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Capítulo 7 | Alterando a estrutura das sociosferas




     AUGUSTO DE FRANCO
  Vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio



                      1
2
7
Alterando a estrutura das sociosferas



                Aqui estamos, engatinhando pelas frestas
                   entre as paredes da Igreja, do Estado,
                                 da Escola e da Empresa,
                          todos os monolitos paranóicos.
                                 Hakim Bey em Caos (1984)



           O melhor da religião é que ela produz hereges.
             Ernst Bloch em O ateísmo no cristianismo (1968)




                   3
Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados
ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período.
A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos
analistas de governos e corporações, grandes movimentos
subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular,
distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos
– fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente
experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a
dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está
emergindo:

      Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e,
      sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de
      unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.

      Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres
      das ordenações das burocracias sacerdotais.

      Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando
      a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos
      cidadãos.

      Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de
      comunidades – que assumem a governança do seu próprio
      desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação
      aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.


      Não-Empresas-hierárquicas:    redes  de stakeholders   –
      demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e
      não pode paredes opacas – como novas comunidades de
      negócios do mundo que já se anuncia.




                              4
Fascinante! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:
construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho mundo;
sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da interação,
para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do caos...

As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger
das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.
Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo
cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da
experiência de empreender.

Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram
religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...
Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as pessoas
da experiência de fluzz!

Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e
aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os scripts
dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que, na
verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.

Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-
Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com tal
florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo
radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis revoluções
épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos,
senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas por pessoas
comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais fomos
poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não
experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser
replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como
escreveu Hakim Bey (1984) – engatinhando pelas frestas entre as paredes
da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos
paranóicos”.




                                     5
Aprendizagem, não ensino

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem




- Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em
vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas
ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um
artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz.

Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do
ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao
compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo
principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de
disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de
dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas
centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia-
ensinante) x discente (massa-ensinada).

A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são
construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados
a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas
“salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros.
São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar
obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de
cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa
na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal.

Por que construímos tal aberração?

Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da
aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem;
donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino.

Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo,
contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode
até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um
perigo para alguma estrutura de poder.

Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é
ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)


                                     6
estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede
social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa
mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional
para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém
recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais
funcionalidades). Eis a tradição!

Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A
primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma
estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há
ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento).

Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até
bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda
dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada:
os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido,
como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na
separação de corpos entre docentes e discentes.

O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um
ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há
um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do
aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser
qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A
aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução.
Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada:
“Tudo que não invento é falso” (1).

O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato
separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,
como instrumentos de reprodução de programas centralizadores
(verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a
rede-mãe.

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a
reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo
tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um
reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-
ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a
que foi submetido. Mas como twittou Pierre Lévy (2010), as universidades
não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes
tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.



                                    7
Autodidatismo, não heterodidatismo

           Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito




Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos
condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim
que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando
pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio
jeito.

Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem
humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos
educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar
com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo).
O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um
aprendente (2).

Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida,
autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma
criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e
publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.

Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e
reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que
alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam,
também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque
aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez
maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer
que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será
necessário.

Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares
de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais
(como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito
mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua
idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino
altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever,
aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de
problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é
terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-
las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que


                                    8
querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos
alheios.

Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas
vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia
de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia
sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos
demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios”
precisam que a sociedade continue burra.

Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza
o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar
o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo).

Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a
necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus
mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de
cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por
algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda
entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é
claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a
dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem,
assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução
da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da
urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos
currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por
exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de
conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de
determinado padrão organizacional.

Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o
conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado,
protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for
compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com
outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de
valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos
aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos
necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento
(e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as
experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing).

Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando
também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o



                                    9
conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão.
Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não
classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a
pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo
classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e
a encontraremos para você”.

É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em
mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou
modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades.
Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez
mais semântica (3).

A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para
“organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai
dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de
comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas
devem conhecer.

Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade
que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e
pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão
florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de
organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de
outros processos em rede.

O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o
indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon
social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas
características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos,
uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A
pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo,
como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em
um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem.

Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a
coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em
uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo.
Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto
de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do
seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto
pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é
necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo



                                    10
seguida pelo candidato.

Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos
interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa.
Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os
especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez
horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do
exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso
estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por
uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial
para interpretar tais dados.

Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de
aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar
diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as
definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os
trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento
e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor
daquela wikipedia. Ponto final.




                                    11
Alterdidatismo, não heterodidatismo

                        “Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”




De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai
sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como
vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na
transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização
de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que
se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam
começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma
comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem.

Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto
ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana
(quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões;
reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto
Maturana confere a essas noções) (4).

A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa
ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então
listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um
sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e
escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por
exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em
inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas
elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana);
lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos
simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas
digitais de inserção, articulação e animação de redes).

Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas
da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou
seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções
pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-
los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o
autodidatismo.

No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor,
ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está
intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a


                                    12
escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se
poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o
ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa
rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos).

O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez
requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em
sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o
empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável
local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido
deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de
relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes
sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares
ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de
aprendizagem.

Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a
vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o
ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos
currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de
aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas
coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las,
experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives
geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).

É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna
um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-
fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser
agentes comunitários de educação.

Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer
um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que,
a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa:
que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma
muleta que deve ser abandonada.

Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos
condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É
assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando
pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos.

A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A
escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém



                                    13
que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que
vive.

Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar
oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação
comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se
libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será
alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente.

Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter
condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade
para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e
de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do
processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo
isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a
valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar
homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam
clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar
oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e
disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas
fazer amigos e viver e atuar em comunidade.

De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência
ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o
empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não
comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez
corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais
resistem ao surgimento da sociedade- rede.

Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas
são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que
decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de
aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua
capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a
educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos
mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são
duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam
– sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu
caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de
leigos...

No entanto, neste momento estão sendo elaboraradas e testadas
metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn



                                    14
from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my
friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora
reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas
práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao
autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra-
escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém
na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o
conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem
constituir o padrão de organização das novas comunidades de
aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto-
aprendizagem e de comum-aprendizagem (5).




                                  15
Não-escolas: a escola é a rede

          Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)




Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que
andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente
porque não haverá ‘a’ educação.

O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito
totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o
conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode
existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de
processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade
de sociosferas.

O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença
de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada
que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a
Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos.

Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a
geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for
libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A
escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando
pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente
(em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-
convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem
ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.

Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades
desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem
escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que
ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das
comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede.

Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistadas
dentro da sociedade, que educam basicamente: na medida em que a
sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias
sociosferas (glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que
necessariamente se formam em seu seio.


                                    16
Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de
aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para
tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal.
Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as
sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas idéias e
inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think
tank).




                                 17
Matar a escola = matar o Buda

                    Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece




É difícil entender a natureza de uma não-escola. No mundo único as
pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer
sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas
(religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento
(mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam
comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por
meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande
narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam que
alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o
mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à
interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola!

É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas
mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar
uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os
significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a partir
do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais. Não há
significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive porque, a
rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas
por sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em que
tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam
continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear as
relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos que não é
fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação de arquivar o
passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que utilizamos são p-
based (baseadas em participação) e não i-based (baseadas em interação).

Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e
sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de
linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca.
Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não
como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação.

Na configuração de novos ambientes interativos de produção de
conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de
um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido
(até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de


                                      18
construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria explicativa
de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que diferencia
as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente conectados, de uma
escola, quer dizer, de uma igreja (7).

Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas
surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os de
fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de um
conjunto de idéias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos isso,
erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja.

Se você junta os que compartilham qualquer corpo de idéias (mesmo que
sejam idéias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo
expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está
fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou
pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo
ensinamento!

Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de
pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo que
foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a questão
é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar sistemas
hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você exige que
uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu como condição
para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir com ela), então
você não está realmente aberto à interação (com o outro-imprevisível):
você quer participação dos outros no seu espaço, o que é uma forma de
exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros
vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de
seita, de escola.

Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar
uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O
problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela)

Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e
reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado. Faça
uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola
desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem.
Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referêncial único: ou
seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para dar
lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas.




                                   19
O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha. Você
fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem nele,
você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar", aqui, é
empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa" (software).
Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de atribuições
de significados e, mais do que isso, de construção dos processos
particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir com quem
está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o programa (em
você). Ao carregar o programa, você carrega também sua linguagem
(script) e, além disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual.

Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com
qualquer construção conceitual que apresente os critérios epistemológicos
de coerência interna e completude. É verdade. Mas quando o sistema valida
seus argumentos internamente, estando os critérios de validação tão
implicados no que se quer validar e vice-versa (ou seja, estando a
epistemologia tão fundida à ontologia), a verificabilidade fica subordinada
(sub-ordenada) pela explicação auto-referente. É por isso que, em ciência,
não se pode abrir mão do critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo
status epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as
quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma explicação
devem sempre poder ser verificados por sujeitos que adotam outros
esquemas explicativos.

Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus
primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a explicação
freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar a explicação
freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para perceber os
fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer seres humanos
independentemente da explicação freudiana (e da existência de Freud),
então estou preso a um sistema incapaz de interagir com outras explicações
(externas às circularidades freudianas). E corro o risco de recair no
dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a
existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso
justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida, isso
ocorre com todos os sistemas auto-referentes, sobretudo na sua "primeira-
infância".

Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen
aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de
certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o
caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o




                                    20
Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos... Sim,
continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda.

Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que é,
inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma pessoa,
precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de uma
autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia sentido
para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte dessa
ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é não
constituir um grupo proprietário em torno de suas idéias, de abrir mão de
erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico para
propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por
"representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será pior –
chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de contorno opaca
quando precisamos de membranas.

Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar a
sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema
killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu
caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador que
roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar
a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento
transformado em ensinamento).

Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que
ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o
Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como prefiguração
do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai despertar
quando o Buda que está fora desaparecer como referência (externa porém
introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas, particularmente, no
contexto desta discussão, significa matar a escola como ordenação do
ensinamento abrindo possibilidades de formação de múltiplas comunidades
de aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em
um curso ou seguem um programa privando da convivência de um grupo
determinado.

Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected
Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto
de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga
a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas tradições
espirituais (todas estas são artifícios para administrar espiritualidades
conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas
do indivíduo, são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do



                                   21
ensinamento - e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso
mostrar que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e,
portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do aprendente:
aquele que matou o mestre não apenas quando matou a imagem idealizada
do mestre dentro de si (introjetada), mas quando matou a escola. E tudo
isso para quê? Ora, para que o Buda morto não renasça nas mãos dos que
o mataram.

Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de
mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem
mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação com
o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética para
a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como uma
pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes globais
está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um modelo
e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os
diversos modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de
prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e submetendo
seus programas à esse tipo de polinização complexa. Essa visão é chave
para não irmos parar de volta em algum lugar do passado: o processo é
fractal! Não é possível salvar o mundo de uma vez: só é possível salvá-lo
um instante de cada vez... (9) Mesmo porque não existe mais um mundo:
os mundos já são – e serão, cada vez mais – múltiplos.

Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que, se
abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o planeta
(harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou nos levar
para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro. Sobretudo porque
esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não podemos pretender levar
ninguém para lugar algum. A época em que vivemos é a época da
desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a hora de abrir mão
dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas
em torno de um objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’
sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva).

Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e
queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar
aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por quê?

Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes que
continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer mudanças
(que eles não podem, honestamente, saber quais são) em nome de uma
causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e as sociedades



                                    22
humanas     são   sistemas    complexos)  ocorrem,  em     boa   parte,
espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de
fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando
com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a
liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos fazer
isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes de
aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas.

Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não
podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um legado
baseado nas idéias de algum fundador. Para ser uma rede, o legado tem
que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado, modificado, sem
necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser rede a membrana
deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do escopo estabelecido
(posto que se será uma rede voluntariamente construída haverá um escopo
delimitado e algumas regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem
a ver com a adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é
claro. Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele
que não planejamos interagir, não pode haver rede (social distribuída).

Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta
fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como
desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão, desde
que esse conservar seja referente a um compartilhar um determinado
conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o desejo (dos
sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem mesmo o desejo de
conservar um modo de convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos)
que constitui a comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando
você interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a
produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta
sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais conteúdos,
as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está no terreno do
proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação de ensinamento, não
de aprendizagem).

As regras ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede
voluntariamente construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo
substantivo (e, portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por
estar em desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como
condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como fazem
as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento, inclusive as
escolas budistas que aconselham matar o Buda).




                                    23
Espiritualidade, não religião

Formas pós-religiosas de      espiritualidade,   livres   das   ordenações   das
burocracias sacerdotais




Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, formas pós-
religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-fluzz, quer dizer,
mais expressões do curso que flui nas relações entre os humanos e dos
humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia com um todo
cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades consumáveis na
interatividade ("terrestres" no sentido de serem realizáveis sem produzir
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos).

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja?

Humberto Maturana (2003) reinterpretou a origem das crenças místicas que
estão na base das experiências que dão significado à vida humana a partir
da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente haver)
uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que apresentavam
supostamente as sociedades agricultoras-coletoras incidentes na Europa
pré-patriarcal) (11).

O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de
modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da
nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos
programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa
"espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões.

A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma
religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes
como o único correto e plenamente verdadeiro" (12).

Com efeito, para ele,

      "No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-
      europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações
      místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção
      entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e
      falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de exclusão e
      negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios
      culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma


                                      24
comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças"
      verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de crentes] o
      corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja
      sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só
      ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças
      revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se
      apropriaram por meio da negação de outras crenças... A apropriação
      de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade
      universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma
      religião" (13).

Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado,
também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que
criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos
mundos que quisermos co-criar.

A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se
possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a
experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si
mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações
de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa, e
na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (14).

Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é
com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e sim
de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade.

Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que
abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda,
codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente
quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma
burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer
alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a
fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em
escrituras).

Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização
patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa
que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas.
Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical).




                                    25
As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o
universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" - com
formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social que
mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas, pelo
contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo que
achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho
evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma
descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas, depositadas
uma sobre a outra, milênio após milênio.

Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para se
perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado pela
direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição ocidental,
herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o caminho que
nos conduz para deus, representado em geral por um triângulo, passa entre
as duas colunas que se elevam do piso plano. E então encontramos o
triângulo com o vértice para cima, sobre o quadrado, o pentagrama
verticalmente orientado e muitas outras "orientações" que "norteiam" o
desenvolvimento dos rituais e das práticas mágicas. O conteúdo ideológico
que esses símbolos encarnam está inegavelmente associado à idéia de um
poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo exemplo. E há ainda
as escadas, muitas escadas, introduzidas por primeiro pelos templos
sumérios - os zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus
representando graus de subida; ou de descida.

Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal,
é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-se
aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical: as
fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções).
Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de
espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (15).
Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem
servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato
sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do
conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não
exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta
ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam a
mesma fé).




                                     26
Quem disse que os deuses não existem?

Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e
autocráticos como as religiões que os construíram




Os problemas com as igrejas (e religiões) erigidas no contra-fluzz não têm
nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das igrejas
(e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade humana,
muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E igrejas e
religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas (para a
rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses.

“Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta teria
sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus
correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal
pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as
massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém,
podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses não
existem?

Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os
deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao
longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus
comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a
natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como
modelos mentais, quer dizer, sociais (16).

Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos
natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de
programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será
constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e,
até, do que se codificará como norma, do que se congelará como instituição
e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus Agoraios
estava de fato presente naquela praça do mercado da velha Atenas
chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso?

Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses:
por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do
século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações
entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o
caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo


                                   27
uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os
deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus
representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina)
de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho. Quando
os gregos invocam Peitho, a persuação deificada, eles confrontam a idéia
autocrática de que a política era uma continuação da guerra por outros
meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (17):

      “No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro
      caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em
      torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens
      livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja,
      aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos
      negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em
      torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o
      conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo
      de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem
      violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em
      contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por
      completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre
      os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo,
      com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas,
      com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a
      política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida
      necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os
      quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo.
      Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e
      obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da
      persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”.

Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer,
deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político e
não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses
hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à
guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino).

Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é.
Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião
(institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da burocracia
sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem com a divindade,
isto é: para separar o ser humano da divindade; ou, como disse Jung, para
proteger o homem da experiência de deus, abrindo sulcos para fazer
escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o que é a mesma



                                      28
coisa – pavimentando com a crença um caminho para o futuro (e
conseqüentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo nosso estoque
de futuros possíveis, exterminando mundos).

Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões
foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as
religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus
propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não
existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida
algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum
tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva a
si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de
relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade hierárquica
ou a emersão de uma sociedade-em-rede.

Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os
deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições
hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados.
(Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum
desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como
veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas de
espiritualidade).

Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades
antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses.
Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa
tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na
Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou dedicadas
ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e Ur eram
de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta

A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os
seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses, para
ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar (ter
uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que
trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção,
adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral).

Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram
idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim, porém
belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram – ou se
manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos social. Não
eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do que os



                                     29
humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua “presença” não
era humanizante.

Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa
consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de
inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus que
hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de
segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso –
Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans
Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e então
mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada (coisa
que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só os
humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste!

Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a
sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente (estrutura
centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho acertou em cheio
o coração do problema quando disse: “não tenho nenhum Deus; desse
modo, não tenho nenhum programa para você no qual você possa ser
transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma quando identificou os
deuses das religiões com um programa, um programa verticalizador.

Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à
imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao
não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e
ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –, para
tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de outros
mundos possíveis.

Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e semelhança
dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos, por certo,
mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria nenhum
problema com deuses humanizados que não exigissem culto, obediência ou
subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele judeu marginal
que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado instrumentalizar
suas experiências de vida e convivência social para codificar doutrinas,
constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como? Atribuir a uma pessoa, com
exclusividade, um caráter divino, como fizeram, por alguma razão, seus
primeiros discípulos, não seria um contra-senso nos mundos altamente
conectados em que cada pessoa é uma singularidade em um mesmo tecido
(social), possuidora, portanto, do mesmo status (humano) de todas as
outras? Ora, William Blake, um poeta – porque os poetas são pessoas-fluzz




                                     30
– já resolveu essa questão para nós quando escreveu: “Jesus é o único
Deus. Assim como eu, assim como você”.

Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses
pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito
Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no meio
de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada algures
por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam que sejam
muitos para ser Deus”.

Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus
dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia faraônica.
Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às contingências de
distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses se modificam
quando modificamos o hardware. E consequentemente muda também o que
chamamos de espiritualidade.

Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado
centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações
religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas, cada
qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada
pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir, em
sintonia com as redes sociais em que está imersa; ou seja, convivendo-a.

No mundo único as pessoas viveram oprimidas por idéias totalizantes e
uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em
um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto – provenientes
da crença tola de que deus não existe, ditada por uma ciência promovida a
pansofia. Isso gerou um sem número de problemas, sobretudo psicológicos,
quando as pessoas passaram a reprimir sua espiritualidade por medo do
vexame e da reprovação dos bem-pensantes. Tal “verdade” supostamente
libertadora, revelada por uma ciência deslizada do seu escopo, baseada em
uma espécie de religião laica iluminista, era, na verdade, opressiva.
Libertadas desse bom-senso ateista as pessoas podem ter sua própria
experiência de deus (ou de qualquer ente ou processo que queiram escolher
para representar ou simbolizar um domínio mais amplo de relações de
existência no qual se sintam inseridas e possam viver tal inserção),
interagindo.

Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística. Como
disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em Diálogos com
cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje à percepção de
estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos descobrindo um



                                     31
vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo, estranho” (18). O que
diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as chances de vivermos esse
vínculo permanecendo do “lado de fora” do abismo, precavidos contra o
caos ou protegidos da interação.

Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da tradição
hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão Ehie Asher
Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita) posto que
estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-lugar (porque
o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o qual o marxista
heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O ateísmo no
cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá” (19) – não
pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-fluzz; ou, o
que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência mística ou
espiritual fluzz.

Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-based
e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que não nos
jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que tudo
arrasta para o futuro, alienando-nos do presente).

Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais)
remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem
rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados pelos
novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch, “o
melhor da religião é que ela produz hereges” (20).




                                    32
Ecclésias, não ordens sacerdotais

Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los
você tem que remover o firewall e expor-se à interação




Mas o que colocaremos no lugar das igrejas (e das religiões)? Ora, nada. O
velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as vezes de
igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o Estado-
nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam mais ou
menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas vão
continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas com as
que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds.

Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode –
se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente
conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as
pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens
sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de
aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos que
querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio mais
amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e amorosidades
mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a aumentar.
Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem – também não
haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua existência.

Ecclesias como assembléias de amantes, como redes (abertas) de
buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais
vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas
como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a
única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o tempo
todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contra-exemplo de
fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para
arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas
perderão relevância.

Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar
nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o
clustering, o swarming, o clonning o crunching e tantos outros que estão
implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no que
ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper, haverá
um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar do


                                    33
investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os protocolos
científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode simplesmente
viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’ sociais – a palavra,
assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em 1961 (21) – que se
formam em uma dimensão mística. Se você buscava um domínio mais
amplo de relações de existência para dar sentido à sua vida e vivê-la em
sintonia com essa realidade (avaliada por você, não importa, como
transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social!

O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos
interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a
transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com
você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para
achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao
fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo foi
apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas as
pessoas que estão em todos os mundos.

Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como herege.
Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são hereges os que
abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus diplomas e
títulos e se transformaram em catalisadores de processos de aprendizagem
em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em
rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos partidos, não
desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na base da
sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges os que
renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias),
refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e
viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades...

Mas cuidado! Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no
sentido em que a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em
que Ernst Bloch empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela
produz hereges”). São replicadores ou trancadores. No último meio século
tivemos ondas e ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo.
No fundo, o porvir radiante que anunciavam não era mais do que a
revivescência de uma ordem ancestral hierárquica.




                                     34
Não há uma ordem pré-existente

               A ordem está sempre sendo criada no presente da interação




O reflorescimento das idéias espiritualistas que ocorreu na New Age
provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando nas
praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos depois
(se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As pessoas
que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para suas vidas,
tanto em experiências meditativas de recolhimento individual, quanto em
ensaios coletivos de novos padrões de convivência social, queriam, no
fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-fluzz, mas que já
anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E saíam então para
todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres.

Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou
sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das idéias –
assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão –
de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas doutrinas,
seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que ofereciam
naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto, uma mesma
visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de vanguarda
interessados no diálogo entre ciência e religião quanto roqueiros, quase
todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos: a idéia de que
havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em alguma esfera
da realidade, oculta ou não acessível imediatamente.

Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer uma
sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados
superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One e,
para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos, técnicas
meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de iniciação.

Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha
acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou
com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque o
que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é muito,
muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do que tudo
que anunciaram os gurus da nova era.




                                   35
Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se
há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os pioneiros
da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram impelidos por
esse vento libertário, em parte sob a influência de obras disruptivas como
TAZ – Zona Autônoma Temporária (22) e CAOS – Os panfletos do
Anarquismo Ontológico (23), dois escritos seminais de Hakim Bey (1985) e
dos romances de ficção científica Neuromancer (24) de William Gibson
(1984) e Ilhas na Rede (25) de Bruce Sterling (1988) que, entre outros,
deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite disso, mas essa
influência foi decisiva para a criação das ferramentas interativas que
existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide Web), conquanto
não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais pioneiros e visionários,
em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao fecharem suas descobertas
(construindo programas proprietários e escondendo seus algoritmos) para
acumular suas fabulosas fortunas ou ao se deixarem contaminar pelas
idéias contraliberais que impulsionaram os movimentos antiglobalização no
dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de que “um outro mundo é possível”.
Se um herege inventa a sua própria ordem e quer que as pessoas passem a
seguí-la – quer transformando-as em usuários cativos de seus produtos,
quer arrebanhando-as em seus movimentos supostamente transformadores
– aí já deixa de ser herege e passa a ser um sacerdote, um burocrata a
serviço da reprodução do sistema que criou.

No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a
resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas, o
vento continuou a soprar.

Começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de mestre ou guru,
recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram estes os precursores
dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do outro lado”, não se vê
ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz. Fluzz significa que não
há uma ordem pre-existente em algum mundo invisível (da emanação, da
criação ou da formação). A ordem está sempre sendo criada no presente da
interação. É mais ou menos assim como imaginou Ilya Prigogine (1984),
destoando inclusive de outros cientistas envolvidos com tais especulações
(de David Bohn a Paul Davies, passando por Fritjof Capra): o universo é
criativo e “se cria à medida que avança” (26).

Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo.

Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em
Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez
tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que



                                    36
estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os cyberpunks
talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de onde (e para
onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa jornada
introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo liberador (27)
(uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu explorações em antigas
tradições espirituais (como o budismo e a cabala) para tentar captar-lhe o
sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra onde quer; você o escuta,
mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3: 8).

Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf
(TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl
(Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações,
contribuiram objetivamente para que hoje pudessemos reconfigurar a busca
(e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que aqueles
provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos Gates, dos
Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos outros
trancadores de códigos que vieram ou ainda virão).

Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não
existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um
diretório de registros akashikos) onde você possar buscar respostas para
suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas
do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas. Conhecimento
morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca espiritual, é sempre uma
interação. Nos Highly Connected Worlds toda busca é P2P: no seu mundo e
nos interworlds pelos quais você está navegando. A mesma busca, quando
repetida, fornece respostas necessariamente diferentes. E deixa o rastro da
pergunta. De sorte que as respostas são, no limite, combinações das
perguntas que estão sendo feitas. Perguntas interagindo e se polinizando
mutuamente para criar ordens inéditas.

O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-
polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que
deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta
interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-
caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta-
zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista
assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o
que significa que os caminhos também mudam continuamente com a
interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento
seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se
atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são,




                                    37
das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it
be (ou not to be – o que é a mesma coisa).

Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de
interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde ninguém
jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e colar os
cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a vigência do
mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não existem guias.
Não existe caminho”.




                                    38
Não-igrejas: porque não existe mais caminho

                                   O objetivo é ser pessoa, nada além disso




Fluzz também é: tudo está conectado. E se tudo está conectado por que os
seres humanos não estariam?

É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa
interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro.
Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser
humano é uma pequena sociedade” (28) pode significar, por um lado, que
os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados.
Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em
interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que
simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas.
Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há
espelhamento, é claro, porque há separação.

Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um
burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos, o
tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente dos Borgs,
como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente, unique.
Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos ser
pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da “mesma”
rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens, redes dentro
de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são vários. Chegar a
um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso, não condição de
partida.

Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da
individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho da
iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode mais ser
percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-espiritual
individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você compartilhamos o
mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um mesmo substrato:
singularidades em um tecido. Mas significa também, paradoxalmente, que
‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas como complexo psicológico
(como representação interiorizada), mas na rede, como realidade social.




                                    39
Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com
os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se
interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A
vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida social
(do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e exigia
consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o que
senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o que
vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto prevalece a
separação entre eu e o outro.

Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam, novos
caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual procurávamos no
meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a estar entre nós. Uma
nova topologia distribuída dos caminhos espirituais elimina os caminhos
únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os caminhos são
múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa dizer que não
existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os caminhos, nenhum
caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum caminho, a maldição
dos poetas" (29).

E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de
exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992),
dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a
interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não
existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por
fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o
significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’.
No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (30)

Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é
caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um
percurso, mas deixar-se-ir de encontro dos demais, abrindo as próprias
fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa
mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé
(a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.




                                    40
Máquinas para privatizar a política

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política
pública




No velho mundo fracamente conectado as pessoas erigiam corporações –
grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus interesses.
Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um mundo regido
pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os partidos como um
tipo especial de corporação: eles foram constituídos para fazer prevalecer
os interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas
com base em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de
idéias a partir das quais fosse possível conquistar e reter o poder para
tornar legítimo o exercício (ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do
ponto de vista das redes sociais distribuídas) de comandar e controlar os
outros.

Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o padrão
de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se pensa, os
partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também organizações
proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as castas sacerdotais
que erigiram o Estado.

Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera
pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe como
tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da
democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o
resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos
autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados continuaram
sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três séculos eles se
constituiram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como instâncias
públicas, mais ou menos democratizadas; embora continuassem infestados
por enclaves autocráticos privatizantes).

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política
pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz. Para
tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio (nas
democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua existência
legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política pública
no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém
fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se


                                      41
que as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em
um partido: uma espécie de agência de empregos estatais, uma
organização privada autorizada a disputar com outras organizações privadas
congêneres o acesso às instituições estatais reconhecidas legalmente como
públicas e, portanto, encarregada com exclusividade de fazer política
pública. Enxugando de toda literatura legitimatória as teorias liberais sobre
o papel dos partidos na democracia, o que sobra é mais ou menos isso aí.

Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao
exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos
privatiza a política. Ao se conferir aos partidos o condão de transformar
politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema.

As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas as
teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa
conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas políticas
representativas de regulação de conflitos. Para os defensores dessas
teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é, via de
regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos Protágoras).
Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam mais ou
menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves
autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do
que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha
direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem
sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos em
uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um papel
civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a religião:
pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo seria possível
em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse Estado seja
legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e períodicas e que os
governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas também, é
claro, pelas tais “elites civilizadoras”).

Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada
no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos altamente
conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as quais a
principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não pode ser o
resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos indivíduos que se
ilustraram e que se comprometeram a manter uma ordem capaz de garantir
aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles continuem a conformar sua
liberdade aos limites impostos pelos sistemas de poder que formalmente
permanecerem legitimados por eleições e respeitarem as leis. Isso, é claro,
deve ser garantido, mas não para ser reproduzido indefinidamente como é e



                                     42
sim para possibilitar que os cidadãos continuem - com liberdade -
inventando novas formas de regular seus conflitos.

Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-formal
da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como sistema
de governo ou modo político de administração do Estado) deverá dar lugar
a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no sentido
"forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver em suas
comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de projeto).

A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia
+democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma
imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles – do
qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por Althusius
(1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da democracia dos
modernos, por Rosseau (1754-1762), por Jefferson (1776) e por aquele
“network da Filadélfia” que conectava os redatores americanos da
Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos Federalistas
(1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791), por Tocqueville
(1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-1861), até chegar
às formas radicais antecipadas pela primeira vez por Dewey (1927-1939): a
democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, a democracia
como expressão da vida comunitária (31). Esta última será uma espécie de
metabolismo das redes mais distribuídas do que centralizadas, algo assim
como uma pluriarquia.

É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam
nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política.
Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma
ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste
caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república
platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que
foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política
realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a
democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma
vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela
primeira vez, pelos atenienses).




                                    43
Autocratizando a democracia

É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra
entre organizações privadas




A democracia foi a mais formidável antecipação de uma época-fluzz que já
ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção
fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido
para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo.

Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor
consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo.
Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente,
abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram
uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há
milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Como já foi
mencionado aqui, não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a
democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela
tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que
têm um senhor.

Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como foi
o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente
instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que
alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e
extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a
impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer planeta:
mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa biosférica
que envolve a Terra – conseguiu respirar.

Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não
se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de
qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de
qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que
nela se conformou um espaço público.

Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não
nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido
democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou
qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar
e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim


                                     44
para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano
do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto
inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela
só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza
John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a
ver com um modo-de-vida compartilhado (32). E é mais o “metabolismo”
de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em
conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista
particulares ou para satisfazer seus interesses (outra definição de partido).

A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em
um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso,
representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido
sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras
cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia já
surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como
modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas –
casuísticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder
do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de
conversações em um espaço (que se tornou) público (33). Sim, público não
é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou
decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma
exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo.
Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar
politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social,
gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância
de governança vigente.

Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da
guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o que
é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como esse
– baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (34) – é
contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de público.
Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da democracia
(uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são instituições contra-
fluzz, regressivas na medida em que concorrem para autocratizar a
democracia (35).




                                     45
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  • 1. Capítulo 7 | Alterando a estrutura das sociosferas AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 1
  • 2. 2
  • 3. 7 Alterando a estrutura das sociosferas Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Hakim Bey em Caos (1984) O melhor da religião é que ela produz hereges. Ernst Bloch em O ateísmo no cristianismo (1968) 3
  • 4. Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período. A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos analistas de governos e corporações, grandes movimentos subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular, distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos – fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está emergindo: Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e, sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno. Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das burocracias sacerdotais. Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de comunidades – que assumem a governança do seu próprio desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios. Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não pode paredes opacas – como novas comunidades de negócios do mundo que já se anuncia. 4
  • 5. Fascinante! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas: construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do caos... As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano. Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da experiência de empreender. Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos... Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as pessoas da experiência de fluzz! Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que, na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa. Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não- Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como escreveu Hakim Bey (1984) – engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos”. 5
  • 6. Aprendizagem, não ensino As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem - Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz. Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia- ensinante) x discente (massa-ensinada). A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal. Por que construímos tal aberração? Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder. Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de) 6
  • 7. estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição! Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento). Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes. O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1). O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores (verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a rede-mãe. As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento- ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido. Mas como twittou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma. 7
  • 8. Autodidatismo, não heterodidatismo Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito. Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente (2). Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata. Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário. Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê- las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que 8
  • 9. querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios. Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra. Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo). Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional. Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing). Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o 9
  • 10. conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”. É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades. Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez mais semântica (3). A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer. Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de outros processos em rede. O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem. Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo 10
  • 11. seguida pelo candidato. Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial para interpretar tais dados. Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final. 11
  • 12. Alterdidatismo, não heterodidatismo “Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos” De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem. Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões; reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções) (4). A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes). Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá- los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo. No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a 12
  • 13. escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos). O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem. Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem). É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender- fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação. Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada. Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém 13
  • 14. que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive. Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente. Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade. De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede. Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos... No entanto, neste momento estão sendo elaboraradas e testadas metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn 14
  • 15. from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra- escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto- aprendizagem e de comum-aprendizagem (5). 15
  • 16. Não-escolas: a escola é a rede Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede) Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação. O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade de sociosferas. O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos. Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender- convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes. Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede. Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistadas dentro da sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas (glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio. 16
  • 17. Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal. Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas idéias e inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think tank). 17
  • 18. Matar a escola = matar o Buda Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece É difícil entender a natureza de uma não-escola. No mundo único as pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas (religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento (mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam que alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola! É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a partir do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais. Não há significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive porque, a rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas por sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em que tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que utilizamos são p- based (baseadas em participação) e não i-based (baseadas em interação). Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca. Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação. Na configuração de novos ambientes interativos de produção de conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido (até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de 18
  • 19. construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que diferencia as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7). Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de um conjunto de idéias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja. Se você junta os que compartilham qualquer corpo de idéias (mesmo que sejam idéias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo ensinamento! Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você exige que uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu como condição para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir com ela), então você não está realmente aberto à interação (com o outro-imprevisível): você quer participação dos outros no seu espaço, o que é uma forma de exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de seita, de escola. Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela) Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado. Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem. Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referêncial único: ou seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para dar lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas. 19
  • 20. O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha. Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem nele, você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar", aqui, é empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa" (software). Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de atribuições de significados e, mais do que isso, de construção dos processos particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir com quem está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o programa (em você). Ao carregar o programa, você carrega também sua linguagem (script) e, além disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual. Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com qualquer construção conceitual que apresente os critérios epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-versa (ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo status epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma explicação devem sempre poder ser verificados por sujeitos que adotam outros esquemas explicativos. Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a explicação freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer seres humanos independentemente da explicação freudiana (e da existência de Freud), então estou preso a um sistema incapaz de interagir com outras explicações (externas às circularidades freudianas). E corro o risco de recair no dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida, isso ocorre com todos os sistemas auto-referentes, sobretudo na sua "primeira- infância". Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o 20
  • 21. Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos... Sim, continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda. Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de uma autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia sentido para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte dessa ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é não constituir um grupo proprietário em torno de suas idéias, de abrir mão de erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico para propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por "representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de contorno opaca quando precisamos de membranas. Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador que roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento transformado em ensinamento). Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como prefiguração do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai despertar quando o Buda que está fora desaparecer como referência (externa porém introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas, particularmente, no contexto desta discussão, significa matar a escola como ordenação do ensinamento abrindo possibilidades de formação de múltiplas comunidades de aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em um curso ou seguem um programa privando da convivência de um grupo determinado. Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas tradições espirituais (todas estas são artifícios para administrar espiritualidades conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas do indivíduo, são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do 21
  • 22. ensinamento - e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso mostrar que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e, portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do aprendente: aquele que matou o mestre não apenas quando matou a imagem idealizada do mestre dentro de si (introjetada), mas quando matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para que o Buda morto não renasça nas mãos dos que o mataram. Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação com o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética para a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como uma pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes globais está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um modelo e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os diversos modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e submetendo seus programas à esse tipo de polinização complexa. Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum lugar do passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de uma vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada vez mais – múltiplos. Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que, se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou nos levar para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro. Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A época em que vivemos é a época da desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a hora de abrir mão dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas em torno de um objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’ sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva). Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por quê? Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes que continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer mudanças (que eles não podem, honestamente, saber quais são) em nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e as sociedades 22
  • 23. humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte, espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas. Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um legado baseado nas idéias de algum fundador. Para ser uma rede, o legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado, modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do escopo estabelecido (posto que se será uma rede voluntariamente construída haverá um escopo delimitado e algumas regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem a ver com a adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é claro. Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele que não planejamos interagir, não pode haver rede (social distribuída). Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão, desde que esse conservar seja referente a um compartilhar um determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o desejo (dos sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem mesmo o desejo de conservar um modo de convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos) que constitui a comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando você interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais conteúdos, as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está no terreno do proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação de ensinamento, não de aprendizagem). As regras ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e, portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento, inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda). 23
  • 24. Espiritualidade, não religião Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das burocracias sacerdotais Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, formas pós- religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-fluzz, quer dizer, mais expressões do curso que flui nas relações entre os humanos e dos humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia com um todo cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades consumáveis na interatividade ("terrestres" no sentido de serem realizáveis sem produzir anisotropias no espaço-tempo dos fluxos). Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja? Humberto Maturana (2003) reinterpretou a origem das crenças místicas que estão na base das experiências que dão significado à vida humana a partir da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente haver) uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que apresentavam supostamente as sociedades agricultoras-coletoras incidentes na Europa pré-patriarcal) (11). O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa "espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões. A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro" (12). Com efeito, para ele, "No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo- europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma 24
  • 25. comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças" verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de crentes] o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças... A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião" (13). Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado, também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos mundos que quisermos co-criar. A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (14). Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e sim de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade. Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda, codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em escrituras). Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas. Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical). 25
  • 26. As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" - com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social que mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas, pelo contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo que achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas, depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio. Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para se perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado pela direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição ocidental, herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o caminho que nos conduz para deus, representado em geral por um triângulo, passa entre as duas colunas que se elevam do piso plano. E então encontramos o triângulo com o vértice para cima, sobre o quadrado, o pentagrama verticalmente orientado e muitas outras "orientações" que "norteiam" o desenvolvimento dos rituais e das práticas mágicas. O conteúdo ideológico que esses símbolos encarnam está inegavelmente associado à idéia de um poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas, introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus representando graus de subida; ou de descida. Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal, é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-se aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical: as fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções). Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (15). Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam a mesma fé). 26
  • 27. Quem disse que os deuses não existem? Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os construíram Os problemas com as igrejas (e religiões) erigidas no contra-fluzz não têm nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das igrejas (e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade humana, muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E igrejas e religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas (para a rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses. “Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta teria sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém, podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses não existem? Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como modelos mentais, quer dizer, sociais (16). Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e, até, do que se codificará como norma, do que se congelará como instituição e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus Agoraios estava de fato presente naquela praça do mercado da velha Atenas chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso? Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses: por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo 27
  • 28. uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina) de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho. Quando os gregos invocam Peitho, a persuação deificada, eles confrontam a idéia autocrática de que a política era uma continuação da guerra por outros meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (17): “No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”. Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer, deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político e não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino). Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é. Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião (institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da burocracia sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem com a divindade, isto é: para separar o ser humano da divindade; ou, como disse Jung, para proteger o homem da experiência de deus, abrindo sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o que é a mesma 28
  • 29. coisa – pavimentando com a crença um caminho para o futuro (e conseqüentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo nosso estoque de futuros possíveis, exterminando mundos). Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva a si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade hierárquica ou a emersão de uma sociedade-em-rede. Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados. (Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas de espiritualidade). Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses. Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou dedicadas ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e Ur eram de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses, para ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar (ter uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção, adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral). Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim, porém belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram – ou se manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos social. Não eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do que os 29
  • 30. humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua “presença” não era humanizante. Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus que hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso – Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e então mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada (coisa que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só os humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste! Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente (estrutura centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho acertou em cheio o coração do problema quando disse: “não tenho nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você no qual você possa ser transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma quando identificou os deuses das religiões com um programa, um programa verticalizador. Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –, para tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de outros mundos possíveis. Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e semelhança dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos, por certo, mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria nenhum problema com deuses humanizados que não exigissem culto, obediência ou subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele judeu marginal que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado instrumentalizar suas experiências de vida e convivência social para codificar doutrinas, constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como? Atribuir a uma pessoa, com exclusividade, um caráter divino, como fizeram, por alguma razão, seus primeiros discípulos, não seria um contra-senso nos mundos altamente conectados em que cada pessoa é uma singularidade em um mesmo tecido (social), possuidora, portanto, do mesmo status (humano) de todas as outras? Ora, William Blake, um poeta – porque os poetas são pessoas-fluzz 30
  • 31. – já resolveu essa questão para nós quando escreveu: “Jesus é o único Deus. Assim como eu, assim como você”. Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no meio de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada algures por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam que sejam muitos para ser Deus”. Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia faraônica. Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às contingências de distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses se modificam quando modificamos o hardware. E consequentemente muda também o que chamamos de espiritualidade. Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas, cada qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir, em sintonia com as redes sociais em que está imersa; ou seja, convivendo-a. No mundo único as pessoas viveram oprimidas por idéias totalizantes e uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto – provenientes da crença tola de que deus não existe, ditada por uma ciência promovida a pansofia. Isso gerou um sem número de problemas, sobretudo psicológicos, quando as pessoas passaram a reprimir sua espiritualidade por medo do vexame e da reprovação dos bem-pensantes. Tal “verdade” supostamente libertadora, revelada por uma ciência deslizada do seu escopo, baseada em uma espécie de religião laica iluminista, era, na verdade, opressiva. Libertadas desse bom-senso ateista as pessoas podem ter sua própria experiência de deus (ou de qualquer ente ou processo que queiram escolher para representar ou simbolizar um domínio mais amplo de relações de existência no qual se sintam inseridas e possam viver tal inserção), interagindo. Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística. Como disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em Diálogos com cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje à percepção de estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos descobrindo um 31
  • 32. vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo, estranho” (18). O que diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as chances de vivermos esse vínculo permanecendo do “lado de fora” do abismo, precavidos contra o caos ou protegidos da interação. Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da tradição hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão Ehie Asher Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita) posto que estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-lugar (porque o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o qual o marxista heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O ateísmo no cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá” (19) – não pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-fluzz; ou, o que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência mística ou espiritual fluzz. Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-based e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que não nos jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que tudo arrasta para o futuro, alienando-nos do presente). Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais) remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados pelos novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch, “o melhor da religião é que ela produz hereges” (20). 32
  • 33. Ecclésias, não ordens sacerdotais Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação Mas o que colocaremos no lugar das igrejas (e das religiões)? Ora, nada. O velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as vezes de igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o Estado- nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam mais ou menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas vão continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas com as que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds. Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode – se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos que querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio mais amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e amorosidades mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a aumentar. Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem – também não haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua existência. Ecclesias como assembléias de amantes, como redes (abertas) de buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o tempo todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contra-exemplo de fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas perderão relevância. Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o clustering, o swarming, o clonning o crunching e tantos outros que estão implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no que ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper, haverá um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar do 33
  • 34. investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os protocolos científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode simplesmente viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’ sociais – a palavra, assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em 1961 (21) – que se formam em uma dimensão mística. Se você buscava um domínio mais amplo de relações de existência para dar sentido à sua vida e vivê-la em sintonia com essa realidade (avaliada por você, não importa, como transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social! O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo foi apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas as pessoas que estão em todos os mundos. Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como herege. Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são hereges os que abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus diplomas e títulos e se transformaram em catalisadores de processos de aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos partidos, não desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges os que renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias), refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades... Mas cuidado! Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”). São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o porvir radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de uma ordem ancestral hierárquica. 34
  • 35. Não há uma ordem pré-existente A ordem está sempre sendo criada no presente da interação O reflorescimento das idéias espiritualistas que ocorreu na New Age provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando nas praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos depois (se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As pessoas que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para suas vidas, tanto em experiências meditativas de recolhimento individual, quanto em ensaios coletivos de novos padrões de convivência social, queriam, no fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-fluzz, mas que já anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E saíam então para todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres. Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das idéias – assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão – de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas doutrinas, seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que ofereciam naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto, uma mesma visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de vanguarda interessados no diálogo entre ciência e religião quanto roqueiros, quase todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos: a idéia de que havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em alguma esfera da realidade, oculta ou não acessível imediatamente. Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer uma sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One e, para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos, técnicas meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de iniciação. Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque o que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é muito, muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do que tudo que anunciaram os gurus da nova era. 35
  • 36. Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os pioneiros da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram impelidos por esse vento libertário, em parte sob a influência de obras disruptivas como TAZ – Zona Autônoma Temporária (22) e CAOS – Os panfletos do Anarquismo Ontológico (23), dois escritos seminais de Hakim Bey (1985) e dos romances de ficção científica Neuromancer (24) de William Gibson (1984) e Ilhas na Rede (25) de Bruce Sterling (1988) que, entre outros, deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite disso, mas essa influência foi decisiva para a criação das ferramentas interativas que existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide Web), conquanto não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais pioneiros e visionários, em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao fecharem suas descobertas (construindo programas proprietários e escondendo seus algoritmos) para acumular suas fabulosas fortunas ou ao se deixarem contaminar pelas idéias contraliberais que impulsionaram os movimentos antiglobalização no dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de que “um outro mundo é possível”. Se um herege inventa a sua própria ordem e quer que as pessoas passem a seguí-la – quer transformando-as em usuários cativos de seus produtos, quer arrebanhando-as em seus movimentos supostamente transformadores – aí já deixa de ser herege e passa a ser um sacerdote, um burocrata a serviço da reprodução do sistema que criou. No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas, o vento continuou a soprar. Começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de mestre ou guru, recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram estes os precursores dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do outro lado”, não se vê ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz. Fluzz significa que não há uma ordem pre-existente em algum mundo invisível (da emanação, da criação ou da formação). A ordem está sempre sendo criada no presente da interação. É mais ou menos assim como imaginou Ilya Prigogine (1984), destoando inclusive de outros cientistas envolvidos com tais especulações (de David Bohn a Paul Davies, passando por Fritjof Capra): o universo é criativo e “se cria à medida que avança” (26). Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo. Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que 36
  • 37. estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os cyberpunks talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de onde (e para onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa jornada introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo liberador (27) (uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu explorações em antigas tradições espirituais (como o budismo e a cabala) para tentar captar-lhe o sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra onde quer; você o escuta, mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3: 8). Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf (TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl (Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações, contribuiram objetivamente para que hoje pudessemos reconfigurar a busca (e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que aqueles provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos Gates, dos Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos outros trancadores de códigos que vieram ou ainda virão). Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um diretório de registros akashikos) onde você possar buscar respostas para suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas. Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas necessariamente diferentes. E deixa o rastro da pergunta. De sorte que as respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar ordens inéditas. O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador- polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no- caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta- zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o que significa que os caminhos também mudam continuamente com a interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, 37
  • 38. das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it be (ou not to be – o que é a mesma coisa). Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e colar os cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a vigência do mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não existem guias. Não existe caminho”. 38
  • 39. Não-igrejas: porque não existe mais caminho O objetivo é ser pessoa, nada além disso Fluzz também é: tudo está conectado. E se tudo está conectado por que os seres humanos não estariam? É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro. Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser humano é uma pequena sociedade” (28) pode significar, por um lado, que os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados. Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas. Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há espelhamento, é claro, porque há separação. Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos, o tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente dos Borgs, como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente, unique. Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos ser pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da “mesma” rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens, redes dentro de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são vários. Chegar a um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso, não condição de partida. Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho da iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode mais ser percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-espiritual individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você compartilhamos o mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um mesmo substrato: singularidades em um tecido. Mas significa também, paradoxalmente, que ‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas como complexo psicológico (como representação interiorizada), mas na rede, como realidade social. 39
  • 40. Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida social (do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e exigia consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o que senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o que vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto prevalece a separação entre eu e o outro. Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam, novos caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual procurávamos no meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a estar entre nós. Uma nova topologia distribuída dos caminhos espirituais elimina os caminhos únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os caminhos são múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa dizer que não existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os caminhos, nenhum caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum caminho, a maldição dos poetas" (29). E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992), dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’. No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (30) Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um percurso, mas deixar-se-ir de encontro dos demais, abrindo as próprias fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé (a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido. 40
  • 41. Máquinas para privatizar a política Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública No velho mundo fracamente conectado as pessoas erigiam corporações – grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus interesses. Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um mundo regido pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os partidos como um tipo especial de corporação: eles foram constituídos para fazer prevalecer os interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas com base em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de idéias a partir das quais fosse possível conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício (ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes sociais distribuídas) de comandar e controlar os outros. Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o padrão de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se pensa, os partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também organizações proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as castas sacerdotais que erigiram o Estado. Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe como tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados continuaram sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três séculos eles se constituiram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como instâncias públicas, mais ou menos democratizadas; embora continuassem infestados por enclaves autocráticos privatizantes). Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz. Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio (nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se 41
  • 42. que as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em um partido: uma espécie de agência de empregos estatais, uma organização privada autorizada a disputar com outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições estatais reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia, o que sobra é mais ou menos isso aí. Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos privatiza a política. Ao se conferir aos partidos o condão de transformar politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema. As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas as teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas políticas representativas de regulação de conflitos. Para os defensores dessas teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é, via de regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos Protágoras). Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam mais ou menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos em uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um papel civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a religião: pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo seria possível em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse Estado seja legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e períodicas e que os governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas também, é claro, pelas tais “elites civilizadoras”). Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos altamente conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as quais a principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não pode ser o resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos indivíduos que se ilustraram e que se comprometeram a manter uma ordem capaz de garantir aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles continuem a conformar sua liberdade aos limites impostos pelos sistemas de poder que formalmente permanecerem legitimados por eleições e respeitarem as leis. Isso, é claro, deve ser garantido, mas não para ser reproduzido indefinidamente como é e 42
  • 43. sim para possibilitar que os cidadãos continuem - com liberdade - inventando novas formas de regular seus conflitos. Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-formal da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como sistema de governo ou modo político de administração do Estado) deverá dar lugar a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no sentido "forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver em suas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de projeto). A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia +democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles – do qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por Althusius (1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da democracia dos modernos, por Rosseau (1754-1762), por Jefferson (1776) e por aquele “network da Filadélfia” que conectava os redatores americanos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos Federalistas (1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791), por Tocqueville (1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-1861), até chegar às formas radicais antecipadas pela primeira vez por Dewey (1927-1939): a democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, a democracia como expressão da vida comunitária (31). Esta última será uma espécie de metabolismo das redes mais distribuídas do que centralizadas, algo assim como uma pluriarquia. É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política. Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela primeira vez, pelos atenienses). 43
  • 44. Autocratizando a democracia É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra entre organizações privadas A democracia foi a mais formidável antecipação de uma época-fluzz que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo. Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Como já foi mencionado aqui, não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor. Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como foi o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer planeta: mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa biosférica que envolve a Terra – conseguiu respirar. Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público. Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim 44
  • 45. para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política. Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (32). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus interesses (outra definição de partido). A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso, representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia já surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas – casuísticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público (33). Sim, público não é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância de governança vigente. Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o que é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como esse – baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (34) – é contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de público. Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da democracia (uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são instituições contra- fluzz, regressivas na medida em que concorrem para autocratizar a democracia (35). 45