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que, silenciosos ou indiferentes hoje, virao daqui a trinta
anos expressar 0 seu "arrependimento",l num tempo em
que os jovens franceses de origem argelina se chamarao
Kelkal.2
A precariedade estd hoje
por toda a parte*
" I. "Arrependimemo": os bispos franceses exprimiram coletivamente seu
arrependimento" a proposito da atitude do episcopado durante a ocupa~ao
alema. (N.E.)
2. Kelkal e 0 nome do jovem argelino, membro de urn rede terrorista,
que fOI moto pela policia. (N.E.)
o trabalho coletivo de reflexao que se fez aqui durante dois
dias e bastante original, porque reuniu pessoas que nao tern
oportunidade de se encontrar e se confrontar, responsiveis
administrativos e polfticos, sindicalistas, pesquisadores em
economia e em sociologia, trabalhadores, muitas vezes tem-
poririos, e desempregados. Gostaria de citar alguns dos
problemas que foram discutidos. 0 primeiro, que e exclufdo
tacitamente das reuni6es etuditas: 0 que resulta afinal de
todos esses debates, ou, mais cruamente, de que servem
todas essas discuss6es intelectuais? Paradoxalmente, san os
pesquisadores que se preocupam mais com essa questao, ou
aqueles a quem essa questao mais preocupa (penso sobretu-
do nos economistas aqui presentes, logo, pouco repre-
sentativos de uma profisssao na qual sao muito raros os que
se preocupam com a realidade social, ou mesmo com reali-
dade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa
* Interven~ao nos Encontros Europeus contra a Precariedade, Grenoble,
12-13 de dezembro de 1997.
pergunta (e sem duvida e muito born que seja assim). Ao
mesmo tempo brutal e ingenua, ela lembra aos pesquisado-
res suas responsabilidades, que podem ser muito grandes,
ao men os quando, por seu silencio ou cumplicidade ativa,
eles contribuem para a manutenc;:ao da ordem simb6lica que
e a condic;:ao do funcionamento da ordem economica.
Constata-se claramente que a precariedade esti hoje por
toda a parte. No setor privado, mas tambem no setor pu-
blico, onde se multiplicaram as po'sic;:6es temporarias e in-
terinas, nas empresas industriais e tambem nas instituic;:6es
de produc;:ao e difusao cultural, educac;:ao, jornalismo, meios
de comunicac;:ao etc., onde ela produz efeitos sempre mais
ou menos identicos, que se tornam particularmente visiveis
no caso extremo dos desempregados: a desestruturac;:ao da ~
existencia, privada, entre outras coisas, de suas estruturas
temporais, e a degradac;:ao de toda a relac;:ao com 0 mundo
e, como consequencia, com 0 tempo e 0 espac;:o. A preca-
riedade afeta profundamente qualquer homem ou mulher
expos to a seus efeitos; tornando 0 futuro incerto, ela impede
qualquer antecipac;:ao racional e, especialmente, esse mini-
mo de crenc;:a e de esperanc;:a no futuro que e preciso ter
para se revoltar, sobretudo coletivamente, contra 0 presente,
mesmo 0 mais intoleravel.
A esses efeitos da precariedade sobre aqueles por ela
afetados diretamente se acrescentam os efeitos sobre todos
os outros que, apare~temente, ela poupa. Ela nunca se deixa
esquecer; esta presente, em todos as momentos, em todos
os cerebros (exceto certamente nos dos economistas liberais ,
talvez porque, como observava urn de seus adversarios te6-
ricas, eles se beneficiam dessa especie de protecionismo
representado pela estabilidade, pela posic;:ao de titular, que
os livra da inseguranc;:a ...). Ela atormenta as consciencias e
os inconscientes. A existencia de urn importante exercito de
reserva, que nao se acha mais apenas, devido a superprodu-
c;:aode diplomas, nos nfveis mais baixos de campetencia e
de qualificac;:ao tecnica, contribui para dar a cada trabalha-
dor a impressao de que ele nao e insubstitufvel e que 0 seu
trabalho, seu emprego, e de certa forma urn privilegio, e urn
privilegio frigil e ameac;:ado (e alias 0 que lembram a ele, ao
primeiro deslize, seus empregadores, e, a primeira greve, os
jornalistas e comentaristas de todo genero). A inseguranc;:a
objetiva funda uma inseguranc;:a subjetiva generalizada, que
afeta hoje, no cerne de uma economia altamente desenvol-
vida, 0 conjunto dos trabalhadores e ate aqueles que nao
esrao ou ainda nao foram diretamente atingidos. Essa espe-
cie de "mentalidade coletiva" (emprego essa expressao, em-
bora nao goste muito dela, para me fazer compreender),
comum a toda a epoca, esta no princlpio da desmoralizac;:ao
e da desmobilizac;:ao que se podem observar (como fiz nos
anos 60, na Argelia) em pafses subdesenvolvidos, afligidos
por taxas de desemprego ou de subemprego muito elevadas
e habitados permanentemente pela obsessao do desemprego.
Os desempregados e os trabalhadores destitufdos de es-
tabilidade nao sac passfveis de mobilizac;:ao, pelo fato de
terem sido atingidos em sua capacidade de se projetar no
futuro, a condic;:ao indispensavel de todas as condutas ditas
racionais, a comec;:ar Pelo dlculo economico, ou, em uma
ordem completamente diferente, pela organiza<;ao poHtica.
Paradoxalmente, como mostrei em Travail et travailleurs en
Algerie, 1
meu livro mais antigo e talvez 0 mais atual, para
conceber urn projeto revolucionario, isto e, uma ambi<;ao
raciocinada de transformar 0 presente por referencia a urn
futur~ projetado, e preciso rer urn minimo de dominio sobre
o presente. 0 prolerario, ao contrario do subprolerario, tern
esse minimo de garantias presente, de seguran<;a, que e
necessario para conceber a ambi<;ao de mudar 0 presente
em fun<;ao do futuro esperado. Mas, diga-se de passagem,
ele e tambem alguem que ainda tern algo a defender, algo
a perder, 0 seu emprego, mesmo sendo exaustivo e mal pago,
e muitas de suas condutas, as vezes descritas como excessi-
vamente prudentes ou mesmo conservadoras, se explicam
em fun<;ao do temor de cair ainda mais, de recair no sub-
proletariado.
Quando 0 desemprego, como hoje em muitos paises
europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afeta
uma parte muito importante da popula<;ao, operarios, em-
pregados no comercio e na indutria, mas tambem jomalis-
tas, professores, esrudantes, 0 trabalho se toma uma coisa
rara, desejavel a qualquer pre<;o, submetendo os trabalha-
dores aos empregadores e estes, como se pode ver todos os
dias, usam e abusam do poder que assim Ihes e dado. A
concorrencia pelo trabalho e.i;lcompanhada de uma concor-
rencia no trabalho, que e ainda uma forma de concorrencia
pelo trabalho, que e preciso conservar, custe 0 que custar,
contra a chantagem da demissao. Essa concorrencia, as vezes
tao selvagem quanto a praticada pelas empresas, esra na raiz
de uma verdadeira luta de todos contra todos, destruidora
de todos os valores de solidariedade e de humanidade, e, as
vezes, de uma violencia sem rodeios. Aqueles que deploram
o cinismo que caracteriza, segundo eles, os homens e as
mulheres do nosso tempo, nao deveriam deixar de atribui-lo
as condi<;oes economicas e sociais que 0 favorecem ou mes-
mo exigem, e que ainda 0 recompensam.
Assim, a precariedade atua diretamente sobre aqueles que
ela afeta (e que ela impede, efetivamente, de serem mobili-
zados) e indiretamente sobre todos os outros, pelo temor
que ela suscita e que e metodicamente explorado pelas
estrategias de precarizarao, como a introdu<;ao da famosa
"flexibilidade" - que, como vimos, e inspirada tanto por
razoes economicas quanto poHticas. Come<;a-se assim a sus-
peitar de que a precariedade e 0 produto de uma vontade
politica, e nao de uma fatalidade economica, identificada
com a famosa "mundializa<;ao". A empresa "flexivel" explo-
ra, de certa forma deliberadamente, uma situa<;ao de inse-
guran<;a que ela contribui para refor<;ar: ela procura baixar
os custos, mas tambem tomar possivel essa baixa, pondo 0
trabalhador em risco permanente de perder 0 seu trabalho.
Todo 0 universo da produ<;ao, material e cultural, publica
e privada, e assim arrebatado num vasto processo de preca-
riza<;ao, inclusive com a desterritorializarao da empresa: liga-
da ate entao a urn Estado-na<;ao ou a urn lugar (Detroit ou
Turim, para a industria automobiHstica), esta ten de cada
vez mais a dissociar-se dele, com 0 que se chama de "em-
presa-rede", que se articula na escala de urn continente ou
do planeta inteiro, conectando segmentos de produ<;:ao,
conhecimentos tecnologicos, redes de comunica<;:ao, percur-
sos de forma<;:ao dispersos entre lugares muito afastados.
Facilitando ou organizando a mobilidade do capital, e 0
"deslocamento" para os paises com salirios mais baixos,
onde 0 custo do trabalho e reduzido, favoreceu-se a extensao
da concorrencia entre os trabalhadores em escala mundial.
A empresa nacional (ou ate nacionalizada), cujo territorio
de concorrencia estava ligado, mais ou menos estritamente,
ao territorio nacional, e que saia para conquistar mercados
no estrangeiro, cedeu lugar a empresa multinacional, que
poe os trabalhadores em concorrencia, nao mais apenas com
os seus compatriotas, ou mesmo, como que rem nos fazer
crer os demagogos, com os estrangeiros implantados no
territorio nacional, que, evidentemente, sao de faro as pri-
meiras vitimas da precariza<;:ao, mas com trabalhadores do
outro lado do mundo, que sao obrigados a aceitar salirios
de miseria.
A precariedade se inscreve num modo de dominafao de
tipo novo, fundado na institui<;:ao de uma situa<;:ao genera-
lizada e permanente de inseguran<;:a, visando obrigar os
trabalhadores a submissao, a aceita<;:aoda expWra<;:ao.Apesar
____ t:"
de seus efeitos se assemelharem fnuito poucoiao capitalismo
selvagem das origens, esse modo 4e dom:iila'<;:aoe absoluta-
mente sem precedentes, motivando alguem a propor aqui
o conceito ao mesmo tempo muito pertinente e muiro
expressivo de flexplorafao. Essa palavra evoca bem essa gestao
racional da inseguran<;:a, que, instaurando, sobretudo atr;~~s
damanlp~I~~i~ orquestrada do espa<;:oda produ<;:ao, a con-
correncia entre os trabalhadores dos paises com conquistas
sociais mais importantes, com resistencias sindicais mais
bem organizadas - caracteristicas ligadas a urn territorio e
a uma historia nacionais - e os trabalhadores dos paises
menos avan<;:ados socialmente, acaba por quebrar as resis-
tencias e obtem a obediencia e a submissao, por mecanismos
aparentemente naturais, que sao por si mesmos sua propria
justifica<;:ao. Essas disposi<;:oes submetidas produzidas pela
precariedade sao a condi<;:ao de uma explora<;:ao cada vez
mais "bem-sucedida", fundada na divisao entre aqueles que,
cada vez mais numerosos, nao trabalham e aqueles que, cada
vez menos numerosos, trabalham, mas trabalham cada vez
mais. Parece-me, portanto, que 0 que e apresentado como
urn regime economico regido pelas leis inflexiveis de uma
especie de natureza social e, na realidade, urn regime politico
que so po de se instaurar com a cumplicidade ativa ou passiva
dos poderes propriamente politicos.
Contra esse regime politico, a luta polftica e possivel. Ela
pode ter como fim, primeiramente, assim como a a<;:ao
caritativa ou caritativo-militante, encorajar as vitimas da
explora<;:ao, rodos os possuidores atuais e potenciais de em-
pregos precirios, a trabalhar em comum contra os efeitos
destruidores da precariedade (ajudando-os a viver, a "aguen-
tar" e a comportar-se, a salvar sua dignidade, a resistir a
desestrutura<;:ao, a degrada<;:ao da auto-imagem, a aliena<;:ao),
e principalmente a mobilizar-se, em escala internacional, isto
e, no mesmo nivd em que se exercem os efeitos da politica
de precariza<;:ao, para combater essa mesma politica e neu-
tralizar a concorrencia que da visa instaurar entre os traba-
lhadores dos diferentes paises. Mas da tambem pode ten tar
desvencilh~r os trabalhadores da l6gica das antigas luras que,
fundadas na reivindica<;:ao do trabalho ou de uma mdhor
remunera<;:ao do trabalho, os restringem ao trabalho e a
explora<;:ao (ou a flexplorariio) que de autoriza. Tal ocorre
por uma redistribui<;:ao do trabalho (atraves de uma forte
redu<;:ao da carga semanal de trabalho em escala europeia),
redistribui<;:ao inseparavd de uma redefini<;:ao da distribui-
<;:aoentre 0 tempo da produ<;:ao e 0 tempo da reprodu<;:ao,
o repouso e 0 lazer.
Revolu<;:ao que deveria come<;:ar pdo abandono da visao
estreitamente calculista e individualista que reduz os agentes
a calculadores ocupados em resolver problemas, problemas
estritamente economicos, no sentido mais limitado do ter-
mo. Para que 0 sistema economico funcione, e preciso que
os trabalhadores the forne<;:am suas pr6prias condi<;:6es de
produ<;:ao e de reprodu<;:ao, mas tambem as condi<;:6es de
funcionamento do pr6prio sistema economico, a come<;:ar
por sua cren<;:ana empresa, no trabalho, na necessidade do
trabalho ete. Sao coisas que os economistas ortodoxos ex-
cluem a priori da sua contabilidade abstrata e murilada,
atribuindo tacitamente a responsabilidade da produ<;:ao e da
reprodu<;:ao de todas as condi<;:6es economicas e sociais ocul-
tas do funcionamento da economia, tal como des a conhe-
cern, aos individuos, ou - paradoxo - ao Estado, cuja
destrui<;:ao des pregam, alias.
1.P.Bourdieu, Travail et travailleurs en Algerie, Paris-Haia, Mouton, 1963
(com A. Darbel, J.-P. Rivet, C. Seibel); Algerie 60. Structures economiques et
structures temporelles, Paris, Minuit, 1977.
o intelectual negativo *
par alguns, descobriram subitamente que todos as seus
esfonros podiam ser destrufdos, aniquilados em dois tempos
e com tres movimentos.
Dais anigos escritos ao fim de uma viagem sob escolta,
programada, balizada, vigiada pelas autoridades ou pelo
exercira argelino, que serao publicados no maior diario
frances, I embora recheados de lugares-comuns e erros, e
inteiramente orientados para uma conclusao simplista, feita
para dar satisfa<;:ao a como<;:ao superficial e ao 6dio racista,
disfar<;:ado de indigna<;:ao humanista. Urn comfcio unani-
mista reunindo a nata da intelligentsia da mfdia e dos
politicos, indo do liberal integrista ao ecologista oponunis-
ta, passando pela passionaria dos "erradicadores". Urn pro-
grama de televisao tatalmente unilateral, sob a aparencia de
neutralidade. E a resultado est<l af. Voltou-se a estaca zero.
o intelectual negativo cumpriu sua missao: quem did que
e solidario dos estripadores, dos estupradores e dos assassi-
nos - principalmente quando se trata de gente que e
chamada, sem outra considera<;:ao hist6rica, de "loucos do
isla", envolvidos sob a r6tulo infame de islamismo, resumo
de rados as fanatismos orientais, feita para dar ao desprezo
racista a alibi indiscutfvel da legitimidade etica e leiga?
Para situar a problema em termos tao caricaturais, nao e
preciso ser urn grande intelectual. Mas e a que faz 0 res-
ponsavel por essa opera<;:ao de baixa policia simb6lica -
antftese absoluta de tudo a que define a intelectual, a liber-
dade em rela<;:aoaos poderes, a crftica das ideias prontas, a
demoli<;:ao das alternativas simplistas, a restaura<;:ao da com-
Todos aqueles que estiveram a postos, dia ap6s dia, durante
anos, para receber as refugiados argelinos, escuta-Ios, aju-
da-Ios a redigir curriculum vitae e enviar solicita<;:oes aos
ministerios, acompanha-Ios aos tribunais, escrever canas as
insrancias administrativas, juntar-se a eles em delega<;:oes
junto as autoridades responsaveis, solicitar vistas, autoriza-
<;:oes, carteiras de residencia, que se mobilizaram, des de
junho de 1993, desde os primeiros assassinatas, nao s6 para
levar 0 socorro e a prote<;:ao possfveis, mas tambem para
ten tar informar-se e informar, compreender e fazer com-
preender uma realidade complexa, e que lutaram in cans a-
velmente por meio de interven<;:oes publicas, entrevistas
coletivas, anigos nos jornais, para desvincular a crise arge-
lina das anaIises unilaterais, todos esses intelectuais de todos
os paises que se uniram para combater a indiferen<;:a au a
xenofobia, para lembrar a respeito pela complexidade do
mundo desfazendo as confusoes, deliberadamente mantidas
* Este texto, escrito em janeiro de 1998, permaneceu inedito.
~
plexidade dos problemas - ser consagrado pelos jornalistas
como intelecrual de pleno direito.
Entretanto, conhes:o todo tipo de pessoas que, embora
saibam perfeitamente de rudo isso por terem se chocado mil
vezes com essas fors:as, recomes:arao, cada urn no seu am-
biente e com seus meios, a executar as:oes sempre ameas:adas
de serem destruidas por urn relatorio distraido, leviano ou
maldoso, ou de serem apropriadas, em caso de sucesso, por
oportunistas e convertidos de ultima hora, que teimarao em
escrever explicas:oes, refuras:oes ou desmentidos, destinados
a serem encobertos pelo fluxo ininterrupto da tagarelice na
midia, convencidos de que, como mostrou 0 movimento
dos desempregados, culminancia de urn trabalho obscuro e
as vezes tao desesperado que se assemelhava a uma especie
de arte pela arte da politica, pode-se, com 0 tempo, fazer
avans:ar urn pouco, e sem recuo, a pedra de Sisifo.
Porque, durante esse tempo, "responsaveis" politicos, ha-
beis em neurralizar os movimentos sociais que contribuiram
para leva-los ao poder, continuam a deixar mil hares de "sem-
documentos" a espera ou a expulsa-los sem maio res cuidados
para 0 pais de onde fugiram, e que pode ser a Argelia.
Paris, Janeiro de 1998
o neoliberalismo, utopia
(em vias de realizarao)
de uma explorarao sem limites
o mundo economico seria de fato, como quer 0 discurso
dominante, uma ordem pura e perfeita, desdobrando im-
placavelmente a logica de suas conseqiiencias previsiveis e
pronto a reprimir todos os erros pelas sans:oes que ele inflige
seja de maneira auromatica, seja, mais excepcionalmente,
atraves de seu bras:o armado, 0 FMI ou a OCDE, e das
politicas dristicas que eles impoem, redus:ao do custo da
mao-de-obra, corte das despesas publicas e flexibilizas:ao do
trabalho? E se ele Fosse apenas, na realidade, a pritica de
uma uropia, 0 neoliberalismo, assim convertida em progra-
ma politico, mas uma utopia que, com a ajuda da teoria
economica a que ela se filia, consegue se pensar como a
descris:ao ciendfica do real?
Essa teoria tutelar e uma pura fics:ao matematica, funda-
da, desde a origem, numa formidavel abstras:ao (que nao se
reduz, como que rem fazer crer os economistas que defen-
dem 0 direito a abstras:ao inevitavel, ao efeito, constitutivo
de todo projeto ciendfico, da construs:ao de objeto como
apreensao deliberadamente seletiva do real): aquela que, em
1. Trata-se de dais artigos de Bernard-Henri Levy, publicados no Ie
Monde. (N.E.)
nome de uma concep<;ao tao estreita quanto estrita da ra-
cionalidade identificada com a racionalidade individual,
consiste em par entre parenteses as condi<;6es economicas
e sociais das disposi<;6es racionais (e em particular da dis-
posi<;ao calculadora aplicada as coisas economicas, que esti
na base da visao neoliberal) e das estruturas economicas e
sociais, que saD a condi<;ao de seu exerdcio, ou, mais pre-
cisamente, da produ<;ao e da reprodu<;ao dessas disposi<;6es
e dessas estruturas. Basta pensar apenas, para dar a medida
da omissao, no sistema de ensinG, que nunca e levado em
conta enquanto tal, numa epoca em que ele tern urn papel
determinante tanto na produ<;ao dos bens e dos servi<;os
quanto na produ<;ao dos produtores. Dessa especie de pe-
cado original, inscrita no mito walrasiano da "teoria pura",
decorrem todos os erros e todas as falhas da disciplina
economica, e a obstina<;ao fatal com a qual ela se apega a
oposi<;ao arbitraria que faz existir apenas com a sua propria
existencia, entre a logica propriamente economica, fundada
na concorrencia e portadora de eficiencia, e a logica social,
submetida a regra da eqiiidade.
Dito isso, essa "teoria" originariamente dessocializada e
des-historicizada tern, hoje mais do que nunca, os meios de
tornar-se verdadeira, empiricamente verificivel. Efetivamen-
te, 0 discurso neoliberal nao e urn discurso como os outros.
A maneira do discurso psiquiatrico no asilo, segundo Erving
Goffman, e urn "discurso forte", que s6 e tao forte e rao
dificil de combater porque tern a favor de si todas as for<;as
de urn mundo de rela<;6es de for<;a, que ele contribui para
fazer tal como e, sobretudo orientando as escolhas econo-
micas daqueles que dominam as rela<;6es economicas e
acrescentando assim a sua for<;a propria, propriamente sim-
b6lica, a essas rela<;6es de for<;a.1
Em nome desse programa
ciendfico de conhecimento convertido em programa polf-
tico ~e a<;ao, cumpre-se urn imenso trabalho politico (rene-
gado, pois aparentemente puramente negativo) que visa
criar as condi<;6es de realiza<;ao e de funcionamento da
"teoria"; urn programa de destruirao met6dica dos coletivos (a
economia neoclassica querendo lidar apenas com indivi-
duos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos ou
familias).
o movimento, que se tofllOU possive! pela polftica de
desregulamenta<;ao financeira, em dire<;ao a utopia neolibe-
ral de urn mercado puro e perfeito se realiza at raves da a<;ao
transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as
medidas polfticas (das quais a mais recente e 0 AMI, Acordo
Multilateral sobre 0 Investimento, destin ado a proteger con-
tra os Estados nacionais as empresas estrangeiras e seus
investimentos) colocando em risco todas as estruturas coletivas
capazes de resistirem a logica do mercado puro: narao, cujo
espa<;o de manobra nao para de diminuir; grupos de trabalho,
com, por exemplo, a individualiza<;ao dos salarios e das
carreiras, em fun<;ao das competencias individuais e a resul-
tante atomiza<;ao dos trabalhadores; coletivos de defesa dos
direitos dos trabalhadores, sindicatos, associa<;6es, coopera-
tivas; ate afamilia, que, atraves da constitui<;ao de mercados
por classes de idade, perde uma parte do seu controle sobre
o consumo. 0 programa neoliberal extrai sua for<;a social
da for<;a polftico-economica daqueles cujos interesses ele
exprime - acionistas, operadores financeiros, industriais,
politicos conservadores ou social-democratas convertidos as
desistencias apaziguadoras do laisser-ftire, altos funcionarios
das finan<;:as, tanto mais obstinados em impor uma politica
pregando sua pr6pria extin<;:ao porque, ao contrario dos
executivos das empresas, eles nao correm nenhum risco de
pagar eventualmente por suas conseqiiencias. 0 programa
neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura
entre a economia e as realidades sociais, e a construir desse
mundo, na realidade, urn sistema economico ajustado a
descri<;:ao te6rica, isto e, uma especie de maquina 16gica, que
se apresenta como uma cadeia de constrangimentos enre-
dando os agentes economicos.
A mundializa<;:ao dos mercados financeiros, junto com 0
progresso das tecnicas de informa<;:ao, garante uma mobili-
dade sem precedentes dos capitais e oferece aos investidores
(ou acionistas) zelosos de seus interesses imediatos, ou me-
lhor, da rentabilidade a curto prazo de seus investimentos,
a possibilidade de comparar a todo momento a rentabilida-
de das maio res empresas e de sancionar, conseqiientemente,
os fracassos pontuais. As pr6prias empresas, defrontando-se
com tal amea<;:apermanente, devem se ajustar de modo cada
vez mais rapido as exigencias dos mercados; e devem faze-Io
sob pena de "perder, como se diz, a confian<;:a dos merca-
dos", e com isso 0 apoio dos acionistas. Esses ultimos,
preocupados em obter uma rentabilidade a curto prazo, sao
cada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers,
de fixar-Ihes normas, atraves das diretorias financeiras, e de
orientar suas politicas em materia de contrata<;:ao, emprego
e salario. Assim se instaura 0 reino absoluto da flexibilidade,
com os recrutamentos por intermedio de contratos de du-
ra<;:aodeterminada ou as interinidades e os "pIanos sociais"
de treinamento, e a instaura<;:ao, no pr6prio seio da empresa,
da concorrencia entre filiais autonomas, entre equipes, obri-
gadas a polivalencia, e, enfim, entre individuos, atraves da
individualiza[lio da rela<;:aosalarial: fixa<;:aode objetivos in-
dividuais; pratica de entrevistas individuais de avalia<;:ao;
altas individualizadas dos salarios ou atribui<;:ao de promo-
<;:oesem fun<;:ao da competencia e do merito individuais;
carreiras individualizadas; estrategias de "responsabiliza<;:ao"
tendendo a garantir a auto-explora<;:ao de certos quadros
que, sendo simples assalariados sob forte dependencia hie-
rarquica, sao ao mesmo tempo considerados responsaveis
por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc.,
a maneira dos "por conta pr6pria"; exigencia do "auto-con-
trole", que estende 0 "envolvimento" dos assalariados, se-
gundo as tecnicas do "managementparticipativo", bem alem
das atribui<;:oes caracteristicas dos gerentes; eis algumas tec-
nicas de submissao racional que, ao exigir 0 sobreinvesti-
mento no trabalho, e nao apenas nos postos de responsabi-
lidade, eo trabalho de urgencia, concorrem para enfraquecer
ou abolir as referencias e as solidariedades coletivas.2
A institui<;:ao pratica de urn mundo darwiniano que en-
contra as molas da adesao na inseguran<;:a em rela<;:aoa tarefa
e a empresa, no sofrimento e no estresse,3 nao poderia
certamente ter sucesso completo, caso nao contasse com a
cumplicidade de trabalhadores a bra<;:oscom condi<;:oes pre-
carias de vida produzidas pela inseguran<;:a bem como pela
existencia - em todos os niveis da hierarquia, e ate nos
mais elevados, sobretudo entre os executivos - de urn
exercito de reserva de miio-de-obra docilizada pela precarizariio
e pela amea<;:apermanente do desemprego. 0 fundamento
ultimo de toda essa ordem economica sob a chancel a invo-
cada da liberdade dos individuos e efetivamente a violencia
estrutural do desemprego, da precariedade e do me do ins-
pirado pela amea<;:a da demissao: a condi<;:ao do funciona-
mento "harmonioso" do modelo micro-economico indivi-
dualista e 0 principio da "motiva<;:ao" individual para 0
trabalho residem, em ultima analise, num fenomeno de
massa, qual seja, a existencia do exercido de reserva dos
desempregados. Nem se trata a rigor de urn exercito, pois
o desemprego isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e
rompe com a solidariedade.
Essa violencia estrutural tambem pesa sobre 0 que se
chama contrato de trabalho (habilmente racionalizado e des-
realizado pela "teoria dos contratos"). 0 discurso empresarial
nunca falou tanto de connan<;:a, de coopera<;:ao, de lealdade e
de cultura de empresa como nessa epoca em que se obtem a
adesao de cada instante fazendo desaparecer todas as garantias
temporais (tres quartos das contrata<;:6es sao de dura<;:ao de-
terminada; a parcela dos empregos temporarios nao para de
crescer, a demissao individual ten de a nao estar mais sub me-
tida a nenhuma restri<;:ao).Alias, tal adesao s6 pode ser incerta
e ambigua, porque a precariedade, 0 medo da demissao e 0
"enxugamento" podem, como 0 desemprego, gerar a angus-
tia, a desmoraliza<;:ao ou 0 conformismo (taras que a literatura
empresarial constata e deplora). Nesse mundo sem inercia,
sem principio imanente de continuidade, os dominados estao
na posi<;:aodas criaturas num universo cartesiano: estao para-
lisados pela decisao arbitraria de urn poder responsavel pela
"cria<;:ao continuada" de sua existencia - como prova e
lembra a ame<;:ado fechamento da fabrica, do desinvestimen-
to e do deslocamento.
A profunda sensa<;:aode inseguran<;:a e de incerteza sobre 0
futuro e sobre si pr6prio que atinge todos os trabalhadores
assim precarizados deve sua colora<;:ao particular ao fato de
que 0 principio da divisao entre os que sao relegados ao
exercito de reserva e aqueles que possuem trabalho parece
residir na competencia escolarmente garantida, que tambem
explica 0 principio das divis6es, no seio da empresa "tecnici-
zada", entre os executivos ou os "tecnicos" e os simples
operarios ou os operarios especializados, os novos parias da
ordem industrial. A generaliza<;:ao da eletronica, da informa-
tica e das exigencias de qualidade, que obriga todos os assala-
riados a novas aprendizagens e perpetua na empresa 0 equi-
valente das provas escolares, tende a redobrar a sensa<;:aode
inseguran<;:a por meio de uma sensa<;:ao,habilmente mantida
pela hierarquia, de indignidade. A ordem pronssional e, su-
cessivamente, toda a ordem social, parece fundada numa
ordem das "competencias", ou, pior, das "inteligencias". Mais
talvez do que as manipula<;:6es tecnocraticas das rela<;:6esde
trabalho e as estrategias especial mente armadas a nm de obter
a submissao e a obediencia, objeto de uma aten<;:aoincessante
e de uma reinven<;:ao permanente, mais do que 0 enorme
investimento em pessoal, em tempo, em pesquisa e em traba-
lho, pressuposto pela inven<;:ao continua de novas formas de
gestao de mao-de-obra e de novas tecnicas de comando, e a
cren<;:ana hierarquia das competencias escolarmente garanti-
das que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e
tambem, cada vez mais, na fun<;:ao publica: obrigados a
pensar-se em rela<;:aoa elite detentora dos titulos escolares
mais cobi<;:ados,destinada as tarefas de comando, e a pequena
classe dos empregados e dos tecnicos restritos as tarefas de
execu<;:aoe sempre em situa<;:ao de risco, quer dizer, sempre
obrigados a provar que sao bons, os trabalhadores condenados
a precariedade e a inseguran<;:a de urn emprego instavel e
amea<;:ados de relega<;:ao na indignidade do desemprego s6
podem conceber uma imagem desencantada tanto de si mes-
mos, como individuos, quanto de seu grupo; outrora objeto
de orgulho, enraizado em tradi<;:6es e em toda uma heran<;:a
tecnica e politica, 0 grupo operario, se e que existe ainda
enquanto tal, esta fadado a desmoraliza<;:ao, a desvaloriza<;:ao
e a desilusao politica, que se exprime na crise da militincia
ou, pior ainda, na adesao desesperada as teses do extremismo
fascist6ide.
Ve-se assim como a utopia neoliberal tende a se encarnar
na realidade de uma especie de maquina infernal, cuja neces-
sidade se imp6e aos pr6prios dominantes - as vezes ator-
mentados, como George Soros, e este ou aquele presidente
de fundos de pensao, pela preocupa<;:ao com os efeitos des-
truidores do dominio que eles exercem, e levados a a<;:6es
compensat6rias inspiradas na pr6pria l6gica que que rem
'"
neutralizar, como as generosidades a maneira de Bill Gates.
Como 0 marxismo em outros tempos, com 0 qual, sob esse
aspecto, ela tern muitos pontos comuns, essa utopia suscita
uma cren<;:aformidavel, a Free tradepith, nao s6 entre aqueles
que vivem materialmente dela, como os financistas, os patr6es
de gran des empresas etc., mas tambem entre os que tiram dela
sua razao de viver, como os altos funcionarios e os politicos
que sacralizam 0 poder dos mercados em nome da eficiencia
economica, que exigem a suspensao das barreiras administra-
tivas ou politicas capazes de incomodar os detentores de
capitais na busca puramente individual da maximiza<;:ao do
lucro individual instituido como modelo de racionalidade,
que querem bancos centrais independentes, que pregam a
subordina<;:ao dos Estados nacionais as exigencias da liberdade
economica para os donos da economia, com a supressao de
radas as regulamenta<;:6es sobre rados os mercados, a come<;:ar
pelo mercado de trabalho, a proibi<;:ao dos deficits e da
infla<;:ao,a privatiza<;:ao generalizada dos servi<;:ospublicos, a
redu<;:aodas despesas publicas e sociais.
Sem compartilhar necessariamente os interesses econo-
micos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas tern
suficientes interesses espedficos no campo da ciencia eco-
nomica para dar uma contribui<;:ao decisiva, quaisquer que
sejam seus sentimentos a prop6sito dos efeitos economicos
e sociais da utopia que eles revestem com a razao mate-
matica, a ptodu<;:ao e a reprodu<;:ao da cren<;:ana utopia neo-
liberal. Separados do mundo economico e social por toda
a sua existencia e sobretudo por sua forma<;:ao intelecrual,
em geral puramente abstrata, livresca e teoricista, eles sao,
como outros em outros tempos no campo da filosofia,
particularmente inclinados a confundir as coisas da logica
com a logica das coisas. Confiantes em modelos que prati-
camente nunca tiveram ocasiao de submeter a prova da
verificac;:ao experimental, levados a olhar de cima as con-
quistas das outras ciencias historicas, nas quais nao reconhe-
cem a pureza e a transparencia cristalina de seus jogos
matematicos, sendo em geral incapazes de compreender sua
verdadeira necessidade e profunda complexidade, eles par-
ticipam e colaboram para uma formidavel mudanc;:a econo-
mica e social. Mesmo que algumas das consequencias dessa
mudanc;:a lhes causem horror (eles podem contribuir para 0
partido socialista e dar conselhos prudente a seus repre-
sentantes nas insrancias de poder), decerto nao lhes desa-
gradam completamente pois, com 0 risco de alguns fracas-
sos, imputiveis principalmente ao que eles chamam de "bo-
lhas especulativas", tal mudanc;:a tende a dar realidade a
utopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) a
qual eles consagram a sua vida.
Entretanto, 0 mundo e 0 que e, com os efeitos imedia-
tamente visiveis do funcionamento da grande utopia neo-
liberal: nao so a miseria e 0 sofrimento de uma frac;:aocada
vez maior das sociedades mais avanc;:adas economicamente,
o agravamento extraordinario das diferenc;:as entre as rendas,
o desaparecimento progressivo dos universos autonomos de
produc;:ao cultural, cinema, edic;:ao etc., e portanto, a longo
prazo, dos proprios produtos culturais, em virtude da in-
trusao crescente das considerac;:6es comerciais, mas tambem
e sobretudo pela destruic;:ao de todas as instincias coletivas
capazes de resistir aos efeitos da maquina infernal, entre as
quais 0 Estado esti em primeiro lugar, depositirio de todos
os valores universais associados a ideia de publico, e a im-
posic;:ao, por toda a parte, nas altas esferas da economia e
do Estado, ou no seio das empresas, dessa especie de dar-
winismo moral que, com 0 culto do vencedor ("winner'),
formado em matematicas superiores e nos "chutes" sem
rigor, instaura a luta de todos contra todos eo cinismo como
norma de todas as praticas. E a nova ordem moral, fundada
na inversao de todas as tibuas de valores, se afirma no
espetacu.lo, prazerosamente difundido pela midia, de todos
esses importantes representantes do Estado, que rebaixam
a sua dignidade estatutaria ao multiplicar as reverencias
diante dos patr6es de multinacionais, Daewoo ou Toyota,
ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante de
um Bill Gates.
Pode-se esperar que a massa extraordinaria de sofrimento
produzida por um tal regime politico-economico possa um
dia lastrear um movimento capaz de deter a marcha para 0
abismo? De fato, estamos aqui diante de um extraordinario
paradoxo: enquanto os obsticulos encontrados no caminho
da realizac;:ao da ordem nova, a do individuo sozinho mas
livre, san hoje considerados efeitos da rigidez do arcaismo,
enquanto toda intervenc;:ao direta e consciente, pelo menos
quando de iniciativa do Estado, e por quaisquer meios que
sejam, e antecipadamente desacreditada a pretexto de estar
orientada por funcionarios movidos por seus pr6prios inte-
resses e que conhecem mal os interesses dos agentes econo-
micos, portanto intimada a suprimir em proveito desse
mercado enquanto urn mecanismo puro e anonimo (esque-
ce-se que ele e tambem 0 lugar do exerdcio de interesses),
e na realidade a permanencia ou a sobrevivencia das insti-
tuiy6es e dos agentes da ordem antiga em vias de desman-
telamento, e 0 trabalho inteiro de todas as categorias de
trabalhadores sociais, bem como todas as solidariedades
sociais, familiares ou ourras, que fazem com que a ordem
social nao desmorone no caos apesar do contingente cres-
cente de populayao precarizada. A transiyao para 0 "libera-
lismo" se faz de maneira insensivel, logo imperceptivel,
como a deriva dos continentes, ocultando assim seus efeitos,
mais terriveis a longo prazo. Tais efeiros tambem se encon-
tram dissimulados, paradoxalmente, pelas resistencias que
suscita desde agora por parte daqueles que defend em a
ordem antiga, nutrindo-se dos recursos nelas contidos, dos
modelos juridicos ou pdticos de assistencia e de solidarie-
dade nela vigentes, dos habitos ai estimulados (entre as
enfermeiras, os serviyos sociais etc.), ern suma das reservas
de capital social que protegem toda uma parte da presente
ordem social de uma queda na anomia. (Capital que, se nao
e renovado, reproduzido, esra destinado a extinyao, mas cujo
esgotamento nao ocorred de urn dia para 0 ourro.)
Mas essas mesmas foryas de "conservayao", freqiiente-
mente tratadas CQnlO foryas conservadoras, sac tambem, sob
ourro aspecto, foryas de resistencia a instaurayao da ordem
nova, podendo se tamar foryas subversivas nas seguintes
condiy6es: sob a condiyao previa de que se saiba conduzir
a Iura propriamente simb6lica contra 0 trabalho incessante
dos "pensadores" neoliberais, para desacreditar e desqualifi-
car a heranya de palavras, tradiy6es e representay6es asso-
ciadas as conquistas hist6ricas dos movimentos sociais do
passado e do presente; sob a condiyao tambem de que se
saiba defender as instituiy6es correspondentes, direito do
trabalho, assistencia social, previdencia social etc. contra 0
projeto de condena-Ias ao arcaismo de urn passado ultrapas-
sado ou, pior ainda, de constitui-Ios, desafiando toda veros-
similhanya, em privilegios inuteis ou inaceitaveis. Esse com-
bate nao e facil, sendo muitas vezes necessario trava-Io em
frentes inesperadas. Inspirando-se numa intenyao paradoxal
de subversao orientada para a conservarao ou a restaurarao,
os revolucionarios conservadores sac espertos em transfor-
mar em resistencias reacionarias as reay6es de defesa susci-
tadas por ay6es conservadoras que descrevem como revolu-
cionarias; e ao mesmo tempo condenam como defesa arcaica
e retr6grada de "privilegios" reivindicay6es ou revoltas que
se enraizam na invocayao dos direitos adquiridos, isto e,
num passado ameayado de degradayao ou de destruiyao por
suas medidas regressivas - entre as quais as mais exemplares
sac a demissao dos sindicalistas ou, mais radicalmente, dos
trabalhadores veteranos que sac tambem os conservadores
das tradiy6es do grupo.
E se podemos ter alguma esperanya razoavel, e porque
ainda existem, nas instituiy6es estatais e tambem nas dispo-
siy6es dos agentes (ern especial os mais ligados a essas ins-
titUl<;:oes, como a elite do medio funcionalismo publico),
for<;:asque, sob a aparencia de defender simplesmente, como
logo serao acusadas, uma ordem desaparecida, e os "privi-
legios" correspondentes, devem de fato, para resistir a prova,
trabalhar para inventar e construir uma ordem social que
nao teria como unica lei a busca do interesse egoista e a
paixao individual do lucro, e que daria lugar a coletivos
orientados para a busca racional de fins coletivamente elabo-
rados e aprovados. Entre esses coletivos, associa<;:6es, sindica-
tos, partidos, como nao dar urn lugar especial ao Estado,
Estado nacional, ou, melhor ainda, supranacional, isto e,
europeu (etapa para urn Estado mundial), capaz de controlar
e impor e£1cazmente os lucros realizados nos mercados £1-
nanceiros; capaz tambem e principalmente de enfrentar a
a<;:aodestruidora que estes exercem sobre 0 mercado de
trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elabo-
ra<;:aoe a defesa do interesse publico que, queira-se ou nao,
nunca said, mesmo ao pre<;:o de algum eno em escrita
matematica, da visao de contador (em outros tempos, dir-
se-ia de "quitandeiro") que a nova cren<;:aapresenta como a
forma suprema da realiza<;:ao humana.
Paris, Janeiro de 1998
no trabalho" (l e 2), 114, setembro de 1996, e 115, dezembro de 1996 e
especial mente a introdu<,:ao de Gabtielle Balazs e Michel Pialoux, "Crise du
travail e crise du politique", 114, p.3-4.
3. C. Dejours, Souffiance en France. La banalisation de l'injustice sociale,
Paris, Seuil, 1997.
1. E. Goffman, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux,
Paris, Minuit, 1968.
2. Podem ser consultados, sOBre tudo isso, os dois numeros de Actes de
la Recherche en Sciences Sociales dedicados as "Novas formas de domina~ao
o movimento dos desempregados,
um milagre social*
preitada me pareceu muitas vezes desesperada - a todos
aque1es que, nos sindicatos e nas associa<;:6es reunidos no
seio dos Estados gerais para 0 movimento social, tornaram
possivel 0 que constitui realmente urn milagre social, cujas
virtudes e beneficios nao terminaremos tao cedo de desco-
brir.
A primeira conquista desse movimento e 0 movimento
em si, a sua pr6pria existencia: ele arranca os desempregados,
e com eles todos os trabalhadores predrios, cujo numero
cresce dia a dia, da invisibilidade, do isolamento, do silen-
cio, em suma da inexistencia. Reaparecendo em plena luz,
os desempregados reconduzem a existencia e a urn cerro
orgulho todos os homens e mulheres que, como eles, 0
nao-emprego candena habitualmente ao esquecimento e a
vergonha. Mas eles lembram sobretudo que urn dos funda-
mentos da ordem economica e social e 0 desemprego em
massa e a amea<;:aque ele faz pesar sobre todos os que ainda
disp6em de urn trabalho. Longe de se fecharem num mo-
vimento egoista, eles dizem que, embora haja certamente
varios tipos de desempregado, as diferen<;:as entre os RMIstas
e os desempregados com seguro - desemprego perro do
nm ou dependentes de outros rendimentos previdenciarios
- nao SaG radicalmente diferentes daquelas que separam
os desempregados de todos os trabalhadores predrios. Rea-
lidade fundamental, que nos arriscamos a esquecer ou a fazer
esquecer, enfatizando exclusivamente as reivindica<;:6es "por
categoria" (se assim podemos dizerO dos desempregados,
tendentes a separa-Ios dos trabalhadores, e em particular dos
mais insraveis entre eles, que podem se sentir esquecidos.
o movimento dos desempregados e urn acontecimento uni-
co, extraordinario. Ao contrario do que nos repetem sem
cessar os jornais escritos e falados, essa cxccfiio ftanccsa e algo
de que podemos nos orgulhar. Todos os estudos cientincos
mostraram efetivamente que 0 desemprego destr6i aqueles
que atinge, suprime suas defesas e suas disposi<;:6es subver-
sivas. Se essa especie de fatalidade pode ser frustada, foi
gra<;:as ao trabalho incansavel de individuos e associa<;:6es
que estimularam, sustentaram, organizaram 0 movimento.
E nao posso deixar de achar extraordinario que responsaveis
politicos de esquerda e sindicalistas denunciem a manipu-
la<;:ao(evocando 0 discurso patronal das origens contra os
sindicatos nascentes), quando deveriam reconhecer as vir-
tudes do trabalho militante, sem 0 qual, como sabemos,
nunca teria havido nada semelhante a urn movimento social.
Quanto a mim, quero expressar minha admira<;:ao e minha
gratidao - ainda mais intensas considerando que sua em-
* Intervenc,:ao, feita em 17 de janeiro de 1998, quando da ocupac,:ao da
Ecole Normale Superieure pel os desempregados.
Alem disso, 0 desemprego e 0 desempregado obcecam 0
trabalho e 0 trabalhador. Temporarios, substituras, supleti-
vos, intermitentes, detentores de contraras de dura<;:ao de-
terminada, interinos na industria, no comercio, na educa-
<;:ao,no teatro ou no cinema, mesmo que imensas diferen<;:as
possam separa-Ios dos desempregados e tambem entre si,
rados eles vivem com medo do desemprego, e, muitas vezes,
sob a amea<;:ada chantagem exercida sobre eles pelo des em-
prego. A precariedade toma posslveis novas estrategias de
domina<;:ao e explora<;:ao, fundadas na chantagem da dispen-
sa, que se exerce hoje sobre toda a hierarquia, nas empresas
privadas e mesmo publicas, e que imp6e sobre 0 conjunto
do mundo do trabalho, e especialmente nas empresas de
produ<;:ao cultural, uma censura esmagadora, impedindo a
mobiliza<;:ao e a reivindica<;:ao. A degrada<;:ao generalizada
das condi<;:6es de trabalho se rarna posslvel ou ate mesmo
favorecida pelo desemprego, e e porque sabem confusamen-
te disso que tantos franceses se sentem e se dizem solidirios
a uma luta como ados desempregados. E par isso que se
pode dizer, sem jogar com as palavras, que a mobiliza<;:ao
daqueles cuja existencia constitui certamente 0 fatar prin-
cipal da desmobiliza<;:ao e 0 mais extraordinirio estfmulo a
mobiliza<;:ao, a ruptura com 0 fatalismo polftico.
o movimento dos desempregados franceses constitui
tambem urn apelo a todos os desempregados e trabalhadores
precirios de rada a Europa: surgiu uma ideia subversiva
nova, e ela pode se tamar urn instrumento de luta, do qual
cada movimento nacional pode se apoderar. Os desempre-
gados lembram a rados os trabalhadores que estes estao no
mesmo barco que os desempregados; que os desempregados,
cuja existencia pesa tanto sobre eles e sobre suas condi<;:6es
de trabalho, saD 0 produto de uma polftica; que uma mo-
biliza<;:ao capaz de atravessar as fronteiras que separam, no
seio de cada pals, os trabalhadores e os nao-trabalhadores,
e por outro lado as que separam 0 conjunto dos trabalha-
dores e dos nao-trabalhadores, de urn mesmo pals, dos
trabalhadares e dos nao-trabalhadores dos outros paises,
poderia enfrentar a polftica que faz com que os nao-traba-
lhadores possam condenar ao silencio e a resigna<;:ao aqueles
que tern 0 duvidoso "privilegio" de ter urn trabalho mais
ou menos precirio.

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Precariedade generalizada e luta de todos contra todos

  • 1. que, silenciosos ou indiferentes hoje, virao daqui a trinta anos expressar 0 seu "arrependimento",l num tempo em que os jovens franceses de origem argelina se chamarao Kelkal.2 A precariedade estd hoje por toda a parte* " I. "Arrependimemo": os bispos franceses exprimiram coletivamente seu arrependimento" a proposito da atitude do episcopado durante a ocupa~ao alema. (N.E.) 2. Kelkal e 0 nome do jovem argelino, membro de urn rede terrorista, que fOI moto pela policia. (N.E.) o trabalho coletivo de reflexao que se fez aqui durante dois dias e bastante original, porque reuniu pessoas que nao tern oportunidade de se encontrar e se confrontar, responsiveis administrativos e polfticos, sindicalistas, pesquisadores em economia e em sociologia, trabalhadores, muitas vezes tem- poririos, e desempregados. Gostaria de citar alguns dos problemas que foram discutidos. 0 primeiro, que e exclufdo tacitamente das reuni6es etuditas: 0 que resulta afinal de todos esses debates, ou, mais cruamente, de que servem todas essas discuss6es intelectuais? Paradoxalmente, san os pesquisadores que se preocupam mais com essa questao, ou aqueles a quem essa questao mais preocupa (penso sobretu- do nos economistas aqui presentes, logo, pouco repre- sentativos de uma profisssao na qual sao muito raros os que se preocupam com a realidade social, ou mesmo com reali- dade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa * Interven~ao nos Encontros Europeus contra a Precariedade, Grenoble, 12-13 de dezembro de 1997.
  • 2. pergunta (e sem duvida e muito born que seja assim). Ao mesmo tempo brutal e ingenua, ela lembra aos pesquisado- res suas responsabilidades, que podem ser muito grandes, ao men os quando, por seu silencio ou cumplicidade ativa, eles contribuem para a manutenc;:ao da ordem simb6lica que e a condic;:ao do funcionamento da ordem economica. Constata-se claramente que a precariedade esti hoje por toda a parte. No setor privado, mas tambem no setor pu- blico, onde se multiplicaram as po'sic;:6es temporarias e in- terinas, nas empresas industriais e tambem nas instituic;:6es de produc;:ao e difusao cultural, educac;:ao, jornalismo, meios de comunicac;:ao etc., onde ela produz efeitos sempre mais ou menos identicos, que se tornam particularmente visiveis no caso extremo dos desempregados: a desestruturac;:ao da ~ existencia, privada, entre outras coisas, de suas estruturas temporais, e a degradac;:ao de toda a relac;:ao com 0 mundo e, como consequencia, com 0 tempo e 0 espac;:o. A preca- riedade afeta profundamente qualquer homem ou mulher expos to a seus efeitos; tornando 0 futuro incerto, ela impede qualquer antecipac;:ao racional e, especialmente, esse mini- mo de crenc;:a e de esperanc;:a no futuro que e preciso ter para se revoltar, sobretudo coletivamente, contra 0 presente, mesmo 0 mais intoleravel. A esses efeitos da precariedade sobre aqueles por ela afetados diretamente se acrescentam os efeitos sobre todos os outros que, apare~temente, ela poupa. Ela nunca se deixa esquecer; esta presente, em todos as momentos, em todos os cerebros (exceto certamente nos dos economistas liberais , talvez porque, como observava urn de seus adversarios te6- ricas, eles se beneficiam dessa especie de protecionismo representado pela estabilidade, pela posic;:ao de titular, que os livra da inseguranc;:a ...). Ela atormenta as consciencias e os inconscientes. A existencia de urn importante exercito de reserva, que nao se acha mais apenas, devido a superprodu- c;:aode diplomas, nos nfveis mais baixos de campetencia e de qualificac;:ao tecnica, contribui para dar a cada trabalha- dor a impressao de que ele nao e insubstitufvel e que 0 seu trabalho, seu emprego, e de certa forma urn privilegio, e urn privilegio frigil e ameac;:ado (e alias 0 que lembram a ele, ao primeiro deslize, seus empregadores, e, a primeira greve, os jornalistas e comentaristas de todo genero). A inseguranc;:a objetiva funda uma inseguranc;:a subjetiva generalizada, que afeta hoje, no cerne de uma economia altamente desenvol- vida, 0 conjunto dos trabalhadores e ate aqueles que nao esrao ou ainda nao foram diretamente atingidos. Essa espe- cie de "mentalidade coletiva" (emprego essa expressao, em- bora nao goste muito dela, para me fazer compreender), comum a toda a epoca, esta no princlpio da desmoralizac;:ao e da desmobilizac;:ao que se podem observar (como fiz nos anos 60, na Argelia) em pafses subdesenvolvidos, afligidos por taxas de desemprego ou de subemprego muito elevadas e habitados permanentemente pela obsessao do desemprego. Os desempregados e os trabalhadores destitufdos de es- tabilidade nao sac passfveis de mobilizac;:ao, pelo fato de terem sido atingidos em sua capacidade de se projetar no futuro, a condic;:ao indispensavel de todas as condutas ditas racionais, a comec;:ar Pelo dlculo economico, ou, em uma
  • 3. ordem completamente diferente, pela organiza<;ao poHtica. Paradoxalmente, como mostrei em Travail et travailleurs en Algerie, 1 meu livro mais antigo e talvez 0 mais atual, para conceber urn projeto revolucionario, isto e, uma ambi<;ao raciocinada de transformar 0 presente por referencia a urn futur~ projetado, e preciso rer urn minimo de dominio sobre o presente. 0 prolerario, ao contrario do subprolerario, tern esse minimo de garantias presente, de seguran<;a, que e necessario para conceber a ambi<;ao de mudar 0 presente em fun<;ao do futuro esperado. Mas, diga-se de passagem, ele e tambem alguem que ainda tern algo a defender, algo a perder, 0 seu emprego, mesmo sendo exaustivo e mal pago, e muitas de suas condutas, as vezes descritas como excessi- vamente prudentes ou mesmo conservadoras, se explicam em fun<;ao do temor de cair ainda mais, de recair no sub- proletariado. Quando 0 desemprego, como hoje em muitos paises europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afeta uma parte muito importante da popula<;ao, operarios, em- pregados no comercio e na indutria, mas tambem jomalis- tas, professores, esrudantes, 0 trabalho se toma uma coisa rara, desejavel a qualquer pre<;o, submetendo os trabalha- dores aos empregadores e estes, como se pode ver todos os dias, usam e abusam do poder que assim Ihes e dado. A concorrencia pelo trabalho e.i;lcompanhada de uma concor- rencia no trabalho, que e ainda uma forma de concorrencia pelo trabalho, que e preciso conservar, custe 0 que custar, contra a chantagem da demissao. Essa concorrencia, as vezes tao selvagem quanto a praticada pelas empresas, esra na raiz de uma verdadeira luta de todos contra todos, destruidora de todos os valores de solidariedade e de humanidade, e, as vezes, de uma violencia sem rodeios. Aqueles que deploram o cinismo que caracteriza, segundo eles, os homens e as mulheres do nosso tempo, nao deveriam deixar de atribui-lo as condi<;oes economicas e sociais que 0 favorecem ou mes- mo exigem, e que ainda 0 recompensam. Assim, a precariedade atua diretamente sobre aqueles que ela afeta (e que ela impede, efetivamente, de serem mobili- zados) e indiretamente sobre todos os outros, pelo temor que ela suscita e que e metodicamente explorado pelas estrategias de precarizarao, como a introdu<;ao da famosa "flexibilidade" - que, como vimos, e inspirada tanto por razoes economicas quanto poHticas. Come<;a-se assim a sus- peitar de que a precariedade e 0 produto de uma vontade politica, e nao de uma fatalidade economica, identificada com a famosa "mundializa<;ao". A empresa "flexivel" explo- ra, de certa forma deliberadamente, uma situa<;ao de inse- guran<;a que ela contribui para refor<;ar: ela procura baixar os custos, mas tambem tomar possivel essa baixa, pondo 0 trabalhador em risco permanente de perder 0 seu trabalho. Todo 0 universo da produ<;ao, material e cultural, publica e privada, e assim arrebatado num vasto processo de preca- riza<;ao, inclusive com a desterritorializarao da empresa: liga- da ate entao a urn Estado-na<;ao ou a urn lugar (Detroit ou Turim, para a industria automobiHstica), esta ten de cada vez mais a dissociar-se dele, com 0 que se chama de "em-
  • 4. presa-rede", que se articula na escala de urn continente ou do planeta inteiro, conectando segmentos de produ<;:ao, conhecimentos tecnologicos, redes de comunica<;:ao, percur- sos de forma<;:ao dispersos entre lugares muito afastados. Facilitando ou organizando a mobilidade do capital, e 0 "deslocamento" para os paises com salirios mais baixos, onde 0 custo do trabalho e reduzido, favoreceu-se a extensao da concorrencia entre os trabalhadores em escala mundial. A empresa nacional (ou ate nacionalizada), cujo territorio de concorrencia estava ligado, mais ou menos estritamente, ao territorio nacional, e que saia para conquistar mercados no estrangeiro, cedeu lugar a empresa multinacional, que poe os trabalhadores em concorrencia, nao mais apenas com os seus compatriotas, ou mesmo, como que rem nos fazer crer os demagogos, com os estrangeiros implantados no territorio nacional, que, evidentemente, sao de faro as pri- meiras vitimas da precariza<;:ao, mas com trabalhadores do outro lado do mundo, que sao obrigados a aceitar salirios de miseria. A precariedade se inscreve num modo de dominafao de tipo novo, fundado na institui<;:ao de uma situa<;:ao genera- lizada e permanente de inseguran<;:a, visando obrigar os trabalhadores a submissao, a aceita<;:aoda expWra<;:ao.Apesar ____ t:" de seus efeitos se assemelharem fnuito poucoiao capitalismo selvagem das origens, esse modo 4e dom:iila'<;:aoe absoluta- mente sem precedentes, motivando alguem a propor aqui o conceito ao mesmo tempo muito pertinente e muiro expressivo de flexplorafao. Essa palavra evoca bem essa gestao racional da inseguran<;:a, que, instaurando, sobretudo atr;~~s damanlp~I~~i~ orquestrada do espa<;:oda produ<;:ao, a con- correncia entre os trabalhadores dos paises com conquistas sociais mais importantes, com resistencias sindicais mais bem organizadas - caracteristicas ligadas a urn territorio e a uma historia nacionais - e os trabalhadores dos paises menos avan<;:ados socialmente, acaba por quebrar as resis- tencias e obtem a obediencia e a submissao, por mecanismos aparentemente naturais, que sao por si mesmos sua propria justifica<;:ao. Essas disposi<;:oes submetidas produzidas pela precariedade sao a condi<;:ao de uma explora<;:ao cada vez mais "bem-sucedida", fundada na divisao entre aqueles que, cada vez mais numerosos, nao trabalham e aqueles que, cada vez menos numerosos, trabalham, mas trabalham cada vez mais. Parece-me, portanto, que 0 que e apresentado como urn regime economico regido pelas leis inflexiveis de uma especie de natureza social e, na realidade, urn regime politico que so po de se instaurar com a cumplicidade ativa ou passiva dos poderes propriamente politicos. Contra esse regime politico, a luta polftica e possivel. Ela pode ter como fim, primeiramente, assim como a a<;:ao caritativa ou caritativo-militante, encorajar as vitimas da explora<;:ao, rodos os possuidores atuais e potenciais de em- pregos precirios, a trabalhar em comum contra os efeitos destruidores da precariedade (ajudando-os a viver, a "aguen- tar" e a comportar-se, a salvar sua dignidade, a resistir a
  • 5. desestrutura<;:ao, a degrada<;:ao da auto-imagem, a aliena<;:ao), e principalmente a mobilizar-se, em escala internacional, isto e, no mesmo nivd em que se exercem os efeitos da politica de precariza<;:ao, para combater essa mesma politica e neu- tralizar a concorrencia que da visa instaurar entre os traba- lhadores dos diferentes paises. Mas da tambem pode ten tar desvencilh~r os trabalhadores da l6gica das antigas luras que, fundadas na reivindica<;:ao do trabalho ou de uma mdhor remunera<;:ao do trabalho, os restringem ao trabalho e a explora<;:ao (ou a flexplorariio) que de autoriza. Tal ocorre por uma redistribui<;:ao do trabalho (atraves de uma forte redu<;:ao da carga semanal de trabalho em escala europeia), redistribui<;:ao inseparavd de uma redefini<;:ao da distribui- <;:aoentre 0 tempo da produ<;:ao e 0 tempo da reprodu<;:ao, o repouso e 0 lazer. Revolu<;:ao que deveria come<;:ar pdo abandono da visao estreitamente calculista e individualista que reduz os agentes a calculadores ocupados em resolver problemas, problemas estritamente economicos, no sentido mais limitado do ter- mo. Para que 0 sistema economico funcione, e preciso que os trabalhadores the forne<;:am suas pr6prias condi<;:6es de produ<;:ao e de reprodu<;:ao, mas tambem as condi<;:6es de funcionamento do pr6prio sistema economico, a come<;:ar por sua cren<;:ana empresa, no trabalho, na necessidade do trabalho ete. Sao coisas que os economistas ortodoxos ex- cluem a priori da sua contabilidade abstrata e murilada, atribuindo tacitamente a responsabilidade da produ<;:ao e da reprodu<;:ao de todas as condi<;:6es economicas e sociais ocul- tas do funcionamento da economia, tal como des a conhe- cern, aos individuos, ou - paradoxo - ao Estado, cuja destrui<;:ao des pregam, alias. 1.P.Bourdieu, Travail et travailleurs en Algerie, Paris-Haia, Mouton, 1963 (com A. Darbel, J.-P. Rivet, C. Seibel); Algerie 60. Structures economiques et structures temporelles, Paris, Minuit, 1977.
  • 6. o intelectual negativo * par alguns, descobriram subitamente que todos as seus esfonros podiam ser destrufdos, aniquilados em dois tempos e com tres movimentos. Dais anigos escritos ao fim de uma viagem sob escolta, programada, balizada, vigiada pelas autoridades ou pelo exercira argelino, que serao publicados no maior diario frances, I embora recheados de lugares-comuns e erros, e inteiramente orientados para uma conclusao simplista, feita para dar satisfa<;:ao a como<;:ao superficial e ao 6dio racista, disfar<;:ado de indigna<;:ao humanista. Urn comfcio unani- mista reunindo a nata da intelligentsia da mfdia e dos politicos, indo do liberal integrista ao ecologista oponunis- ta, passando pela passionaria dos "erradicadores". Urn pro- grama de televisao tatalmente unilateral, sob a aparencia de neutralidade. E a resultado est<l af. Voltou-se a estaca zero. o intelectual negativo cumpriu sua missao: quem did que e solidario dos estripadores, dos estupradores e dos assassi- nos - principalmente quando se trata de gente que e chamada, sem outra considera<;:ao hist6rica, de "loucos do isla", envolvidos sob a r6tulo infame de islamismo, resumo de rados as fanatismos orientais, feita para dar ao desprezo racista a alibi indiscutfvel da legitimidade etica e leiga? Para situar a problema em termos tao caricaturais, nao e preciso ser urn grande intelectual. Mas e a que faz 0 res- ponsavel por essa opera<;:ao de baixa policia simb6lica - antftese absoluta de tudo a que define a intelectual, a liber- dade em rela<;:aoaos poderes, a crftica das ideias prontas, a demoli<;:ao das alternativas simplistas, a restaura<;:ao da com- Todos aqueles que estiveram a postos, dia ap6s dia, durante anos, para receber as refugiados argelinos, escuta-Ios, aju- da-Ios a redigir curriculum vitae e enviar solicita<;:oes aos ministerios, acompanha-Ios aos tribunais, escrever canas as insrancias administrativas, juntar-se a eles em delega<;:oes junto as autoridades responsaveis, solicitar vistas, autoriza- <;:oes, carteiras de residencia, que se mobilizaram, des de junho de 1993, desde os primeiros assassinatas, nao s6 para levar 0 socorro e a prote<;:ao possfveis, mas tambem para ten tar informar-se e informar, compreender e fazer com- preender uma realidade complexa, e que lutaram in cans a- velmente por meio de interven<;:oes publicas, entrevistas coletivas, anigos nos jornais, para desvincular a crise arge- lina das anaIises unilaterais, todos esses intelectuais de todos os paises que se uniram para combater a indiferen<;:a au a xenofobia, para lembrar a respeito pela complexidade do mundo desfazendo as confusoes, deliberadamente mantidas * Este texto, escrito em janeiro de 1998, permaneceu inedito. ~
  • 7. plexidade dos problemas - ser consagrado pelos jornalistas como intelecrual de pleno direito. Entretanto, conhes:o todo tipo de pessoas que, embora saibam perfeitamente de rudo isso por terem se chocado mil vezes com essas fors:as, recomes:arao, cada urn no seu am- biente e com seus meios, a executar as:oes sempre ameas:adas de serem destruidas por urn relatorio distraido, leviano ou maldoso, ou de serem apropriadas, em caso de sucesso, por oportunistas e convertidos de ultima hora, que teimarao em escrever explicas:oes, refuras:oes ou desmentidos, destinados a serem encobertos pelo fluxo ininterrupto da tagarelice na midia, convencidos de que, como mostrou 0 movimento dos desempregados, culminancia de urn trabalho obscuro e as vezes tao desesperado que se assemelhava a uma especie de arte pela arte da politica, pode-se, com 0 tempo, fazer avans:ar urn pouco, e sem recuo, a pedra de Sisifo. Porque, durante esse tempo, "responsaveis" politicos, ha- beis em neurralizar os movimentos sociais que contribuiram para leva-los ao poder, continuam a deixar mil hares de "sem- documentos" a espera ou a expulsa-los sem maio res cuidados para 0 pais de onde fugiram, e que pode ser a Argelia. Paris, Janeiro de 1998 o neoliberalismo, utopia (em vias de realizarao) de uma explorarao sem limites o mundo economico seria de fato, como quer 0 discurso dominante, uma ordem pura e perfeita, desdobrando im- placavelmente a logica de suas conseqiiencias previsiveis e pronto a reprimir todos os erros pelas sans:oes que ele inflige seja de maneira auromatica, seja, mais excepcionalmente, atraves de seu bras:o armado, 0 FMI ou a OCDE, e das politicas dristicas que eles impoem, redus:ao do custo da mao-de-obra, corte das despesas publicas e flexibilizas:ao do trabalho? E se ele Fosse apenas, na realidade, a pritica de uma uropia, 0 neoliberalismo, assim convertida em progra- ma politico, mas uma utopia que, com a ajuda da teoria economica a que ela se filia, consegue se pensar como a descris:ao ciendfica do real? Essa teoria tutelar e uma pura fics:ao matematica, funda- da, desde a origem, numa formidavel abstras:ao (que nao se reduz, como que rem fazer crer os economistas que defen- dem 0 direito a abstras:ao inevitavel, ao efeito, constitutivo de todo projeto ciendfico, da construs:ao de objeto como apreensao deliberadamente seletiva do real): aquela que, em 1. Trata-se de dais artigos de Bernard-Henri Levy, publicados no Ie Monde. (N.E.)
  • 8. nome de uma concep<;ao tao estreita quanto estrita da ra- cionalidade identificada com a racionalidade individual, consiste em par entre parenteses as condi<;6es economicas e sociais das disposi<;6es racionais (e em particular da dis- posi<;ao calculadora aplicada as coisas economicas, que esti na base da visao neoliberal) e das estruturas economicas e sociais, que saD a condi<;ao de seu exerdcio, ou, mais pre- cisamente, da produ<;ao e da reprodu<;ao dessas disposi<;6es e dessas estruturas. Basta pensar apenas, para dar a medida da omissao, no sistema de ensinG, que nunca e levado em conta enquanto tal, numa epoca em que ele tern urn papel determinante tanto na produ<;ao dos bens e dos servi<;os quanto na produ<;ao dos produtores. Dessa especie de pe- cado original, inscrita no mito walrasiano da "teoria pura", decorrem todos os erros e todas as falhas da disciplina economica, e a obstina<;ao fatal com a qual ela se apega a oposi<;ao arbitraria que faz existir apenas com a sua propria existencia, entre a logica propriamente economica, fundada na concorrencia e portadora de eficiencia, e a logica social, submetida a regra da eqiiidade. Dito isso, essa "teoria" originariamente dessocializada e des-historicizada tern, hoje mais do que nunca, os meios de tornar-se verdadeira, empiricamente verificivel. Efetivamen- te, 0 discurso neoliberal nao e urn discurso como os outros. A maneira do discurso psiquiatrico no asilo, segundo Erving Goffman, e urn "discurso forte", que s6 e tao forte e rao dificil de combater porque tern a favor de si todas as for<;as de urn mundo de rela<;6es de for<;a, que ele contribui para fazer tal como e, sobretudo orientando as escolhas econo- micas daqueles que dominam as rela<;6es economicas e acrescentando assim a sua for<;a propria, propriamente sim- b6lica, a essas rela<;6es de for<;a.1 Em nome desse programa ciendfico de conhecimento convertido em programa polf- tico ~e a<;ao, cumpre-se urn imenso trabalho politico (rene- gado, pois aparentemente puramente negativo) que visa criar as condi<;6es de realiza<;ao e de funcionamento da "teoria"; urn programa de destruirao met6dica dos coletivos (a economia neoclassica querendo lidar apenas com indivi- duos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos ou familias). o movimento, que se tofllOU possive! pela polftica de desregulamenta<;ao financeira, em dire<;ao a utopia neolibe- ral de urn mercado puro e perfeito se realiza at raves da a<;ao transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as medidas polfticas (das quais a mais recente e 0 AMI, Acordo Multilateral sobre 0 Investimento, destin ado a proteger con- tra os Estados nacionais as empresas estrangeiras e seus investimentos) colocando em risco todas as estruturas coletivas capazes de resistirem a logica do mercado puro: narao, cujo espa<;o de manobra nao para de diminuir; grupos de trabalho, com, por exemplo, a individualiza<;ao dos salarios e das carreiras, em fun<;ao das competencias individuais e a resul- tante atomiza<;ao dos trabalhadores; coletivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associa<;6es, coopera- tivas; ate afamilia, que, atraves da constitui<;ao de mercados por classes de idade, perde uma parte do seu controle sobre o consumo. 0 programa neoliberal extrai sua for<;a social da for<;a polftico-economica daqueles cujos interesses ele
  • 9. exprime - acionistas, operadores financeiros, industriais, politicos conservadores ou social-democratas convertidos as desistencias apaziguadoras do laisser-ftire, altos funcionarios das finan<;:as, tanto mais obstinados em impor uma politica pregando sua pr6pria extin<;:ao porque, ao contrario dos executivos das empresas, eles nao correm nenhum risco de pagar eventualmente por suas conseqiiencias. 0 programa neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais, e a construir desse mundo, na realidade, urn sistema economico ajustado a descri<;:ao te6rica, isto e, uma especie de maquina 16gica, que se apresenta como uma cadeia de constrangimentos enre- dando os agentes economicos. A mundializa<;:ao dos mercados financeiros, junto com 0 progresso das tecnicas de informa<;:ao, garante uma mobili- dade sem precedentes dos capitais e oferece aos investidores (ou acionistas) zelosos de seus interesses imediatos, ou me- lhor, da rentabilidade a curto prazo de seus investimentos, a possibilidade de comparar a todo momento a rentabilida- de das maio res empresas e de sancionar, conseqiientemente, os fracassos pontuais. As pr6prias empresas, defrontando-se com tal amea<;:apermanente, devem se ajustar de modo cada vez mais rapido as exigencias dos mercados; e devem faze-Io sob pena de "perder, como se diz, a confian<;:a dos merca- dos", e com isso 0 apoio dos acionistas. Esses ultimos, preocupados em obter uma rentabilidade a curto prazo, sao cada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers, de fixar-Ihes normas, atraves das diretorias financeiras, e de orientar suas politicas em materia de contrata<;:ao, emprego e salario. Assim se instaura 0 reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos por intermedio de contratos de du- ra<;:aodeterminada ou as interinidades e os "pIanos sociais" de treinamento, e a instaura<;:ao, no pr6prio seio da empresa, da concorrencia entre filiais autonomas, entre equipes, obri- gadas a polivalencia, e, enfim, entre individuos, atraves da individualiza[lio da rela<;:aosalarial: fixa<;:aode objetivos in- dividuais; pratica de entrevistas individuais de avalia<;:ao; altas individualizadas dos salarios ou atribui<;:ao de promo- <;:oesem fun<;:ao da competencia e do merito individuais; carreiras individualizadas; estrategias de "responsabiliza<;:ao" tendendo a garantir a auto-explora<;:ao de certos quadros que, sendo simples assalariados sob forte dependencia hie- rarquica, sao ao mesmo tempo considerados responsaveis por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc., a maneira dos "por conta pr6pria"; exigencia do "auto-con- trole", que estende 0 "envolvimento" dos assalariados, se- gundo as tecnicas do "managementparticipativo", bem alem das atribui<;:oes caracteristicas dos gerentes; eis algumas tec- nicas de submissao racional que, ao exigir 0 sobreinvesti- mento no trabalho, e nao apenas nos postos de responsabi- lidade, eo trabalho de urgencia, concorrem para enfraquecer ou abolir as referencias e as solidariedades coletivas.2 A institui<;:ao pratica de urn mundo darwiniano que en- contra as molas da adesao na inseguran<;:a em rela<;:aoa tarefa e a empresa, no sofrimento e no estresse,3 nao poderia certamente ter sucesso completo, caso nao contasse com a cumplicidade de trabalhadores a bra<;:oscom condi<;:oes pre- carias de vida produzidas pela inseguran<;:a bem como pela
  • 10. existencia - em todos os niveis da hierarquia, e ate nos mais elevados, sobretudo entre os executivos - de urn exercito de reserva de miio-de-obra docilizada pela precarizariio e pela amea<;:apermanente do desemprego. 0 fundamento ultimo de toda essa ordem economica sob a chancel a invo- cada da liberdade dos individuos e efetivamente a violencia estrutural do desemprego, da precariedade e do me do ins- pirado pela amea<;:a da demissao: a condi<;:ao do funciona- mento "harmonioso" do modelo micro-economico indivi- dualista e 0 principio da "motiva<;:ao" individual para 0 trabalho residem, em ultima analise, num fenomeno de massa, qual seja, a existencia do exercido de reserva dos desempregados. Nem se trata a rigor de urn exercito, pois o desemprego isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e rompe com a solidariedade. Essa violencia estrutural tambem pesa sobre 0 que se chama contrato de trabalho (habilmente racionalizado e des- realizado pela "teoria dos contratos"). 0 discurso empresarial nunca falou tanto de connan<;:a, de coopera<;:ao, de lealdade e de cultura de empresa como nessa epoca em que se obtem a adesao de cada instante fazendo desaparecer todas as garantias temporais (tres quartos das contrata<;:6es sao de dura<;:ao de- terminada; a parcela dos empregos temporarios nao para de crescer, a demissao individual ten de a nao estar mais sub me- tida a nenhuma restri<;:ao).Alias, tal adesao s6 pode ser incerta e ambigua, porque a precariedade, 0 medo da demissao e 0 "enxugamento" podem, como 0 desemprego, gerar a angus- tia, a desmoraliza<;:ao ou 0 conformismo (taras que a literatura empresarial constata e deplora). Nesse mundo sem inercia, sem principio imanente de continuidade, os dominados estao na posi<;:aodas criaturas num universo cartesiano: estao para- lisados pela decisao arbitraria de urn poder responsavel pela "cria<;:ao continuada" de sua existencia - como prova e lembra a ame<;:ado fechamento da fabrica, do desinvestimen- to e do deslocamento. A profunda sensa<;:aode inseguran<;:a e de incerteza sobre 0 futuro e sobre si pr6prio que atinge todos os trabalhadores assim precarizados deve sua colora<;:ao particular ao fato de que 0 principio da divisao entre os que sao relegados ao exercito de reserva e aqueles que possuem trabalho parece residir na competencia escolarmente garantida, que tambem explica 0 principio das divis6es, no seio da empresa "tecnici- zada", entre os executivos ou os "tecnicos" e os simples operarios ou os operarios especializados, os novos parias da ordem industrial. A generaliza<;:ao da eletronica, da informa- tica e das exigencias de qualidade, que obriga todos os assala- riados a novas aprendizagens e perpetua na empresa 0 equi- valente das provas escolares, tende a redobrar a sensa<;:aode inseguran<;:a por meio de uma sensa<;:ao,habilmente mantida pela hierarquia, de indignidade. A ordem pronssional e, su- cessivamente, toda a ordem social, parece fundada numa ordem das "competencias", ou, pior, das "inteligencias". Mais talvez do que as manipula<;:6es tecnocraticas das rela<;:6esde trabalho e as estrategias especial mente armadas a nm de obter a submissao e a obediencia, objeto de uma aten<;:aoincessante e de uma reinven<;:ao permanente, mais do que 0 enorme
  • 11. investimento em pessoal, em tempo, em pesquisa e em traba- lho, pressuposto pela inven<;:ao continua de novas formas de gestao de mao-de-obra e de novas tecnicas de comando, e a cren<;:ana hierarquia das competencias escolarmente garanti- das que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e tambem, cada vez mais, na fun<;:ao publica: obrigados a pensar-se em rela<;:aoa elite detentora dos titulos escolares mais cobi<;:ados,destinada as tarefas de comando, e a pequena classe dos empregados e dos tecnicos restritos as tarefas de execu<;:aoe sempre em situa<;:ao de risco, quer dizer, sempre obrigados a provar que sao bons, os trabalhadores condenados a precariedade e a inseguran<;:a de urn emprego instavel e amea<;:ados de relega<;:ao na indignidade do desemprego s6 podem conceber uma imagem desencantada tanto de si mes- mos, como individuos, quanto de seu grupo; outrora objeto de orgulho, enraizado em tradi<;:6es e em toda uma heran<;:a tecnica e politica, 0 grupo operario, se e que existe ainda enquanto tal, esta fadado a desmoraliza<;:ao, a desvaloriza<;:ao e a desilusao politica, que se exprime na crise da militincia ou, pior ainda, na adesao desesperada as teses do extremismo fascist6ide. Ve-se assim como a utopia neoliberal tende a se encarnar na realidade de uma especie de maquina infernal, cuja neces- sidade se imp6e aos pr6prios dominantes - as vezes ator- mentados, como George Soros, e este ou aquele presidente de fundos de pensao, pela preocupa<;:ao com os efeitos des- truidores do dominio que eles exercem, e levados a a<;:6es compensat6rias inspiradas na pr6pria l6gica que que rem '" neutralizar, como as generosidades a maneira de Bill Gates. Como 0 marxismo em outros tempos, com 0 qual, sob esse aspecto, ela tern muitos pontos comuns, essa utopia suscita uma cren<;:aformidavel, a Free tradepith, nao s6 entre aqueles que vivem materialmente dela, como os financistas, os patr6es de gran des empresas etc., mas tambem entre os que tiram dela sua razao de viver, como os altos funcionarios e os politicos que sacralizam 0 poder dos mercados em nome da eficiencia economica, que exigem a suspensao das barreiras administra- tivas ou politicas capazes de incomodar os detentores de capitais na busca puramente individual da maximiza<;:ao do lucro individual instituido como modelo de racionalidade, que querem bancos centrais independentes, que pregam a subordina<;:ao dos Estados nacionais as exigencias da liberdade economica para os donos da economia, com a supressao de radas as regulamenta<;:6es sobre rados os mercados, a come<;:ar pelo mercado de trabalho, a proibi<;:ao dos deficits e da infla<;:ao,a privatiza<;:ao generalizada dos servi<;:ospublicos, a redu<;:aodas despesas publicas e sociais. Sem compartilhar necessariamente os interesses econo- micos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas tern suficientes interesses espedficos no campo da ciencia eco- nomica para dar uma contribui<;:ao decisiva, quaisquer que sejam seus sentimentos a prop6sito dos efeitos economicos e sociais da utopia que eles revestem com a razao mate- matica, a ptodu<;:ao e a reprodu<;:ao da cren<;:ana utopia neo- liberal. Separados do mundo economico e social por toda a sua existencia e sobretudo por sua forma<;:ao intelecrual,
  • 12. em geral puramente abstrata, livresca e teoricista, eles sao, como outros em outros tempos no campo da filosofia, particularmente inclinados a confundir as coisas da logica com a logica das coisas. Confiantes em modelos que prati- camente nunca tiveram ocasiao de submeter a prova da verificac;:ao experimental, levados a olhar de cima as con- quistas das outras ciencias historicas, nas quais nao reconhe- cem a pureza e a transparencia cristalina de seus jogos matematicos, sendo em geral incapazes de compreender sua verdadeira necessidade e profunda complexidade, eles par- ticipam e colaboram para uma formidavel mudanc;:a econo- mica e social. Mesmo que algumas das consequencias dessa mudanc;:a lhes causem horror (eles podem contribuir para 0 partido socialista e dar conselhos prudente a seus repre- sentantes nas insrancias de poder), decerto nao lhes desa- gradam completamente pois, com 0 risco de alguns fracas- sos, imputiveis principalmente ao que eles chamam de "bo- lhas especulativas", tal mudanc;:a tende a dar realidade a utopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) a qual eles consagram a sua vida. Entretanto, 0 mundo e 0 que e, com os efeitos imedia- tamente visiveis do funcionamento da grande utopia neo- liberal: nao so a miseria e 0 sofrimento de uma frac;:aocada vez maior das sociedades mais avanc;:adas economicamente, o agravamento extraordinario das diferenc;:as entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autonomos de produc;:ao cultural, cinema, edic;:ao etc., e portanto, a longo prazo, dos proprios produtos culturais, em virtude da in- trusao crescente das considerac;:6es comerciais, mas tambem e sobretudo pela destruic;:ao de todas as instincias coletivas capazes de resistir aos efeitos da maquina infernal, entre as quais 0 Estado esti em primeiro lugar, depositirio de todos os valores universais associados a ideia de publico, e a im- posic;:ao, por toda a parte, nas altas esferas da economia e do Estado, ou no seio das empresas, dessa especie de dar- winismo moral que, com 0 culto do vencedor ("winner'), formado em matematicas superiores e nos "chutes" sem rigor, instaura a luta de todos contra todos eo cinismo como norma de todas as praticas. E a nova ordem moral, fundada na inversao de todas as tibuas de valores, se afirma no espetacu.lo, prazerosamente difundido pela midia, de todos esses importantes representantes do Estado, que rebaixam a sua dignidade estatutaria ao multiplicar as reverencias diante dos patr6es de multinacionais, Daewoo ou Toyota, ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante de um Bill Gates. Pode-se esperar que a massa extraordinaria de sofrimento produzida por um tal regime politico-economico possa um dia lastrear um movimento capaz de deter a marcha para 0 abismo? De fato, estamos aqui diante de um extraordinario paradoxo: enquanto os obsticulos encontrados no caminho da realizac;:ao da ordem nova, a do individuo sozinho mas livre, san hoje considerados efeitos da rigidez do arcaismo, enquanto toda intervenc;:ao direta e consciente, pelo menos quando de iniciativa do Estado, e por quaisquer meios que sejam, e antecipadamente desacreditada a pretexto de estar
  • 13. orientada por funcionarios movidos por seus pr6prios inte- resses e que conhecem mal os interesses dos agentes econo- micos, portanto intimada a suprimir em proveito desse mercado enquanto urn mecanismo puro e anonimo (esque- ce-se que ele e tambem 0 lugar do exerdcio de interesses), e na realidade a permanencia ou a sobrevivencia das insti- tuiy6es e dos agentes da ordem antiga em vias de desman- telamento, e 0 trabalho inteiro de todas as categorias de trabalhadores sociais, bem como todas as solidariedades sociais, familiares ou ourras, que fazem com que a ordem social nao desmorone no caos apesar do contingente cres- cente de populayao precarizada. A transiyao para 0 "libera- lismo" se faz de maneira insensivel, logo imperceptivel, como a deriva dos continentes, ocultando assim seus efeitos, mais terriveis a longo prazo. Tais efeiros tambem se encon- tram dissimulados, paradoxalmente, pelas resistencias que suscita desde agora por parte daqueles que defend em a ordem antiga, nutrindo-se dos recursos nelas contidos, dos modelos juridicos ou pdticos de assistencia e de solidarie- dade nela vigentes, dos habitos ai estimulados (entre as enfermeiras, os serviyos sociais etc.), ern suma das reservas de capital social que protegem toda uma parte da presente ordem social de uma queda na anomia. (Capital que, se nao e renovado, reproduzido, esra destinado a extinyao, mas cujo esgotamento nao ocorred de urn dia para 0 ourro.) Mas essas mesmas foryas de "conservayao", freqiiente- mente tratadas CQnlO foryas conservadoras, sac tambem, sob ourro aspecto, foryas de resistencia a instaurayao da ordem nova, podendo se tamar foryas subversivas nas seguintes condiy6es: sob a condiyao previa de que se saiba conduzir a Iura propriamente simb6lica contra 0 trabalho incessante dos "pensadores" neoliberais, para desacreditar e desqualifi- car a heranya de palavras, tradiy6es e representay6es asso- ciadas as conquistas hist6ricas dos movimentos sociais do passado e do presente; sob a condiyao tambem de que se saiba defender as instituiy6es correspondentes, direito do trabalho, assistencia social, previdencia social etc. contra 0 projeto de condena-Ias ao arcaismo de urn passado ultrapas- sado ou, pior ainda, de constitui-Ios, desafiando toda veros- similhanya, em privilegios inuteis ou inaceitaveis. Esse com- bate nao e facil, sendo muitas vezes necessario trava-Io em frentes inesperadas. Inspirando-se numa intenyao paradoxal de subversao orientada para a conservarao ou a restaurarao, os revolucionarios conservadores sac espertos em transfor- mar em resistencias reacionarias as reay6es de defesa susci- tadas por ay6es conservadoras que descrevem como revolu- cionarias; e ao mesmo tempo condenam como defesa arcaica e retr6grada de "privilegios" reivindicay6es ou revoltas que se enraizam na invocayao dos direitos adquiridos, isto e, num passado ameayado de degradayao ou de destruiyao por suas medidas regressivas - entre as quais as mais exemplares sac a demissao dos sindicalistas ou, mais radicalmente, dos trabalhadores veteranos que sac tambem os conservadores das tradiy6es do grupo. E se podemos ter alguma esperanya razoavel, e porque ainda existem, nas instituiy6es estatais e tambem nas dispo- siy6es dos agentes (ern especial os mais ligados a essas ins-
  • 14. titUl<;:oes, como a elite do medio funcionalismo publico), for<;:asque, sob a aparencia de defender simplesmente, como logo serao acusadas, uma ordem desaparecida, e os "privi- legios" correspondentes, devem de fato, para resistir a prova, trabalhar para inventar e construir uma ordem social que nao teria como unica lei a busca do interesse egoista e a paixao individual do lucro, e que daria lugar a coletivos orientados para a busca racional de fins coletivamente elabo- rados e aprovados. Entre esses coletivos, associa<;:6es, sindica- tos, partidos, como nao dar urn lugar especial ao Estado, Estado nacional, ou, melhor ainda, supranacional, isto e, europeu (etapa para urn Estado mundial), capaz de controlar e impor e£1cazmente os lucros realizados nos mercados £1- nanceiros; capaz tambem e principalmente de enfrentar a a<;:aodestruidora que estes exercem sobre 0 mercado de trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elabo- ra<;:aoe a defesa do interesse publico que, queira-se ou nao, nunca said, mesmo ao pre<;:o de algum eno em escrita matematica, da visao de contador (em outros tempos, dir- se-ia de "quitandeiro") que a nova cren<;:aapresenta como a forma suprema da realiza<;:ao humana. Paris, Janeiro de 1998 no trabalho" (l e 2), 114, setembro de 1996, e 115, dezembro de 1996 e especial mente a introdu<,:ao de Gabtielle Balazs e Michel Pialoux, "Crise du travail e crise du politique", 114, p.3-4. 3. C. Dejours, Souffiance en France. La banalisation de l'injustice sociale, Paris, Seuil, 1997. 1. E. Goffman, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux, Paris, Minuit, 1968. 2. Podem ser consultados, sOBre tudo isso, os dois numeros de Actes de la Recherche en Sciences Sociales dedicados as "Novas formas de domina~ao
  • 15. o movimento dos desempregados, um milagre social* preitada me pareceu muitas vezes desesperada - a todos aque1es que, nos sindicatos e nas associa<;:6es reunidos no seio dos Estados gerais para 0 movimento social, tornaram possivel 0 que constitui realmente urn milagre social, cujas virtudes e beneficios nao terminaremos tao cedo de desco- brir. A primeira conquista desse movimento e 0 movimento em si, a sua pr6pria existencia: ele arranca os desempregados, e com eles todos os trabalhadores predrios, cujo numero cresce dia a dia, da invisibilidade, do isolamento, do silen- cio, em suma da inexistencia. Reaparecendo em plena luz, os desempregados reconduzem a existencia e a urn cerro orgulho todos os homens e mulheres que, como eles, 0 nao-emprego candena habitualmente ao esquecimento e a vergonha. Mas eles lembram sobretudo que urn dos funda- mentos da ordem economica e social e 0 desemprego em massa e a amea<;:aque ele faz pesar sobre todos os que ainda disp6em de urn trabalho. Longe de se fecharem num mo- vimento egoista, eles dizem que, embora haja certamente varios tipos de desempregado, as diferen<;:as entre os RMIstas e os desempregados com seguro - desemprego perro do nm ou dependentes de outros rendimentos previdenciarios - nao SaG radicalmente diferentes daquelas que separam os desempregados de todos os trabalhadores predrios. Rea- lidade fundamental, que nos arriscamos a esquecer ou a fazer esquecer, enfatizando exclusivamente as reivindica<;:6es "por categoria" (se assim podemos dizerO dos desempregados, tendentes a separa-Ios dos trabalhadores, e em particular dos mais insraveis entre eles, que podem se sentir esquecidos. o movimento dos desempregados e urn acontecimento uni- co, extraordinario. Ao contrario do que nos repetem sem cessar os jornais escritos e falados, essa cxccfiio ftanccsa e algo de que podemos nos orgulhar. Todos os estudos cientincos mostraram efetivamente que 0 desemprego destr6i aqueles que atinge, suprime suas defesas e suas disposi<;:6es subver- sivas. Se essa especie de fatalidade pode ser frustada, foi gra<;:as ao trabalho incansavel de individuos e associa<;:6es que estimularam, sustentaram, organizaram 0 movimento. E nao posso deixar de achar extraordinario que responsaveis politicos de esquerda e sindicalistas denunciem a manipu- la<;:ao(evocando 0 discurso patronal das origens contra os sindicatos nascentes), quando deveriam reconhecer as vir- tudes do trabalho militante, sem 0 qual, como sabemos, nunca teria havido nada semelhante a urn movimento social. Quanto a mim, quero expressar minha admira<;:ao e minha gratidao - ainda mais intensas considerando que sua em- * Intervenc,:ao, feita em 17 de janeiro de 1998, quando da ocupac,:ao da Ecole Normale Superieure pel os desempregados.
  • 16. Alem disso, 0 desemprego e 0 desempregado obcecam 0 trabalho e 0 trabalhador. Temporarios, substituras, supleti- vos, intermitentes, detentores de contraras de dura<;:ao de- terminada, interinos na industria, no comercio, na educa- <;:ao,no teatro ou no cinema, mesmo que imensas diferen<;:as possam separa-Ios dos desempregados e tambem entre si, rados eles vivem com medo do desemprego, e, muitas vezes, sob a amea<;:ada chantagem exercida sobre eles pelo des em- prego. A precariedade toma posslveis novas estrategias de domina<;:ao e explora<;:ao, fundadas na chantagem da dispen- sa, que se exerce hoje sobre toda a hierarquia, nas empresas privadas e mesmo publicas, e que imp6e sobre 0 conjunto do mundo do trabalho, e especialmente nas empresas de produ<;:ao cultural, uma censura esmagadora, impedindo a mobiliza<;:ao e a reivindica<;:ao. A degrada<;:ao generalizada das condi<;:6es de trabalho se rarna posslvel ou ate mesmo favorecida pelo desemprego, e e porque sabem confusamen- te disso que tantos franceses se sentem e se dizem solidirios a uma luta como ados desempregados. E par isso que se pode dizer, sem jogar com as palavras, que a mobiliza<;:ao daqueles cuja existencia constitui certamente 0 fatar prin- cipal da desmobiliza<;:ao e 0 mais extraordinirio estfmulo a mobiliza<;:ao, a ruptura com 0 fatalismo polftico. o movimento dos desempregados franceses constitui tambem urn apelo a todos os desempregados e trabalhadores precirios de rada a Europa: surgiu uma ideia subversiva nova, e ela pode se tamar urn instrumento de luta, do qual cada movimento nacional pode se apoderar. Os desempre- gados lembram a rados os trabalhadores que estes estao no mesmo barco que os desempregados; que os desempregados, cuja existencia pesa tanto sobre eles e sobre suas condi<;:6es de trabalho, saD 0 produto de uma polftica; que uma mo- biliza<;:ao capaz de atravessar as fronteiras que separam, no seio de cada pals, os trabalhadores e os nao-trabalhadores, e por outro lado as que separam 0 conjunto dos trabalha- dores e dos nao-trabalhadores, de urn mesmo pals, dos trabalhadares e dos nao-trabalhadores dos outros paises, poderia enfrentar a polftica que faz com que os nao-traba- lhadores possam condenar ao silencio e a resigna<;:ao aqueles que tern 0 duvidoso "privilegio" de ter urn trabalho mais ou menos precirio.