Este artigo discute as tentativas dos enfermeiros de assumirem funções médicas sob o pretexto de "trabalho de equipa", argumentando que os enfermeiros na verdade querem ser médicos. O autor argumenta que os médicos precisam defender firmemente os limites de suas próprias competências e não ceder a táticas de manipulação dos enfermeiros.
1. O ENFERMEIRO QUE QUER SER MÉDICO!
(artigo de opinião)
A profissão de médico granjeou ao longo dos anos uma mística, um poder sedutor e uma posição
social invejáveis. O poder dos médicos atingiu um auge mas esse auge claramente já passou. A
classe médica é atacada directa e indirectamente, diariamente, pelas mais diversas classes
profissionais. E tem vindo a ceder. Cede a uma chantagem emocional em que o médico é levado
a um sentimento de culpa quando tenta liderar os restantes profissionais, sendo apelidado de
arrogante. Cede porque muitos médicos esqueceram a defesa dos interesses da classe e do doente
olhando apenas pelos seus próprios. Cede porque está no epicentro de uma chuva de pressões e
métodos engenhosos para enfraquecer a classe e dos quais não tem capacidade de se defender.
Todos ambicionam retirar desta enorme riqueza que é a profissão médica o quinhão que mais lhes
interessa. Alguns almejam o prestígio, outros o poder, outros ainda o dinheiro. Este texto foca os
enfermeiros em particular, deixando reflexões sobre outras classes para mais tarde.
Os enfermeiros querem ser médicos! Disso já não há dúvida. Poucos dos mais recentes
enfermeiros optariam pela enfermagem se pudessem escolher sem restrições entre serem médicos
e enfermeiros. Muitos deles de facto tentaram e não conseguiram. Estabeleceram então como
cruzada da sua vida profissional e como forma de lidar com a sua frustração, hostilizar a classe
médica e conquistar a medicina. Primeiro fingem uma falsa paz com os médicos na hora de
aprenderem com eles nos respectivos cursos e em posteriores especializações, mestrados e
doutoramentos, depois denigrem sempre que podem a classe médica muitas vezes junto do
próprio doente e por fim, sendo aquilo a que já se começa a assistir, usurpando funções de
diagnóstico e terapêutica aos médicos, apregoando ainda que o fazem melhor, invocando entre
eles uma suposta superioridade (??) intelectual e de qualidades humanas.
Estas são algumas tácticas de “guerrilha” com que todos os médicos, numa ou outra altura, já
tiveram contacto. Mas existem a nível mais formal tentativas de sustentação intelectual e moral
para este sentido de evolução da enfermagem. O primeiro e sobejamente conhecido é o trabalho
de equipa. No sentido de valorizarem a sua participação em todos os actos médicos como
prescrição (administração de medicamentos e execução de protocolos), cirurgias (instrumentação
e apoio à anestesia), meios complementares de diagnóstico (colheita de sangue, etc) e sempre que
haja alguma tentativa de um médico levar a cabo qualquer tarefa de forma integral e isolada,
ainda que seja da sua competência, é utilizado o argumento do trabalho de equipa (ou falta dele).
Se um médico fizer sozinho, ou com o auxílio de outros colegas, aquilo para que tem
competência está a vitimizar o enfermeiro porque o está a excluir dessa tarefa, logo negligencia a
equipa, logo não é um bom “team player”, logo é arrogante e egocêntrico e logo não defende os
melhores interesses do doentes, que, por acaso, também são os enfermeiros quem melhor sabe
quais são. No fim logo, logo, o médico acaba por ceder e incluir o enfermeiro na tarefa, mesmo
que a executasse tão bem ou melhor sem ele. Muitos médicos foram seduzidos por esta
“delegação de funções” e a comodidade que ela trouxe. Na sua falta de humildade, acharam que
os enfermeiros eram todos “desatentos” e que os podiam integrar nas tarefas médicas, através de
procedimentos que achavam desinteressantes e consumidores do seu precioso tempo e que os
enfermeiros iriam agradecer a Deus a migalhas que lhes eram dadas. Acontece que os
enfermeiros podem fechar os olhos a muita coisa mas nunca andam a dormir. Aproveitaram as
oportunidades e consolidaram a suas posições. Pouco depois autoproclamaram-se indispensáveis
2. nas tarefas que lhes foram dadas e na sua “agenda” futura está a aquisição de novas tarefas agora
de forma não tão insidiosa e peçonhenta mas de forma frontal e confrontante se necessário.
A verdadeira genuinidade do “espírito de equipa” dos enfermeiros deve ser avaliado, não da
forma como o exigem aos médicos mas sim como o levam a cabo junto dos outros profissionais
com quem trabalham (por ex. auxiliares)
Ordem dos Enfermeiros – 2004: “Relativamente às intervenções de enfermagem que se iniciam
na prescrição elaborada por outro técnico da equipa de saúde” (tentativa de depreciação daquele
que é comummente conhecido como médico) “o enfermeiro assume a responsabilidade técnica
pela sua implementação” (tarefa médica - com trabalho de equipa) “Relativamente às
intervenções de enfermagem que se iniciam na prescrição elaborada pelo enfermeiro, o
enfermeiro assume a responsabilidade pela prescrição e pela implementação técnica da
intervenção” (tarefa de enfermagem - sem trabalho de equipa).
Uma outra tentativa de legitimação intelectual do sentido de evolução da enfermagem consiste
em chegar a um consenso entre enfermeiros acerca das suas próprias competências (por ex. “ICN
Framework of Competencies for the Generalist Nurse”), dar-lhe um ar de rigor por exemplo
através de “consenso alcançado com a técnica de Delphi”, e convencer quem manda que, se é um
consenso então tem de ser implementado. Se esta prática está errada? Acho que não. Pelo
contrário, até acho que quando pretendemos ver a nossa profissão evoluir devemos usar
ferramentas para que ela evolua num sentido positivo. O problema, para mim, reside no
conteúdo. Quando aspiramos a definir competências da nossa profissão temos de nos certificar
que essas competências não pertencem já a outra profissão. Os enfermeiros parecem não querer
respeitar essa regra tão elementar. Eles têm de procurar e encontrar as suas competências fora da
esfera médica, senão tudo não passa de um teatro para tornar legitimo aquilo que é usurpação de
funções tal como definido no artigo 358º do Código Penal e punido por lei.
Assim considero que a classe médica tem de reagir!
Os médicos têm de se colocar no seu lugar de liderança da medicina, sem pudores e sem nenhum
tipo de complexo de culpa. Têm que contar com a pressão e a manipulação dos enfermeiros e
outros profissionais e reagir de forma corajosa. Não se podem deixar iludir por falsas amizades
mas apenas trabalhar com profissionalismo sem a ideia de que são necessárias “alianças” ou
“cedências” para poderem exercer a sua profissão livremente. Não podem contribuir para a
formação de profissionais que utilizem essa formação contra a classe. Têm de garantir que actos
médicos sejam feitos apenas por médicos e denunciar quaisquer situações em que isso não se
verifique. Não podem ter medo do confronto aberto com enfermeiros nem que “os enfermeiros
não gostem deles”. Eles usam esse medo a seu favor. Têm de lutar ainda mais veementemente
contra colegas médicos cujas atitudes incorrectas, má prática ou negligência ponham em perigo o
doente e enfraqueçam a força moral bem como o prestígio da classe.
O corporativismo dos enfermeiros é tão ou mais forte do que o dos médicos e está sempre
presente, ainda que muitas vezes tentem passar a ideia que o corporativismo médico é uma
espécie de código de máfia, que só defende a própria classe e do qual todos os restantes
profissionais são vítimas.
3. Os médicos devem ter orgulho no seu corporativismo e na profissão médica por eles aperfeiçoada
ao longo dos anos. A medicina é uma profissão aberta a todos os que estejam interessados num
percurso idóneo através do ensino nas faculdades de medicina, independentemente de serem já
enfermeiros ou não.
M.P. – Presidente da ANM