1. O documento discute a importância do uso rigoroso dos referenciais teóricos nas ciências humanas.
2. Apresenta os conceitos de pressupostos teóricos e paradigmas que devem ser considerados para escolher referenciais compatíveis.
3. Discutem-se equívocos como combinar referenciais incompatíveis de diferentes tradições teóricas.
1. Professor Felipe Correa de Mello
Metodologia da pesquisa científica
O uso do referencial teórico nas ciências
humanas
2. 1. O papel da teoria na pesquisa científica
2. Rigor científico no uso dos referenciais
teóricos: pressupostos teóricos e paradigmas
3. Rigor científico no uso dos referenciais
teóricos: alguns equívocos a serem evitados
4. Implicações dos pressupostos na redação do
texto da pesquisa
3. A reflexão acerca dos pressupostos teóricos e
paradigmas aqui apresentadas foram desenvolvidas
a partir do livro de Burrel & Morgan (G, BURREL.;
MORGAN, G. Paradigms and Organizational Analysis.
London: Heineman, 1979).
As matrizes teóricas apresentadas operam como
tipos ideais e são mapas dispostos a ajudar a situar os
conjuntos de teorias e conceitos a serem usados na
pesquisa acadêmica em ciências humanas.
Os modelos aqui propostos não pretendem
esgotar as reflexões de cunho metodológico/teórico,
mas sim estimular a reflexão sobre o rigor no uso dos
referenciais teóricos.
4. 1. O problema: combinação de referencias teóricos incompatíveis
em muitas pesquisas observadas;
2. Pressupostos teóricos: definição e descrição;
3. Paradigmas nas ciências sociais.
O papel da teoria na
pesquisa científica
5. A importância da teoria
Como observa o sociólogo Pierre Bourdieu (O poder simbólico,
Bertrand, 2010), o termo “teoria” vem do grego theorein que significa
“fazer ver”;
A teoria faz ver para além da percepção imediata (que é a do
senso comum);
A visão científica é mediada pela teoria e assim encontra,
agrupamentos, problemas, relações, regularidades, significados etc.
onde a visão do senso comum não os consegue encontrar.
6. A importância da teoria
O referencial teórico é uma espécie de óculos que faz com o que
o pesquisador contemple a realidade observada (o objeto de
pesquisa) de determinada maneira e não de outra;
Existem diversos referenciais teóricos (“óculos”) à disposição dos
pesquisadores. Cada um faz ver a realidade social de determinada
maneira.
7. Assim, cada “óculos” irá permitir uma
determinada visão sobre o objeto da pesquisa:
uma determinada visão sobre como se organiza a
sociedade, como se produz os elementos da
consciência, como e porque agem os indivíduos,
como se relacionam estes indivíduos etc.
8. Rigor científico no uso dos
referenciais teóricos:
pressupostos teóricos e
paradigmas
9. Rigor no uso dos referenciais teóricos
É muito importante definir um corpo teórico consistente e em certa
medida homogêneo;
Isto quer dizer que em nome do rigor científico, dever ser usado
como referencial teórico conceitos e teorias que compartilhem
pressupostos teóricos comuns;
Perde-se o rigor e contamina-se a objetividade da pesquisa
quando são usados conceitos pertencentes à famílias teóricas
divergentes, ou até mesmo incompatíveis, entre si.
10. Caminhos para o uso rigoroso e consistente dos referenciais teóricos
Primeiro passo:
Antes de tudo, é necessário uma reflexão sobre os pressupostos
teóricos que presidem os corpos teóricos que se pretende usar na
pesquisa.
Segundo passo:
A partir da definição dos pressupostos, estabelecer a matriz de
paradigmas (família de conceitos e teorias) onde determinados
corpos teóricos estão situados.
12. pressupostos teóricos
Os pressupostos teóricos compõem um conjunto de visões sobre a natureza das
ciências sociais (A) e sobre da natureza sociedade (B) que antecedem e
presidem o aporte teórico a ser escolhido pelo pesquisador.
Podem ser definidos em torno dos seguintes debates de cunho filosófico-
sociológico:
A. Natureza das ciências sociais
Ontológico: realidade é externa ou produto da consciência?
Epistemológico: que tipo de conhecimento pode ser obtido: como separar
o verdadeiro do falso?
Natureza humana: as ações humanas são criações voluntárias ou são
determinadas por circunstâncias externas?
Metodológico: método ideográfico ou método nomotético?
B. Natureza da sociedade
A sociedade é organizada em torno da ordem ou do conflito?
13. Os pressupostos teóricos antecedem
a teoria propriamente dita e definem
quais aportes teóricos serão usados.
Por “anteceder” a teoria podemos
dizer que os pressupostos compõem um
conjunto de crenças que cada
pesquisador, por conta de sua trajetória
de vida e acadêmica, traz para seu
trabalho.
14. Realismo vs. Nominalismo: O debate ontológico
A perspectiva realista assume que o realidade social possui existência “em
si”, exterior e independente da consciência e percepção dos indivíduos.
Segundo esta perspectiva, o mundo social possuí estatuto ontológico similar
ao do mundo físico-natural.
Pode ser chamada, também, de perspectiva objetivista ou fisicalismo social.
A perspectiva nominalista assume que a realidade só existe “para si”, ou
seja, para a percepção e consciência dos indivíduos.
A realidade é assim tomada como algo relativo e o mundo social é
constituído sobretudo de nomes, conceitos e rótulos criados pelos indivíduos e que
contribuem para estruturar a realidade.
Pode ser chamada, também, de perspectiva subjetivista ou fenomenológica.
Limite máximo desta perspectiva é considerar que a realidade é uma ficção
construída pelos indivíduos.
15. Devemos lembra que os debates aqui apresentados formam uma
espécie de eixo continuum.
Cada termo da dicotomia forma extremos (tipos ideais) que
balizam o eixo em que cada teoria possa estar inserida.
O propósito do eixo é heurístico: é proposto como um guia que
ajude a identificar onde se localizam as teorias dentro de questões
centrais sobre a natureza das ciências humanas e a natureza da
sociedade, contribuindo, assim, para identificar aproximações e
distâncias entre corpos teóricos.
Neste caso, quanto ao debate ontológico o estruturalismo de
Althusser e algumas correntes marxistas estariam situadas próximo
ao ponto “realista”, enquanto que a corrente construcionista se
situaria próxima ao ponto “nominalista”.
Já a sociologia de Pierre Bourdieu, estaria localizada em torno do
meio do eixo.
16. Anti –positivismo vs. positivismo: O debate epistemológico
A postura positivista postula que é possível explicar e predizer o que
ocorre no mundo social através da busca de padrões e relações entre os
indivíduos.
Segundo esta perspectiva é possível desenvolver hipóteses e testá-las.
Baseia-se em procedimentos explicativos e na busca de relações de
causa e efeito e na busca de leis gerais para as organizações sociais.
A postura anti-positivista rejeita a busca de explicações e leis gerais
para as organizações sociais.
Rejeita que seja possível atingir a verdade objetiva nas ciências
humanas.
Baseia-se em procedimentos interpretativos.
17. Voluntarismo ou determinismo: O debate sobre a natureza humana
Para a perspectiva determinista o indivíduo é determinado por estruturas
externas e não possui liberdade de ação.
Segundo esta perspectiva o indivíduo não é sujeito de suas escolhas e
ações.
Pode ser denominada também de perspectiva objetivista ou mecaniscista.
Para a perspectiva voluntarista o indivíduo possui liberdade absoluta em
suas escolhas e ações, não sendo determinado por quaisquer elemento externo
à sua consciência racional (sejam eles, o ambiente natural, o ambiente social,
sua história, seus genes, seu inconsciente etc)
Pode ser denominada também de perspectiva subjetivista ou finalista.
18. Ideográfico ou nomotético: O debate metodológico
O método ideográfico busca a particularidade dos objetos sociais.
Busca, assim, descrever e interpretar a história de vida e o contexto de cada
indivíduo, grupo ou instituição.
É fundada na crença de que o objeto das ciências humanas se difere do
objeto das ciências duras em sua particularidade e irredutibilidade às regras e
normas explicativas.
Seus procedimentos de coleta repousam sobretudo em entrevistas
qualitativas, pesquisa participativa, observação e coleta de diários e biografias.
O método nomotético está mais ligado aos procedimentos das ciências
duras e naturais fundados em hipóteses e na verificação experimental.
Busca leis gerais e explicativas para as organizações sociais.
Seus procedimentos metodológicos repousam sobretudo em pesquisas
quantitativas, métodos estatísticos e pesquisas experimentais.
19. Estes quatro debates podem ser condensados num eixo mais geral
organizado em torno de uma dimensão denominada objetivista e
outra subjetivista.
Realismo, determinismo, positivismo e nomotético: objetivista.
Nominalismo, voluntarismo, anti-positivismo e ideográfico: subjetivista.
20. Natureza da sociedade: O debate sobre ordem ou conflito
As organizações sociais são em sua essência organizadas em
torno do conflito ou do consenso?
O debate ordem/conflito está centrado em torno de dois campos, um
enfatizando a estabilidade, integração, ordenação funcional e
consenso, o outra enfatizando a mudança, conflito. Desintegração e
coerção.
A perspectiva sobre a ordem (teoria da regulação) enfatiza a
unidade e coesão das sociedades. A perspectiva sobre o conflito
(teoria sobre a mudança radical) enfatiza conflito estrutural,
dominação e contradição estrutural
Tradicionalmente Durkheim Weber e Pareto se preocupavam mais
com a ordem social, enquanto Marx e a tradição marxista estavam
mais preocupados com os conflitos e mudanças.
22. Burrel & Morgan (1979) argumentam que é possível a partir da
identificação dos pressupostos teóricos mapear os referenciais
teóricos num plano de duas dimensões, com o debate
subjetivo/objetivo num eixo e o debate regulação/mudança
radical em outro.
Cada quadrante corresponde a um paradigma em ciências
humanas.
24. Funcionalista (objetivista-regulação)
Usado geralmente em estudos organizacionais. Busca explicações sobre as
relações humanas. É pragmático e fundado no positivismo sociológico.
Concebe que as relações humanas são objetivas (concretas) e que podem
ser mesuradas via procedimentos científicos.
Interpretativo (subjetivista-regulação)
Focado na análise das “representações” e pontos de vista dos indivíduos.
Indaga sobre as formas e possibilidades de conhecimento e representações.
Tem sua formulação inicial na filosofia de Kant e foi desenvolvido pela
sociologia de Weber e pela fenomenologia de Husserl e Schutz.
Pode ser encontrado nas obras interacionistas de Berger & Luckman,
Goffman e Garfinkel.
25. Humanismo radical (subjetivismo-mudança radical)
Presente nas obras de Lukác,s alguns membros da Escola de Frankfurt,
como Herbert Marcuse, e alguns membros do existencialismo francês como
Sartre.
Estruturalismo radical (objetivismo-mudança radical)
Postula que as sociedades são caracterizadas por conflitos
fundamentais que geram mudanças radicais em suas estruturas
26. Deve-se entender que paradigmas são
famílias de conceitos e teorias.
Um paradigma teórico é, então, definido
pela afinidade e proximidade dos conceitos
e teorias.
27. Rigor científico no uso dos
referenciais teóricos: alguns
equívocos a serem evitados
28. Pós-modernistas vs. críticos da concepção de pós-modernistas
Autores pertencentes à tradição marxista como Terry Eagleton são
fortes críticos da postura denominada “pós-moderna”.
Para estes, não existe de fato uma ruptura entre um sociedade dita
“pós-moderna” e a sociedade moderna.
A maioria dos teóricos marxistas possuem, assim, uma visão de
mundo bastante diferente dos teóricos “pós-modernos”; os problemas
científicos, as abordagens, termos e conceitos são em certa medida
antagônicos.
Sendo assim, falta rigor a um trabalho que misture conceitos de
autores “pós-modernos” como, por exemplo, Pierre Levi, Zigmut
Baumann, Gilles Lipowetiz, François Lyotard com autores da tradição
marxista.
Neste sentido também é recomendável evitar misturar conceitos
de Jurgen Habermas e Pierre Bourdieu que são críticos dos autores „pós-
modernos”, com a obra de autores defensores da existência de uma
pós-modernidade.
29. Deve-se estar atento também para o uso concomitante de conceitos
divergentes, por exemplo:
Não usar autores que possuem conceituações divergentes acerca do termo “ideologia”,
como Terry Eagleton e Richard Rorty;
No campo das reflexões sobre dominação, evitar usar a obra de Foucault junto a autores
da tradição marxista;
Evitar em estudos sobre psicologia e educação misturar os conceitos de Vigotski com
conceitos da psicologia comportamental;
Evitar no campo da praxeologia misturar o conceito de habitus de Pierre Bourdieu com
conceitos vindos da Rational Action Theory;
Num estudo sobre linguagem e comunicação usar ao mesmo tempo o estruturalismo de
Saussure e as noções de dialogismo de Mikhail Bakhtin; bem como misturar a hermenêutica
de Gadamer /Paul Ricouer com as teorias de Habermas e/ou Bourdieu.
31. I. Uso de diferentes termos segundo o referencial teórico
É evidente a influência que cada conjunto de conceitos e teorias exercem na
formulação dos problemas de pesquisa e da construção dos objetos de
pesquisa.
Cada paradigma, cada conjunto de pressupostos, implicam uma maneira
diferente de indagar a realidade social.
Por outro lado, deve-se também estar atento para a influência dos
pressupostos no léxico usado na pesquisa.
Assim, um estudo próximo do eixo objetivista usa tendencialmente termos
como desvelar, revelar, demonstrar, explicar, fatos, hipóteses, verificação;
bem como servir-se de lógicas de causa e efeito.
Já um estudo mais próximo do eixo subjetivista usa termos como indicar,
interpretar, compreender, indícios.
32. II. Relação entre pressupostos teóricos e estilo discursivo.
É comum também determinada visão acerca da ciência influenciar
a abordagem do discurso científico:
Por exemplo:
Se o pesquisador possui uma visão mais objetivista/positivista é
comum escrever o texto em terceira pessoa e/ou na voz passiva,
indicando assim o distanciamento do autor em relação à realidade
objetivada na pesquisa.
Já se o pesquisador postula que a ciência é um
empreendimento coletivo de construção de objetos e de
proposições científicas, é comum o uso do discurso na segunda
pessoa do plural.
33. III. Ciências sociais e praxeologia
É preciso observar também o adequado uso do termo para designar os objetos de
pesquisa das ciências humanas conforme o referencial teórico.
A título de exemplo:
Segundo a teoria da representação desenvolvida por E. Goffman, o
interacionismo simbólico e de muitos estudos do campo da comunicação, o termo
usado é ator social.
Já Bourdieu, crítico (em certa medida) de Goffman e do interacionismo
simbólico* usa o termo agente social.
Neste caminho, Bourdieu também evita usar o termo sujeito, vinculado
segundo sua perspectiva à filosofia da consciência.
Já o termo sujeito, por sua vez, é consonante com aportes teóricos como o da
psicologia, fenomenologia e psicanálise , entre outros.
Por outro lado, o termo indivíduo, significa “o que não é dividido” e em certa
medida é incompatível à teoria psicanalítica freudiana (que postula que o ser
humano é por essência contraditório, i.e. consciência/inconsciência).
* ver LOPES, Felipe. “Bourdieu e Goffman: Um ensaio sobre os pontos comuns e as fissuras que unem e separam
ambos os autores a partir da perspectiva do primeiro” in Estudos e pesquisas em psicologia, UERJ, RJ, ano 9, n.2, p.
389-407, segundo semestre de 2009.
34. Considerações finais
Conforme observado anteriormente, não se pretende esgotar aqui a
discussão epistemológica na área de ciências humanas, tampouco
“aprisionar” em padrões rígidos o uso de referenciais teóricos.
Uma parte fundamental da prática científica é a criatividade, e como
observa J.B Thompson (2007) a combinação de ferramentas,
procedimentos e aportes teórico-metodológicos é condição importante
para compreender e entender a complexidade dos objetos das ciências
humanas
Para encorpar a discussão aqui apresentada consultar:
BOURDIEU, P.; WACQUANT. Réponses: Pour une anthropologie
réflexive. Seuil, Paris: 1988.
THOMPSON, J.B. “A metodologia da interpretação” in Ideologia e
cultura moderna. Vozes, Petrópolis: 2007.
Felipe Correa de Mello. Espaço social e espaço simbólico em
Bourdieu. www.slideshare.net/FelipeMello1 /epao-social-e-espao-simbilico-
em-bourdieu
Felipe Correa de Mello. Introdução ao estudo dos sistemas simbólicos.
www.slideshare.net/FelipeMello1/Introduo-ao-estudo-dos-sistemas-simblicos