1) O documento discute o ensaio "O fator econômico no romance brasileiro" de Graciliano Ramos e como ele criticou a falta de uma abordagem econômica nos romances brasileiros da época.
2) Há debates sobre as intenções de Graciliano ao escrever o ensaio, se foi apenas para ganhar dinheiro ou fazer uma análise literária crítica.
3) O ensaio também é analisado no contexto mais amplo do papel do autor e da relação entre autor, obra e mercado literário.
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
Nem Monstros Nem Deuses Edson Soares Martins
1. 1
Nem monstros nem deuses: escritores brasileiros e seu
projeto político-literário a partir de 1930
Somos criaturas medíocres, nem deuses nem diabos. E não
nos interessa, fora das obras eternas feitas por degenerados
extraordinários, a representação de anomalias. (Graciliano
Ramos, O fator econômico no romance brasileiro)
I. Graciliano Ramos: leitor crítico do romance brasileiro
Em O fator econômico no romance brasileiro1,2, ensaio crítico sobre a literatura
brasileira que lhe era contemporânea, o autor de São Bernardo discorre sobre como a
ausência de uma postura reflexiva e crítica dos elementos econômicos contribuía para a
impressão de incompletude dos romances brasileiros. Graciliano Ramos inicia sua reflexão
lamentando que a leitura de romances brasileiros, mesmo quando se trata dos melhores
romancistas, somente poucas vezes não redunde numa “impressão de que os nossos escritores
não conseguem fazer senão trabalhos incompletos”.
Hoje a nossa atenção não consegue deixar de ser sensível a um certo mecanicismo das
relações de causalidade, perceptível em “O fator…”. Entretanto, não é produtivo, de modo
algum, gravitar em torno da tentativa de caracterização desse ensaio como um exercício de
digressão cáustica, dirigida por Graciliano contra seus contemporâneos.
Outras tentativas de debate do ensaio nem sempre tiveram o cuidado de evitar extrair
conclusões depreciativas de algumas cartas de Graciliano, datadas de março de 1937 —
apesar das referências consultadas datarem “O fator…” como escrito em julho de 1945 — em
que Graciliano parece referir-se a este artigo como tendo sido escrito com fins pecuniários3.
Na primeira destas carta, escrita em 08/03/1937, Graciliano confidencia à esposa:
“Anteontem, como necessitasse dinheiro para pagar a quinzena da pensão, fui ao Observador
Econômico, onde me deram cem mil-réis por aquela miséria que escrevi em casa de Zélins. É
um horror, não vale cinco tostões.” Aludindo a encomenda de um outro artigo para o
periódico dirigido por Olímpio Guilherme, após a aceitação deste, afirma: “Vou escrever o
1
RAMOS, Graciliano. “O fator econômico no romance brasileiro”. In.: GARBUGLIO, José Carlos, BOSI,
Alfredo, FACIOLI, Valentim. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987. p. 124.
2
Doravante, para referência a este ensaio, empregaremos a abreviatura FERB, seguida da página entre
parênteses. No corpo do texto, reduziremos o título a “O fator…”.
3
RAMOS, Graciliano. Cartas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. p. 183.
2. 2
artigo e morder os cinqüenta mil-réis do homem.” Noutra carta, de 28/03/1937, volta ao
assunto:
…estou ocupado, fabricando um artigo encrencado para o
Observador. Apesar de ter sido uma miséria o que escrevi, Olímpio
Guilherme pediu-me outro de três páginas, uma coisa comprida, muito
chata, mas que vai me render uns cem ou duzentos mil-réis. […]. Por
enquanto eu vou vivendo de artigos e do que Murilo [Miranda] me
tem arranjado. […]. Vou cavar os cobres com um artigo enorme sobre
a economia no romance.
Em 31/03/1937, ainda preocupado com a própria situação financeira, o escritor
alagoano arremata o assunto, na carta à esposa:
Afinal falei pelo arame com o diretor da revista e dois dias
depois aceitei a encomenda dum artigo sob medida: três páginas, três
mil palavras a respeito da influência da economia no romance
brasileiro. Como da outra vez, deixei a composição das besteiras para
a última hora.
Há, real e mesmo necessariamente, uma incontornável relação entre as condições de
produção do ensaio (sob encomenda), ainda mais quando as dificuldades financeiras estão de
tal forma realçadas. Seria, entretanto, mesmo diante desta evidência, raciocínio
demasiadamente simplório negar a importância do ensaio baseando-se tão-somente nisto.
Clara Ramos4, por exemplo, ignora estas contingências financeiras e, na breve
referência que faz às idéias veiculadas em “O fator…” (mas, sobretudo, a outro ensaio, o
“Decadência do romance brasileiro”5), focaliza um outro aspecto, no âmbito da psicologia
individual do seu pai:
Graciliano Ramos é um sujeito benquisto. Embora não participe
de igrejinhas. Não freqüente os críticos. Não tenha papas na língua. E
suas declarações sejam suficientes para transformá-lo num “marginal
literário”. Ele cai ferozmente em cima da Semana de Arte Moderna,
uma tapeação. E os romancistas nordestinos de 30? Uns “analfabetos
de talento. Embrenhando-se pela sociologia e pela economia, lançam
no mercado romances causadores de enxaqueca ao mais tolerante dos
gramáticos”. Se o consideram pessimista com relação ao nosso
panorama cultural, reage, nega a decadência da literatura brasileira:
“Não pode decair o que nunca existiu.”
É necessário dizer que nenhum desses raciocínios permite, efetivamente, uma
exploração produtiva — livre de reducionismos e distorções — do ensaio de Graciliano.
Circunscrever o problema à esfera financeira ou delimitá-lo nas fronteiras da incontinência
4
RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 137.
5
RAMOS, Graciliano. Decadência do romance brasileiro. In.: GARBUGLIO, José Carlos, BOSI, Alfredo,
FACIOLI, Valentim. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987. p. 114-116.
3. 3
verbal, são formas distintas de dispersão banalizante6, que mais distanciam que aproximam o
leitor de hoje destas páginas importantes de esforço crítico, empreendidas pelo criador de
Baleia e Fabiano.
Parece-nos que as considerações de Graciliano se acomodam, embora
embrionariamente, em um problema muito mais amplo e melindroso: o papel subjetivo que o
autor desempenha no processo criativo, ou, em termos mais gerais, a relação autor-
composição-obra, complexificadas pela existência de um mercado consumidor de literatura.
O ensaio de Graciliano é, em uma dimensão mais superficial, um juízo pessoal sobre a
prosa romanesca que lhe é contemporânea. Contudo, na dimensão crítica, abstraída a
reputação literária do autor, este texto também é uma tentativa — ancestral, seria o caso de
afirmar-se — de compreensão e sistematização crítica de um desgaste ou dissolução da
“plataforma ideológica” que vigora no nosso modernismo pós-30. Trata do mesmo desgaste
sempre apontado pelos melhores comentadores desse período literário, com destaque para o
estudo de Lafetá sobre a crítica modernista. Invariavelmente, seja no campo da historiografia
e dos “panoramas”, seja naquele dos estudos mais focalizados, não é incomum encontrar
“insatisfações de leitor” vigorosamente fundidas ao esforço e objetividade do crítico, tecidas,
portanto, em um molde muito semelhante ao de Graciliano em “O fator…”.
Citemos, por exemplo, João Luiz Lafetá7, que configura o ponto frágil para além das
exigências ideológicas (mas também, e sobretudo, estéticas) do leitor Graciliano:
Em 1928 é José Américo de Almeida, com A bagaceira; em
1930 é Rachel de Queiroz com O quinze; depois vêm Jorge Amado,
Amando Fontes, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, e uma fileira enorme de romancistas menores, diferentes uns
dos outros, tateantes em sua maioria, produzindo uma literatura que,
embora marcada pelo estouro libertador dos anos vinte, permanece
aquém dele quanto à radicalidade da experimentação.
Como se pode ver, Lafetá enxerga na falência do ímpeto criador, afeiçoado por
comodismo aos esquemas estruturais antigos (principalmente àqueles oriundos da diluição
de/em nosso naturalismo), a matriz do desgaste que é tratado por Ramos. João Luiz Lafetá,
inclusive, diametralmente oposto a Graciliano, nega enfoque localista ao problema: para ele,
trata-se de um dado observável universalmente. E ainda acrescenta, entre as hipóteses
(grosseiras, assinala, com modéstia) de sumarização do fenômeno, o engessamento da
pesquisa estética pela premência do embate ideológico que se travava então8.
6
Agradeço o termo (que tanto tem demonstrado serventia) ao Prof. Plácido Cidade Nuvens, sociólogo estudioso
de nossas letras.
7
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p. 227.
8
Ibidem. p. 227-228.
4. 4
Hipóteses não faltam, nem mesmo aquelas que se poderiam denominar,
verdadeiramente, de grosseiras. Graciliano, como se depreende na citação a seguir, delineia
como causa suficiente da diluição da plataforma ideológica um vetor que é descrito pela
condição objetiva de vida do escritor e de sua inserção no mundo do trabalho:
Procuramos a razão da indiferença dos nossos escritores para os
assuntos de natureza econômica. Talvez isso se relacione com as
dificuldades em que se acham quase todos num país onde a profissão
literária ainda é uma remota possibilidade e os artistas em geral se
livram da fome entrando no funcionalismo público. Constrangidos
pelo orçamento mesquinho, esses maus funcionários buscam na ficção
um refúgio e esquecem voluntariamente as preocupações que os
acabrunham. Sendo assim, temos de admitir que são cuidados
excessivos de ordem econômica que lhes tiram o gosto de observar os
fatos relativos à produção. O que eles produzem rende pouco, rende
uma insignificância, e é possível que não queiram pensar nisso.9
(Grifos nossos)
Sem dúvida, é esta uma situação delicada. Poderíamos entender como falta de sutileza
ou de argúcia, o mecanicismo das relações de causalidade, tão evidente, sem falar da
brutalidade cínica das conclusões que Graciliano extrai? Apenas se — e somente se —
desconsiderarmos a profunda mordacidade que ressuma dessa “queixa-crime” apresentada por
Graciliano, num tom diverso daquele que emprega no outro ensaio, já referido, complementar
a esta reflexão10. Deixemos, momentaneamente, a questão sem resposta, considerando que,
em “O fator…” não se pode ver apenas a língua ferina e os proverbiais maus-bofes do autor
de Caetés, nem atribuir as debilidades da argumentação à pressa do trabalho feito por
encomenda.
II. Uma visão crítica marcada pelo neonaturalismo?
Colheremos, em Antonio Candido11, um outro ângulo de visão, distinto das conclusões
de Lafetá, e inquietante por introduzir uma questão terminológica:
Na maré montante da Revolução de Outubro, que encerra a
fermentação antioligárquica já referida, a literatura e o pensamento se
aparelham numa grande arrancada. A prosa liberta e amadurecida, se
desenvolve no romance e no conto, que vivem uma de suas quadras
mais ricas. Romance fortemente marcado de neonaturalismo e de
inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos
9
RAMOS, Graciliano. O fator econômico no romance brasileiro. In: Op. cit. p. 126.
10
“Decadência do romance brasileiro” foi publicado em setembro de 1946. Nele, o esforço de compreensão é
ainda mais vivo e joga papel estruturante muito mais essencial na construção do juízo crítico.
11
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945: (Panorama para estrangeiros). In:_____. Literatura
e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. p. 123.
5. 5
característicos do país: decadência da aristocracia rural e formação do
proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge
Amado, Amando Fontes); êxodo rural, cangaço (José Américo de
Almeida, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos); vida difícil das
cidades em rápida transformação (Érico Veríssimo).
O que primeiro salta aos olhos é o nivelamento de Graciliano ao âmbito do romance
da seca e do cangaço. Publicado em alemão, em duas partes, respectivamente em 1953 e 1955
(no mesmo ano em que os rodapés de crítica literária são recompilados sob a forma do ensaio
“Ficção e confissão”), o estudo é posterior, pelo menos, a Caetés (1933), São Bernardo
(1934), Angústia (1936), Vidas secas (1938). Em “Os bichos do subterrâneo” — e mesmo
em “Ficção e confissão” —, Candido marca definitivamente a fortuna crítica de Graciliano e,
nestes ensaios, o que o crítico paulista enxerga como matéria literária não está circunscrito ao
campo do trinômio seca-cangaço-êxodo. Afirma, com o costumeiro brilhantismo, que os três
primeiros romances, de 1933 a 1936, “constituem essencialmente uma pesquisa progressiva
da alma humana, no sentido de descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as
aparências de vida superficial12. Liberto do balizamento imposto por um “panorama para
estrangeiros”, torna-se inevitável ao crítico fugir das imagens comuns e acompanhar a
complexidade de raciocínio exigida pelas grandes obras literárias.
Mas uma palavra, sem dúvida, impele-nos de volta à questão terminológica por nós
pretextada anteriormente: neonaturalismo é um termo a que possamos conferir validade
metodológica suficiente para empregá-lo relativa e indiscriminadamente aos romances que o
panorama de Candido apresenta — em conjunto com a maioria esmagadora dos nossos
historiógrafos literários — como um todo quase coeso ou homogêneo?
Acrescentamos ao problema outra indagação: Graciliano Ramos deixa ressoar o
neonaturalismo apontado por Candido ao longo de seu raciocínio em “O fator …”, como
pedra de toque de seu raciocínio? Perguntamo-nos se é isso que podemos ver no trecho que
transcrevemos a seguir: “Leitores comuns e perfeitamente equilibrados, buscamos na arte
figuras vivas, imagens de sonhos; tipos que se comportem como toda a gente, não nos
mostrem ações e idéias que brigam com as nossas”13.
O mero confronto das afirmações de Ramos com o repertório teórico de que se dispõe
sobre o naturalismo não autoriza que respondamos afirmativamente: há aí mais uma
reivindicação de conaturalidade entre as esferas literária e biossocial que naturalismo ou
neonaturalismo propriamente ditos.
12
CANDIDO, Antonio. Os bichos do subterrâneo. In:_____. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano
Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999. p. 71.
13
RAMOS, G. In: GARBUGLIO, J. C et al. Op. cit. p. 127.
6. 6
Ainda no mesmo ensaio, Graciliano afirma:
Com certeza os nossos autores dirão que [não?]14 desejam ser
fotógrafos, não têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que se
passa na vida. Mas então por que põem nomes de gente nas suas
idéias, por que as vestem, fazem com que elas andem e falem, tenham
alegrias e dores?15
Descontada a veemência à argumentação, não há, em princípio, elementos evidentes
bastantes para distinguir a adesão à realidade defendida por Graciliano do enfoque realista,
naturalista ou neonaturalista. Raciocinando através de algo semelhante à litote, poderíamos,
quando muito, concluir que Graciliano crê que não é possível tratar de gente e de seus
destinos sem uma colagem quase fotográfica ao real. Mas Candido não é leitor ingênuo nem
crítico literário de rodapés circunstanciais, nem pensa no ensaio de Graciliano, mas em seus
romances.
Amplia-se a discussão, recorrendo a Carlos Nelson Coutinho, que, no seu ensaio
lapidar sobre Graciliano16, reconhece o domínio incontestado do naturalismo no período em
que, por exemplo, Caetés é escrito (1925-1928). Este fato emana de uma facilidade permitida
à permanência de recursos naturalistas pelo regionalismo modernista, em que também abunda
a “reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos”. Tal constatação exige que
levemos a sério o naturalismo como uma das matrizes estéticas reativadas e dinamizadas pelo
romance realista de 1930, cujo abandono parece ser sentido por Graciliano como indicativo da
decadência da produção romanesca de então.
Ainda raciocinando a partir das pistas fornecidas por Coutinho, parece que a exigência
aparentemente “ranzinza” de Graciliano, pugnando pelo perfil do leitor como indivíduo
médio, é subitamente complexificada e reassegurada em sua pertinência histórica, exigida
pelo complexo mental candente de que participa o romancista alagoano:
O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca
clássica, a supressão de uma das dramati personae que compõem o
grande romance realista: o herói problemático. As obras
estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do mundo
convencional e vazio, isto é, à reprodução superficial de ambientes e
de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira manifestação
literária da decadência burguesa, isto é, de uma época na qual a rígida
divisão capitalista do trabalho, alienando os homens em relação à
história, dificulta-lhes uma visão de conjunto da realidade global […].
Assim, descrever apenas a realidade cotidiana, como pretendem os
naturalistas, significa mutilar a realidade global, desconhecendo as
14
Suspeitamos que uma falha tipográfica tenha omitido este advérbio.
15
RAMOS, G. In: GARBUGLIO, J. C et al. Op. cit. p. 126.
16
COUTINHO, C. N. Graciliano Ramos. In: _____. Cultura e sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A,
2000. p.166.
7. 7
forças que reagem — mesmo que de uma forma igualmente alienada
— contra a alienação capitalista.17
Na percepção aguda de Carlos Nelson Coutinho vamos encontrar resposta às duas
questões que pairavam sobre nossas tentativas de interpretar este primeiro ensaio de
Graciliano e a visão do papel subjetivo do escritor na criação do objeto de arte.
Não há, portanto, no realismo modernista de 1930 um neonaturalismo. Proporíamos,
como categoria endógena do regionalismo de 30, uma adesão dialética ao real, compreendida
também como meta (e não como recurso composicional, como se quer ler na assertiva de
revivescência do naturalismo) Esta categoria, além de metodologicamente pertinente, é ainda
extensível não somente a um conjunto amplo de obras significativas escritas no período, como
também à dimensão processual e teórica do universo da criação artística daquele momento
histórico. Está simultaneamente presente, em outras palavras, nas obras — em maior ou
menor grau — e nas reflexões de seus criadores.
Isto posto, cumpre agora acrescentar que é possível compreender que o termo
neonaturalismo não descreve, em Antonio Candido, uma recidiva dos cacoetes arquitetônicos
do romance naturalista do século XIX, como parece ser necessário ler em J. L. Lafetá.
Descreve, isto sim, um componente invariável de uma vigorosa e ancestral tradição realista.
Sua invariabilidade, todavia, não mantém relação biunívoca com o grau de positividade de
suas implicações estéticas na construção do objeto literário, ou seja, nem exige nem prescinde
daquele “mundo convencional e vazio”. Logo, trata-se, no seio de uma tradição realista antiga
mas ainda cheia de viço, de um componente invariante cuja importância é maior ou menor ao
longo da linha do tempo. O que nem Candido nem Coutinho cogitam explicitamente é a razão
que impele os romancistas de 30 na direção de um reaproveitamento do instrumental
neonaturalista. Parece-nos que a experiência de 1930 alcança a subjugação tópica da
inspiração naturalista a procedimentos amplos e generalizantes, tomados da tradição realista
que remonta, no mínimo, ao Dom Quixote de Cervantes, dinamizados pelo enriquecimento
das investigações estéticas marxistas, em especial da produção de Lukács.
Cremos, ainda amparados por Georg Lukács18, que a exigência de Graciliano, centrada
em termos de detalhamento e podendo ser compreendida como estratégia de superação de
17
Ibidem. p. 166-167.
18
LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever?: uma contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o
formalismo. In:_____. Ensaios sobre literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 47-99.
(Biblioteca do Leitor Moderno, 58). A relação entre os ensaios de Graciliano, aqui debatidos, e o ensaio de
Lukács foram esboçadas por VILLAR, Socorro de F. P. Graciliano Ramos: história e romance, teoria e ficção.
Graphos, João Pessoa, v. 1, n. 2, p. 76-81, jul./dez. 1999. Cremos que o ensaio de Villar, interessante em alguns
aspectos, sofre por não apreender a verdadeira dimensão dos conceitos empregados por Lukács. A autora chega a
acreditar que Graciliano pensa em números e estatísticas quando este se refere ao fator econômico como motivo
8. 8
uma representação caótica da realidade, não tende a representar um mundo em que a realidade
se confunde com a sua manifestação imediata. A superação do naturalismo como expressão
de materialismo vulgar (é, sobretudo, este o emprego do conceito em Lukács) é possível
quando o detalhe está plenamente integrado aos motivos geradores da obra19. Este feito é
alcançado, no mínimo, por Graciliano e Lins do Rego, autores-síntese do período, como
compreende J. A. Castello20. Estes autores, na estruturação de seus romances, tratam a
realidade sem o nivelamento em que “o ser humano equipara-se às coisas”, não havendo neles
traços de “descritivismo minucioso e perfeccionista, cujo resultado final é um painel
indiferenciado que tudo nivela, onde o mais importante coexiste em pé de igualdade com as
subnarrativas21.”
Eis então, nossa compreensão do que subjaz ao aparente mecanicismo do raciocínio de
Graciliano Ramos: o protesto irônico de um intelectual-artista, preocupado com a perda de
adesão à realidade de que padeciam as obras cujo papel histórico, na expectativa de
Graciliano Ramos, seria o de aprofundar a compreensão de um projeto político para a cultura
brasileira.
III. Cooptação de intelectuais e diluição da plataforma ideológica no
romance
Permanece, entretanto, um aspecto a definir: trata-se de entender o contexto geral da
expressão, do tom geral com que Graciliano teoriza, em “O fator econômico no romance
brasileiro”, os vetores ideológicos e estéticos cuja diluição tanto o inquietam no fazer literário
de seu tempo. De fato, cremos que a aparente extravagância do raciocínio de Graciliano,
veiculada pelo recurso à ironia farpante, decorrem da tentativa de reverter o processo de
diluição da plataforma ideológica — nem de longe está posto o problema da forma —,
promovido pela vulgarização com que é tratado, sobretudo, o elemento técnico da descrição,
presa ao mundo convencional e vazio.
Isto é apreensível, por exemplo, tanto na sutil elegância da antítese empregada por
Lafetá (“fileira enorme de romancistas menores”), quanto, desde que rasgado o véu da ironia
estruturador da narrativa romanesca, sendo impossível a Villar, portanto, compreender o problema do
detalhamento inscrito na esfera da descrição naturalista.
19
FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. (Coleção Logos).
20
CASTELLO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira: Origens e Unidade (1500-1960). São Paulo: Edusp,
1999. (Vol 2).
21
FREDERICO, Celso. Op. cit. p. 36.
9. 9
ácida, na objeção parcial, mas enfática, interposta por Graciliano a Jorge Amado, o mais
proeminente entre os diluidores da plataforma ideológica do projeto realista, que é o projeto
de um renovado romance gestado a partir da década de 1930:
E, não tendo visto o operário no serviço, dificilmente
acreditamos que ele manifeste ódio a um patrão invisível e queira
vingar-se. Em Suor, de Jorge Amado, as personagens descansam ou
se exercitam nos movimentos de greve, e em Jubiabá mexe-se uma
gente vagabunda, que vive de pequenos furtos e contrabandos. O
trabalho aparece aí quase como um prazer e torna meio inconseqüente
esse livro notável, que tem passagens como a sentinela de defuntos,
uma das melhores páginas escritas no Brasil.22
É exatamente deste tom rabugento ou demasiado pessimista com que também se refere
ao Dostoiévski de Crime e castigo, que conseguimos destrinçar a tentativa angustiada de
Graciliano no sentido de reaproximar o romance brasileiro de então de uma tradição realista
universal. A mesma desproporção entre causalidade e efeito, aplicada ao mestre do realismo
russo, a quem se deve inclusive — ladeado por Tolstói — um novo tipo de herói
problemático23, evidencia que o criador de Fabiano e de Sinhá Vitória ressente-se do
esgarçamento dos contornos que definem o projeto de renovação do romance brasileiro, que
volta a se afastar do romance universal. Talvez a incompreensão da categoria do herói
problemático, impensável na lhaneza do naturalismo de província que Graciliano combatia,
mas revigorado em Dostoiévski, em um “período de crise radical dos valores burgueses,
notadamente os do humanismo individualista”24, faça com que Ramos erga também uma
objeção a aspectos da composição em Crime e castigo:
Foi o que sucedeu a Dostoievski na parte relativa à situação
financeira das personagens de Crime e castigo. Raskolnikoff e a irmã,
Sônia, e o resto da família do bêbado estão arrasados, dificilmente
poderiam continuar a figurar na história. Nesse ponto surge
Svidrigailoff e suicida-se, deixando aos necessitados o dinheiro
preciso para o romance acabar. Certamente Svidrigailoff morreu
direito e teve antes o cuidado de passar a noite num pesadelo que é
uma verdadeira maravilha, mas isso não impede que ele haja dado fim
à vida expressamente com o fim de deixar alguns milhares de rublos
àquela gente sem recursos.25
Não trataremos, neste momento, do problema referente à uma “intuição” da diferença
essencial que afasta Dostoiévski do modelo naturalista que Graciliano tenta demolir. Isso
exigiria uma discussão mais profunda sobre a natureza do herói problemático lukácsiano, que
22
RAMOS, G. In: GARBUGLIO, J. C. Op. cit. p. 126.
23
COUTINHO, C. N. Op. cit. p. 181.
24
Ibidem. p. 181.
25
RAMOS, G. In: GARBUGLIO, J. C. Op. cit. p. 126.
10. 10
deixaremos, nesta altura, em suspensão26. O que nos interessa destacar é que, em que pese a
aparente leviandade ou excessiva severidade da grande parte dos juízos críticos tecidos por
Graciliano, este persegue uma linha de raciocínio que confere uma unidade sensível — mas
não explícita — a suas considerações: a denúncia da decadência do romance — e isto quer
dizer, mais explicitamente, a decadência da proposta realista de romance brasileiro
defendida por Graciliano. Há no texto de Graciliano um posicionamento corajoso de um
escritor, mas também a profundidade de percepção teórica necessária a um intelectual que se
ocupa dos rumos de uma arte e cultura nacionais.
Comparemos, para ilustrar uma tendência divergente, as considerações que vimos
fazendo sobre as intenções que animariam — e exaltariam — o espírito de Graciliano, com
este trecho de um artigo de jornal de Gilberto Freyre27:
Para o crítico literario J. Donald Adams o realismo não basta ao
romance. No romance que não vae alem da "simulação do facto" que
não accrescenta a essa simulação o que o crítico norte-americano
chama "visão", Adams não encontra condições de forma de arte.
É preciso que haja, no romance, a "infusão poetica" que entre
nós, nos romancistas mais novos, elle encontraria em Jorge Amado,
por exemplo, animando frequentemente o seu realismo, ás vezes
puramente jornalistico, de transcendencia, e tambem em José Lins do
Rego. Nesse é ainda mais frequente essa illuminação da simples
reportagem ou da pura chronica – em que ás vezes elle e Jorge Amado
se perdem – pelo poder poetico de ligar de repente o particular com o
geral. Tambem se verifica o mesmo em Rachel de Queiroz, em Lucio
Cardoso, em Gastão Cruls, em Cornelio Penna, em Erico Verissimo,
em Amando Fontes. Este, com todas as suas deficiencias de escriptor,
deu ás tres meninas de Os Corumbas uma significação profunda:
brasileira e humana. Uma victoria do seu poder postico sobre o
realismo photographico.
Nada de se confundir essa "infusão poetica" com o chamado
"romance poetico". Trata-se de certo poder de illuminar os factos –
digamos assim – ou as situações, psychologicas ou sociaes,
conseguindo o romancista, por meio desse poder, transcender os
interesses immediatos dos caracteres ou das figuras do romance, e dar
á sua fala, ao que elles pensam, ao que elles fazem, uma significação
que accrescente alguma coisa á nossa compreensão da vida.
A adesão ao real é tratada, por Freyre como realismo, havendo aí um certo
menosprezo pela adesão como elemento estruturante da literariedade, além da imprecisão que
o emprego da palavra assume no contexto, enquanto aquilo que o autor de Sobrados e
mocambos chama de “infusão poética” corresponderia a uma genérica capacidade de
transcender a dificuldade de construir a fusão orgânica do herói e do mundo, ou do particular
26
O problema é tratado pelo filósofo marxista em LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Editora 34; Duas cidades, 2000. 240 p.
27
FREYRE, Gilberto. A visão poética no romance. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 24 nov. 1939.
11. 11
com o geral, como prefere enxergar Freyre. Mutuamente excludentes, o raciocínio de um vê
artisticidade quando o outro enxerga diluição e vice-versa. É muito natural, portanto, que
Freyre exclua Graciliano das referências literárias com que produz sua argumentação.
Podemos admitir, sem dificuldades e para retomar o problema do menosprezo do fator
econômico explicado pela condição de “funcionário público” do prototípico romancista
brasileiro, que a produção de riqueza, enquanto elemento econômico, não ocupa, por
exemplo, a centralidade das preocupações narrativas de José Lins nos romances do ciclo da
cana-de-açúcar.
Mesmo Gramsci28, em um contexto rigorosamente diverso, pergunta-se, a respeito dos
literatos italianos, por que motivo “a atividade econômica, o trabalho como produção
individual e de grupo não lhes interessa?”.
Mas não há, de fato, no período, autor a quem, enquanto elemento presente, a
produção interesse como fator que determina o papel das personagens, diferenciando-as,
hierarquizando-as, fazendo parte do panorama de contradições que preside a vivência
subjetiva sob a égide do capitalismo?
Há mais de um. Há o próprio Lins do Rego. Um bom exemplo disto é a dificuldade
que o moleque Ricardo tem para perceber os mecanismos de dominação de que ele é vítima,
no romance ambientado em Recife. Os gritos do senhor de engenho, dirigidos a todos, não lhe
doem tanto quanto os gritos do seu Alexandre, modesto proprietário de um padaria, dirigidos
aos outros. Reconhecendo que escapa da gritaria do português, Ricardo, admite, atônito e
alienado, que o ódio que nutre ao “portuga” não nutria ao velho Zé Paulino. O requinte
alienante da condição de trabalhador assalariado permite-lhe ler como privilégios as
estratégias de exploração do seu trabalho, o que não era possível perceber na relação com o
velho coronel, cuja autoridade provinha da posse da terra, mediatizando a dominação através
de relações próximas aos resquícios do único traço aparentado ao servilismo feudal na
formação econômica do Brasil: a fixidez do trabalhador na terra.
Todavia, há aí duas ressalvas importantes a fazer. Não se pode dizer, em primeiro
lugar, que, por estar a produção de riquezas deslocada da centralidade, não figure, do primeiro
ao último romance do ciclo da cana-de-açúcar — usando Lins do Rego como exemplo —, o
trabalho como atividade a partir da qual, inclusive, definem-se as personagens e os problemas
que enfrentam.
28
GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 3. ed. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1986. 273p.
12. 12
O mestre-purgador Cândido no controle do cozimento do açúcar, o purgador negro e
convenientemente anônimo, o velho maquinista Fausto, os mestres carreiros Miguel, Chico,
João e Pedro Targino (em Menino de engenho); o professor Maciel e seus funcionários (em
Doidinho); os trabalhadores do eito João Rouco, João de Rosa, Manuel Severino (em
Bangüê); os padeiros e a figura gigante do jardineiro-sacerdote Lucas (em O moleque
Ricardo); o cozinheiro Manuel (de Usina), além do aguardenteiro Alípio, o seleiro José
Amaro (de Fogo morto) e toda uma infinidade de personagens que, se não aparecem sempre
em sua faina diária, não deixam de individualizar-se pelo trabalho. Mas é sobretudo no
engenho, usina e eito que podemos ver um espaço próprio da produção de riqueza, investido
de inegável função de estrutura das relações sociais desempenhadas pelas personagens.
Em segundo lugar, Lins do Rego, para limitar esta digressão ao autor paraibano, não
deixa de ser escritor profissional por ser funcionário público. Acontece que aí encontra-se
embutido um problema de profundidade portentosa, que passaremos a desenvolver: a
cooptação de intelectuais pela máquina burocrático-ideológica do Estado. Referindo-se a um
aspecto específico da formação social da intelectualidade brasileira, em estudo sobre Lima
Barreto, Carlos Nelson Coutinho29 expressa-se assim:
… num período em que predominava uma radical separação
entre as classes e em que o trabalho permanecia sob o estigma da
condição servil, os intelectuais — oriundos quase sempre da classe
média — utilizavam a cultura como meio de diferenciação, de
prestígio e elevação social, acentuando assim o seu isolamento com
relação à concreta realidade nacional-popular. Se a isso
acrescentarmos o fato de que os intelectuais dependiam para seu
sustento, quase sempre, de uma integração no aparelho burocrático do
Estado, teremos as linhas histórico-sociais gerais da específica
modalidade brasileira do “intimismo à sombra do poder”. Do
romantismo ao concretismo, sob formas aparentemente variadas, essa
tendência caracterizou uma corrente significativa e quase sempre
dominante da intelectualidade brasileira.
O “intimismo à sombra do poder” já reorientara, em nossa literatura, o projeto
romântico de desvincular-se do complexo colonial, ao erigir o indianismo como locus
articulatório do desvio de rota, para não ser necessário tocar no problema do negro, que
representava o cotidiano do universo do trabalho, como afirma Coutinho, baseado em Nelson
Werneck Sodré.
29
COUTINHO, C. N. O significado de Lima Barreto em nossa literatura. In: _____. Cultura e sociedade no
Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p.104.
13. 13
Clóvis Moura, em Dialética radical do Brasil negro30, pode servir-nos de fonte de
exemplificação ao aludir ao episódio em que Rodolfo Piacentini altera o enredo da ópera Lo
Schiavo (Carlos Gomes), escrito por Taunay, além de deslocar a ação do século XVIII para o
século XVI. Tudo isso para evitar que o negro figurasse como herói, apesar do próprio Carlos
Gomes, como pode-se ler em Antonio Rangel Bandeira31, ter pedido a Taunay “que o
entrecho não tivesse mais índios. Já estava cansado de bugres…”.
Quando Carlos Nelson Coutinho reaproveita o termo cunhado por Thomas Mann e
enxerga no “intimismo à sombra do poder” uma modalidade específica de cooptação de
intelectuais, o estudioso de Gramsci e de Lukács não o faz sem deixar de observar que este
último, o húngaro Georg Lukács, também emprega o conceito de Mann, associando-o
invariavelmente ao problema da “via prussiana”. Lênin, que esboçou o problema na obra O
Programa Agrário da Social Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907,
enxerga nesse modelo uma forma de transição ao capitalismo moderno (tendo como modelo a
Alemanha) em que o novo concilia com o velho, sendo um modo clássico de transição não-
democrática, configurando condições em que se estabelece “um reformismo pelo alto”32.
Para Coutinho, o que caracteriza o “intimismo à sombra do poder” não é uma
mecânica mudança de posição político-ideológica, mas uma capitulação, muitas vezes
matizada de “inconformismo declarado” ou “mal-estar subjetivamente sincero diante da
situação social dominante”33. Carlos N. Coutinho, refere-se principalmente ao contexto que
emoldura a obra de Lima Barreto e, situa o problema dentro da dimensão artística e cultural:
Em tais condições sociais, ou seja, nas condições de um país
semicolonial imerso na “via prussiana” de desenvolvimento, a criação
de autênticas obras estéticas realistas torna-se muito difícil. A quase
completa estagnação social, a impossibilidade de captar no plano
fenomênico imediato ações humanas significativas (capazes de servir
de objeto à figuração artística)34 acentuam ainda mais a tendência dos
criadores a situar-se no plano do “intimismo à sombra do poder”.
30
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994. p. 184.
31
A referência ao texto de Rangel, publicado na Revista do Arquivo Municipal (n. 191, 1970), é indireta, tendo
sido colhida da transcrição que dele faz Moura; Idem. p. 204.
32
Para maiores detalhes, ver RÊGO, Walquíria Domingues Leão. Questões sobre a noção de via prussiana. In:
ANTUNES, Ricardo, RÊGO, Walquíria Domingues Leão. Lukács: um Galileu no século XX. 2. ed. São Paulo:
Boitempo Editorial, 1996. p.104-124.
33
COUTINHO, C. N. O significado de Lima Barreto em nossa literatura. In: Op. cit. p.104.
34
Este trecho parece esclarecer a afirmação de Prudente Morais Neto sobre a falta de material romanceável, da
qual Graciliano discorda em “O fator econômico no romance brasileiro” (p. 124-125) e “Decadência do romance
brasileiro” (p. 114).
14. 14
Mas o problema não reside exclusivamente na quadra histórica em que escrevia o
autor de Clara dos Anjos. Também é evidente que não se restringe à esfera da
intelectualidade, embora seja este o aspecto que destacamos neste estudo.
Chico Buarque e Paulo Pontes, na “Apresentação” que escrevem para a publicação do
texto de Gota d’água35, situam os dois aspectos do problema. Demonstram a progressão
histórica das estratégias de cooptação de intelectuais, embora referindo-se principalmente ao
contexto dos anos 70. E estabelecem o problema para além da esfera cultural:
A verdade é que o capitalismo caboclo atribuiu uma função, no
tecido produtivo, aos setores mais qualificados das camadas médias.
Não apenas como compradores, beneficiários do desvario consumista,
mas, sobretudo como agentes da atividade econômica. Em outras
palavras, o capitalismo caboclo começou a ser capaz de cooptar os
melhores quadros que a sociedade vai formando. E isso, de certa
forma, é inédito no Brasil.
Inédita a cooptação dos melhores quadros das camadas médias porque, no período
anterior à década de 70, os autores de Gota d’água enxergam uma tradição rebelde que
incluiria Gregório de Matos, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Oswald de Andrade, Noel
Rosa e a tradição de rebeldia já “madura, consciente” no próprio Graciliano. Antes da década
de 70, portanto, a cooptação do sistema, pré-capitalista na primeira metade do século XX, era
ainda incapaz de seduzir os melhores quadros das camadas médias brasileiras.
Na década de 40, que Graciliano contempla e analisa, parece ser possível ver o que
afirmam Chico Buarque e Paulo Pontes, a propósito das perspectivas disponíveis ao
intelectual brasileiro pequeno burguês:
Hoje é possível perceber que essa rebeldia era fruto da
incapacidade que os projetos colonizadores sempre tiveram em
assimilar amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma função
dinâmica no processo social. O que estava reservado ao intelectual
pequeno burguês antes do período a que estamos nos referindo? O
jornalismo mal pago, o funcionalismo público, uma cadeira de
professor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia.36
Parece que somente com o estreitamento radical da relação entre capitalismo e
autoritarismo, na década de 70, o projeto colonizatório encontra ferramentas de cooptação
capazes de diluir a tradição de rebeldia dos melhores quadros da pequena burguesia.
35
BUARQUE, Chico, PONTES, Paulo. Apresentação. In: _____. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975. p. XII.
36
Ibidem. p. XIV.
15. 15
No período observado por Graciliano Ramos, em que o romance brasileiro caudatário
da tradição realista “representou uma prática literária produto de uma crise e, ao mesmo
tempo, propunha uma tomada de posição do escritor diante do status quo37”, é natural que se
estabeleça uma relação entre a liberdade criadora e a absorção do artista criador pela máquina
do Estado. Graciliano esboça o problema da cooptação, embora não lhe alcance uma definição
precisa.
O mesmo problema aparece, como já afirmamos, sob ótica levemente nuançada, no
outro ensaio, de 1946, “Decadência do romance brasileiro”. Nesse ensaio, Graciliano Ramos,
nomeia quatro representantes do romance brasileiro da época (Rachel de Queirós, Jorge
Amado, José Lins do Rego e Amando Fontes) e identifica em suas obras uma curva, que
representa a realização de obras inferiores àquelas que já haviam produzido depois da
desobstrução do terreno, em 1930, “embrenhando-se pela sociologia e pela economia38”.
Em “Decadência do romance brasileiro”, vê-se o deslocamento geográfico como
causa mortis provável — mas, certamente, não como a única causa mortis — da atenuação
daquele romance em que, uma década antes, viam-se “pedaços do Brasil — Pilar, a ladeira do
Pelourinho, Fortaleza, Aracaju39”:
Os nossos melhores romancistas viviam na província, miúdos e
isentos de ambição. Contaram o que viram, o que ouviram, sem
imaginar êxitos excessivos. Subiram muito — e devem sentir-se
vexados por terem sido tão sinceros. Não voltarão a tratar daquelas
coisas simples. Não poderiam recordá-las. Estão longe delas,
constrangidos, limitados por numerosas conveniências. Para bem
dizer, estão amarrados. Certamente ninguém lhes vai mandar que
escrevam de uma forma ou de outra. Ou que não escrevam. Não,
senhor. Podem manifestar-se. Mas não se manifestam. Não
conseguem recobrar a pureza e a coragem primitivas. Transformaram-
se e foram transformados. Sabem que a linguagem que adotavam não
convém. Calam-se. Não tinham nenhuma disciplina, nem na gramática
nem na política. Diziam, às vezes, coisas absurdas — e excelentes. Já
não fazem isso. Pensam no que é necessário dizer. No que é vantajoso
dizer. No que é possível dizer.40
Não poderíamos deixar de perceber como um artigo esclarece o tom mordaz do outro.
Graciliano Ramos, nestes textos a que ele pessoalmente atribuía tão pouco valor, fixava o
início de um dos mais importantes debates teóricos da produção crítica e teórica que se
debruça sobre a literatura brasileira. A função social do escritor, sua participação num projeto
37
SACRAMENTO, Sandra Maria Pereira do. O perfil feminino na obra de José Lins do Rego: opressão e
discernimento. São Paulo: Cone Sul, 2001. p. 48.
38
RAMOS, G. Decadência do romance brasileiro. In: GARBUGLIO, J. C. et al. Op. cit. p. 114.
39
Ibidem. p. 114.
40
Ibidem. p. 116.
16. 16
político que não sirva de suporte à legitimação da dominação capitalista e sua relação com o
aparato do Estado ainda estão a merecer estudos mais profundos e mais amplos. O convite
lançado por Graciliano ainda há de receber, certamente, contribuições mais ricas e mais
consistentes que esta nossa tímida iniciativa.
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17. 17
VILLAR, Socorro de F. P. Graciliano Ramos: história e romance, teoria e ficção. Graphos,
João Pessoa, v. 1, n. 2, p. 76-81, jul./dez. 1999.
Resumo: Propondo-se uma leitura de um ensaio de Graciliano Ramos, “O fator econômico
no romance brasileiro”, este trabalho pretende discutir o processo de diluição da plataforma
ideológica que se tornara hegemônica no modernismo brasileiro, a partir de 1930, sob a ótica
expressa pelo autor de São Bernardo. Para tanto, investe-se na compreensão de observações
críticas de Carlos Nelson Coutinho e de conceitos tomados a Georg Lukács, além de discutir
considerações críticas de Antonio Candido e João Luís Lafetá.
Palavras-chave: Graciliano Ramos — romance brasileiro — modernismo brasileiro