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11/09/2015 O Retardo Mental na Família: construindo caminhos alternativos
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Abril de 2014 ­ Vol.19 ­ Nº 4
Psicologia Clínica
O RETARDO MENTAL NA FAMÍLIA: CONSTRUINDO CAMINHOS ALTERNATIVOS
Braz Werneck Filho
Mestre em Psicologia
Terapeuta Familiar e de Casal
Terapeuta Cognitivo­Comportamental
Resumo
O objetivo deste estudo é discutir a condução da primeira demanda no tratamento psicológico de um paciente com
retardo  mental,  levado  ao  consultório  por  seus  pais  ou  responsáveis.  Trazemos  aqui  a  ideia  de  um  olhar  maia
aprofundado para questões familiares. A visão sistêmica nos mostra que um olhar para o contexto em que os problemas
ou sintomas se apresentam pode trazer mais elucidações para o caso do que um simples tratamento focado no que a
família  denomina  como  problema.  Pensamos  que  muitas  vezes  o  retardo  mental  em  um  membro  da  família  possa
mascarar uma problemática que envolva a real complexidade que é uma convivência entre seres humanos. Sugerimos
assim,  um  ohar  mais  aprofundado  nos  momentos  de  avaliação,  para  que  sejam  percebidas  nuances  de  demandas
clínicas encobertas, como aconteceu no caso aqui apresentado.
Descritores: retardo mental, terapia familiar, teoria sistêmica.
 
Introdução
O trabalho psicoterapêutico com crianças e adolescentes é notoriamente vinculado ao atendimento, ou pelo menos, à
escuta das figuras responsáveis. As razões para isso não são apenas aquelas orientadas pela situação legal de um menor
de idade, ou de um dependente por incapacidade, mas também os vários pontos de sua história que se revelam
importantes numa avaliação psicológica, principalmente de crianças, e que só podem ser esclarecidos em detalhes
pelos responsáveis.
            Acontece que a população que depende de pais ou de algum tipo de tutor é maior do que a amostra de crianças
e adolescentes. Entram nessa conta os adultos jovens, que por vários motivos, principalmente psicológicos e sociais,
ainda são dependentes dos pais, exercendo a função de adolescentes e também os dependentes por necessidade, ou seja,
aqueles que não teriam condição de se manter de forma independente. Nesta amostra entram os deficientes mentais,
que podem ser crianças, adolescentes ou adultos.  Este trabalho aborda especificamente um caso clínico de terapia
Volume 20 ­ Agosto de 2015
Editor: Giovanni Torello
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familiar onde um dos membros da família é um deficiente mental.
Ao longo de minha experiência no atendimento cada vez mais frequente a crianças, jovens adultos deficientes e
adolescentes, venho observando que os pais e demais figuras responsáveis, muitas vezes não são apenas aqueles que
nos auxiliam com informações na elaboração do projeto terapêutico. Muitas vezes, e até com a contribuição dos filhos,
concluímos que pai e mãe ou a família inteira possuem a mesma indicação de terapia que pensavam ser exclusiva para
seus dependentes, o que gera no processo uma nova e trabalhosa demanda clínica.
            Para este estudo, como de costume, procuro trazer algumas reflexões que tenham brotado a partir de
atendimentos específicos, com perguntas e dificuldades surgidas nos encontros terapêuticos. A partir da constatação da
existência de subsistemas como elementos influentes na problemática de determinadas famílias, examinamos situações
que amiúde ocorrem e se tornam fonte de problemas, mas também de soluções.
            Neste trabalho, faz­se uma reflexão sobre uma situação clínica sobremaneira importante: os pais buscam a
terapia para seu filho deficiente mental, que tem apresentado também comportamento agressivo, além de acrescentar
situações constrangedoras e bizarras à rotina da família.
            A partir das reflexões sobre o caso, visamos a fomentar uma discussão sobre a indicação de terapia familiar, ou
de casal, ou mesmo individual, a começar pelo momento em que um filho é apontado como o ponto de concentração do
problema familiar. Consideramos esta uma conclusão simplista e buscamos sempre uma abordagem que considere a
complexidade do ser humano e do sistema familiar.
 
 
Caso Clínico – A Família de Claudio[1]
A família de Claudio chega ao consultório com o desejo de encontrar uma terapia para ele. Claudio é portador de
Síndrome de Down e tem apresentado comportamento agressivo com frequência.
            A família é formada pelos pais separados de Claudio, sua irmã e ele. Claudio tem 27 anos, teve complicações
cardíacas na infância e não frequentou nenhuma instituição por mais de um ou dois anos. Não se escolarizou e seu
déficit cognitivo é acentuado, apresentando um funcionamento cognitivo pré­operatório, com algumas características
ainda sensório­motoras.
Sua irmã, Claudia, tem 22 anos e se casou há cerca de um mês. Atualmente, está desempregada e relata que é
por decisão da família. Com a separação dos pais, Claudia foi requisitada pelo pai para ficar como uma espécie de
cuidadora do irmão, auxiliando a mãe nesta função. Assim, a rotina de Claudia se divide entre sua casa e a da mãe, par
aonde vai todos os dias da semana, em horário comercial, auxiliando nas tarefas domésticas e nos cuidados com
Claudio.
            Maria, a mãe, tem 49 anos e apresenta quadro de estresse agudo. Tem sofrido com sintomas de fibromialgia, e
não tem conseguido sustentar os afazeres domésticos. Maria demonstra dificuldade em lidar com a separação e nomeia
o ex­marido, Carlos, ainda como responsável pela família.
            Carlos mora em Angra dos Reis e é o mantenedor financeiro da família. Separado da mãe de seus filhos há
cerca de oito anos, se faz presente em todos os eventos familiares e faz questão de dar conforto financeiro à família.
Concordou com o encontro familiar e foi um dos que mais falou durante as entrevistas iniciais.
            Um detalhe importante é que Claudia trabalhava com o pai em uma de suas lojas de produtos de alimentação. O
pai queria que ela assumisse a maior parte das lojas, mas ela se nega a acatar tal decisão. Este fato, aliado ao casamento
de Claudia com um homem que o pai não aprova, faz com que a relação entre pai e filha seja sempre muito tensa. Esta
tensão foi percebida por mim logo no primeiro encontro.
 
O Funcionamento da Família
            A questão que mais aparece em torno da família de Claudio é a dificuldade que todos começam a apresentar
para lidar com o comportamento agressivo dele. Na primeira entrevista, o pai começa a falar sobre o que a mãe precisa
mudar em seu comportamento para que o filho “melhore” (sic). Outra coisa que Carlos afirma constantemente, com
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veemência, é que a filha “não quer nada e gosta da boa vida” (sic) que ele proporciona, se referindo ao salário que ele
paga para que a filha ajude a mãe a cuidar de Claudio.
            A mãe de Claudio, embora aceite a separação, se mostra desejosa da companhia do ex­marido, constantemente
falando da necessidade que o filho tem da presença do pai. Com relação à situação da filha, ela relata que Claudia
realmente tem problemas em assumir as “responsabilidades da vida”, que não tem uma boa relação com o pai e que
não gosta de ser apenas cuidadora do irmão. Acontece que o conforto financeiro proporcionado pelo pai, segundo a
mãe, exerce algum poder sobre ela, fazendo com que ela aceite permanecer nesse lugar, mesmo sem fazer tudo o que o
pai gostaria que fizesse.
            Durante o período de entrevistas iniciais, fiz um atendimento individual com a mãe. Nesse encontro, ela afirma
que gostaria muito que sua filha fizesse uma terapia para “poder se tornar uma pessoa mais afetiva” (sic). Disse que
Claudia não demonstrava amo nem carinho pela família, principalmente pelo pai. Logo em seguida, começou a contar
detalhes de uma parte da história familiar que não envolvia o interesse pela terapia de Claudio, mas que me pareceu tão
importante quanto.
Segundo a mãe, o nascimento e a constatação da síndrome em Claudio provocaram no pai uma frustração muito
grande, tendo o pai ficado “meses chorando pelos cantos e sem querer fazer nada” (sic). Aos poucos, a vida foi
seguindo seu curso e eles foram se acostumando à rotina cansativa de cuidar de uma criança em tais condições.
O que poderia ter se transformado em rejeição paterna, tornou­se um amor incondicional, e segundo Maria,
Carlos sempre se referia ao filho como seu bebê, até que o menino já estivesse com cerca de oito anos de idade.
            A segunda grande frustração foi com o nascimento de Claudia, quando o pai esperava claramente outro menino.
Maria conta que ele sempre quis um filho para quem pudesse ensinar o seu ofício e ficar em seu lugar para cuidar da
família. Com a chegada de Claudia e com a decisão do casal de não ter mais filhos, a ideia do herdeiro homem que
assumiria os negócios da família teve que ser revista. Foi quando Carlos começou a apostar em sua filha para cuidar da
empresa da família, para cuidar de Claudio e para cuidar da mãe, que já começava a apresentar problemas de saúde.
            A partir dessa conversa com Maria, decidi conversar separadamente com cada um dos membros da família. Em
meu encontro com Carlos, ele se manteve cooperativo, apesar de sua escuta limitada. Sua atitude era de quem sabia
exatamente como deveria agir e como delegar as responsabilidades para resolver todos os problemas da família. Ainda
assim, se mostrava cortês e educado.
A grande mudança que ocorreu em minha conversa com Carlos veio depois que eu perguntei sobre sua história.
Ele disse que tinha sido criado “na base da porrada” (sic) pelos vários padrastos que tivera, não tendo conhecido seu
pai. Fugira de casa aos doze anos e começara a trabalhar e a viver como menino de rua.
Aos dezesseis, conseguiu seu primeiro emprego de auxiliar de escritório e trabalhava também como entregador
de jornais. Disse que a melhor maneira de não dormir na rua era ficar o dia inteiro acordado. Passou cerca de cinco
anos com essa rotina.
Com vinte anos, foi contratado por uma grande empresa para lidar com documentos importantes, num cargo de
confiança, para o qual fora indicado por seu primeiro patrão. Progrediu nessa grande empresa; em um ano não
precisava mais entregar jornais e conseguiu alugar uma pensão para dormir. O fato é que em menos de três anos,
Carlos conseguiu uma radical mudança em sua qualidade de vida.
Em sete anos no emprego novo, conseguiu montar sua própria empresa, no ramo de alimentos, mesmo ainda
trabalhando com o chefe que, segundo ele, confiava nele e o incentivava a deixar de ser empregado. Com vinte e oito
anos, sua vida financeira estava praticamente tranquila.
            Hoje, Carlos é dono de algumas lojas pelo estado do Rio de Janeiro e amplia o seu negócio para Minas Gerais e
São Paulo. Em seu discurso aparece frequentemente a ideia de que não contou com a ajuda de ninguém e nunca teve
regalias. Além disso, relata que nunca teve um lar carinhoso, assim como não recebeu carinho ou amor de sua mãe,
muito menos de seu pai.
            Outro dado de grande importância na conversa com Carlos diz respeito à sua versão da relação que mantém
com a filha. Ele relata que ela está vivendo muito bem, mas nas costas dele. Ele escolheu dar a ela uma remuneração
para que ela não trabalhasse fora, mas sim, ajudasse a mãe nos cuidados com Claudio. Para ele, a filha não está
correspondendo às expectativas e isso faz com que ele a avalie de forma negativa. Essa avaliação interfere na relação
do pai com a filha, mas vai além, pois provoca brigas entre todos. Essas brigas são o principal gatilho para o
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comportamento agressivo de Claudio que, apesar de não ter o pensamento suficientemente organizado para discutir e
expor opiniões, manifesta seu desagrado com muita propriedade e coerência. O grande problema parece ser o exagero.
            Quando entrevistei Claudia, individualmente, notei que ela falava comigo sobre a história de sua família com
certo distanciamento afetivo, apesar de não aparecerem características psicopatológicas. Pergunto sobre o seu
envolvimento afetivo com a família. Ela me responde que está muito envolvida, mas sabe que não demonstra como
todo mundo o amor que sente por mãe e irmão.
            A partir desse instante, posso direcionar a conversa para sua relação com o pai, visto que ela não tenha
declarado para mim o seu amor por ele. Aparentemente cuidadosa, Claudia começa a falar sobre sua história com o pai.
Desde que era criança, segundo ela, não recebeu carinho dele. Em sua primeira infância, as recordações remetem a
cenas em que ela foi preterida pelo pai e também pela mãe, por causa das necessidades de seu irmão mais velho.
Sempre sonhara em ser “a princesinha do papai” (sic) até cerca de onze anos de idade. Seu relato vem permeado por
certa mágoa contida, não só em relação ao pai, mas também à mãe.
            Aos poucos, Claudia vai se autorizando a falar mais e, em pouco tempo de conversa, parece mais à vontade
para falar do que sente. Saiu do lugar de preservar a mãe e de atacar o pai. Começa a falar sobre as coisas que
aconteceram com ela. Sente que foi a grande decepção de seu pai, pois ele passou a depositar nela a expectativa de
alguém que cuidasse dos negócios da família.
            Em determinado momento, pergunto se ela já havia tentado fazer terapia antes. Ela diz que sim, mas que era
muito nova e não gostava, porque ó ia obrigada pela mãe. Com o continuar da conversa, Claudia me conta que nunca
teve muitos amigos e sempre se achou muito feia. Em sua adolescência, o pai não a deixava sair de casa e ela teve eu
pedir permissão para sair até se casar. Seu pai e seu marido não se falam. A relação com o pai hoje, é de altos e baixos.
Costuma ouvir e suportar as críticas veementes que ele faz por certo tempo, mas depois diz que explode e briga com
ele e com todos. Também relata que os principais momentos de agressividade do irmão acontecem depois de uma briga
em casa.
            Após a conversa com Claudia, chamo todos ao consultório, inclusive Claudio, para uma conversa com a
família. Claudio se mostra insatisfeito, mas respeita o momento do encontro, interrompe algumas vezes, mas cede às
intervenções do pai e da mãe. No entanto, o mesmo não ocorre quando Claudia interpela os pais. Eles começam a
discutir de forma desorganizada e a aumentar o volume de suas vozes. Ao mesmo tempo, Claudio começa a ficar
agitado. Quando eu identifico que ele está próximo de se tornar agressivo, corto o movimento de todos e peço para o
pai descer com o filho, respeitando a deia que eles têm de que o filho é quem precisa de terapia e, ao mesmo tempo,
ficando com as pessoas da família que parecem ter melhor escuta.
            Maria e Claudia se mostram surpresas quando eu digo, de forma contundente que quem eu acho que menos se
beneficiaria de uma psicoterapia seria Claudio. Elas contestam, argumentando com a agressividade dele e dizendo que
não sabem mais o que fazer. Eu digo que elas não sabem o que fazer, o pai não sabe o que fazer. O único que parece
saber o que fazer é Claudio. Quando ele se torna agressivo costuma conseguir o que quer.
            Com essa intervenção consegui desarmar as duas, que já não estavam tão armadas assim, para pensar em novos
acordos que pudessem fazer sentido para o todo familiar, para todas as ideias que pudessem brotar sobre os problemas.
Afinal, o que menos aparecera em nossas conversas tinha sido a agressividade de Claudio. Indiquei para ele um
atendimento em uma instituição especializada em saúde mental, que funcionava com o regime de oficinas terapêuticas
e escolarização. Indiquei que a família começasse a fazer terapia familiar, além de terapia individual para Claudia, já
que Maria vinha sendo acompanhada por um psiquiatra, também psicoterapeuta. Em outro momento, fiz a indicação da
terapia individua para Carlos, além da terapia familiar, visto que ele não havia construído nova família e que se
mantivesse presente três ou quatro vezes por semana na casa de Maria.
            Todos aceitaram a proposta, mas ainda não pude conferir se vão fazer com que ela funcione de verdade.
 
 
Discussão
Em meu primeiro mês como estagiário de psicologia, presenciei uma cena que marcaria toda a minha vida profissional
e também minhas concepções sobre as relações familiares.
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A mãe de um filho autista, um garoto de treze anos com déficit cognitivo acentuado e com alterações severas de
comportamento, quando convidada pela coordenadora do grupo onde eu trabalhava como auxiliar de oficinas
terapêuticas, aceitou prontamente o convite para uma reunião com a equipe. Em poucos minutos de conversa com a
coordenadora a mulher começou a falar, de forma menos pomposa do que a que demonstrava nas reuniões com todos
os pais.
Em dado momento a mãe soltou uma frase impactante, da qual não me lembro textualmente, mas trazia a ideia
de que ela, mãe, já pensara milhares de vezes em como teria sido melhor a sua vida se seu filho tivesse morrido no
parto. Na hora em que ouvi o que ela dizia, me lembro de como fiquei revoltado com uma mãe que poderia desejar a
morte de um filho. Que coisa mais desumana!
            No entanto, quando conversamos, em reunião, sobre a entrevista da mãe, a primeira coisa que nossa
coordenadora fez questão de nos apontar foi como aquela mãe estava se abrindo para uma nova possibilidade ao
admitir que em algum momento desejara a morte do filho.
            Quinze anos se passaram depois dessa reunião e, hoje, posso ver com outras lentes aquela cena que vivi ali.
Aprendi muito desde então com o que cada um pode experimentar de mais ambivalente em suas relações familiares.
Como muitas vezes não deixamos aparecer o que realmente sentimos porque, caso deixemos, seremos açoitados pela
sociedade por isso.
            A verdade é que venho lidando com pacientes com retardo mental desde então e não há ocasião em que pai ou
mãe se mostre tranquilamente separado da doença do filho. As perguntas como “O que eu fiz para ter um filho assim?”,
“Por que eu?”, “Por que comigo?” são muito comuns no discurso, manifesto ou encoberto de pais de crianças com
deficiência mental.
            Além disso, devemos considerar a individualidade de cada pessoa dentro de uma família. O que acontecerá com
uma família que tenha um membro com determinadas limitações Não se pode responder por causa das diferenças entre
as pessoas e, consequentemente, entre as famílias.
            No entanto, se considerarmos as perguntas que os pais costumam se fazer ou apenas pensar com manifestação
de uma verdade irrefutável para esses pais, estaremos mais próximos de ajudar do que se tentarmos fazer com que eles
parem de pensar coisas erradas. Eles – pais e mães – realmente acreditam que tenha acontecido algo com eles, que a
deficiência dos filhos mostre para o mundo algo deles mesmos. Não há como lidar com isso de forma equilibrada e
tranquila.
            Na família de Claudio, podemos observar claramente que o próprio Claudio não foi o tema central na maior
parte das vezes. O mais interessante é notar que isso não era em absoluto percebido pela família. Chegavam ao
consultório para resolver o problema da agressividade dele, falavam uns dos outros o tempo todo e saíam de lá com a
percepção de que estavam tratando do que chamavam “problema do Claudio”.
            A cruel expectativa depositada em Claudia, de que ela pudesse vir a ser a pessoa que continuaria a construção
que o pai começara em sua própria infância; a ferida que o retardo mental de Claudio causara na mãe e no pai; a falta
do carinho, tão necessário a uma criança pequena para sua construção pessoal e suas consequências para a vida de
Claudia; a falta de limites de Maria, tanto para lidar com os filhos quanto ara impor alguma distância ao ex­marido; a
pouca ou nenhuma escuta de Carlos em relação ao sofrimento de sua ex­mulher e de sua filha foram apenas alguns dos
problemas identificados por mim em apenas três entrevistas com eles.
            O primeiro passo à frente, em minha percepção, foi dado quando Claudia abriu espaço para falar de seus
problemas com o pai. Inicialmente, a tendência dela foi se colocar num lugar de vítima, possivelmente para que
obtivesse de mim o que não conseguia obter do pai. Quando pudemos falar dessa questão por outro prisma, ela parece
ter se desconcertado, mas ao mesmo tempo, seguiu em frente.  Foi quando começou a falar de seus próprios planos e
começou a perceber que não tinha quase nenhum plano que não envolvesse a dependência financeira de seu pai.
            Pude perceber em Claudia certa confusão com o lugar que ocupava nessa família. Era filha de Carlos e Maria?
Era mais filha de Maria e companheira potencial do pai? De alguma forma, algo de sua infância vem sendo trazido até
hoje e interfere de forma contundente em suas relações atuais, não apenas com a família, mas até com seu marido. Nas
palavras de Mannoni encontramos uma reflexão pertinente:
 
Com  efeito,  os  fatos  reais  vividos  por  uma  criança  não  são  tais  como  poderiam  ser
11/09/2015 O Retardo Mental na Família: construindo caminhos alternativos
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testemunhados por outros; é ao mesmo tempo o conjunto das percepções que ela tem deles e o
valor simbólico que se desprende do sentido que essas percepções assumem para o narcisismo
do sujeito. (2004; p. 16).
 
            Os efeitos das dificuldades vividas por Claudia em sua primeira infância foram sendo corroborados e até
aumentados em sua adolescência e, ao que tudo indica, sua vida adulta ainda é permeada por coisas não ditas e coisas
impostas, num lugar onde o diálogo não merece espaço.
            A grande questão que me levou a formular a indicação de terapia familiar para a família de Claudio foi o modo
como a visão sistêmica se encaixou como instrumento de compreensão do panorama familiar. A situação, o contexto, o
todo instantâneo daquela família precisava ser trabalhado para que o chamado sintoma pudesse recuar em toda sua
bizarrice. Nas palavras de Mony Elkaim encontramos uma boa perspectiva para embasar o encaixe do enfoque
sistêmico para este caso:
 
A teoria dos sistemas é, por definição, uma teoria em que a causa é atual. Segundo ela, um
sintoma  é  sempre  apropriado,  pois  reflete  o  comportamento  adaptado  ao  contexto  social  da
pessoa e, de nenhuma forma, um comportamento inadaptado oriundo do passado prescinde de
alguma função do presente.  Essa foi uma ideia revolucionária no campo da psicologia clínica:
ela  obrigou,  pela  primeira  vez  que  considerássemos  a  situação  atual  do  paciente.  Isso
implicava,  logicamente,  que,  se  um  sintoma  fosse  apropriado  ao  contexto  social  atual  e,
portanto, adaptado a este último, o terapeuta precisava mudar o contexto a fim de eliminar o
sintoma. (2000; p. 98).
 
            A abordagem sistêmica da família de Claudio me levou, principalmente a questionar o que realmente se poderia
fazer ali para ajudar o jovem Claudio, se eu atendesse apenas ele. Esta minha ideia tem também sua raiz numa
compreensão fenomenológica, onde sempre cabe a pergunta: qual é o problema que se tem aqui?
            Um tratamento que levasse a um projeto terapêutico formulado com base nos sinais e sintomas apresentados
por Claudio viria muito provavelmente a ser um eterno apagar de incêndios, dia após dia, que era exatamente o lugar
que aquela família já conhecia.
            As relações entre os membros da família que poderiam ser nomeadas mais tranquilamente como relações
problemáticas não me pareceram, desde o início, relações que incluíssem Claudio, mas todas aquelas que não o
incluíam. Lidar com ele não era insuportável por ser misterioso, não era insuportável porque fazia as pessoas lidarem
com algo diferente do que estavam acostumadas. Era insuportável porque era muito cansativo, desgastante, fisicamente
inviável.
            A relação entre Claudia e o pai, por exemplo, era uma relação muito mais complexa, que nenhum dos dois
parecia estar apto a questionar, muito menos a tentar modificar. Outras palavras de Mony Elkaim nos servem como
fonte de reflexão no subsistema Pai­Filha:
 
     
Nesse momento, qual deve ser a posição do terapeuta? Em primeiro lugar, ela comporta uma
compreensão tingida de emoção, pois o terapeuta é confrontado com duas pessoas que, naquele
frente­a­frente,  gostariam  de  se  amar,  mas  têm  medo.  Ambas  podem  dizer,  com  toda
legitimidade, que sentiram falta de amor na infância. Ambas procuram se situar, mas, nessa
busca, falta­lhes uma experiência – precisamente a de ter o sentimento de ter ocupado um lugar
no qual pudessem ter sido respeitadas como elas mesmas. (2008; p. 30).
 
            Tomando como ponto de partida a dificuldade que cada um, pai e filha, viveram na infância, torna­se mais fácil
e útil adotar uma visão que busque compreender os meandros das relações entre os dois. Atualmente longe de ser uma
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relação saudável, traz na história de cada um os elementos necessários para iluminar a compreensão do terapeuta e da
própria família, que provavelmente perceberá novidades em sua forma de funcionar quando começar a olhar para
outros problemas além da agressividade de Claudio.
 
Conclusão
De acordo com minha experiência clínica, não é exagero afirmar que muitos pais que trazem adolescentes, ou crianças,
ou adultos deficientes que denominam como ponto de problemas na família acabam saindo do consultório com a
indicação contundente de uma terapia.
            Na maioria das vezes, a indicação será de terapia familiar, o que não impede que uma indicação de terapia
individual vá inclusa no pacote. Cabe nos perguntarmos o que leva a esse tipo de indicação. Cabe também nos
perguntarmos constantemente se isso é realmente um fato, ou apenas uma impressão minha. Cabe perguntarmos várias
coisas o tempo todo.
            A questão é que não temos como esperar as respostas para todas as perguntas. Apesar disso, não faz sentido
parar de perguntar, aceitar a inércia.
            No caso aqui apresentado, a mudança foi provocada por uma intuição inicial do profissional de que algo além
do que as pessoas ali denominavam como problema poderia ser também um problema.
            A questão do retardo mental na família pode servir para mascarar e nomear outros aspectos das relações
familiares como problemas, quando, na verdade, podem ser apenas pontas de iceberg.
            Quando mergulhamos no mundo complexo da convivência com pessoas portadoras de retardo mental
percebemos que em alguma dimensão, os problemas enfrentados pelas famílias são os mesmos que os enfrentados
pelas famílias que não possuem membros deficientes mentais.
            O trabalho de Piaget e Inhelder é um trabalho emblemático, ainda que fale sobre o desenvolvimento cognitivo e
não sobre os aspectos relacionais ou familiares. Esse trabalho nos mostrou como os sujeitos com deficiência mental
passavam pelos mesmos estádios de desenvolvimento cognitivo que os indivíduos sem retardo. A diferença principal
estava no tempo que cada estádio levava para chegar.
            Apesar de não podermos fazer uma correlação simplista para as questões familiares, sociais e afetivas, podemos
fazer alguma correlação, com todo o cuidado que a situação exige. Isso se torna possível quando uma família chega ao
consultório e diz que o único problema é o comportamento alterado do filho deficiente. Aí está um ponto altamente
suspeito. Não há família sem questões, problemas ou segredos. Podemos e devemos desconfiar de qualquer discurso
que tente apontar em sentido oposto a esta última afirmação.
            No caso da família de Claudio, foi exatamente isso que aconteceu. A família chegou para tratar um de seus
membros e saiu com a indicação de tratamento para todos os outros; para toda a família.
            Este caso clínico aponta na direção de uma avaliação cada vez mais consistente dos casos que se nos
apresentam. A complexidade do ser humano deve ser sempre considerada. A família tem todo o direito de tentar
mascarar, não olhar, ignorar os problemas mais profundos. Nós, profissionais, não temos esse direito.
            O retardo mental funciona, muitas vezes como a peneira para tapar o sol dos problemas familiares. Todavia,
não é o único detalhe usado pra isso. Agressividade em adolescentes, homossexualidade, dificuldade de escolhas,
problemas de socialização também têm aparecido com maior frequência nos consultórios. A família geralmente tem
muito a contribuir para que o quadro melhore, quando há o que ser melhorado. Muitas vezes, entretanto, a família
precisa ser tratada para que as concepções individuais deixem de gerar conflitos e passem a gerar consensos.
 
Referências Bibliográficas
Elkaim, M. (org.) Terapia Familiar em Transformação. São Paulo: Summus, 2000.
_________ Como Sobreviver à Própria Família. São Paulo: Integrare, 2008.
11/09/2015 O Retardo Mental na Família: construindo caminhos alternativos
http://www.polbr.med.br/ano14/pcl0414.php 8/8
TOP
Mannoni, M. A Primeira Entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[1] Dados pessoais essenciais foram modificados para preservar o anonimato das pessoas aqui descritas.

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