenitalização por conta das filas de de homens. Imagine minha alegria quan- espera. Tudo que faz é o acompanha- do senti que não era a única. É muito mento terapêutico no Hospital das Clí- se a chefia. “Use o banheiro unisex”, complicado para as pessoas entende- nicas há um ano, e o comparecimento um banheiro que ficava escondido e qua- rem que eu me identifico mais como fiel às Terças-Trans, promovidas pelo se desativado. Agnes conta que escre- uma mulher lésbica do que com uma CRD, o Centro de Referência da Di- veu para a superintendência, que res- mulher trans.” versidade. Se morrer atropelada – ela pondeu autorizando o uso de roupas fe- Agnes nasceu biologicamente ho- imagina – trocarão suas roupas femini- mininas e o banheiro das moças. Mas logo mem, mas se sentia mulher. Em lugar nas por um paletó de homem e na lápi- aconteceram protestos de funcionárias, de gostar de homem, porém, sentia de irá seu nome masculino, que ela não a proibição voltou e ela ainda aguarda atração por outras mulheres. “Quando quer pronunciar nem revelar. Será que uma decisão da superintendência para era criança era uma doideira com- alguém notará a Agnes tatuada no colo usar o banheiro e um crachá feminino. preender tudo isso, na minha cabeça dos seios?, ela pergunta. Agnes conta que conheceu o CRD eu não era gay, não era travesti, não Agnes Prado dos Santos, 28 anos, dois anos atrás, em 2008, quando pro- era trans, nem nada... Aquela coisa de pode ser vista nos corredores do Insti- curava grupos de transexuais na Inter- menino gostar de menina, não valia para tuto de Psiquiatria do Hospital das Clí- net e soube das “terças-trans”. “Pro- mim, eu não me sentia menino, e como nicas, onde é “funcionário administrati- curava pessoas que tinham o mesmo menina eu deveria gostar de menino, vo”, traja uma jaqueta masculina da ins- desejo que eu, que me orientassem a mas eu queria gostar de menina como tituição disfarçando blusa e calças femi- fazer um tratamento. Aqui no ‘terça- menina, isso não batia. Custou para eu ninas. Tem os cabelos na altura dos om- trans’, quando ouço outros relatos, vejo descobrir que identidade de gênero e A DIVERSIDADE REVELADA bros, encaracolados, quem a vê no tra- que minha vida foi até tranquila. Sem- sexualidade são coisas distintas.” balho não consegue saber se é homem pre acredito que vou acrescentar algu- O nome Agnes, que ela traz no pei- ou mulher. Fora dali, Agnes só usa rou- ma coisa. É também um pouco de to, veio ainda da infância quando assis- pas femininas, e quase sempre pretas. militância, eu quero fazer algo pelo tia desenhos japoneses como Jaspion, Foi assim que se vestiu quando compa- movimento. E queria contar coisas que Flashion e Jirai. “Em um dos episódios receu ao Instituto de Psiquiatria depois não conseguia dizer na psicoterapia do havia uma ninja que se chamava Agnes. de ter passado em um concurso do Hos- HC, porque lá me sinto presa a um ró- Uma mulher ninja que enfrenta todos pital das Clínicas, dois anos atrás. “Quan- tulo de transexual.” os perigos, eu quero ser assim, quero do viram que eu me vestia como mu- O que imaginava ser um segredo só ser forte assim. E fiquei com aquele lher, não sabiam o que fazer comigo”, seu, revelou-se um sentimento com- nome na cabeça... Acho que tinha uns conta. “Você vai ter que disfarçar”, dis- partilhado por várias colegas. Agnes é sete ou oito anos.” 19
  • 21. CRD O acolhimento como “porta de entrada” Entre 2009 e 2010, o número de atendimentos mensais aumentou em 115%. A população em situação de rua e usuária de crack tem sido a principal causa desse crescimento. Entre os que procuraram o CRD em 2010, um terço era morador de rua. espaço do Centro de Referência da Di- As paredes do Centro estão tomadas por grafites e O versidade, com a porta aberta para a cal- quadros pintados pelos próprios usuários durante as çada da rua Major Sertório, é um lugar sessões de arteterapia. Três computadores ficam à dis- que convida a entrar. Nenhum obstáculo posição e a concorrência entre os usuários exige ins- separa a porta dos sofás vermelhos mo- crição no livro sobre a mesa da recepcionista Thaís. rango dispostos diante de uma tevê sem- Nas salas no fundo ficam Taís Diniz Souza, a assistente pre ligada. A mesa da recepcionista Thaís di Azeve- social, e Fernanda Maria Munhoz Salgado, a psicóloga. do fica discreta à direita da sala, e o segurança do Um pequeno quadro indica se estão disponíveis ou espaço é instruído para cuidar da ordem, não con- não, mas a janela de vidro permite que se observe de trolar a entrada. Quem quiser chegar e apenas esti- fora, e as pessoas podem entrar sem bater. A DIVERSIDADE REVELADA car-se no sofá não será incomodado. Alguns chegam “Queríamos fugir da cara de equipamento públi- ali ainda “bodeados”, outros dormiram na rua. Ti- co burocrático”, diz Irina Bacci, que passou a dirigir ram um cochilo antes de se animar para uma con- a segunda fase do CRD, voltada sobretudo para o versa, ou antes da chegada de dona Selma, oferecen- acolhimento. “Fizemos uma recepção confortável, do lanche e um suco. Na tarde da sexta-feira, 16 de com sofá, tevê, com livros, colocamos uns computa- julho, um dos dias mais frios do ano, havia pelo me- dores, mesmo que só para entrar no Orkut, Facebook. nos 30 pessoas no espaço, entre travestis, transexuais O importante era despertar outros interesses que não e michês. Muitos se apertavam no sofá. Parte deles fosse só a droga, deixá-los menos bodeados.” A pró- iria para algum albergue no início da noite, outros pria tevê, mesmo que não componha um espaço ideal dormiriam na rua. Nas noites de frio, os pernoites para a inclusão, os leva a prestarem atenção na pro- 20 em albergues são mais disputados. gramação, a discutirem sobre canais. “Às vezes
  • 22. folheiam um livro, não ficam com aquele olhar vazio com que costumam chegar”, diz Irina. “Isso é im- portante para nós, como equipe, observar o despertar deles. Ver qual tipo de ajuda estão pedindo.” O sofá é “nossa porta de entrada”, diz a psicóloga Fernanda. “É um espaço aconchegante para dizer ‘eu estou aqui, eu preciso ficar aqui’. Depois começamos um convencimento, pode ser eu mesma, ou qualquer outro educador social do CRD, porque todos ali te- mos essa função. ‘Olha, quando precisar venha falar comigo, estou naquela salinha’, a gente diz. No se- gundo dia passamos de novo para um olá. Assim tem sido com muitos, alguns dias ou uma semana depois estão fazendo parte das oficinas. Outros não apare- cem mais. Mas a porta continua aberta.” Os números e o perfil dos usuários do CRD mos- tram a dimensão do desafio. Desde que foi aberto até setembro de 2010, um total de 1.486 pessoas pas- saram pelo Centro, e dessas 1.276 foram cadastradas. O número total de atendimentos em 2009 foi de 9.539; de janeiro a setembro de 2010 os atendimentos somaram 15.406. A média mensal passou de 795 em 2009 para 1.712 em 2010. Um aumento de mais de 115%, demanda que já deixou o CRD no seu limite. O crack vem sendo o responsável pelo crescimento brusco dessa população, que na sua maioria já é desem- pregada, vive na rua ou é profissional do sexo, diz Irina. Essa é uma demanda não só do CRD, mas em todos os serviços de assistência social de São Paulo e de muitas cidades. Passou a ser uma prioridade de saúde pública com a qual o governo não sabe ainda lidar. “O crack está matando nossos moradores de rua, especialmente travestis e gays”, diz Irina, “talvez mais do que já matou a aids”. Agora, as duas “epidemias” estão associadas. Travestis e michês relatam o convite freqüente de clientes para dividirem a droga nos quar- tos de hotel, quando antes era apenas o álcool. Neste cenário, a camisinha costuma ser deixada de lado. “Uma vez que você começa, não para mais”, diz Rodrigo de Souza Ventura, agora um assíduo frequentador do CRD A DIVERSIDADE REVELADA e em fase de tratamento. Rodrigo já foi michê e se ini- ciou no crack convidado por clientes. “A rede social e de saúde vê o usuário de droga meio como um criminoso, um cara que não tem mais jeito. Isso preocupa muito, porque hoje é o nosso maior público”, diz Irina. A exclusão, que pode le- var à droga e à rua, começa lá atrás, “quando a socie- dade discrimina, coloca fora de casa”. O roteiro é conhecido: a expulsão da família, a “pista”, da “pis- ta” à construção do corpo com silicone industrial, a droga e o álcool na noite, até que a “pista” já não 21